O Processo de “Desacademização” através dos Estudos de Modelo Vivo na Academia/Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro.*
Ivan Coelho de Sá
SÁ, Ivan Coelho de. O Processo de “Desacademização” através dos Estudos de Modelo Vivo na Academia/Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 3, jul. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/ea_ivan.htm>.
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1. A IDEALIZAÇÃO-EUROPEIZAÇÃO E A QUESTÃO DO NACIONAL: AS CONTRADIÇÕES DO BELO IDEAL E AS “REVOLUÇÕES” TEMÁTICAS
O “complexo” brasileiro de europeização tinha bases muito profundas, estando associado não só à condição histórica determinada por um passado colonial, mas também a um possível sentimento de desenraizamento que provocava um misto de nostalgia e admiração pelo Velho Mundo. Independente das explicações históricas, antropológicas e sociais, esta situação favoreceu a importação do Academismo e, com ele, uma estética fundamentada no idealismo clássico. Na realidade, o europeu nutria pela Grécia, sobretudo no século XVIII, uma admiração similar que o brasileiro sentia pela Europa no século XIX e início do XX, apesar das diferenças históricas e culturais. No Brasil, a importação do Academismo e do idealismo clássico insere-se num fenômeno mais amplo relacionado àquele complexo colonial que convergia para uma necessidade de auto-afirmação.
A influência mais forte e arraigada do antropomorfismo acadêmico ocorreu exatamente através da incorporação do ideal clássico, às vezes convertido no tipo europeizado, emperrando a aceitação plena e a representação fiel dos tipos étnicos presentes na formação do homem brasileiro. A despeito das influências portuguesas, espanholas, italianas e francesas, só para citar as mais evidentes, a arte colonial brasileira, em virtude do isolamento em relação à Europa e do desenvolvimento de artistas nativos, havia assumido um gradual processo de abrasileiramento, mesclando o tipo nativo nas imagens de Nossas Senhoras, santos e anjos amulatados ou acaboclados. Segundo alguns estudiosos, a vinda da corte e a criação de uma Academia espelhada nos moldes franceses, teria contrariado o processo de aceitação do tipo comum brasileiro. Isso foi observado por Gonzaga Duque, para quem a chamada Missão Artística Francesa teria rompido com a tradição de uma arte brasileira, já amadurecida com elementos nativistas, ao implantar um Academismo essencialmente europeu, conforme observou Tadeu Chiarelli:
Numa atitude bastante ousada, Gonzaga Duque não se furta em declarar que a Missão Francesa havia sido um mal para a arte brasileira, pois seria ela a responsável por dois fatos gravíssimos. Em primeiro lugar, teria interrompido uma tradição usual local, que vinha sendo processada no Rio de Janeiro pelos pintores do período colonial. Em segundo, teria introduzido no país um ensino descaracterizador dos elementos autóctones, produzindo uma arte sem significação para o país.[1]
Gonzaga Duque tinha uma idéia pessimista e talvez preconceituosa em relação ao homem brasileiro que, a seu ver, ainda estava em formação. Segundo ele, esta particularidade, associada à problemática social, política e religiosa da antiga Colônia, havia impedido o desenvolvimento de uma arte nacional com características originais.
Para Gonzaga Duque, os elementos formadores da nação brasileira foram três: o branco português (imigrantes, "degredados e judeus"), o índio - com pouca relevância, uma vez que foi quase que totalmente dizimado pelo processo de colonização - e o negro escravizado. Principalmente do cruzamento entre o primeiro e terceiro elementos é que surgiria o mestiço, o homem brasileiro. Para o autor, até a chegada da família real portuguesa, em 1808, os aspectos econômicos da Colônia poderiam ser resumidos pela exploração de Portugal sobre sua colônia e pela exploração do escravo negro pelo senhor branco. Neste contexto, a população, subjugada pela metrópole e pela religiosidade imposta pelos jesuítas era "vadia e beata". Nem mesmo a chegada da família real mudaria este quadro pessimista: o Brasil era constituído por uma raça ainda em formação, sem características próprias, e subjugada do ponto de vista sociopolítico e religioso.[2]
De uma maneira generalizada, esta formação multirracial era encarada sob uma ótica negativa e a sociedade brasileira, sobretudo as elites agrárias, procuravam ignorá-la, voltando-se para os estereótipos europeus tidos como sinônimos de cultura e civilização. Os bons instintos e o gosto pela arte manifestados por D. Pedro II, de acordo com a visão eugênica de Gonzaga Duque, deviam-se não à herança trigueira de D. Pedro I e de D. Carlota Joaquina, mas, sim, aos olhos azuis de seus ancestrais Habsburgo transmitidos pela imperatriz Leopoldina:
Honesto, serio, morigerado e bom; inclinado physiologicamente, para o lado materno, herança que se inculcava pelo seu typo membrudo, louro e d’olhos azues; desviado pela educação do que podia ter ficado de seu pae, as predileções do seu espirito eram todas delicadamente mentaes. Por isso foi mecenas, protegeu letras e artes.[3]
Predominava uma idéia pessimista em relação à miscigenação e havia, até mesmo no Brasil, adeptos da teoria racista da eugenia, pseudo-científica, formulada pelo inglês Galton[4] e fundamentada no critério da “seleção” para atingir o “aperfeiçoamento” do ser humano. Os princípios desta teoria podem ser identificados plasticamente na tela de Modesto Brocos, Redenção de Cam [Figura 1], de 1895. Nesta obra, ele se reporta ao cotidiano rural brasileiro, associando-o a uma antiga tradição bíblica, apócrifa, de cunho eminentemente eurocêntrico, segundo a qual as raças teriam se originado após o Dilúvio, a partir dos três filhos de Noé: Sem, Cam e Jafé. Sem teria sido o tronco originário dos semitas; Cam, dos africanos; e Jafé, dos povos de raça branca da Europa. De acordo com esta versão, a cor negra dos africanos seria uma espécie de castigo por causa da maldição lançada por Noé a seu filho Cam, que escarnecera de sua nudez ao vê-lo adormecido, embriagado pe-los efeitos do vinho. Ao contrário do irmão, Sem e Jafé cobriram respeitosamente a nudez do pai. Em sua tela, Brocos representa uma típica família brasileira: o pai, branco, provavelmente português; a esposa, mulata; a sogra, negra, talvez ex-escrava, e, finalmente, o filhinho, branco, simbolizando o caldeamento de etnias com conotação de aperfeiçoamento. O título da obra - Redenção -, alude à idéia de que a miscigenação, no Brasil, havia possibilitado aos “descendentes de Cam” libertarem-se, finalmente, da maldição bíblica.
Na área da arte, houve influência também de Hyppolyte Taine, professor de História da Arte na Beaux-Arts[5], que desenvolvera sua teoria de determinismo sociológico na qual o espaço geográfico, especialmente o solo e o clima, o meio sociocultural e a raça influenciariam diretamente as manifestações artísticas. Félix-Émile Taunay, Manoel de Araújo Porto-Alegre, Brocos e Gonzaga Duque eram claramente simpatizantes destas teorias deterministas de Taine. Esta alienação da sociedade em relação à sua própria realidade racial repercutia nos meios artísticos oficiais e num país miscigenado, com uma grande variedade de tipos humanos, a Academia, fiel não só ao Classicismo, mas também à mentalidade eurocêntrica, definia como padrão de beleza o tipo idealizado grego. Naturalmente, os alunos tinham a mesma opinião, alguns mais preocupados com a plástica dos modelos como João Maximiano Mafra que chegou a fundar uma sociedade destinada a trazer emigrantes europeus para servirem de modelos na Academia. Entretanto, todas estas questões foram pautadas pelas contradições uma vez que, em contrapartida à crença na eugenia havia também uma calorosa defesa do indianismo que desponta nos primórdios do Império, à época da independência. A figura do índio passa a simbolizar a própria nação que surgia.
No Brasil, ao contrário da Europa, a predominância de uma estética clássico-acadêmica, converge para outra problemática: o já citado complexo de inferioridade oriundo de um passado colonial que colocara o país numa posição periférica. Sendo assim, mais que uma questão puramente estética, uma possível ruptura com o Academismo, ou seja, um processo de “desacademização” implicaria uma operação muito mais complexa envolvendo transformações mais amplas, sobretudo de ordem política e cultural no sentido não só de desvencilhar-se dos modelos conceituais europeus, mas de aceitar o nacional, reconhecendo a existência de uma identidade brasileira. Esse processo foi lento, tendo culminado com os questionamentos modernistas da década de 1920. No entanto, podemos situar como ponto de partida desta busca o plano de construção de uma de identidade nacional desenvolvido no âmbito do próprio Academismo que teve como autores intelectuais, como vimos, Araújo Porto-Alegre e Félix Taunay. Ambos estavam imbuídos de um projeto “civilizatório” a ser liderado pela Academia no sentido de construir não só uma imagem e uma tradição iconográfica, mas também de incentivar uma ética e um patriotismo que, apesar de moldado nos ideais gregos, indicava um forte ufanismo de cunho romântico. Isso foi admitido por Carlos Zílio que, na segunda edição de sua A Querela do Brasil, faz uma redefinição de várias concepções suas:
Araújo Porto Alegre, discípulo dileto de Debret, é o primeiro, e não os artistas do Modernismo, conforme afirmei no livro, a propor uma visão programática para a arte brasileira. Ao fundar o que nomeou como Escola Brasileira de Pintura de estilo acadêmico e temática histórica, Porto Alegre pretendeu criar uma imagem afirmativa para um país recém-independente, que foi encontrar em Vítor Meireles e em Pedro Américo os seus mais importantes representantes. Um projeto amplo, tendo a Academia de Belas Artes como centro, e que objetivava alterar todo o sistema de arte, apontando para um projeto “civilizatório”, isto é, o de equiparação à cultura oficial dos principais países ocidentais.[6]
Isto que dizer que não houve uma interrupção do nativismo colonial. A busca de afirmação nacional mirou-se em outros modelos: o indígena e o europeu. Contraditoriamente, o projeto “civilizatório”, ainda na vaga do Romantismo, vai utilizar o índio, um ser “selvagem”, como símbolo de ufanismo. Esta incorporação do indígena ao projeto nacionalista ocorreu por ele materializar a metáfora da resistência colonial servindo perfeitamente como símbolo máximo de identificação iconográfica de que o novo Estado Nacional tanto necessitava[7]. No entanto, a contradição, aliás marca constante de nossas idiossincrasias, persiste no caráter e na imagem deste índio: na verdade, um ser ambíguo que, apesar de materializar a nova nação, reveste-se física e espiritualmente de caracteres europeus. Isto quer dizer que esta imagem-símbolo do Brasil e do homem brasileiro teria que ser “adaptada” e “retocada” atendendo a dois “senhores”: de um lado, a necessidade de legitimação pela antigüidade dos donos da terra, e, de outro, a insegurança e os anseios de auto-afirmação como herdeiros, também, da civilização européia. Esta dualidade, se vista por outra ótica, talvez não pareça tão contraditória pois, na realidade, o brasileiro tinha, nas suas origens, um misto de “selvagem” e de “civilizado”.
