Os embates no meio artístico carioca em 1890 - antecedentes da Reforma da Academia das Belas Artes [1]
Ana Maria Tavares Cavalcanti [2]
CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. Os embates no meio artístico carioca em 1890 - antecedentes da Reforma da Academia das Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 2, abr. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/criticas/embate_1890.htm>.
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A República brasileira acabara de ser proclamada em 15 de novembro de 1889, os reflexos das mudanças não tardaram a agitar o meio artístico carioca. O ano de 1890 foi conturbado na Academia das Belas Artes. Três projetos de reforma e um projeto de extinção da Academia foram elaborados e discutidos. Havia um clima de batalha em que se enfrentavam os “novos” e os “velhos”. Nos Cafés e nas praças do centro da cidade, reuniam-se os rebelados. A agitação que envolveu artistas, estudantes, professores e críticos de arte tornou-se assunto dos jornais que publicavam artigos contra ou a favor da Academia. Divulgando as polêmicas, anunciando as reuniões dos artistas, apoiando os “novos” e influenciando a opinião pública, os jornalistas tiveram papel importantíssimo no episódio[3].
Alguns anos mais tarde, em 1899, Gonzaga Duque publicava o romance Mocidade Morta[4], no qual tratava da mobilização dos jovens contra a Academia. Embora sendo obra de ficção, o livro de Gonzaga Duque nos apresenta sua visão sobre os acontecimentos e expressa os sentimentos que animavam os seus protagonistas.
Posteriormente, os fatos de 1890 tiveram sua importância e alcance minimizados, sendo quase completamente esquecidos. Não se falou mais dos anseios dos jovens estudantes das Belas Artes do final do século XIX. Apenas em 1944, um autor referiu-se a esses acontecimentos: Frederico Barata em seu livro sobre Eliseu Visconti. O livro de Barata é a fonte mais conhecida com informações sobre a revolta dos estudantes da Academia. Aí são relatados os fatos que tiveram participação ativa de Visconti, então um jovem aluno da Academia:
Na mesma data em que os ânimos tanto se tinham exaltado na Academia, abandonaram-na os modernos, acompanhados na atitude pelos professores referidos [Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoêdo]. E foram instalar-se, Visconti entre eles, no enorme barracão construído em pleno largo de São Francisco, junto à estatua de José Bonifácio, onde Aurélio de Figueiredo expusera o grande quadro alegórico "Redenção do Amazonas", transformando-o no que denominaram "Atelier Livre", um curso de pintura moldado na Academia Julian, de Paris, e no qual recebiam diariamente lições de Amoedo, dos Bernardelli e de Zeferino da Costa [sic]. Aí ficaram somente dois meses, pois a Prefeitura exigiu o barracão para demolir. O contratempo, porém, não lhes arrefeceu o entusiasmo e, com o grupo muito aumentado, mudaram-se para um sobrado à rua do Ouvidor, entre as ruas da Quitanda e Sachet, mais ou menos à igual distância dos edifícios onde estavam instalados o "Jornal do Commercio" e "O Paiz". Inegavelmente monopolizavam as simpatias gerais e eram freqüentados por vários artistas feitos, que lhes levavam apoio moral e proveitosos conselhos, sendo entre todos mais assíduo João Batista Castagneto, o marinista ímpar da pintura brasileira. Já então eram também financeiramente auxiliados por vários mecenas, entre os quais Ferreira Araújo, Luiz de Rezende, José do Patrocínio e os próprios professores, que todos se cotizavam para as despesas necessárias à manutenção do "Atelier Livre" e patrocinaram, em meados de 1889 [sic], uma grande exposição de trabalhos dos filiados ao movimento, um verdadeiro "Salon" de independentes, que ocupava as duas salas da frente e logrou atrair numeroso público e excelentes expositores, destacando-se Eliseu Visconti, Fiúza Guimarães, Rafael Frederico, Bento Barbosa (desenhista da "Cidade do Rio") e França Júnior.[5]
Consultando os jornais do período, podemos encontrar as datas exatas dos acontecimentos, pois Frederico Barata enganou-se quando situou a exposição dos alunos do Atelier Livre em meados de 1889.[6] Na verdade, a revolta dos alunos ocorreu em junho de 1890 e prolongou-se até o fim do ano, quando foi realizada a exposição dos rebeldes.
