O tempo de Victor Meirelles e a cidade de Florianópolis

Sandra Makowiecky *

MAKOWIECKY, Sandra. O tempo de Victor Meirelles e a Cidade de Florianópolis. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 4, out. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/vm_florianopolis.htm>. [English]

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O que acontecia na Europa no tempo de Victor Meirelles?

A transição do século XIX para o século XX foi uma época de profundos contrastes na Europa: a técnica progrediu rapidamente, mas o desenvolvimento industrial era visto com reservas especialmente pelos artistas que não aceitavam de bom grado as novas possibilidades de expressão abertas pela revolução industrial. A nostalgia do passado, despertada pela Revolução Industrial, dando origem a vários estilos - os “neos” -, nada mais foi que o reflexo da indecisão e insegurança da sociedade européia diante da transição a que assistia. Os artistas europeus, insatisfeitos, buscaram novas saídas para a arte, a fim de que a criação pudesse inserir-se em todas as formas da vida moderna. Esta procura verificou-se em todos os setores. O art nouveau foi um movimento desta época que recebeu diversas denominações, de acordo com a região e que tentava conciliar arte e técnica, procurando criar formas originais que se adaptassem aos novos materiais da época, como o ferro, por exemplo. Com efeito, convivia-se com:

1-   Neoclassicismo e seu retorno à antiguidade clássica.

2-   Naturalismo: a expressão d`après nature designa toda obra de arte calcada ou mesmo copiada diretamente da natureza. Por extensão, o naturalismo pode ser definido como a doutrina estética que busca inspiração direta na natureza e a reproduz com fidelidade. Não implica, porém, em cópia fiel da natureza, mas a sua interpretação através da sensibilidade do artista. Não se deve, também, confundi-lo com realismo. Este se opõe tanto ao naturalismo quanto ao neoclassicismo, sendo a representação artística das coisas da natureza tais como se apresentam na realidade, em oposição ao idealismo que se esforça por apresentá-las como as concebe o espírito ou a imaginação. No Brasil, os principais naturalistas reuniram-se em torno de Georg Grimm, o qual era, no entanto, mais um realista.

3-   Realismo - a pintura, arte essencialmente objetiva, consiste na representação das coisas reais existentes. A beleza não está no característico, mas na verdade, afirmava Gustave Coubert, que publica, em 1855, o Manifesto Realista. Quase à mesma época, as primeiras fotografias são expostas nas feiras internacionais. A fotografia colocou em questão o caráter único da obra de arte, da mesma maneira que o realismo colocou em questão a nobreza de temas da arte oficial. De fato, entre 1848 e 1855, Courbet expôs no Salão telas que escandalizaram o público, a crítica e os meios oficiais, porque nelas estavam pintados trabalhadores, camponeses, cenas da vida cotidiana e popular, cenas de costume. O realismo no Brasil difere bastante de sua matriz européia, caracterizando-se, na verdade, como uma observação atenta do real (especialmente na paisagem) confundindo-se por vezes com o naturalismo e, em última instância, com o academismo[1].

4-   Impressionismo: ainda preso à natureza e aos sentimentos por ela despertados, os impressionistas procuram captar em suas telas o fugidio, o efêmero e o fugaz da vida ao ar livre. Expressam o movimento das águas, os reflexos da luz, a dissolução das imagens, a fumaça de um trem que chega à estação, o nevoeiro sobre o rio, a indefinição no contorno das figuras que se movimentam no palco, no baile, na relva ou no hipódromo. Trata-se de pintar o que não se repete, o instante. Contra a retórica social dos realistas, substituíram o assunto pelo motivo.

5-   Ecletismo: artista eclético é aquele que se filia simultaneamente a várias escolas, ou que, não se filiando a nenhuma delas, busca inspiração em fontes muito diversificadas quanto ao estilo. O ecletismo não é necessariamente uma expressão pejorativa e o comportamento a ele vinculado floresce principalmente nos períodos de transição ou de indefinição artística. Na ausência de novas correntes estéticas, o ecletismo ressuscita estilos do passado. No Brasil, o ecletismo acadêmico com elementos de naturalismo vigorou entre 1870 e 1922, isto é, entre o esgotamento das propostas iniciadas com a instalação da Academia Imperial e o modernismo.