Na literatura e na pintura os índios idealizados nunca foram tão brancos, assim como o monarca [D. Pedro II] e a cultura brasileira tornavam-se mais e mais tropicais. Afinal, essa era a melhor resposta para uma elite que se perguntava incessantemente sobre sua identidade, sobre sua verdadeira singularidade. Diante da rejeição ao negro escravo e mesmo ao branco colonizador, o indígena restava como uma espécie de representante digno e legítimo. “Puros, bons, honestos e corajosos”, os índios atuavam como reis no exuberante cenário da selva brasileira e em total harmonia com ela. [...] Pátria sem ser nação, no Brasil os símbolos “surgiam” na mesma velocidade em que se consolidava a imagem do Império. E assim, por meio do indianismo, realizava-se um velamento da colonização.[8]
O índio foi exaltado pelo Romantismo que o “enobreceu” com sentimentos europeus, sendo incorporado pela literatura e pela arte, ao passo que o negro foi ignorado por muito tempo. A difusão dos romances indianistas despertou um interesse maior nos artistas pelos temas originários da literatura nacional, mas, mesmo assim, os tipos eram idealizados, situando-se num meio-termo para agradar “gregos e troianos”: não eram evidentemente nem helênicos, nem europeus, mas também não eram totalmente indígenas. A idealização foi recorrente em quase todos os artistas, desde Vitor Meireles até Antonio Parreiras que fez, em pleno 1909, uma Iracema alva como uma européia [Figura 2], com o rosto estrategicamente encoberto pela mão e pelos cabelos negros, os únicos, aliás, a denunciarem sua etnia.
Uma pintura que fazia do índio brasileiro algo similar a personagem da mitologia clássica, ou a exemplo da visão romântica européia do homem natural. As escravas romanas, brancas e pálidas, que abundavam na temática religiosa, nada tinham a ver [...] com um país cujo grosso da população era de escravos negros. É forçoso reconhecer que estes não despertavam absolutamente o interesse dos pintores e escultores da Academia. Não apenas como tema, mas também como modelos não eram desejados...[9]
Com relação ao negro, a prevenção iconográfica era ainda maior, pois havia as implicações sociais relacionadas ao trabalho escravo. Suas representações restringiam-se mais ao interesse pessoal dos artistas estrangeiros, geralmente viajantes, verdadeiros “cronistas” visuais das particularidades exóticas e étnicas da antiga colônia. Artistas como Jean-Baptiste Debret, Johann Moritz Rugendas e muitos outros, impulsionados por um sentimento romântico, interessaram-se pelos aspectos curiosos de uma terra desconhecida e, tanto o índio quanto o negro (sobretudo este pela presença constante no cotidiano urbano e rural), associados aos seus costumes, eram demasiadamente extravagantes para passarem despercebidos. O mesmo não acontecia com os artistas brasileiros que, em geral, não se interessavam por esta realidade, parte integrante do dia-a-dia deles, constituindo, talvez, mais uma vergonha do que motivo de admiração. Mesmo na arte européia havia preconceito relacionado à representação de indivíduos de classes sociais menos privilegiadas tendo se desenvolvido, somente a partir do século XVII, um interesse maior pelas cenas de gênero reproduzindo interiores rústicos, paisagens bucólicas e pessoas humildes em seus afazeres domésticos. Estes temas a Academia sempre desprezou e relegou a um plano inferior, só vindo a aceitá-los dois séculos depois, com a assimilação do Realismo.
No Brasil, o preconceito pelos temas populares além de social tinha, também implicações étnicas. Com relação ao negro, somente após a abolição é que ele passou a ser realmente representado, mas, mesmo assim, submetido a retoques, como acontecera, antes, com o índio. Em geral, os traços raciais não eram reproduzidos fielmente, havendo uma tentativa de “embelezamento” de acordo com os ideais clássico-acadêmicos. Até mesmo em retratos de damas, nobres e políticos mestiços do Império, onde deveria predominar a fidelidade, notam-se retoques e artifícios sutis, verdadeiros “jeitinhos brasileiros”, disfarçando os traços que pudessem denunciar miscigenação.
Toda esta mentalidade estava perfeitamente adequada ao conservadorismo de uma sociedade fundamentalmente agrária que alimentava, nostalgicamente, o sonho europeu. Os artistas e intelectuais acabavam refletindo este contexto considerando somente as características estéticas do “belo ideal e absoluto”, ignorando, conseqüentemente, a ligação que a arte poderia ter com a realidade brasileira em relação à sua natureza e à sua formação étnica. Consoante com isto, não pode causar tanta surpresa o fato de a Academia ter conservado, num país essencialmente mestiço, uma estética e um tipo físico fundamentados no Classicismo grego. Ao fazer isto, ela foi coerente com a mentalidade que predominava na época não só no Brasil, mas também, e sobretudo, na própria Europa, pois o ideal clássico prevalecia ainda em todo o mundo ocidental apesar das transformações que já se anunciavam. Pesquisas de artistas como Gauguin e Picasso, que se interessaram por padrões culturais tidos como “primitivos”, eram casos isolados que sofreram intensas resistências e só conseguiram se impor muito depois.
Os próximos passos rumo ao nacional ligaram-se, igualmente, à Europa, no sentido de aceitação da natureza e da luminosidade, ainda de influência romântica e, também, como já dissemos, pré-impressionista, visíveis no Grupo Grimm, sobretudo com Giovanni Castagneto e Parreiras, bem como em Batista da Costa e outros, sem falar de Eliseu Visconti, cuja assimilação do Impressionismo é um caso à parte. É ainda Zílio que atesta esta mudança de posição para ele representada por Castagneto:
Este projeto irá sofrer, a partir do início da década de 1880, uma contestação influenciada pela pintura ao “ar livre”, voltada para investigações formais próximas a uma sensibilidade pré-impressionista, onde se destaca a pintura de Castagneto, que é, seguramente, o primeiro artista brasileiro a se vincular à pintura moderna, ao desenvolver uma relação de filiação romântica e de comunicação com o real.[10]
A questão do nacionalismo está intrinsecamente ligada à absorção do Realismo academizado, consistindo numa ruptura importante não apenas no contexto do abrasileiramento, mas também no universo da estética acadêmica. Como não poderia deixar de ser, esta assimilação de pressupostos realistas foi concretizada via Beaux-Arts e influiu no abandono do tipo idealizado-europeizado substituindo-o pelo homem brasileiro comum, em seu cotidiano urbano ou rural. Por outro lado, a aceitação da realidade de segmentos da classe média urbana, cuja importância crescera desde as últimas décadas do Oitocentos, consistiu num desvio da solenidade e do heroísmo da temática acadêmica. Os assuntos edificantes passam a ser suplantados por todos os “ingredientes” da sociedade belle-époque, com observou Luiz Marques ao falar da arte de Rodolpho Amoedo, Almeida Junior, Pedro Weingärtner, Belmiro de Almeida e Henrique Bernardelli:
O desarme das poses e da gestualidade teatral codificadas pela academia, a celebração da vida cotidiana e da variedade sociológica e verista dos tipos populares, o culto do anonimato da metrópole, do detalhe realista, mas também o fascínio pelo requinte egocêntrico ou pela apatia do dândi, pela sensualidade perversa ou intimista dos nus, a auto-revelação lírica do mundo penumbroso do ateliê como metáfora do artista, como objeto de uma pintura “sem tema”, a busca de um naturalismo despojado e por vezes agressivamente cru dos modelados, o abandono de todo idealismo plástico e da grande retórica compositiva, tais são alguns dos traços distintivos que começam a prevalecer nessa geração.[11]
A outra ver-tente deste realismo é mais ofensiva às tradições acadêmicas pois seu protagonista é o homem rústico do interior: o caboclo sertanejo. A repre-sentação do caboclo significou uma reação ao cosmopolitismo galicista que predo-minava no litoral, sobretudo no Rio de Janeiro e uma busca por uma maior a-ceitação do tipo bra-sileiro interiorano, o caipira, verdadeira antítese dos ideais clássicos. Representar esse brasileiro correspondeu a uma ruptura mais incisiva em relação à hierarquia temática da Academia. Este pioneirismo coube a Almeida Junior que estudou cerca de seis anos na capital francesa (1876-1882) onde foi aluno de Cabanel, o eclético mestre pompier tão famoso por seus nus mitológicos, figuras históricas e orientalizantes quanto pelos assuntos realistas. A obra de Almeida Junior, Derrubador brasileiro [Figura 3], de 1879, que consideramos um verdadeiro manifesto do Realismo acadêmico brasileiro, foi realizada em Paris e certamente o artista foi obrigado a recorrer à sua memória para reproduzir o caboclo sertanejo[12]. Marcado por forte conotação nacionalista, este caboclo inzoneiro, a quem não falta um ar de sensualidade atrevida, é uma tentativa, com bastante êxito, de fazer um “retrato” realista do homem brasileiro. No entanto, a pose do caboclo e sua inserção espacial lembram uma academia historiada. Assim como suas feições étnicas devem-se à memória do artista, sua anatomia indica a sólida formação acadêmica, tanto brasileira quanto francesa.
Ele quer pintar o homem ligado à terra, o caboclo em oposição ao homem da cidade grande, e quer fazê-lo sem os vínculos da estilização escolar. É o que tenta em Derrubador Brasileiro, mas não consegue totalmente [...]. A pose do modelo, forçada, é digna de nu acadêmico.[13]
Estas questões de afirmação do nacional convergem para outra problemática, de ordem mais estética, relacionada ao que seria um elemento de ligação do Academismo com o Modernismo e, ao mesmo tempo, um ponto de partida para o moderno. Segundo Sérgio Milliet, este “elo” estaria exatamente em Almeida Junior e seu rompimento com a temática clássico-acadêmica, ao passo que Frederico Barata e Mário Pedrosa identificam este “marco” em Visconti e sua ruptura técnica através da assimilação do Impressionismo. Estes questionamentos inserem-se num contexto bem mais complexo diretamente ligado não só à orientação conceitual dos modelos estéticos, mas também à metodologia de ensino, preconizadas tanto na Academia Imperial quanto na Escola Nacional de Belas Artes e cujos pressupostos nós procuramos analisar à luz dos textos de vários estudiosos, inclusive daqueles que atuaram como professores nos períodos que nos interessam como Taunay, Porto-Alegre, João Zeferino da Costa e Modesto Brocos.