Além da correção de datas, outros esclarecimentos devem ser feitos. Barata refere-se a dois grupos de descontentes, e os denomina “Modernos” e “Positivistas”. Explica que os estudantes de ambos os grupos visavam uma renovação, mas defendiam pontos de vista diversos quanto à melhor orientação da reforma. Os “Modernos” criticavam a Academia, contudo não queriam seu fechamento. Ao contrário, pediam uma maior eficácia de seus métodos e a retomada dos concursos de Prêmio de Viagem[7]. Quanto às mudanças reivindicadas, se referiam a modificações do regulamento da Academia, sem prever uma reforma profunda do ensino artístico. Os “Positivistas”, mais radicais, eram liderados por Montenegro Cordeiro, Décio Villares e Aurélio de Figueiredo. Em seu projeto, chamado de “Projeto Montenegro”, pediam a supressão da Academia.[8]
Até aqui, o relato de Frederico Barata corresponde às informações extraídas dos jornais. De fato, entre os “novos” havia dois grupos distintos: o dos “Positivistas” e o dos estudantes que apoiaram os professores Rodolpho Amoêdo e Rodolpho Bernardelli. Porém, não encontramos nos textos da época a denominação de “Modernos” para designar esse grupo. As palavras “modernidade” e “moderno” são freqüentes, mas o grupo é conhecido como “os novos”.
Em seu livro, Barata atribuiu a iniciativa da revolta aos alunos da Academia, que em seguida teriam conquistado o apoio dos jovens professores Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoêdo, do pintor Henrique Bernardelli, irmão do escultor Rodolpho, e até mesmo a simpatia de um mestre mais antigo, Zeferino da Costa. Barata chega a mencionar a participação de Zeferino da Costa nos cursos livres promovidos no Largo de São Francisco.[9]
No entanto, até agora não surgiu documento que confirme a participação de Zeferino da Costa. Nenhum dos artigos de jornais menciona seu nome. Além disso, Alfredo Galvão, em seu estudo sobre João Zeferino da Costa[10], afirma que o pintor partiu para a Europa em setembro de 1889 e só retornou ao Brasil em 1893. Galvão reproduz um ofício assinado por Zeferino em 16 de agosto de 1889, pedindo dispensa para ausentar-se da Academia onde ensinava pintura de paisagem, para executar, na Itália, a encomenda da decoração da igreja da Candelária do Rio de Janeiro. Galvão afirma ainda que Zeferino foi nomeado professor da aula de modelo vivo em 1890, após a reforma que transformou a Academia em Escola de Belas Artes; mas só pode assumir a cadeira em 1893, quando retornou ao país.
É bem provável que a fonte de informações de Frederico Barata tenha sido o próprio Visconti que lhe contou suas memórias dos tempos de estudante. Talvez, nas lembranças de Visconti, episódios anteriores tenham se misturado aos acontecimentos de 1890. Realmente, Zeferino tinha um histórico de oposição à Academia, de lutas para realizar as aulas de pintura de paisagem ao ar livre, requerendo insistentemente ao governo passes gratuitos nos bondes para levar os alunos aos arredores da cidade. Visconti fora aluno de Zeferino nestes anos, entre 1887 e 1889.
Assim como esta lembrança confusa, outros fatos da revolta dos alunos da Academia parecem nebulosos. Para reconstituir os acontecimentos de 1890, consultamos os artigos da imprensa daquele ano.
Foi no mês de julho que os estudantes tomaram a iniciativa de uma ação prática. Decidiram abandonar a Academia, indo trabalhar numa construção provisória, o barracão mencionado por Frederico Barata, situado no centro da cidade do Rio, mais precisamente no Largo de São Francisco, ao pé do monumento a José Bonifácio.