O que acontecia no Brasil no tempo de Victor Meirelles?

O início do século XIX é marcado pela chegada da família real portuguesa e o Rio de Janeiro organiza-se tecnologicamente (saneamento, eletrificação) e esteticamente (reformulação urbana, paisagismo). Assim o Brasil passa de mero empório colonial à sede provisória de um defasado império mercantilista. Houve, portanto, a necessidade de reaparelhamento da nova sede metropolitana, o que levou a medidas como a contratação de uma missão de artistas franceses as quais trouxeram para um ambiente católico, monárquico e tropical, as doutrinas estéticas francesas do neoclássico. A missão chegou ao Brasil em 1816 e a partir de então, o Brasil recebeu forte influência da cultura européia, a qual começou a assimilar e imitar. Em 1826, foi fundada a Imperial Academia e Escola de Belas Artes[2].

Esta estética, fruto de ideais nacionalistas, buscará um sentido didático, temas patrióticos, heróicos e políticos. Os artistas voltam-se para a antiguidade clássica, procurando nos modelos gregos e romanos, o equilíbrio que convinha a uma sociedade laica, liberta dos ideais da igreja da Contra Reforma e desejosa do fausto europeu, buscado a todo custo. A influência do academismo na arte brasileira ainda é visível hoje, especialmente em suas instituições mais fortes: ensino, mecenato oficial e mercado de arte.

Por intermédio dos prêmios de viagem à Europa, concedidos inicialmente pela academia, em concursos internos, e em seguida nas Exposições Gerais, este vínculo com a pátria artística colonial foi reforçado. Os bolsistas recebiam instruções precisas sobre o que ver e fazer, os mestres acadêmicos que deveriam tomar como professores, as obras de museus que deveriam ser copiadas, etc. De volta ao Brasil, comprovado o bom aproveitamento, eram nomeados professores. Mantinha-se assim, sem rupturas, o funcionamento do sistema acadêmico. É neste contexto que se situam as obras de Pedro Américo e Victor Meirelles de Lima, pintores brasileiros que estudaram na Academia Nacional de Belas Artes.

Várias tentativas de furar este bloqueio foram feitas. Araújo Porto Alegre, o primeiro brasileiro a assumir a direção da Academia Imperial, em 1854, esboçou uma reforma de fundo nacionalista[3]. Os acadêmicos controlavam também os Liceus de Artes e Ofícios, a Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Museu Nacional de Belas Artes e instituições influentes como a Sociedade Brasileira de Belas Artes. Controlavam, até muito recentemente, o Salão Nacional, dificultando o acesso dos artistas jovens ao prêmio de viagem ao exterior. O poder acadêmico tinha seus representantes na crítica de arte (vide a famosa polêmica travada entre os defensores de Pedro Américo e Victor Meirelles por ocasião da apresentação pública das telas gigantescas sobre as batalhas do Avaí e dos Guararapes), mecenas, como o próprio Imperador D. Pedro II, e galeristas. E tinha público também. Ainda hoje surpreende o número de visitantes das Exposições Gerais, que alcançou em sua 22ª edição (1871) - 63.959 pessoas. Isto explica igualmente o sucesso popular de artistas como Antônio Parreiras, que inundou o país com suas obras históricas, eleito em 1925, em concurso nacional, como o maior pintor brasileiro.

Mas existe uma outra arte acadêmica, que nada tem a ver com o neoclassicismo, o ecletismo e outros ismos que existiam no Brasil ainda no século passado. Esse outro academismo, o de hoje, é apenas uma arte temática, técnica e formalmente defasada. Mas que detém prestígio numa espécie de circuito paralelo, que envolve artistas, mercado, crítica, locais de exposições, um público fiel e de recursos, mas pouco esclarecido a respeito da arte contemporânea, tudo isso exercendo uma forte pressão subterrânea sobre o meio cultural brasileiro. Assunto que está a merecer estudos mais aprofundados.