Tanto o Academismo convencional, mais ligado às tradições clássicas, quanto o Academismo que absorveu influxos românticos, realistas e impressionistas, numa visão geral, estão relacionados, pela maioria dos estudiosos, a uma arte estereotipada e artificial, tanto na França, de onde tudo isso foi importado, quanto no Brasil. Não obstante, tanto lá quanto aqui, esta arte acadêmica sobreviveu por tanto tempo porque estava perfeitamente sintonizada com um contexto histórico compatível: político, ideológico, econômico, social e cultural. Se as posições de vanguarda representavam, visionariamente, o devir, a arte acadêmica integrava-se à realidade conservadora e comodista do momento, intrinsecamente relacionada ao modus vivendi burguês. Os tão propalados convencionalismo e artificialidade teatral da arte acadêmica compatibilizavam-se não só com as suas próprias intenções retóricas, visíveis desde os Carracci, mas também com a maneira de ser da própria sociedade da época, muito solene, principalmente no Brasil onde os efeitos da Revolução Industrial eram ainda muito sensíveis.
Movimentos artísticos como o Impressionismo que, entre outras propostas, anunciavam uma arte natural e espontânea, limitavam-se, nesta época, aos restritos meios de vanguarda parisienses e não representavam o consenso da sociedade. As relações sociais eram muito convencionais havendo, inclusive, fórmulas muito rígidas de postura e de comportamento em público e isso torna-se evidente se observarmos as fotografias antigas que reproduziram fielmente esta realidade. Devemos acrescentar ainda que o reinado de D. Pedro II - que estendeu-se por quase toda a segunda metade do século XIX - foi contemporâneo ao da rainha Vitória da Inglaterra (1837-1901), país onde primeiro se manifestou a Revolução Industrial, e, apesar disso, a sociedade vitoriana foi fortemente marcada pelo puritanismo e pela superficialidade, muito associados também ao estilo de vida burguês que predominou ao longo de todo Oitocentos.
A sociedade burguesa, tanto na Europa quanto no Brasil - onde teve um desenvolvimento tardio em decorrência do descompasso histórico - terá uma identificação muito forte com o Academismo sobretudo pela riqueza e versatilidade temáticas que possibilitavam uma verdadeira viagem a um mundo de sonho e fantasia: heroísmo greco-romano, revivalismo histórico, dramaticidade bíblica e literária, bucolismo, exotismo oriental e dos novos tipos urbanos. Numa época em que não havia ainda o cinema, cujos primeiros passos são dados somente no final do século XIX, o teatro e, sobretudo, a ópera, eram os únicos rivais à potencialidade visual, retórica e narrativa da arte acadêmica. Este lado “lúdico” associa-se, naturalmente, às tradicionais funções de cunho cívico-moralizante, nacionalista, propagandístico e, no caso específico do Brasil, civilizatório e de auto-afirmação.
A concretização plástica de tudo isto tinha como ponto de partida os bastidores acadêmicos, ou seja, sua metodologia de ensino do desenho e da figura humana. Aqui estava a gênese de tudo: desenho e figura humana! Isto quer dizer que, para se compreender, com maior precisão, os métodos teóricos e práticos da pintura acadêmica brasileira, inclusive em relação a possíveis iniciativas de “rupturas”, torna-se necessário, não só um estudo subsidiado em fundamentos historiográficos, como tem sido feito neste trabalho até o momento, mas também em evidências palpáveis que possam corroborar e esclarecer mais as impressões já depreendidas. Sendo assim, a nosso ver torna-se, premente, nesta altura, uma análise estética e formal das obras didáticas diretamente ligadas à metodologia acadêmica, a saber, as academias de modelo vivo realizadas, tanto nas disciplinas de Pintura e nas provas de concursos quanto nos pensionatos europeus. Essa é nossa proposta para finalizar esse trabalho.
2. ACADEMIAS DE MODELO VIVO E METAMORFOSES DA METODOLOGIA
2.1 - Algumas considerações sobre as obras e proposta de um método de análise artística
As academias de modelo vivo selecionadas para análise foram realizadas por alunos da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Algumas, foram elaboradas durante o curso, ou no final, à época dos concursos para Prêmio de Viagem; outras, no decorrer do pensionato europeu, correspondendo aos chamados Envios dos Pensionistas; ou ainda por ocasião dos Concursos de Magistério. Os artistas representam vários momentos do Academismo no Brasil, alguns muito conhecidos e outros mais obscuros: Jean Léon Pallière Grandjean Ferreira, João Maximiano Mafra, Francisco Antônio Nery, Vitor Meireles, João Zeferino da Costa, Rodolfo Amoedo, João Batista da Costa, Eliseu Visconti, Bento Barbosa Junior, José Fiuza Guimarães, Antônio de Souza Viana, Lucílio de Albuquerque, Augusto Bracet, Georgina de Albuquerque, Augusto José Marques Junior, Henrique Cavalleiro, Jurandir dos Reis Paes Leme, Alfredo Galvão e, finalmente, Francisco Horta Barbosa Bayardo.
A análise será feita respeitando-se uma cronologia, das mais antigas às mais recentes, abrangendo um espaço de aproximadamente noventa anos, do final da década de 1840 até cerca de 1930. Exemplos de academias de modelo vivo a óleo das décadas de 1820 e 1830 praticamente não existem. As mais antigas encontradas remontam à década de 1840 e referem-se a academias historiadas. Desta época não encontramos academias voltadas exclusivamente para o estudo do nu. A maior parte das academias desta tipologia que foram preservadas datam das décadas de 1870, 1880, 1890 e do início do século XX, correspondendo, em geral, a envios de pensionistas. Provavelmente não havia uma preocupação em conservar obras consideradas apenas como exercícios didáticos. As que subsistiram são quase sempre trabalhos premiados em concursos, fato que lhes conferia um caráter de obra exemplar. Os envios, por outro lado, deviam ser resguardados por serem encarados como “documentos” que deveriam comprovar a produção dos pensionistas no exterior. Apesar destas limitações e lacunas, tentaremos compor um quadro cronológico que possa evidenciar as principais mudanças ocorridas no estudo da figura humana naquele período em questão.
Dentro do espaço de tempo delimitado, foram escolhidas as obras que têm particularidades semelhantes, constituindo grupos distintos sobre os quais será elaborada uma análise em conjunto. A análise não será fundamentada num método específico e sim numa leitura pessoal, procurando-se olhar a obra, ou melhor, as obras, na sua totalidade, buscando nelas os aportes que irão convergir para as questões suscitadas, sem esquecer de associá-las a um suporte historiográfico. A preocupação com um olhar global sobre a organização dos elementos visuais refere-se, basicamente, a uma combinação de análise temática, técnica e formal, estas últimas muito ligadas às questões metodológicas relativas, sobretudo, ao embate desenho-linha e pintura-cor, imprescindíveis na investigação das transformações que atingiram o Academismo. Sendo assim, uma análise artística para atingir o objetivo proposto deverá abranger temática, técnica e forma. Apesar das inter-relações entre estas três “instâncias”, uma vez que uma complementa a outra, a análise temática deverá anteceder as demais, passando-se, em seguida, para uma análise conjunta, técnica e formal, esta última exigindo uma observação mais detida dada a complexidade dos elementos visuais. De qualquer maneira, sempre que necessário, trabalharemos paralelamente com as três, sobretudo com a técnica e a formal, em função das implicações serem muito correlatas.
A análise temática é indispensável tendo em vista que as academias nem sempre eram, pura e simplesmente, estudos de corpo humano, apesar de terem esta função primordial, havendo, em alguns casos, também um envolvimento narrativo. Por outro lado, mesmo quando não constituem academias historiadas, existem leituras temáticas que podem ser trabalhadas em função do “cenário” em que estão inseridas. A análise técnica é importantíssima em decorrência da atenção dispensada pelo Academismo a esta área, tendo catalogado e mesmo institucionalizado como regras vários recursos técnicos, cuja manutenção ou afastamento apontam possíveis orientações estéticas. Na maioria das vezes, a análise técnica deverá se desenvolver ao mesmo tempo que a análise formal, que pode anteceder ou ser paralela à técnica. Através do estudo formal poderá se perceber, com maior nitidez, a elaboração da obra, pois mesmo se tratando de figuras isoladas, haverá sempre uma preocupação em integrá-las a um espaço e em compor uma “cena”. Este ato de “compor” vai exteriorizar também a adesão aos princípios e às regras acadêmicas, bem como a determinação em contrariá-las, distanciando-se dos padrões sobretudo em termos de desenho, formas e cor. Nesta análise formal serão consideradas, basicamente, a estruturação da figura e sua inserção no espaço, a construção e definição das formas, a gestualidade e expressão fisionômica, se for o caso, assim como o conjunto cromático, inclusive os efeitos de iluminação.
Por outro lado, como os impasses estéticos, técnicos e formais que permeiam o Academismo e seu programa metodológico estão fortemente associados a questões conceituais de clássico e não-clássico, que podem facilmente serem convertidas em acadêmico e não-acadêmico, para orientar a análise formal, recorreremos a algumas concepções de Wölfflin. Este teórico trabalhou numa área histórica que compreende a arte do Renascimento e do Barroco, tendo formulado suas idéias a partir dos famosos conceitos bipolares das categorias clássico e barroco. O clássico pode ser aplicado perfeitamente ao ideário acadêmico convencional, que norteou a pintura acadêmica até o início do século XIX, na França, e que só começou a ser abalado com a academização das primeiras correntes pré-vanguardistas. A aceitação destas primeiras vanguardas assinalam, portanto, um processo gradual de “desacademização” que poderá ser detectado através da categoria barroco, ou, para ser mais exato, não-clássico, isto é, tudo que vai opor-se aos ideais clássico-acadêmicos tradicionais. É o que esperamos na “leitura” das academias de modelo vivo. Passemos a elas!
2.2- Impregnações neoclássicas: a busca pelo belo ideal e pelos valores estéticos do Classicismo
Ao primeiro grupo pertencem as academias historiadas O lavrador dos campos de Farsália [Figura 4], de Antônio Nery, Prêmio de Viagem de 1848, e Sertório e sua corça [Figura 5], de Léon Pallière, Prêmio de Viagem de 1849. Os temas em questão denunciam a própria tendência destas obras, cujos assuntos foram extraídos da Antiguidade clássica, bem ao gosto neoclássico.
O lavrador dos campos de Farsália[14], passa uma mensagem filosófica, moral e simbólica alusiva à vida, ao trabalho e à morte, impregnada de certo fatalismo como Os pastores da Arcádia, de Poussin. Refere-se a uma passagem do poema de Hesíodo[15] sobre a agricultura, Os Trabalhos e os Dias, espécie de calendário das datas propícias e funestas, através do qual passava-se uma série de preceitos morais[16]. Sertório[17] foi um general romano cuja história ficou muito associada à Península Ibérica. Durante seis anos foi governador da Hispânia, província romana que correspondia à Espanha e Portugal. Por questões políticas, lutou ao lado dos lusitanos contra importantes líderes da república romana como Pompeu. Residiu algum tempo em Évora onde construiu vários monumentos. Muito popular também entre os espanhóis, foi presenteado por eles com uma corça branca que se tornou sua companheira inseparável, razão pela qual dizia-se que ela lhe comunicava os conselhos da deusa Diana. Foi assassinado num banquete por um de seus oficiais[18].