A decisão de trabalhar fora do prédio da Academia foi tomada depois de uma série de reuniões para discutir a ineficácia da instituição. A mobilização dos estudantes foi registrada por jornalistas. O resumo da primeira reunião foi publicado na coluna “Artes e artistas” do jornal O Paiz em 17 de junho de 1890:
No salão do Derby Club realizou-se ontem a reunião dos artistas pintores, escultores, arquitetos e gravadores. [...]. Abrindo a reunião o Sr. Teixeira da Rocha apresentou a seguinte proposta :
Art. 1o – É ou não é útil a existência da Academia das Belas Artes, no estado de desmoralização em que se acha ?
Art. 2 o - É ou não é bem gasta a subvenção dada pelo governo, e esta subvenção produz os resultados a que é destinada ?
Art. 3 o - Atualmente a corporação docente da academia está na altura de pertencer a uma academia de belas artes ?
Art. 4 o - Não será mais útil ao ensino artístico que se aplique esse dinheiro em subvencionar oficinas de belas artes a moços, que tendo dado provas públicas de talento, queiram estudar belas artes nos grandes centros europeus, mediante concursos, exposições, etc ?
Foi aprovado o art. 1o da proposta, concordando todos os presentes que a existência da academia era inútil e nociva.[11]
Vê-se que a insatisfação era grande. Percebe-se também que o principal motivo de desagrado era a interrupção dos Prêmios de Viagem à Europa, considerados indispensáveis à formação artística. Nesta ocasião, a própria existência da Academia foi questionada. Mas em 21 de junho, realizou-se uma nova reunião. No dia seguinte, O Paiz relatava :
Efetuou-se ontem, no salão do Derby Club a reunião anunciada de artistas pintores, escultores, arquitetos e gravadores com o fim de subscreverem uma petição que será entregue ao digno ministro da instrução pública, relativamente à necessidade urgente da completa reforma na organização da Academia das Belas Artes.
Por aclamação foi nomeado presidente da assembléia o ilustre artista Rodolpho Bernardelli, que escolheu para seus secretários os seus distintíssimos colegas Rodolpho Amoêdo e Décio Villares.
Lida a representação, documento importantíssimo, que obteve unânimes aplausos, foi em seguida assinada por todos os artistas presentes e, segundo deliberação da mesma assembléia, estará até o dia 24, no barracão da exposição do quadro alegórico a Redenção do Amazonas, à disposição das pessoas, artistas ou amadores de belas artes, que queiram subscrevê-la.
[...], não é lícito supor que da parte do honrado e esclarecido ministro a importante representação encontre senão o mais decidido apoio para a pronta conversão do adiantado projeto em proveitoso fato.[12]
Por ocasião desta segunda reunião, já não se discutia a supressão da Academia, mas sua reforma. Além disso, a presença de Décio Villares ao lado de Rodolpho Amoêdo e Bernardelli mostra que havia conciliação entre o primeiro, que inicialmente defendera a eliminação da Academia, e os dois últimos que reivindicavam a reforma da instituição.
O movimento dos jovens artistas era francamente apoiado pelos jornalistas. Mas O Paiz também publicou, três dias depois, uma longa carta de Pedro Américo endereçada ao Ministro da Instrução Pública. O pintor analisava a situação do ponto de vista dos defensores da Academia. É interessante citar algumas passagens desta carta:
Capital Federal, 20 de junho de 1890.
Sr. Ministro - A atual agitação dos espíritos progressistas contra a Academia das Belas Artes, para alguns distintos escritores perfeitamente justificável e para outros nimiamente injusta, procede em parte de vícios reais daquela antiquada e infeliz instituição, porém, principalmente, de uma ilusão intelectual que consiste em atribuírem-se-lhe males dos quais ela própria se queixa há mais de um quarto de século, e que dependem de causas externas, radicadas e gerais, absolutamente independentes da vontade de um pequeno grupo de homens desunidos pelo desânimo ou por suas preocupações especiais.
[...] Não é tanto na deficiência do método, quanto na orientação particular do gosto público, que está o nó górdio que se procura desatar com uma violenta supressão, ou mesmo com a simples reforma da velha academia, abstração feita dos meios conducentes a tornarem o artista um cidadão praticamente útil, em vez de uma louca divindade imune e inútil [...].