No Brasil, no final do século passado, com a ascensão da riqueza representada pela borracha na Amazônia, pelo café em São Paulo e pela agricultura e pecuária na mata mineira, multiplicam-se as viagens à Europa. Começam a se formar colecionadores com paladares ecléticos, estimulados pelos hábitos e costumes mundanos da Belle Époque parisiense. Passam a se interessar por Rodin, pelos simbolistas, realistas, impressionistas, pós-impressionistas, rejeitando a pintura acadêmica, de difícil interpretação.

A Belle Époque é, na realidade, um estado de espírito que se manifestou em dado momento da vida de determinado país. No Brasil, situou-se entre 1889 (proclamação da República) e 1922 (Semana de Arte Moderna). O artista desta época, ao participar de exposições na Europa, estudar ou folhear catálogos, entrava em contato com a mistura de estilos e, pressionado por exigências do mercado ou por espontânea vontade, aderia ao ecletismo. É neste sentido que se diz que a Belle Époque diz respeito a uma única classe social, a burguesia, e somente com ela adquire sentido.

Como conseqüências da instalação da corte portuguesa e do ensino acadêmico, podemos destacar: o formalismo passou a dominar o ensino dentro dos padrões do espírito neoclássico; o Rio de Janeiro passou por grandes modificações que modificaram a paisagem urbana e que vieram a influenciar várias regiões do Brasil; houve um verdadeiro corte na tradição colonial de raízes barrocas; nosso meio artístico passa a estar em contato com a arte européia; houve uma mudança da clientela da arte, que deixou de se destinar a uma finalidade religiosa e passou a interessar aos civis e ao estado; dentre outras.

Florianópolis e Victor Meirelles

Quem sabe quantos desses infantis visitantes guardarão tão profunda impressão do que ali observaram, que ainda um dia virão por ele atraídos fazer parte de nossa comunhão nacional?

Victor Meirelles[4]

Victor Meirelles de Lima, um dos maiores expoentes desta época e considerado por muitos o maior pintor brasileiro do século XIX, nasceu na pequena cidade de Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, em 18 de agosto de 1832, um menino pobre, filho de imigrantes portugueses, que ainda na infância ocupava seu tempo desenhando bonecos e paisagens de sua idílica ilha. Faleceu no Rio de Janeiro a 22 de fevereiro de 1903.

A vocação precocemente revelada foi estimulada pelos seus pais e apoiada pelas autoridades oficiais da época: aos quatorze anos de idade ele ganhava uma bolsa para freqüentar a Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e aos vinte anos, com a tela São João Batista no Cárcere - 1852, conquistava o Prêmio Especial de Viagem à Europa. De volta ao Brasil foi agraciado com o título de Cavaleiro da Ordem da Rosa e nomeado professor de pintura da Academia.  

A partir de então, seu nome se transformaria numa das maiores expressões das Artes Plásticas no Brasil, no século XIX. Autor da mais popular das telas brasileiras - A Primeira Missa no Brasil - reproduzida em cadernos escolares, selos, cédulas monetárias, livros de arte, catálogos e revistas, Victor Meirelles deixou um extraordinário acervo, minuciosos esboços, estudos em papel e óleo sobre tela. Para Aguillar (2000), esta obra foi também, a principal responsável pelo prestígio até então inigualável que alcançaram as artes plásticas brasileiras na segunda metade do século XIX. Pode-se dizer que este quadro iniciou a fase brilhante da pintura de cavalete no Brasil.