As duas obras datam do momento inicial de consolidação da Academia Imperial, quando ainda vigorava o programa estabelecido pela Reforma de 1831 [cf. link].A Pintura Histórica era ministrada simultaneamente com os estudos de anatomia e modelo vivo, havendo muita carência de modelos profissionais, fator que provocava a improvisação utilizando-se os únicos modelos disponíveis, inclusive escravos. Contrastando com isso, havia uma disposição, claramente visível nos textos de Taunay, em implantar realmente um ensino fundamentado no clássico. Isso nos leva a crer que havia muita discrepância entre a teoria e a prática. Aliás, esta época, isto é, os últimos anos da década de 40, corresponde à fase mais aguda da rivalidade entre o então diretor Taunay e Porto-Alegre, que critica sua gestão através da imprensa, fixando-se no que ele considerava “decadência do estudo do nu”.
Esta realidade torna-se evidente no Lavrador cujas formas anatômicas apresentam “problemas” como a junção do tronco com as pernas, disfarçada pela exômide[19], o mesmo ocorrendo com a inserção antinatural da cabeça e da rigidez do ombro direito. A exômide, que também aparece no Sertório, pode ter sido uma imposição moral, nestes primórdios da Academia. No entanto, no caso do Lavrador, ela foi providencial pois, se não fosse pelo panejamento, a irregularidade do tronco ficaria muito mais evidenciada. Normalmente, um neoclássico-acadêmico francês não perderia a oportunidade de reproduzir um nu, como o Pátroclo, de Jacques-Louis David, representado totalmente despido sobre a clâmide.
As formas do Lavrador foram idealizadas, mas de uma maneira mal resolvida, denunciando um domínio anatômico por partes, e não do todo. Este fato se deve muito provavelmente às deficiências do estudo. Os braços e pernas estão bem anatomizados, como diriam os mestres oitocentistas, decorrendo certamente do estudo isolado destas partes por meio de moldagens e pranchas. O rosto é idealizado, provavelmente inspirado em gravuras. A parte mais deficiente é o tronco e Nery, antes de seu pensionato em Roma, dificilmente seria aprovado num concurso de torso aos moldes da Beaux-Arts. Tudo isso nos induz a pensar que a construção da figura do Lavrador é fruto muito mais do estudo de estátuas de gesso do que do modelo vivo e isso fica muito claro no aspecto frio e artificial, não só das formas, mas também do colorido da carnação. Até mesmo o crânio que o personagem segura, não é muito fiel, denunciando pouco domínio da estrutura óssea que era elementar para uma representação da figura humana conforme as normas acadêmicas.
O Sertório revela um maior conhecimento do corpo humano, sendo anatomicamente mais bem resolvido e isto se deve não à formação de Pallière na Academia Imperial e sim à sua passagem pelos estúdios dos mestres parisienses Picot e Lenepveu[20]. Foi exatamente esta sua formação anterior que levou Porto-Alegre a contestar sua vitória neste concurso para Prêmio de Viagem. E com razão, pois basta compararmos sua obra com a de Nery, vencedor do concurso anterior, e cuja formação resumia-se, até então, à Academia Imperial, para compreendermos a desigualdade que deve ter pautado o concurso de 1849. Mas Pallière, mesmo com a vantagem de um estudo precedente, demonstra também certa limitação. O rosto de Sertório passa algo de falso como se tivesse havido uma tentativa de idealizar as feições do modelo, talvez de traços negróides, como foi comum nesta época. O colorido da carnação, bem como as formas anatômicas revelam uma segurança maior. A corça denuncia igualmente a formação francesa do artista, visível também na influência de David, esta, no contraste proposital do tecido vermelho com a carnação da figura.
As atitudes do Lavrador e de Sertório são frias e posadas, com a finalidade de não passar nenhuma emoção. O gestual é contido e calculado e as expressões pretensamente serenas. Os olhares pretendem atingir diretamente o observador. Tudo isso para passar a idéia de estabilidade e serenidade, pelo menos parece ser essa a intenção dos artistas. No caso de Nery, temos que considerar suas limitações técnicas. De qualquer forma, percebe-se a preocupação em transmitir estabilidade às figuras, num esforço de exprimir uma idéia que Wölfflin chamou de “apaziguamento do ser”[21], em relação à figura renascentista, e Winckelmann, em sua mais famosa frase, segundo Gerd Bornheim, chamou de “a nobre simplicidade e a calma grandeza”[22], referindo-se, naturalmente ao ideal grego. Para Bornheim, esta idéia estaria presente não só na arte grega, mas em todo Classicismo ocidental:
... o ideal da "nobre simplicidade e calma grandeza" deve ser entendido como manifestação de uma tendência básica e constante do Humanismo Ocidental: a crença de que o divino, o digno, o nobre, estão aliados ao imóvel, ao simples, ao calmo, ao repouso.[23]
Houve ainda um cuidado em centralizar e equilibrar as figuras, deixando uma área em torno delas para delimitar os fundos. Isto contribuiu para criar, segundo as concepções de Wölfflin, não só um espaço fechado e formas ponderáveis, mas também a idéia geral de clareza absoluta. Sendo assim, há uma distinção clara entre as figuras e o fundo. As paisagens de fundo das duas obras são compatíveis com a concepção acadêmica de “paisagem de ateliê”. O chão, as pedras e o céu foram construídos a partir de “fórmulas” técnicas, tradicionais, para produzir a ilusão de matéria. Ambas as figuras são complementadas com atributos que auxiliam a narrativa histórica e simbólica: o arado e a caveira, do Lavrador; a corça e a insígnia romana, vista à distância, no Sertório. Mesmo em se tratando de academias nas quais as figuras são isoladas, a maneira como foram construídas, associada às paisagens, determinou uma estratificação dos planos e, conseqüentemente, uma perspectiva pictórica bem aos moldes clássicos.
Tanto na obra de Nery quanto na de Pallière, o desenho é nítido, produzindo formas perfeitamente claras. O sfumato das carnações é bastante sutil e não há contrastes violentos de luz e sombra. Esta definição das formas denuncia uma preocupação muito grande com o desenho, o que é característico e fundamental na concepção clássica, principalmente se recorrermos à opinião de Alberti, que considerava o desenho, uma das categorias básicas para a concinnitas, conforme observou Bayer:
A circonscriptio é uma estética do desenho, é o contorno, o circuito, a linha. Alberti, tal como Leonardo, preconiza, como processo e método para captar o modelo, o emprego do véu interposto entre o olho e o objecto, cortando a pirâmide dos raios para a precisão dos contornos. O contorno é necessário e permite evitar a incerteza numa linha, por mais subtil que seja: é a ciência do traço.[24]
Esta valorização do desenho, uma tendência eminentemente racional, enquadra-se também no conceito de linearidade de Wölfflin, no qual reside, segundo ele, a busca de beleza do clássico.
Ver de forma linear significa, então, procurar o sentido e a beleza do objeto primeiramente no contorno - também as formas internas possuem seu contorno, significa, ainda, que os olhos são conduzidos ao longo dos limites das formas e induzidos a tatear as margens.[25]
O linear, ainda segundo Wölfflin, está associado a uma visualidade clássica fundamentada no tátil, no palpável, no tangível.
O contorno de uma figura com linhas uniformemente determinadas ainda possui em si algo da sensação de se apalpar um objeto. A operação que os olhos realizam assemelha-se à da mão que percorre um corpo; e a modelação, que reproduz a realidade na graduação de luz, também apela para as sensações de tato.[26]
Outro aspecto estrutural importante para associar estas academias historiadas à categoria wölffliana do clássico é a predominância das linhas retas, horizontais e verticais, que contribuem para a sensação de estabilidade, sobretudo no Lavrador. No Sertório, as diagonais perdem força diante da forma estável da figura e de seu eixo central.
A arte clássica é a arte das verticais e das horizontais bem definidas. Os elementos manifestam-se com total nitidez e precisão. Quer se trate de um retrato ou de uma figura, de um quadro que narre uma história ou de uma paisagem, no quadro predominam sempre as oposições entre as linhas horizontais e verticais.[27]
O fato é que a estrutura linear e o desenho sempre foram associados a uma postura racional e justamente por isso é que o Classicismo e o Academismo deram tanta ênfase ao seu estudo. Também não foi por acaso que as obras dos grandes mestres do desenho como Rafael e Ingres, foram tão utilizadas como “material didático” pela metodologia acadêmica da cópia[28]. A supervalorização do desenho está interligada também a um aspecto técnico, muito característico do Neoclassicismo e que pode ser notado nas obras de Nery e Pallière: a superfície pictórica é perfeitamente lisa, sem nenhuma textura. Isto era obtido através de uma tinta de pasta magra, aplicada em camadas sobrepostas, com pincéis de cerdas finíssimas. Outra questão ligada à técnica refere-se ao colorido sutil, com um leve sfumato, cujas tonalidades são produzidas cuidadosamente na paleta através da mistura física das tintas para dar a ilusão de matéria. Esta preocupação ilusionista em reproduzir mimeticamente a natureza sempre fora uma constante no Classicismo. Nas academias de Nery e Pallière, a presença marcante do desenho convive perfeitamente com as concepções técnicas de claro-escuro e sfumato, também de natureza clássica, produzindo uma iluminação clara, distribuída uniformemente, para permitir que todas as formas possam ser visualizadas com “clareza absoluta”. O sfumato suave, defendido e estudado cientificamente por Leonardo da Vinci, é o recurso técnico que possibilita não só a ilusão de volume, mas também de profundidade.
Na arte clássica, a luz e a sombra são tão importantes quanto o desenho (em sentido estrito) para a definição da forma. Cada luz tem a função de caracterizar a forma em seus detalhes, e de articular e ordenar o conjunto.[29]
Por tudo isso, essas academias historiadas confirmam suficientemente a orientação neoclássica que a Academia Imperial assumiu nas primeiras décadas após sua criação. A idealização fria dos cânones gregos, a presença estrutural do desenho, a preocupação em reproduzir a natureza mimeticamente... No entanto, todas estas pretensões teóricas esbarravam nas dificuldades materiais da Academia, cujo funcionamento efetivo de seu programa ficava comprometido, principalmente em relação ao estudo da figura humana pela falta de modelos nas aulas de modelo vivo.
2.3 - Impregnações românticas: substituição da estabilidade clássica pela emoção
Nas obras do segundo grupo - academias historiadas, a exemplo das anteriores - podemos perceber o afastamento dos ideais clássicos de serenidade, nobreza e estabilidade, apontando, conseqüentemente, uma assimilação do Romantismo acadêmico. Duas delas referem-se ao período anterior à Reforma Pedreira: Caim Amaldiçoado [Figura 6], de 1851, com a qual Maximiano Mafra ganhou o concurso para professor substituto de Pintura Histórica[30] e São João Batista no cárcere [Figura 7], de 1852, que proporcionou o Prêmio de Viagem a Vitor Meireles. As duas outras foram feitas por artistas que cursavam a Academia após a implantação da Reforma: Zeferino da Costa, então pensionista na Accademia San Luca, com seu envio São João Batista [Figura 8], de 1873; e Rodolfo Amoedo, com seu Prêmio de Viagem, Sacrifício de Abel [Figura 9], de 1878.