Três condições são necessárias e indispensáveis à vida estética de um povo : o gênio, o método e o meio social. Mas, se porventura, uma dessas condições se deixa ultrapassar em importância, é sem dúvida o método. Imputar, pois, exclusivamente à instituição depositária das regras e preceitos elementares, [...], uma situação dependente de causas tão grandes e gerais, é desconhecer a imprescindibilidade do íntimo consórcio dos maiores fatores de todo o progresso possível na ordem dos fenômenos estéticos.
[...]. Tímido produto de um meio refratário e apático, não incumbia à academia modificar a sociedade de que era a imagem, nem poderia ela reagir vitoriosamente contra as forças negativas que lhe opunham um povo sem sensibilidade e um governo sem orientação claramente definida no assunto. [...]. De mais, essa supressão rápida e incondicional de que se fala, ainda quando motivada por fatos que a justificassem, ecoaria entre os povos mais cultos do mundo, acompanhada dos malévolos comentários daqueles que desejam pintar com os lineamentos do desatino e da violência o ilustrado governo da República.
[...]. De mais reforme-se a atual academia, dando-lhe uma orientação totalmente liberal e moderna, mas encerrando-a nos limites de uma escola preparatória ; [...].
- A exemplo da França, da Alemanha, da Rússia, da Bélgica, da Espanha e de outros países cultos e experientes - que sustentam em Roma suas respectivas academias nacionais, com uma organização completa e sede em magníficos palácios - comece-se simplesmente por enviar à Europa um artista ilustrado e conhecedor dos dois ambientes, a fim de guiar os pensionistas do estado, informar o governo acerca dos acontecimentos artísticos dos principais centros, e servir, por assim dizer, de elo entre o movimento nacional e o daqueles brilhantes focos de produção ;
- finalmente, [...], propague-se e generalize-se o ensino do desenho, dê-se grande incremento ao estudo da arquitetura, e instituam-se pelos diferentes estados da República pequenas escolas especiais e pequenas galerias de arte, destinadas a disseminarem a instrução e a acolher os artefatos dignos de servirem de modelo e exemplo a um povo livre. [...].
Eis, Sr. Ministro, numa rápida síntese, o meu fraco entender a respeito do objeto que está sendo explorado pela curiosidade pública, e que ameaça degenerar em pomo de discórdia entre cidadãos ilustres e probos, ou em privilégio exclusivo da ambição pessoal, senão vos dignardes de opor solicitamente à corrente dos fatos quotidianos o prestígio do vosso critério, das vossas luzes e do vosso patriotismo.
Respeitoso vos saúda vosso humilde compatriota,
Pedro Américo
Capital Federal, 20 de junho de 1890. [13]
Esta carta de Pedro Américo é a prova do alcance do debate que dividia o meio artístico brasileiro. Se um dos pintores mais reputados da época pronunciou-se sobre o tema, é porque o assunto era causa de grande inquietação. A própria existência da Academia estava em jogo.
Há ainda algo surpreendente nas palavras de Pedro Américo. Ao invés de defender a Academia, o pintor parece atacá-la ainda mais, sublinhando os problemas e fraquezas da instituição. Compartilhava, portanto, do pensamento generalizado sobre a inadequação do país às belas artes. Mesmo aconselhando a difusão do ensino artístico em todos os Estados brasileiros, a única solução que lhe parecia plausível para a formação dos artistas nacionais era enviá-los para estudar na Europa. Todos os grupos e até mesmo os artistas ligados à Academia estavam de acordo sobre este ponto.
Mas a agitação dos estudantes continuava. Em 26 de junho, O Paiz divulgava a seguinte circular, igualmente publicada no Jornal do Commercio de 27 de junho:
Cursos de belas artes
Circular
Não podendo ficar paralisado o estudo das belas artes, e estando os ex-alunos da academia moralmente obrigados a não aproveitar o pouco material de ensino que lá se fornece, a comissão promotora da mensagem que acaba de ser entregue ao governo pedindo a supressão da academia, resolveu organizar cursos públicos e gratuitos em local que será mais tarde anunciado. Para a realização desta idéia pedem os abaixo assinados a subvenção do público, subvenção que será provisória, porque o Sr. general Benjamin Constant comprometeu-se a resolver satisfatoriamente e dentro em breve o problema do ensino artístico entre nós. Como processo de recolher a subvenção, os abaixo assinados deixam listas nas redações dos jornais.