Iniciou seus estudos artísticos por volta de 1845, com o professor de desenho geométrico, o engenheiro argentino Marciano Moreno. Jerônimo Coelho, à época conselheiro do Império, ficou impressionado com seus desenhos e mostrou-os ao então diretor da Academia de Belas artes, Félix Émile Taunay, que o aprovou de imediato. É dessa época uma vista que fez de Desterro, em 1847 (em aquarela) e que consta do atual acervo do museu Victor Meirelles. Com quinze anos incompletos, transfere-se para o Rio de Janeiro, ingressa na Academia Imperial de Belas Artes, onde cursa desenho e pintura histórica. No ano seguinte, conquista a grande medalha e a traz a seus pais, em visita à Florianópolis, quando pinta um panorama do desterro, visto do adro da Igreja Nossa Senhora do Rosário, restaurado em 1986, e que agora está no acervo do museu que leva seu nome. Entre 1853 e 1856, em virtude do prêmio de viagem à Europa, estuda em Roma e depois continua seu aperfeiçoamento na Escola de Belas Artes de Paris. A pintura da escola veneziana de Ticiano, Paolo Veronese, Giorgione, Tiepolo, arrebata Victor, com a variedade e intensidade da gama cromática. Durante esse período no exterior mantém correspondência com o pintor Manuel de Araújo Porto Alegre, que se tornou seu amigo e conselheiro. Por conselho de Porto Alegre, enveredou pela retratística, com o intuito de ganhar dinheiro, ele que sempre foi um apaixonado pela paisagem.

Escreveu-lhe Porto Alegre:

Como homem prático e como particular, recomendo-lhe muito o estudo do retrato, porque é dele que há de tirar o maior fruto de sua vida: a nossa pátria ainda não está para a grande pintura. O artista aqui deve ser uma dualidade: pintar para si, para sua glória e retratista para o homem que precisa de meios (apud SALGUEIRO, 1980, p.39).

No retrato, revelou qualidades insuperáveis, sendo um dos maiores retratistas do Brasil, atingindo uma certa humanização pictural. Seus retratos vivem, falam, movimentam-se. Entretanto, o reconhecimento de sua obra não é unânime. A crítica mais freqüente a ele, é de que era um pintor acadêmico a serviço da corte, e que sendo acadêmico, não trouxe contribuições estilísticas, embora tivesse vivido em uma época em que começavam a surgir muitas inovações, como a própria ruptura paradigmática realizada por Toulouse - Lautrec, Cézanne, Van Gogh e Gauguin. Ressalto no artista sua visão humanística, sensível e acima de tudo, excepcional desenhista, tendo sido também um repórter de sua época.

Como bom cumpridor de seus deveres, remete sempre à Academia, cópias de obras célebres e também composições originais, como obrigação de todo bolsista no exterior. Aluno devotado e exemplar, sempre foi elogiado pelo rigor com que cumpria o que lhe era devido. Retorna para o Brasil em 1861, com 29 anos de idade. Sua formação está concluída, dentro dos padrões do neoclassicismo com interferências românticas. Estava apto a executar sua grandiosa obra. No ano seguinte é nomeado professor de pintura histórica e paisagem na Academia Imperial de Belas Artes, cargo que exerceu até 1890[5].

Realiza pinturas históricas sobre a Guerra do Paraguai. Em 1879, seu quadro Batalha dos Guararapes é apresentado na Exposição Geral de Belas Artes, ao lado de Batalha do Avaí, de Pedro Américo. Pedro Américo e Victor Meirelles são, sem sombra de dúvidas os dois maiores nomes das artes plásticas no Brasil desta época. A comparação entre os dois quadros suscita polêmica na imprensa e no público. Em 1889, recebe medalha de ouro pelo Panorama do Rio de Janeiro na Exposição Universal de Paris. Algumas datas são representativas para situar a importância do artista.

Em 1952, em Florianópolis ocorre a fundação do Museu Victor Meirelles na residência onde o artista nasceu. Este museu já recebeu um estudo na dissertação de mestrado de Teresinha Sueli Franz (1996), chamada: “Revelando o museu Victor Meirelles rumo à descoberta do seu potencial pedagógico e à educação em artes visuais em Florianópolis”[6].

Em 1982, por ocasião do sesquicentenário de nascimento do artista é lançado o livro Victor Meirelles de Lima (1832-1903), de Angelo de Proença Rosa e outros. Em 1992 é criado o Criado o Salão Victor Meirelles, no Museu de Arte de Santa Catarina e em 1996 é lançado o vídeo Victor Meirelles Quadros da História, de Alberto Pena Filho.