Representam nus masculinos “fantasiados” de personagens bíblicos cuja orientação temática já denuncia disposição romântica uma vez que suas histórias foram marcadas por episódios trágicos mesclando drama, violência e morbidez. Os temas religiosos dramáticos, geralmente colhidos do Velho Testamento, foram fartamente explorados pelos românticos franceses, sobretudo pelos românticos acadêmicos, como Cabanel (A Morte de Moisés, 1851), Meissonier (Sansão abatendo os filisteus, 1845) e Léon Bonnat (Adão e Eva encontrando Abel morto, 1860). No Brasil estes assuntos foram também muito reproduzidos e o exemplo mais marcante foi Pedro Américo (Davi e Abisag, 1879; Judite e Holofernes, 1880; Moisés e Jacobed, 1884).
Tanto a obra de Mafra quanto a de Amoedo ilustram passagens de uma mesma história narrada no Gênesis. Os pais da humanidade, Adão e Eva, tiveram, no início, dois filhos: Abel, o mais novo, e Caim, o primogênito. Este protagonizará um episódio trágico ao matar o próprio irmão, cometendo, assim, o primeiro assassinato. Caim dedicara-se à agricultura e oferecera os frutos da terra como sacrifício a Deus, ao passo que Abel, pastor, ofertara-lhe uma ovelha agradando-lhe muito mais. Enciumado e transtornado pela inveja e pelo despeito, Caim matou Abel sendo amaldiçoado por Deus com um anátema terrível: “E agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força, fugitivo e vagabundo serás na terra”[31].
Mafra representou
Caim, ou, para ser mais exato, reproduziu o modelo “montado”
pela banca de professores do concurso, no momento seguinte ao crime,
quando ele, desesperado, ouve a maldição: o olhar
arregalado e a mão agarrada aos cabelos pretendem transmitir
um misto de arrependimento, desespero e dor. No concurso de
Amoedo, o modelo representa exatamente o instante que antecede ao
crime, isto é, Abel rendendo homenagens a Deus a quem oferece
o sacrifício de
seu trabalho: a inocente ovelha imolada
sobre o altar de pedra. Ao fundo, bem distante, Caim faz
igualmente sua oferta parecendo já ter percebido o desagrado
divino. Em ambas as obras as figuras perdem totalmente a
placidez e a serenidade clássicas e assumem atitudes teatrais,
procurando externar a emoção que estão sentindo,
“os movimentos da alma”,
segundo Alberti. Evitam olhar diretamente o observador e suas
expressões faciais sincronizam-se com os gestos na tentativa
de passar a carga emotiva. O gestual, muito “expansivo”
e “nervoso” para a serenidade clássica,
estrutura-se, propositalmente, em linhas diagonais. Obviamente
não são aquelas diagonais convulsivas de Géricault
e Delacroix, mas sim uma interpretação mais comedida
que acaba passando uma artificialidade posada, como se fosse a
imobilização de uma cena de ópera. Isto
ocorre sobretudo
com o Caim, mais “posado” que o
Abel. Esta obliqüidade da estruturação das
figuras, apesar de artificiais e de não ter o arrebatamento
barroco-romântico, rompem com a frontalidade, o estatismo e a
imobilidade verificadas nas academias anteriormente analisadas,
podendo ser enquadradas no que Wölfflin chamou de formas
abertas. No entanto, mais do que isso, para a tradição
acadêmica, as linhas oblíquas rompem com a estabilidade
das horizontais e verticais e, conseqüentemente, da estruturação
centrípeta idealizada no Renascimento.
A diagonal, que para o Barroco constitui a direção principal, já representa um abalo para o aspecto tectônico do quadro na medida em que nega, ou pelo menos dissimula, tudo que diz respeito aos ângulos retos da cena. Mas a intenção do artista que busca o ilimitado, o fortuito, tem outra consequência: ela acaba por abandonar até mesmo os assim chamados aspectos "puros” da frontalidade e do perfil.[32]
O Caim, apesar do gestual, está perfeitamente centralizado. A disposição do Abel, no entanto, contraria a organização centrípeta rompendo com o equilíbrio clássico rigidamente simétrico, conforme ocorrera no barroco: “Mas a arte representada do Barroco recusa veemente a fixação de um eixo central; a simetria pura ou desaparece por completo, ou torna-se imperceptível, graças a rupturas do equilíbrio as mais variadas”[33]. A colocação do Abel no espaço, dividindo obliquamente a composição, do ângulo inferior esquerdo ao superior direito, confere realmente instabilidade e, por que não dizer, um certo movimento. Por outro lado, o ato incompleto da figura, como se estivesse ajoelhando para render graças, acabou passando a idéia de que estivesse caindo, pois os pés, muito rentes à extremidade da tela, poderiam ter sido melhor solucionados se houvesse uma área maior de “chão”. De qualquer forma estamos falando do Amoedo recém-formado sendo compreensível este tipo de irregularidade, mesmo porque trata-se de uma prova de concurso. No entanto, até este aspecto, aliado à estruturação em diagonal, opõe-se a uma organização axial centralizada e simétrica, contribuindo para a impressão geral de instabilidade.
O São João Batista no cárcere, de Vitor Meireles e o São João Batista, de Zeferino da Costa, são bem menos dramáticos que os anteriores apesar deste santo ter protagonizado um episódio trágico, representado posteriormente por aquele artista em sua Degolação de são João Batista. O São João de Vitor, apesar de aprisionado, transmite paz e resignação. A atitude posada, recostado “comodamente” em degraus de pedra, ou melhor, cubos de madeira convertidos em blocos pétreos, denuncia uma antinaturalidade bastante “maneirista”, acentuada pelo alongamento ondulante do corpo. A sombra projetada sobre as pernas parece ter tido a intenção de atenuar esta “incorreção”. A distribuição do corpo na diagonal cria um eixo oblíquo, solução que rompe com a clássica estruturação centrípeta. Esta linha de força é ritmada por diagonais menos determinantes, sugeridas pelos braços, pelo cajado, pelo panejamento e pela delimitação da sombra sobre o piso. A despeito da desproporcionalidade longilínea, a anatomia é bastante superior à do Lavrador, de Nery. No entanto, ainda apresenta problemas de representação: o tronco e os braços revelam saber anatômico, mas os quadris e as pernas não têm a mesma qualidade. A torção do tronco, bem como as formas curvilíneas dos quadris e das pernas conferem uma sensualidade que não combina com a santidade emanada do rosto. O desenho preciso, tanto da figura quanto do fundo arquitetônico, já denunciam o futuro Vitor.
O colorido é praticamente monocromático, quase um sauce, não fosse o acabamento preciosista. Se no panejamento que envolve o santo tivesse sido aplicado um vermelho davidiano, o cromatismo teria se tornado mais quente, associando-se ao ocre da parte mais iluminada. O modelado muito róseo, monocórdio, poderia ter sido mais contrastante, inclusive em termos de luzes para evidenciar a dramaticidade do episódio. O mesmo aconteceu com o fundo, cuja arcada em perspectiva, também monótona, poderia ter um jogo de luzes e sombras mais acentuado. Isto ocorreu também com as pedras onde o santo se apóia, muito regulares e quase chapadas. O braço fletido sobre um dos blocos parece estar solto no ar, certamente pela falta de sombra nesta área.
Mais que as formas anatômicas, o problema maior parece estar exatamente na iluminação do fundo, muito amplo e profundo. Além de criar um “vazio” dasalentador em torno do São João, talvez proposital, dispersa o olhar do observador que, no caso, deveria concentrar-se mais no santo. Mafra, Amoedo e Zeferino souberam explorar mais os fundos de suas academias historiadas, tornando-os cromaticamente mais interessantes, sem, no entanto, desviar a atenção devida à figura. Cerca de cinco anos depois, já como pensionista na Europa, Vitor terá oportunidade de trabalhar magistralmente o claro-escuro. Sua romântica Bacante (1857-58) será estruturada por um eixo, igualmente oblíquo, dividindo a protagonista e o fauno. No entanto, ao contrário deste São João Batista no cárcere, criará um intenso e misterioso contraste entre uma área obscura e outra mais iluminada, esta correspondendo à bacante, foco de seu interesse.
O São João Batista de Zeferino não é o São João preso, nem muito menos decapitado, e sim à época de seu retiro no deserto quando vestia-se com peles de animais e alimentava-se de gafanhotos. Na verdade, é uma alegoria simbólica do santo, como tradicionalmente é “retratado”, segurando o conhecido cajado-estandarte. Assim como o Abel, a figura do modelo de São João, apesar de solidamente empostado com um eixo central, acaba dividindo a composição obliquamente, numa diagonal que parte do canto superior esquerdo ao inferior direito, tendo, no entanto, bem menos ímpeto do que a do quadro de Amoedo. Por outro lado, assim como Caim, a figura posa artificialmente, tentando exprimir emoção através do braço que se ergue para o alto e que se equilibra com a perna que avança comedidamente. Ao contrário de Caim, de Abel e do São João encarcerado, que evitam olhar diretamente o observador, o de Zeferino retrai-se abaixando a cabeça e cerrando os olhos, transmitindo transcendência e introspecção. O estandarte, ligeiramente na diagonal, equilibra-se, assimetricamente, com o braço erguido, ao passo que a estabilidade das pernas é contrabalançada pela estrutura discretamente oblíqua. A mão que se eleva numa afetação meio “maneirista”, também possui algo de teatral, como Caim e Abel. No entanto, esta afetação da mão compatibiliza-se perfeitamente com a “poética” de Alberti e dos Carracci, sincronizando-se com a missão anunciadora do santo que parece estar indicando o Cristo, conforme a inscrição da faixa de seu cajado: “Ecce Agnus Dei”.
A anatomia das quatro figuras é mais fiel que a das academias neoclássicas, analisadas anteriormente, sobretudo em relação ao Lavrador de Nery. No entanto, o nu de Caim ainda tem certa artificialidade de “estátua”, e isto não só por um resquício de idealização, mas também pela prática “viciada” da cópia de moldagem de gesso, visível na carnação marmórea, denunciando, também, a formação de Mafra, anterior à Reforma promovida por Porto-Alegre. A artificialidade de estátua do Caim, por outro “ângulo”, é um resíduo nítido do Classicismo repetindo a pose em báscula - perna direita firme e esquerda fletida - solução do Doríforo e do Diadúmeno, de Policleto, bem como do Apolo de Belvedere, de Leócares. Esta posição, conhecida também como contraponto e largamente utilizada no Renascimento, foi criada exatamente para passar a idéia de um equilíbrio perfeito: a flexão da perna provoca uma leve torção do quadril que se contrapõe a um ligeiro desnível do ombro e da cabeça. No caso da figura de Caim, esta concepção clássica está presente somente na parte inferior do corpo, brigando, dialeticamente, com a tensão dos braços que escapam do equilíbrio perfeito. A gestualidade teatral, mais evidente em Caim e Abel, além de revelar influxos românticos, apesar da falta de naturalidade, não é totalmente desconhecida do Classicismo-Academismo, tendo sido muito explorada pelos neoclássicos do final do século XVIII, cujas contaminações românticas manifestavam-se também neste gestual eloqüente, claramente visível em David e vários outros. O braço direito do Caim, cuja flexão forma um triângulo com o rosto e o ombro, possui problemas tanto de escorço quanto de proporção se o compararmos com o esquerdo.