Capital Federal, 25 de junho de 1890.
Rodolpho Bernardelli, escultor.
Décio Villares, pintor.
Rodolpho Amoedo, pintor.
Aurélio de Figueiredo, pintor.
Manoel Teixeira da Rocha, pintor,
Francisco Ribeiro, pintor,
Baptista Castagneto, pintor,
Emílio Rouède, pintor,
Henrique Bernardelli, pintor.[14]
No dia 9 de julho de 1890, O Paiz anunciava a abertura dos cursos públicos no barracão instalado no Largo de São Francisco. O jornal informava ainda que oito alunos estavam inscritos no curso de pintura, e outros dois no curso de escultura. Buscava-se assim pressionar o governo a reformar a Academia cujas aulas estavam esvaziadas, sem alunos que as frequentassem.
Vejamos agora como se manifestou sobre a revolta de 1890 um crítico de arte que participou dos acontecimentos. Trata-se de Gonzaga Duque que escreveu o artigo O aranheiro da Escola, publicado na Revista Kosmos n.8 em agosto de 1907 e mais tarde incluído no livro Contemporâneos de 1929.[15] Gonzaga Duque identificou a origem da mobilização artística em sentimentos mais antigos:
Em fins de 1887 o descontentamento lavrava pela maioria dos estudantes da Imperial Academia. Mas, esse descontentamento, provinha mais diretamente da organização obsoleta do regulamento do que, propriamente, das suas nugas e quizílias, a que estavam acostumados todos os artistas daquele tempo. [...]
A proclamação da República em 1889, veio trazer largas promessas a essa mocidade. Pensaram todos que a mudança do regime governativo implicava reforma radical na vida das nossas instituições, [...].[16]
Foi nesse contexto, diz o crítico, que um grupo de artistas simpatizantes dos “princípios da escola comtista” elaborou um projeto para a “organização do ensino das belas artes”. O grupo formado por Montenegro Cordeiro, Décio Villares e Aurélio de Figueiredo foi elogiado por Gonzaga Duque que considerou seu projeto “inegavelmente utilíssimo e sério”.[17] Os trechos reproduzidos por Gonzaga Duque mostram que a proposta dos “Positivistas” era a eliminação total da Academia e sua substituição por cursos em ateliês de mestres subvencionados pelo governo. Cada estudante teria a liberdade de escolher o professor que melhor lhe parecesse. Outro aspecto importante era a ênfase dada à difusão das artes no país inteiro, para todas as classes e idades. Os estudantes de artes receberiam pensões para ensinar desenho nas escolas públicas e era prevista a fundação de museus em todos os Estados da federação.
Foi este aspecto descentralizador que agradou ao crítico. Mas, diz Gonzaga Duque, “enquanto aqueles artistas, [...] confeccionavam o proveitoso plano de reforma, [...] os Srs. Rodolpho Amoêdo e Rodolpho Bernardelli, iam trabalhando em outro projeto, orientados pelo ensinamento oficial das Academias da Europa, particularmente a de Paris”.[18]
Gonzaga Duque deplora o fato de o “excelente plano Montenegro, Décio e Aurélio” não ter obtido a “atenção do governo que pensou de modo diverso e, respeitando os moldes arcaicos disfarçados em reforma, pôs o condenado instituto em anacronismo com os puros princípios da Democracia”.[19] Ou seja, o governo optou pelo projeto Bernardelli-Amoêdo que não propunha verdadeiras mudanças.