Pode-se dizer que Victor Meirelles participou do neoclassicismo, academismo e romantismo e sua tendência estava na pintura Histórica, Paisagem, Retrato, Nu, Marinha, Pintura Sacra, Pintura de Gênero, Figura, Pintura Mitológica.

Vale citar algumas passagens críticas, que dão conta de uma leitura sintética de sua obra.

Meirelles estudara na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, que fora marcada por professores franceses vindos em 1816, de boa cepa neoclássica. Mas os anos que passara em Roma [...] fizeram-no entrar em contato com a chamada pintura 'purista' - arte na qual o desenho é mais frágil, tênue e delicado que os da tradição inaugurada por David, arte que abranda o vigor anatômico neoclássico em benefício de corpos simplificados, arte cujas cores são suavizadas e onde uma geometria interna preside à composição -, geometria de tranqüilo equilíbrio. [...] Na Roma de Pio IX, a formação neoclássica atenuara-se, espiritualizara-se, adquirindo um modo definitivo de ser que o seu período parisiense não saberia apagar. Todos esses princípios surgem com clareza na Primeira Missa, cujo projeto era o de instaurar um momento harmônico e espiritual, onde se concertavam mundos opostos (COLI, 1998, p.107-121)

Victor Meirelles foi saudado pela crítica mais conservadora - Araújo Viana, por exemplo, proclama-o uma individualidade culminante e imorredoura na pintura nacional” - e negado pelos adeptos da arte moderna. De fato, ele não assimilou as novas tendências do século XIX: progrediu sobre o academismo da Missão Francesa por haver buscado inspiração à terra e à raça e ter-se motivado no gentio, quer em Primeira Missa no Brasil, quer em Moema e outras telas - presença do indianismo, que fora uma das características do romantismo literário no Brasil. Acurado na observação, foge das regras convencionais para construir suas próprias normas. Não se conservou prisioneiro da Academia, pois o sentimento e a poesia pairam em suas telas, acima das convenções. Mais emotivo que cerebral, constituiu a réplica a Pedro Américo  (KELLY, 1979, p.553).

Pela primeira vez desde os tempos de Debret, o Estado tornou a encomendar aos artistas telas de grandes dimensões, visando criar um conjunto de imagens dos eventos da guerra a ser legadas às gerações seguintes.  O papel da pintura histórica na educação e na criação da consciência nacional finalmente havia se tornado patrimônio das instituições.Victor Meirelles e Pedro Américo foram os protagonistas dessa mudança. [...] Com a queda do regime monárquico e a Proclamação da República, em 1889, surgem expectativas de renovação cultural. [...] Victor Meirelles foi o único artista a ser marginalizado pelo regime, que o identificava como o pintor oficial da monarquia.  Circundava-o, todavia, a admiração que soubera angariar dos alunos e que fazia dele um ponto de referência para os artistas mais sensíveis da geração mais jovem. Imitando o exemplo de Gervex em Paris, Meirelles criara em 1885 uma Empresa de Panoramas da Cidade do Rio de Janeiro, recrutando sócios contribuintes e improvisando-se como gerente. A pintura de panorama, mostrando não somente a beleza, mas o grau de desenvolvimento urbanístico e industrial da capital, tinha de servir como propaganda do Brasil junto aos futuros emigrados europeus, aos quais cabia satisfazer a demanda de mão-de-obra livre provocada pela já iminente abolição da escravatura. O primeiro panorama do Rio de Janeiro, do qual só restam seis estudos no MNBA, foi executado pelo artista em Bruxelas e exposto na capital belga e em Paris, por ocasião da Exposição Universal de 1889. Meirelles também, portanto, buscava uma alternativa à pintura histórica e às encomendas oficiais, que logo a República negaria (MIGLIACCIO, 2000, p.109-110,150).