As formas anatômicas dos modelos de Amoedo e Zeferino demonstram um domínio maior. O São João Batista é superior a todos os demais em termos de proporcionalidade, cor e modelado, tanto de formas quanto de sfumato. Isto se aplica, inclusive, aos pés e mãos, tidos como as partes mais difíceis de serem reproduzidas. Esta fidelidade anatômica que Zeferino mostra em relação ao modelo, mais próximo do naturalismo que da idealização, denuncia seus exaustivos estudos de figura humana em Roma, concentrados no modelo vivo. As formas anatômicas do São João, de Vitor, revelam, por outro lado, o aluno recém-saído do aprendizado da Academia Imperial. Suas futuras composições envolvendo nus como a Degolação e a Flagelação de Cristo, já citadas, vão demonstrar o grande progresso proporcionado pelos estudos em Roma e Paris.
Na composição de Amoedo nota-se a preocupação em valorizar a cor através de um cromatismo quente de tons amarelos e rosa-alaranjados, bem próximos da paleta romântica. No São João de Zeferino e no Caim de Mafra houve uma predisposição em valorizar os contrastes de iluminação destacando as figuras com um foco de luz concentrado, naquele um pouco mais “natural” e neste muito artificial e dramático. Isto quer dizer que, com estas figuras, podemos encontrar outro conceito wölffliano denunciante de uma propensão romântica, isto é, a clareza relativa: a iluminação não é uniforme e há um contraste vibrante entre a figura, iluminada, e o fundo, escuro, cuja perspectiva torna-se mais profunda em decorrência do aspecto sombrio. A luz não coincide mais com as “exigências da clareza material”[34], com diria Wölfflin, e os efeitos luminosos são produzidos de maneira irracional: “Agora, a regra é o tratamento irracional da luz, e nos casos em que o efeito da iluminação é puramente objetivo ele não deve parecer intencional, e sim acidental”[35].
A acentuação da perspectiva aparece principalmente nas obras de Amoedo, Mafra e Vitor, a deste empobrecida pela monocromia. Todos os cenários de fundo foram construídos artificialmente. O de Zeferino revela claramente seus estudos da arte italiana, sobretudo dos renascentistas. Por outro lado, apesar da disposição de Amoedo em valorizar a cor e de Mafra e Zeferino em destacar o contraste de luz, o desenho permanece intocável, destacando bem a figura do seu entorno cenográfico. No que se refere à técnica, persiste o acabamento liso e bem espalhado, sobretudo nas academias de Mafra e de Vitor. Na de Amoedo e Zeferino, estes mesmos aspectos parecem menos rigorosos.
Estas duas tendências subseqüentes da Academia Imperial - a neoclássica e a romântica academizada - além de denunciarem tanto a importação quanto o afastamento do rigor clássico, sintetizam, segundo Wölfflin, o relativismo da visão linear e da visão pictórica. Para ele, esta passagem é uma “lógica natural” irreversível e obedece a uma “necessidade interior” representando um processo psicológico racional. Para nós, mais do que isto, este quadro revela implicações de ordem mais prática, ligadas à dependência estética que a Academia Imperial mantinha em relação ao modelo francês de metodologia. Primeiramente, é bom lembrar que o Academismo-Neoclassicismo já chegou ao Brasil comprometido por influxos românticos que se manifestavam na arte francesa desde a segunda metade do século XVIII, aparecendo, inclusive, em David e Ingres, como já observamos. Num segundo momento, a continuidade dos contatos da Academia Imperial com a Beaux-Arts, que academizara o Romantismo por volta de 1820-1830, foi responsável por esta “contaminação”, visível nas obras de Mafra, Vitor e Amoedo, realizadas no contexto brasileiro. No entanto, isto não é um caso específico da Academia Imperial. O Academismo francês ainda mantinha, ao longo do século XIX, influência em toda Europa, até na Itália, berço do Academismo, mas nem por isso imune ao Romantismo acadêmico francês. Embora estivesse num patamar avançadíssimo em termos de técnica, como demonstra a academia de Zeferino, resultado de sua “especialização” na San Luca, o ensino acadêmico italiano gerara o romântico Minardi, professor de Mariani que, por sua vez, foi mestre do nosso Zeferino.
2.4 - Impregnações realistas: abandono da idealização pelo naturalismo-realismo
De forma análoga ao que ocorreu com o Romantismo, a Academia Imperial absorveu também o Realismo. Naturalmente este processo teve o aval da Beaux-Arts e também de outras academias européias que recebiam nossos pensionistas e que já haviam passado por esta assimilação. Esta aceitação vai se refletir igualmente nos estudos de nu, aparecendo com nitidez em academias das décadas de 80, 90 e até o início do século XX abrangendo um período longo que corresponde, na Academia Imperial, ainda à Reforma de 1855, e, na Escola Nacional, às reformulações havidas em 1890, praticamente reeditadas nas de 1901,1911 e 1915, todas favoráveis a uma visão científica do estudo de modelo vivo. A Reforma Pedreira, de certa forma, apesar de conceitualmente ainda defender o Classicismo, já abriu caminho para o enfraquecimento do idealismo na medida em que previa o estudo do natural através de modelos que fossem de “todas as variedades da espécie humana, a fim de que os artistas os possão estudar e fielmente representar suas composições”[36]. Na verdade, desde os primórdios do Academismo com os Carracci, havia uma tendência forte, fruto do intelectualismo renascentista, de estudar cientificamente o corpo humano a par do idealismo.
O Academismo realista aparece tanto nas obras realizadas na Academia, depois Escola Nacional de Belas Artes, quanto nos envios feitos na Europa, sob a influência da Beaux-Arts e de outras academias oficiais, ou mesmo de academias particulares, como a Academia Julian. Os títulos, quase unanimemente, despojaram-se das denominações historicistas, evidenciando o caráter puramente de estudos: Nu de menino [Figura 10], de 1889 e Nu masculino de costas [Figura 11], desta mesma época, de João Batista da Costa; Nu masculino de pé [Figura 12], Prêmio de Viagem de 1892 e Velho sentado [Figura 13], de 1894, ambos de Visconti; Menino tirando o espinho do pé [Figura 14], de Bento Barbosa Junior, de 1897; Nu feminino de costas [Figura 15], Nu feminino de frente [Figura 16], Nu masculino de costas [Figura 17], de Fiuza Guimarães, de 1898; Nu masculino [Figura 18], Prêmio de Viagem de 1916, de Augusto José Marques Junior; Nu masculino de costas [Figura 19], de Jurandir Paes Leme, Concurso Magistério, de 1920; o Nu masculino sentado [Figura 20], de Francisco Bayardo, Pequena Medalha de Ouro de 1925; Menino [Figura 21], de Alfredo Galvão, também de 1925; e, finalmente, o Nu feminino sentado [Figura 22], de Augusto Bracet, prova do Concurso de Magistério, de 1927.
Com a academização do Realismo, o primeiro sintoma é exatamente a ruptura com as academias historiadas ligadas aos temas da Antigüidade e da Bíblia. O fascínio pelo passado greco-romano, que tanto atraiu os neoclássicos, e pelo passado medieval, tão caro ao saudosismo romântico, não surte efeito para os realistas, mesmo acadêmicos, que se voltam para o momento presente. Sendo assim, nestas academias realistas não há mais necessidade de transformar o modelo num personagem e sua condição de modelo que posa para fins de estudo é assumida na íntegra. Ao invés de fundos fantasiosos, os modelos são inseridos no cenário real do ateliê aparecendo telas, cavaletes, cubos e outros modelos à distância. Na verdade, a academia não-historiada sempre existiu no Academismo, principalmente nos estudos de desenho. No entanto, não havia uma predisposição em evidenciar o cenário do ateliê, eliminando-se, normalmente, os vestígios que o denunciassem, quase sempre utilizando fundos “desfocados” com alternância de claro-escuro para destacar a figura. Entretanto, com o enfraquecimento da idealização clássica e do emocionalismo temático romântico, tudo isto oposto à “frieza” realista, os estudos reais de modelo vivo consagram-se totalmente, até mesmo nos concursos como aconteceu no Brasil a partir do primeiro Prêmio de Viagem da República, no qual Visconti sai vencedor com seu Nu Masculino.
Os modelos masculinos, jovens, na idade da plenitude, utilizados largamente na metodologia clássica, passam a ser suplantados por modelos femininos, meninos e adolescentes como em Nu masculino de costas e Nu de menino, de Batista da Costa, e Menino, de Alfredo Galvão. Homens maduros e até mesmo idosos passam a ser estudados sem retoques de rejuvenescimento como o Velho Sentado, de Visconti e o Nu Masculino Sentado, de Bayardo. Mesmo nas academias que preservam o referencial grego, a matriz não é clássica e sim helenística, pela sua aproximação com o Realismo. Exemplo disso é o Menino tirando espinho do pé, de Bento Barbosa, inspirado em conhecida escultura helenística. As academias realistas não são “embelezadas” e sim representadas exatamente como eram os seus modelos, inclusive com suas particularidades fisionômicas, rugas e características étnicas, como é o caso do Nu masculino de costas, de Paes Leme, que reproduz um homem negro, e o Menino, de Galvão. Em alguns, casos o nu é assumido sem reservas, ao passo que, em outras situações, pode parecer parcialmente velado, mas nunca idealizado. O protótipo clássico evitara assumir o real através de uma busca de perfeição identificada com o ideal. O ideal clássico-acadêmico que perdera a serenidade com o Romantismo, vai afastar-se da idealização do belo com a academização do Realismo. Com isso distancia-se totalmente do tipo “perfeito” definido por Alberti e fundamentado racionalmente no rigor da ordem e da proporção: “A sua estética é uma estética da perfeição. O humanismo encontra nele o primeiro intérprete de um racionalismo de temperamento que identifica o belo e o perfeito”.[37] O belo agora está identificado com a verdade e o que vai ser realmente constante em todas estas academias é o realismo e a naturalidade. Os modelos perdem tanto a solenidade e a teatralidade quanto a artificialidade e as poses. Em conseqüência, tornam-se naturais e descontraídas. No Nu masculino de pé, de Visconti, realizado no primeiro concurso para Prêmio de Viagem da Escola Nacional, o modelo, quase esquálido e com a cabeça ligeiramente desproporcional em relação ao corpo, é um exemplo de verismo anatômico e de afastamento da idealização. Apesar da maioria destas obras ter sido feita na Europa - as de Visconti em Paris, à exceção do Prêmio de Viagem; a de Bento Barbosa, em Roma; e as de Fiuza Guimarães, em Berlim - desde o final do Império a Academia começara a diminuir o uso das moldagens de gesso e a concentrar mais o estudo nos modelos vivos. Isto acentuou-se após a Reforma de 1890, sobretudo com Rodolfo Amoedo e Henrique Bernardelli, professores de Pintura.