Uma das partes mais interessantes do artigo de Gonzaga Duque é o relato de sua participação nos acontecimentos de 1890:
Então o autor dessas linhas, por esse tempo muito moço e iludido com os homens e as cousas de seu país, e os demais com a tola preocupação de se interessar pelas belas artes sem ter por si a responsabilidade profissional, reunindo-se a um grupo de jovens artistas, os mesmos ou quase todos os que fizeram o movimento reacionário, tentou organizar o ensino-livre das Belas Artes no Rio de Janeiro! [20]
A resistência desse grupo “chegou a ser extraordinária, quase um martírio... e algum dia eu a contarei” - escreve Gonzaga Duque - “ao menos para ser lida por meia dúzia de moços”.[21] E referindo-se aos episódios do Largo de São Francisco, prossegue:
[...] a Academia era acintosamente combatida por esse grupo de artistas que, ajudado por alguns capitalistas, fundaram um curso-livre no barracão construído pelo Sr. Aurélio de Figueiredo para a exposição de sua grande tela encomendada pelo governo do Amazonas. [22]
A esses heróicos resistentes, Gonzaga Duque contrapõe os integrantes da comissão nomeada pelo governo, os signatários dos projetos:
Enquanto assim procedíamos, a comissão nomeada pelo governo para elaborar o regulamento da reforma, e composta dos Srs. Amoêdo, R. Bernardelli e Dr. Moreira Maia, entrava em discordância, chegando o último destes membros a negar sua assinatura ao trabalho apresentado por aqueles seus companheiros. Teve o governo de substituir o Dr. Maia pelo Sr. Décio Villares, o signatário do projeto Montenegro! – [...] elaboração singularíssima, [...]. [23]
O crítico se espanta com o rápido acordo entre Décio Villares e os professores Amoêdo e Bernardelli que pouco antes defendiam propostas diversas sobre a Academia. Finalmente, em dezembro de 1890, foi promulgada a reforma da Academia[24]. Sobre esta, Gonzaga Duque afirma que se tratou apenas de mudança de nome, passando a Academia a ser chamada Escola Nacional de Belas Artes, “questão de rótulo”.[25] Gonzaga Duque conclui:
Aqui temos em rápidas linhas a história dessa reforma. O nome artístico do novo diretor da nova Escola, ex-Academia, e o cultivo mental do seu vice-diretor, cargo novo entregue a uma das glórias da nossa arte, seriam o bastante para atrair a “mocidade de belas artes” se ela, em uma grande parte, não protestasse contra a forma caracteristicamente oficial dada ao instituto. Era uma questão de princípios e não de pessoas como muita gente supunha. [26]
Segundo o crítico, o verdadeiro problema da antiga Academia, seu caráter oficial e centralizador, não havia sido resolvido com a reforma. Para ele, as mudanças consistiram apenas numa troca de nomes e de pessoas. Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoêdo assumiram a direção e a vice-direção da Escola, mas a estrutura da instituição permaneceu inabalável.
Os artigos de jornais e os relatos sobre os acontecimentos de 1890 nos levam às seguintes conclusões:
Havia um real descontentamento dos estudantes com a decadência da Academia. Esta decadência, no entanto, refletia a crise do governo imperial. A Academia, instituição pública, dependia do governo federal para funcionar. Faltando o apoio do Estado desde 1887, o maior problema da Academia era a precariedade na qual vivia. Não eram apenas os estudantes que estavam insatisfeitos; os próprios professores se queixavam das condições de trabalho. Suas reclamações abrangiam desde as péssimas instalações (problemas de espaço, de má iluminação, a falta de uma bela vista, e o desgaste dos materiais que não eram repostos), passavam pelo despreparo dos alunos e alcançavam o meio social, considerado inapto para a apreciação das belas artes.
Quanto à reivindicação de mudanças no plano estético, esta parecia ser elemento secundário em meio a tantas carências. Nota-se que o projeto dos “Positivistas” não abordava nenhuma revolução estética. Quanto ao projeto Bernardelli-Amoêdo, tratava apenas de aspectos institucionais, pedia a demissão dos antigos professores e o limite de dez anos para as atividades dos novos. Aliás, esta resolução acabou caindo em desuso, os professores sendo reconduzidos a seus lugares, passados os primeiros dez anos.