Os temas preferidos de Victor Meirelles eram os históricos, os bíblicos e as paisagens. Sua produção manteve-se fiel aos princípios neoclássicos. Era excepcional desenhista e possuía enorme aptidão para pintar paisagens. Preferia o desenho à cor e hoje tem sido reconhecido como um dos maiores desenhistas que já tivemos. Seu trabalho valoriza mais a linha, o traçado. Em aspectos formais, sua obra apresenta composição estática, cores claras e definidas, valorização do desenho, simetria e equilíbrio. Podemos também dizer que tinha desenho esmerado e ágil, pincelada vigorosa, intuição de cor e ciência da composição.

Mas Victor Meirelles realizou também formidáveis panoramas. O panorama é constituído por uma grande paisagem disposta em círculo giratório e em que o espectador se situa no centro do círculo, numa pequena plataforma. Nessa posição ele teria a visão global do panorama exposto.

Sobre a relação de Victor Meirelles com os panoramas, escreve Carlos Rubens, seu biógrafo:

Victor Meirelles possuía a fascinação emocional dos panoramas. Gostava dos cenários imensos da cidade, da visão da metrópole como que adormecida no tumulto da irregularidade arquitetônica, do colorido variado do casario, das grandes massas que a perspectiva distancia e as tintas fixam nos seus valores exatos (RUBENS, 1945, p.133)

Dos panoramas, num total de três, pouco restou. São eles: o do Rio de Janeiro propriamente dito, o das ruínas da fortaleza de Villegaigon e o da primeira Missa do Brasil. O do Rio de Janeiro, de grandes proporções e que foi exposto na Europa e no Rio de Janeiro, foi inteiramente destruído, temos apenas seis estudos dele. Resta um estudo para o da fortaleza de Villegaigon e um esboço para o panorama da Primeira Missa no Brasil. Os panoramas ficaram sem abrigo e se deterioraram completamente.

Victor Meirelles estava no ápice de sua carreira quando resolveu se dedicar aos panoramas do Rio de Janeiro. Esse gênero de pintura foi uma constante na obra dele, pois os primeiros trabalhos que realizou foram duas vistas de sua terra natal, Desterro. A primeira [Figura 1] foi uma das obras do artista, então com quatorze anos, que encantou o conselheiro da corte Jerônimo Coelho e seu passaporte para a Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

Anualmente, Victor Meirelles retornava do Rio de Janeiro para a sua cidade natal e nestes períodos a retratava [Figura 2, Figura 3, Figura 4 e Figura 5].

A obra da Figura 3 foi realizada quando Victor Meirelles possuía quinze anos, em 1847, dando mostras do avanço técnico já alcançado em seu primeiro ano no Rio de Janeiro.

Mais tarde, antes de seguir para a Europa, em 1851, pintou a tela chamada Uma rua do Desterro [Figura 5], rua João Pinto, antiga rua Augusta; depois se dedicou mais a figura e pintura histórica. Embora nesse gênero também trabalhasse a paisagem, só voltou aos panoramas nas duas últimas décadas de sua vida.

No prefácio do livro “Victor Meirelles de Lima 1832-1903”[7], Alcídio Mafra de Souza se refere a ele, como : “O pintor de uma rua do Desterro”. Diz que:

Ele conheceu o sucesso e o esquecimento. Viveu dias de glória e dias de dor e angústia - o que, na realidade, não lhe era privilégio, sim, fruto da própria condição humana.Não mais relampeava a alegria quando faleceu, em 1903. Tão pobre quanto saíra de Nossa Senhora do Desterro - o que não deixa de ser paradoxal - logo ele, que havia enriquecido a nação com tão celebradas obras de arte (SOUZA in ROSA, 1982, p.13-4)

Victor Meirelles talvez seja o pintor mais popularizado do Brasil, graças, principalmente ao quadro A primeira Missa do Brasil, que tornou seu nome familiar. Acredito que nas paisagens e nos estudos para panoramas, sua ciência pictórica é empregada para fixar a poesia imanente aos espetáculos da natureza. Embora dos panoramas só restem estudos, tudo leva a crer que tentou suplantar a crescente sofisticação da arte fotográfica, tal seu empenho e dedicação. Isso pode explicar a meticulosa preparação, a técnica naturalista rigorosa no recolhimento dos dados visuais e sua reconhecida competência acadêmica. “Encantamento pelo que vê e fidelidade ao que vê. Será seu canto de cisne” (SOUZA, 1982, p.15).