O Nu masculino de costas e o Nu de menino, de Batista da Costa, este último de 1889, bem como o já citado Prêmio de Viagem de Visconti, de 1892, comprovam uma orientação realista que já havia, efetivamente, na transição da Academia-Escola, desde os anos oitenta e que acentuara-se na última década do século XIX. Naturalmente, as idas e vindas dos pensionistas, trazendo suas experiências européias, contribuíram para generalizar esta tendência. De qualquer forma, a absorção do realismo acadêmico está intrinsecamente relacionado aos pensionistas parisienses, sobretudo a Almeida Junior e Belmiro de Almeida que abriram o caminho para a assimilação do Realismo academizado.
Outro aspecto importante desta academização do Realismo é o abandono tanto da circonscriptio albertiana quanto da claridade absoluta wölffliana. O modelado da anatomia permanece para produzir a aparência real como fez magistralmente Batista da Costa no seu Nu masculino de costas. No entanto, às vezes, o contorno da figura parece diluir-se no fundo, imerso na obscuridade como acontece no Prêmio de Viagem, de Visconti. Ao contrário das academias românticas cujos fundos escuros auxiliavam na dramatização, nestas academias realistas a obscuridade revela uma possível influência da fotografia, que, de fato, houve no Realismo vanguardista, inclusive em Courbet. O claro-escuro é produzido da maneira tradicional, com grandes áreas sombrias. Esta solução aparece ainda no Nu masculino de frente, de Visconti; nos de Fiuza Guimarães, sobretudo o Nu masculino de costas, bem como nos de Marques Junior e de Bracet. Por outro lado, as figuras agora não são necessariamente reproduzidas em corpo inteiro e centralizadas na tela, como anteriormente, podendo ser representadas em meio-corpo. O importante é que a representação seja naturalista e aproxime-se ao máximo do real. O claro-escuro, no entanto, preserva o desenho, não traduzindo, portanto, uma categoria barroca e sim uma necessidade de produzir imagens mais reais através deste recurso.
A mera existência de luz e sombras mesmo que a estes elementos se tenha atribuído um papel preponderante, não determina o caráter pictórico de um quadro. A arte linear também lida com corpos e espaços, e precisa de luzes e sombras para obter a impressão de plasticidade. Mas a linha permanece como um limite firme, ao qual tudo se subordina ou adapta.[38]
Apesar de algumas destas obras já terem uma ligeira textura e pinceladas mais soltas e luminosas como no Menino, de Galvão, ainda predomina nesta tendência realista o acabamento liso e espalhado. Os fundos geralmente são difusos, com um aspecto de inacabado, como ocorre nas academias de Visconti, e não têm o mesmo tratamento dispensado à figura. Alguns mesclam um empastamento meio “impressionista” e mesmo uma individualidade nas pinceladas, como acontece nos envios de Visconti. Isto foi freqüente em vários pintores franceses de tendências realistas como Renoir e Degas, que combinavam a temática social a uma fatura mais livre, próxima da impressionista apesar de não empregarem a mistura ótica de cores, pelo menos não de maneira plena. Outro aspecto relacionado à técnica e à construção de fundos e entornos, refere-se à preocupação, em algumas destas academias, de conjugar aos estudos de figura humana pesquisas de texturas físicas relacionadas à adição de corpos de materiais diferentes como panejamentos, tapeçarias, moldagens de gesso, vasos de porcelana e até os próprios cubos onde se sentam os modelos. Podemos constatar isso nos Nu masculino de costas e Nu de Menino, de Batista da Costa; no Menino tirando espinho do pé, de Bento Barbosa; no Nu masculino, de Marques Junior; no Nu masculino de costas, de Paes Leme; no Nu masculino sentado, de Bayardo, e, enfim, no Nu feminino, de Bracet. Em alguns destes, há uma tendência em criar uma espécie de ambientação intimista para o modelo, mal comparando, quase como se fosse uma academia historiada. No entanto, sem preocupação narrativa e sim com intenção decorativa, explorando-se, também, os contrastes das carnações com o colorido daqueles elementos.
2.5- Impregnações impressionistas: rompimento com a técnica tradicional e comprometimento do desenho
O próximo conjunto de obras corresponde à academização do impressionismo e abrange a década de 1890 até os primeiros decênios do século XX. Esta tendência, que despontara timidamente em obras realistas, torna-se mais evidente nas obras Nu masculino de costas [Figura 23], Nu masculino de frente [Figura 24], Nu feminino de costas [Figura 25], Nu feminino [Figura 26], todos envios, feitos provavelmente na Academia Julian, em cerca de 1894, por Visconti; Nu masculino [Figura 27], Nu masculino de lado [Figura 28] e Nu feminino de costas [Figura 29] também envios, realizados na mesma Academia, por Lucílio de Albuquerque, entre 1906-1907; Nu feminino [Figura 30] de Georgina de Albuquerque, feito no mesmo local e época; Nu masculino de costas [Figura 31], de Marques Junior, envio de sua estadia parisiense entre 1917-1922; Nu masculino sentado [Figura 32], de 1926, de Alfredo Galvão; e Nu feminino sentado [Figura 33] de Henrique Cavalleiro, por volta de 1930.
De início, podemos perceber nas academias “impressionistas” a predominância dos modelos femininos e isto, provavelmente, porque a leveza e a sinuosidade das silhuetas femininas são mais compatíveis com as concepções de liberdade e lirismo do Impressionismo, além de evidenciarem o caráter não-clássico destes estudos. As figuras tendem a ser representadas em meio-corpo, sobretudo de costas, abolindo com as concepções de integridade e centralização das academias convencionais. As posições, em corpo inteiro ou em meio-corpo, assumem movimentos ainda mais naturais e desinibidos. Isto pode ser observado nos nus femininos de costas, de Visconti [Figura 25 e Figura 26]e de Lucílio [Figura 29], nos quais torna-se clara a preocupação em destacar somente as costas do modelo, omitindo-se o resto do corpo, inclusive o rosto. Talvez a intenção seja a de captar, não a totalidade de um corpo inteiro mas a fugacidade e a indefinição de um torso feminino. Estes troncos femininos de costas foram recorrentes na pintura do século XIX a partir de Ingres, com sua Banhista de Valpiçon, talvez inspirada na Vênus, de Rubens, esta mirando-se num espelho onde se vê seu rosto de frente. Variações do modelo de Ingres foram muito exploradas intensificando-se na segunda metade do século em obras de Courbet, Renoir, Degas, Toulouse-Lautrec[39] e outros, inclusive o brasileiro Almeida Junior com seu já citado Descanso do modelo. Ao contrário do que representava o tronco masculino para o Neoclassicismo-Academismo, muito voltado para o estudo do corpo masculino, desenvolve-se, agora, um olhar diferente, talvez com o interesse de focalizar não só a beleza plástica, mas também de captar a sensualidade das formas curvilíneas femininas.
Nestes estudos “impressionistas”, o desenho, apesar de desempenhar ainda um importante papel estrutural, sofre nítida concorrência do colorismo, que passa a despertar visivelmente um interesse maior por parte do artista, transmitindo, inclusive, um certo prazer sensual no fazer pictórico, que não havíamos visto ainda nas academias anteriores, pelo menos através da associação de sensualidade de formas com pincelada e cor. A excessiva preocupação com o desenho inibira esta “voluptuosidade” cromática durante muito tempo. Com esta transformação de um “estágio” linear para um nível mais pictórico, ou seja, afastando-se da clareza absoluta, no dizer de Wölfflin, os contornos tendem a ser diluídos e isto ocorre principalmente com o Nu feminino [Figura 33] de Cavalleiro, cujas formas pulverizam-se, tornando-se indistintas. As pinceladas aplicadas obliquamente contribuem para esta indefinição e para a idéia de movimento e ondulação. No Nu masculino de frente [Figura 27], de Lucílio, e no Nu masculino de costas [Figura 31], de Marques Junior, as pinceladas virguladas, nervosas, contribuem para esta impressão de movimento.
Todo o Impressionismo repousa sobre essa inconsistência das formas [...]. Para o Impressionismo, não apenas os fenômenos propriamente dinâmicos, mas todas as formas contêm um resquício de indeterminação.[40]
Nestas academias, as áreas sombrias deixam de ser muito escuras, como eram tradicionalmente concebidas. O preto praticamente desaparece e as sombras ficam mais luminosas e coloridas. Os artistas passam a interessar-se mais, não propriamente pelos efeitos do sol nas cores, mas, por tratar-se de obras de ateliê, diríamos que há uma preocupação em pesquisar os contrastes de luz sobre o modelo, oposta, contudo, à maneira convencional, inclusive em relação àquele sfumato sutil, que desaparece. Aliás, o modelado sutil, tanto das cores quanto do claro-escuro, já tendia a desaparecer nas academias “realistas”. Agora as cores e sombras são construídas por meio de pinceladas bruscas, sem preocupação com o tradicional modelado. As mudanças relativas à iluminação podem ser percebidas no Nu masculino de costas [Figura 23] e no Nu feminino [Figura 26], também de costas, de Visconti. Os corpos, sobretudo no primeiro caso, apresentam-se praticamente imersos na sombra, contra o fundo luminoso do estúdio, visto numa perspectiva mais profunda, o que também não ocorria nos trabalhos anteriores. No Nu masculino de costas, aparece, no alto, uma espécie de clarabóia de vidro, provavelmente a principal fonte de luz desta figura. De qualquer forma, as sombras destas academias não são mais produzidas conforme a tradição, mas sim à maneira impressionista, com reflexos coloridos. O Nu masculino de frente [Figura 24], também de Visconti, repete esta solução, talvez com um pouco menos de intensidade. Ao contrário, o modelo foi iluminado contra o fundo escuro do ateliê. As áreas de luz foram salientadas com pinceladas mais claras e luminosas, ao passo que, nas sombras, destacam-se toques de cor: azuis, róseos e violáceos. Nestas três obras de Visconti, a profundidade dos fundos foi explorada também para dar um aspecto de desfocado, ou seja, um non finito trabalhado com pinceladas mais diluídas e aplicadas de maneira bem mais livre.
A técnica acadêmica tradicional transforma-se totalmente: o acabamento liso, sem texturas, e muito brilhante pela ação do verniz, é substituído por pinceladas soltas, individualizadas, associadas à imprecisão do desenho e à aplicação de uma tinta gorda e empastada que produz uma superfície irregular e quase sem brilho. A convencional mistura física de cores, utilizada para produzir a cor local, também desaparece, pois não há mais a preocupação em imitar a natureza fielmente, nem mesmo no que se refere à ilusão de matéria. As carnações tornam-se coloridas com pinceladas sobrepostas, vermelhas, amarelas, roxas, azuis e verdes (Nu feminino de costas e Nu masculino de frente, de Visconti; Nu feminino de costas, Nu masculino de frente e Nu masculino de lado, de Lucílio; Nu feminino, de Georgina e Nu feminino, de Cavalleiro). Desaparecem os fundos muito escuros, como vimos nos estudos de Fiúza Guimarães, que, neste caso, normalmente estavam associados ao uso do preto. Em geral, as composições tendem a ser mais claras e luminosas, como a de Cavalleiro, e perdem a impressão de peso que antes tinham com os fundos muito escuros.