Sabe-se que o desenlace deste episódio vivido por artistas e estudantes de artes no Rio de Janeiro em 1890 deixou uma sensação amarga em alguns de seus protagonistas. O sentimento de que muito se lutara por muito pouco é expresso por Gonzaga Duque no romance Mocidade morta de 1899 e no artigo O aranheiro da Escola em 1907.
Os resultados práticos da reforma foram a renovação do corpo docente, a retomada da frequência anual das Exposições Gerais[27] e o restabelecimento dos Prêmios de Viagem. Além disso, um novo prêmio de viagem foi instituído para o melhor participante da Exposição Geral.
Por um lado, poderíamos pensar que tudo o que ocorreu em torno da Academia em 1890 foi apenas resultado de brigas internas e ambições pessoais. Por outro lado, a mobilização dos estudantes, a participação dos jornalistas e o envolvimento dos críticos revelam um forte anseio por renovação, mesmo que este desejo fosse ainda difuso e seus objetivos incertos.
[1] - Este artigo é parte do resultado de minha pesquisa intitulada O conceito de modernidade e a Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro realizada com auxílio do CNPq (bolsa Recém-Doutor) entre janeiro de 2000 e junho de 2001.
[2] - Ana Maria Tavares Cavalcanti, doutora em História da Arte pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, é professora de História da Arte na Escola de Belas Artes da UFRJ.
[3] A transcrição parcial do projeto Bernardelli-Amoedo, assim como algumas críticas desse período, podem ser encontradas reproduzidos no presente site: http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/artigos_imprensa.htm
[4] - DUQUE, Gonzaga. Mocidade morta. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1995. [A primeira edição é de 1899].
[5] - Frederico Barata. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Zélio Valverde, 1944, pp.36-37.
[6] - Para estabelecer a cronologia dos acontecimentos, consultamos os artigos de O Paiz e de A Gazeta de Notícias. As datas correspondem também ao abandono de Rodolpho Bernardelli de suas funções de professor da Academia de Belas Artes. Segundo informação tirada da ata da reunião do Conselho em 7 de novembro de 1890, este abandono data de 6 de maio de 1890 (Acervo Museu D. João VI – EBA/UFRJ).
[7] - Sobre os Prêmios de Viagem após a reforma da Academia de 1890, ver os seguintes artigos presentes em 19&20: VALLE, Arthur. “Pensionistas da Escola Nacional de Belas Artes na Academia Julian (Paris) durante a 1ª República(1890-1930)” e DAZZI, Camila. “Pensionistas da Escola Nacional de Belas Artes na Itália (1890-1900) – questionando o “afrancesamento” da cultura brasileira no início da República”.Site: http://www.dezenovevinte.net/19e20/19e20I3.htm
[8] - BARATA, pp. 29-34.
[9] - BARATA, p.34.
[10] - GALVÃO, Alfredo. João Zeferino da Costa, sua vida de estudante e a de professor contadas pelos documentos existentes na Escola de Belas Artes. Rio de Janeiro: UFRJ, 1973.
[11] - « Artes e artistas », In : O Paiz. Rio de Janeiro, 17 de junho de 1890, p.2.
[12] - O Paiz. Rio de Janeiro, 22 de junho de 1890, p.2.
[13] - O Paiz. Rio de Janeiro, 25 de junho de 1890, p.3.
[14] - O Paiz. Rio de Janeiro, 26 de junho de 1890, p.3.
[15] - DUQUE, Gonzaga. O aranheiro da Escola. In: Contemporâneos. Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929, pp.215-225.
[16] - Idem, pp.216-217.
[17] - Idem, p.217.
[18] - Idem, ibidem.
[19] - Idem, p.221.
[20] - Idem, ibidem.
[21] - Idem, p.222.
[22] - Idem, pp. 222-223.
[23] - Idem, p.222.
[24] - Os Estatutos da Escola Nacional de Belas Artes podem ser encontrados reproduzidos no presente site: http://www.dezenovevinte.net/documentos/docs_primeira_republica.htm
[25] - Idem, p.223.
[26] - Idem, ibidem.
[27] - O novo Regimento das Exposições Gerais de Belas Artes, datado de 1893, pode ser encontrado reproduzido no presente site: http://www.dezenovevinte.net/documentos/reg.htm