Segundo Elza Ramos Peixoto (1982), Victor Meirelles foi um precursor da arte como meio de divulgação e de educação, pois quando montou a Empresa de Panoramas da cidade do Rio de Janeiro, sua intenção era a de essas telas, ao serem apresentadas na Europa, mostrassem não só a beleza, como o grau de desenvolvimento urbanístico, comercial e industrial da capital do império e que haveriam de servir de propaganda emigrantista na época em que o Brasil tratava da abolição da escravatura. Queria que os estrangeiros ficassem conhecendo e admirando não só a beleza sem par de nossa natureza, como o grau de adiantamento que já atingira a capital do império, à vista do grande número de belas edificações ali representadas. Ele conduziu suas obras pensando fazer nossa terra devidamente conhecida e apreciada no velho mundo, pois como diz Peixoto: “Doía-lhe constatar o completo desconhecimento que o europeu tinha então do Brasil” (1982, p.109). Argumentava que os Estados Unidos conseguiram aumentar e melhorar sua colonização mediante uma grande tela exposta em Londres. Com esses intuitos, iniciou os panoramas e completou a obra publicando três minuciosos folhetos, em que explica de maneira prolixa e pormenorizada, toda a história desses panoramas, bem como a descrição detalhada da grande maioria dos acidentes geográficos nos mesmos representados. “Quem sabe quantos desses infantis visitantes guardarão tão profunda impressão do que ali observaram, que ainda um dia virão por ele atraídos fazer parte de nossa comunhão nacional?” (MEIRELLES apud PEIXOTO, 1982, p.109).

Para Peixoto (1982), parece não haver dúvidas alguma de que Victor Meirelles usou então a arte como auxiliar da educação, procurando atrair a sua exposição, escolares e jovens para que recebessem novos conhecimentos. Foi o que fez em uma exposição em Bruxelas, em 1888, em presença de reis, corpo diplomático, sendo que a exposição permaneceu aberta ao público e recebeu mais de 50.000 visitantes. Para os numerosos alunos de escolas públicas e particulares, defendia a concessão da vantagem de redução do preço das entradas, para que igualmente ficassem conhecendo e amando a terra brasileira e vissem um pouco da arte que aqui se praticava. De fato, é isto que se faz modernamente nos museus e a visão de Victor estava além de seu tempo. Ao contrário dos viajantes estrangeiros, que viam com seus olhos este país e queriam mostrar lá fora o que de exótico e belo aqui existia, Victor Meirelles tinha preocupações sócio econômicas e intuitos patrióticos e altruístas. Nesta época os panoramas haviam ingressado na esfera de publicidade das grandes Exposições Internacionais. A respeito de ser precursor da utilização da arte como fator educativo entre nós, também concordam outros autores, como Franz (1996).

Sobre o destino dos panoramas, temos a dizer que alcançaram sucesso na Europa[8]. No Brasil, expõe o panorama da Baía e cidade do Rio de Janeiro em 1890, mas esse acontecimento não teve a repercussão favorável que seria de se desejar, quer nos meios artísticos, quer oficiais. Informa ainda Peixoto (1982), que se tratava de um panorama giratório de 115 metros de comprimento, exibido em uma rotunda da praça Quinze e depois transferido para a rua Santa Luzia.

O Brasil pitoresco e panorâmico foi, enfim, o país aberto a todas as nacionalidades, compreendendo imagens sedutoras difundidas no exterior para a imigração e a formação histórica com a participação de todas as nações.

Sobre a destruição dos panoramas, existe farta correspondência entre autoridades competentes no sentido de preservá-las e guardá-las em local apropriado, mas nada de efetivo for feito. Os panoramas desmontados ocupavam uma enorme área e era impossível guardá-los em qualquer lugar. Além do mais, necessitavam de manutenção e cuidados especiais.