Na obra de Cavalleiro, tanto os empastamentos quanto a mistura ótica de cores são ainda mais evidentes, associados a um aspecto geral de pulverização das formas, de luminosidade e de distanciamento da matéria. Foi exatamente o Impressionismo que introduziu essa nova sensação de imaterialidade, que jamais poderia ser atingida através da visão linear. Na verdade, pode-se dizer que os impressionistas foram além da visualidade pictórica barroca e romântica, exatamente por eliminar o desenho e a tradicional mistura física de cores, como observou Wölfflin: “Assim como no desenho o século XIX foi o primeiro a conseguir levar a representação da aparência às últimas conseqüências, o Impressionismo mais recente também superou o Barroco no que respeita ao tratamento da cor”[41]. A mistura ótica impressionista foi incorporada pelos meios acadêmicos, como comprovam estas academias de modelo vivo, obviamente, com reservas e, por que não dizer, com certa contenção.
Com estas academias impregnadas de influxos impressionistas, tanto o belo ideal, quanto as concepções clássicas de estrutura técnica e formal são atingidos integralmente. Naturalmente, este “impressionismo” não tem a força contestatória, o lirismo sensorial e o “cientificismo” cromático do grupo vanguardista da Paris das décadas de 1860, 70 e 80. Mesmo assim, devemos acrescentar que estes artistas brasileiros, cujas academias analisamos, foram mais além em suas interpretações impressionistas em obras posteriores, não mais ligadas ao estudo da figura. A propósito, devemos lembrar que o Impressionismo influenciou e manifestou-se na pintura brasileira desde o final do século XIX sob vários aspectos: primeiro, ao prestigiar a paisagem ao ar livre; segundo, no sentido de fazer uma arte mais real e natural descartando-se as artificialidades e fantasias mitológicas, alegóricas, históricas, religiosas e literárias, coadjuvado, aliás, neste particular, pelo Realismo; e, por último, ao alterar a técnica tradicionalmente executada desde o Renascimento e atingir em “cheio” o desenho, a quintaessência da metodologia acadêmica. Na realidade, tudo isto se anunciava, como já dissemos, nas obras de Castagneto, Parreiras, Henrique Bernardelli, Belmiro, Batista da Costa, irmãos Timóteo da Costa e vários outros. No entanto, a assimilação do Impressionismo vai ocorrer de maneira mais efetiva nas primeiras décadas do século XX, com as buscas de Visconti, Lucílio, Georgina, dos Chambelland, Navarro da Costa, Rafael Frederico, Armando Viana e inúmeros outros. O “impressionismo” que acabamos de ver nestas academias analisadas é uma assimilação de “laboratório”, assim como ocorreu com o Romantismo e o Realismo, revelando, na verdade, as primeiras pesquisas no sentido de adotar novas orientações estéticas. Ainda em relação a esta estratégia acadêmica, temos que considerar o fato de que esta “aclimatação” do Impressionismo de plein-air nos estúdios fechados da Beaux-Arts, da Julian, de outras academias européias, até chegar aos da nossa Escola Nacional de Belas Artes teve o mesmo suporte experimental: a figura humana, representada nas academias de modelo vivo, com as quais os artistas, como seria normal, ainda mantinham certos “pudores” por tudo que significavam em termos de tradição acadêmica. Nestas obras de bastidores, eles ainda se continham contrariamente ao que ocorreu mais tarde em suas composições definitivas: paisagens e cenas com figuras ao ar livre.
Por outro lado, temos que frisar a dependência do Academismo brasileiro, ou, mais exatamente, da pintura acadêmica, em relação ao seu modelo conceitual e metodológico, o Academismo francês, visível desde o processo de importação, passando pela consolidação, até atingir esta fase que acabamos de abordar referente à academização das primeiras vanguardas. Isto corresponde, grosso modo, a um processo inverso, de “desacademização”, livrando-se o nosso Academismo gradualmente da tradicional metodologia de ensino, calcada solidamente no estudo da figura humana, do desenho e da cor ilusionista renascentista, e desvencilhando-se igualmente de seus conceitos ideológicos, técnicos e formais.
Para finalizar, gostaríamos ainda de observar que, neste mesmo quadro de influência francesa, a academização das primeiras rupturas teve outro aspecto ligado à sua “progenitora” conceitual. Estamos nos referindo à pluralidade de caminhos que os artistas da transição do século XIX para o XX assumiram, bem à maneira da Beaux-Arts, com a diferença de que, aqui no Brasil, o ecletismo acadêmico não conviveu com as vanguardas fovistas, expressionistas e cubistas, como em Paris. Este Academismo eclético, que nos remete, mais uma vez, às suas origens carraccianas, pode ser percebido nas obras de Amoedo, Henrique Bernardelli, Belmiro, Brocos, Visconti, Parreiras e outros que mesclaram tendências românticas, realistas, impressionistas, pontilhistas, simbolistas, pré-rafaelitas, art-nouveau... Destas, as que passaram pela Academia Imperial e pela Escola Nacional de Belas Artes ficaram plasmadas nas suas obras de bastidores, isto é, nas academias de modelo vivo realizadas nas aulas de pintura ou nos concursos, razão de ser do Academismo e verdadeiro parâmetro de estudo de todo o seu ciclo, da gênese ao esvaziamento, tanto na matriz francesa quanto na sua projeção brasileira.
Referências Bibliográficas
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* Versão adaptada do Capítulo 7 de SÁ, Ivan Coelho de. Academias de modelo vivo e bastidores da pintura acadêmica brasileira: a metodologia de ensino do desenho e da figura humana na matriz francesa e a sua adaptação no Brasil do século XIX e início do século XX. Rio de Janeiro: Programa de pós-graduação em Artes Visuais, UFRJ, 2004, pp.381sg (Tese de Doutorado).
[1] CHIARELLI, Tadeu. Introdução. In: DUQUE, Gonzaga. A Arte Brasileira. Campinas: Mercado de Letras. 1995, p.26-27.
[2] Idem, ibidem, p. 25.
[3] DUQUE, Gonzaga. Contemporâneos (Pintores e Escultores). Rio de Janeiro: Typografia Benedicto de Souza, 1929, p.252.
[4] Francis Galton (1822-1911)
[5] Esta cadeira, criada pela Reforma de 1863, foi ministrada por ele durante mais de vinte anos (1864-1886).
[6] ZÍLIO, Carlos. A querela do Brasil. Rio de Janeiro: Funarte, 1982, s/p.
[7] O governo republicano aboliu a imagem do índio como representativo da nação, como havia sido concebido pelo Império e adotou a iconografia tradicional da república divulgada pela França e que era materializada por uma figura feminina, à grega, coroada pelo barrete frígio. Cobertura de lã vermelha usada pelos antigos habitantes da Frígia, na Ásia Menor, mais tarde foi utilizada pelos escravos libertos. Na França revolucionária foi adotada como símbolo de liberdade.
[8] SCHWARCZ, L.M. As Barbas do Imperador - D. Pedro II, um Monarca nos Trópicos. São Paulo: Editora: Companhia das Letras, 1998, p.148.
[9] DURAND, J. C. Op.cit. p. 4-5 (grifo nosso).
[10] Idem, ibidem, s/p.
[11] MARQUES, Luiz. 30 Mestres da pintura no Brasil. 30 anos Credicard. São Paulo: MASP, 2001, p.39-40.
[12] A propósito, e coincidentemente, outra obra emblemática da pintura nacionalista, A negra, de Tarsila do Amaral, foi elaborada também em Paris (1923), sintetizando as memórias de infância e as influências cubistas européias.
[13] MIGLIACCIO, Luciano. O Século XIX. Catálogo da Mostra do Redescobrimento, São Paulo: Associação 500 Anos Artes Visuais, 2000, p.142 (grifo nosso).
[14] Farsália, cidade grega da Tessália.
[15] Poeta grego dos séculos VIII e IX a.C., ao qual é atribuída a Teogonia.
[16] O poeta latino Virgílio (70-19 a.C.) inspirou-se nesta obra para fazer seu poema Geórgicas, que quer dizer Os trabalhos da terra.
[17] Quinto Sertório (121-73 a.C.).
[18] Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa: Editorial Enciclopédia Limitada. 1952, v.28. p.519.
[19] Ao contrário da clâmide - capa solta, presa ao ombro direito - a exômide vestia mais e consistia numa espécie de túnica curta, de um só ombro e amarrada na cintura.
[20] Jules-Eugène Lenepveu (1819-1898), também aluno de Picot.
[21] WÖLFFLIN, Heinrich. As razões da transformação estilística. In: _____. Renascimento e Barroco. São Paulo: Perpectiva. 1989, p.93.
[22] BORNHEIM, Gerd. Introdução à leitura de Winckelmann. Gávea - Revista de História da Arte e Arquitetura , n,8. Rio de Janeiro: PUC. 1996, p.71.
[23] Idem, ibidem, p.71.
[24] BAYER, R. História da Estética. Lisboa: Estampa, 2ª ed., 1993., p.110.
[25] WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes. 1989, p.21.
[26] Idem, ibidem, p.24.
[27] Idem, ibidem, p.137.
[28] O Museu D. João VI possui uma Virgem de Foligno, copiada pelo próprio Pallière de um original de Rafael, durante seu pensionato europeu.
[29] Idem, ibidem, p.21.
[30] Teve como concorrentes Vitor Meireles, recém-formado no curso da Academia e Prêmio de Viagem no ano seguinte (1852); Francisco Antonio Nery, Prêmio de Viagem de 1848 com obra analisada no item anterior; e ainda Joaquim da Rocha Fragoso, Francisco de Sousa Lobo, Poluceno Pereira da Silva Manuel e Antonio Pereira de Aguiar.
[31] SCHIAVO, José. Dicionário de Personagens Bíblicos: Antigo e Novo Testamento. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint. s/d. p.24-25 e 65-66.
[32] WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais... Op.cit. p.137.
[33] Idem, ibidem, p.136.
[34] Idem, ibidem, p. 221.
[35] Idem, ibidem, p. 223.
[36] Decreto 1603, de 14-05-1855. Estatutos da Academia das Belas Artes. Título V, Seção I, p. 405.
[37] BAYER, R. Op.cit. p.104-105.
[38] WÖLFFLIN, H. Op.cit. p. 22.
[39] Henri-Marie Raymond de Toulouse-Lautrec (1864-1901)
[40] WÖLFFLIN, H. Op.cit. p.220.
[41] Idem, ibidem. p. 35.