Antes de morrer, pouco após terminar o último panorama, vilipendiado e esquecido, Meirelles deu os panoramas ao governo que se propôs a instalá-los na antiga quinta Imperial. Foram deixados, enrolados como estavam, num terreno encharcado numa charneca. Por cima dos rolos puseram telhas de zinco usadas.Aí sumiram com o tempo (GUIMARÃES, 1977, p.129).

Diz ainda Salgueiro (1980), que com o transcorrer do tempo, os panoramas foram sumindo progressivamente e de forma misteriosa, pois estavam esquecidos na Quinta. Sabe-se que em 1910, o conservador da Escola de Belas Artes, João José da Silva foi fazer uma vistoria no local, constatou que eles estavam precariamente guardados em enormes caixas com 18 metros. Foram retirados, enrolados em lona e abandonados ao ar livre. Segundo consta se pensou em fazer com eles uma fogueira. Outros acreditam que foram cortados em pedaços para servirem de cobertura às mobílias e outros materiais transportados em carrinhos de mão. Acredita-se até que parte deles foi atirada ao mar.

Quando Peixoto (1982) estudou esse assunto com profundidade, ouviu de artistas contemporâneos aos acontecimentos, “que as telas que constituíam o grande panorama do Rio de Janeiro, acabaram por se deteriorar completamente, sendo mais tarde retalhadas e usadas pelos carregadores das chamadas ‘andorinhas’ para cobrir as mercadorias que carregavam” (PEIXOTO, 1982, p.112).

Desta forma triste e melancólica, se viu um dos maiores trabalhos plásticos já produzidos no Brasil e por um brasileiro e catarinense, perder-se no descaso e ignorância.

Hoje, só pela imaginação e recorrendo aos estudos que ficaram, podemos ousar chegar perto do que pretendia Victor Meirelles com sua maestria e engenhosidade. O desenho, o colorido, a luz, a sinfonia das cores, enfim, o sonho de um dos maiores artistas deste país, se perdeu, como tantos outros.

Para termos uma breve noção, a reprodução de um dos estudos para o panorama da cidade do Rio de Janeiro [Figura 6]. Restaram seis estudos, que por si só, são monumentais e deixam antever o que ficou sendo o trabalho final.

Para este trabalho, importa fundamentalmente a cidade de Florianópolis, na visão de Victor Meirelles. Ele não escreveu muito sobre esta terra. Mas há registros do que pensava e sentia por outros autores, especialmente Alcídio Mafra de Souza, grande estudioso da sua obra. E para tanto, pode-se falar também da Florianópolis do tempo de Victor Meirelles, descrita por Sara Regina Silveira de Souza (in ROSA, 1982).

A cidade de Victor Meirelles

Nossa Senhora do Desterro apresentava um desenvolvimento normal para uma cidade de seu porte, já por meados do século XIX. Desenvolvia-se ligada às fontes de água e junto ao porto, espremida entre o Morro do Antão e mar, com suas duas baías: a do norte e a do sul. O centro urbano se desenvolveu junto à Baia Sul. As ruas partiam da praça, conhecida como “Largo da Matriz”, nesse espaço ficavam a Casa do Governo, a casa de Câmara e Cadeia, além de prédios térreos ou assobradados, o Mercado e a Alfândega, estes junto à praia.

Até 1837, a cidade não teve iluminação e depois apareceram os lampiões, mantidos com óleo de baleia. A arquitetura da cidade não diferia das demais do Brasil. Basta comparar com a construção das cidades brasileiras, que se percebe o mesmo esquema construtivo. Entretanto, por ser uma região pobre, suas construções eram simples, vindo da tradicional “porta e janela” até o sobrado, mais requintado e que predominavam junto ao porto. O andar térreo do sobrado destinava-se ao comércio e o andar superior à moradia. Na metade do século XIX começam a surgir as platibandas e balaústres  e casas azulejadas são raras, mas presentes.

As ruas não eram calçadas nem tinham indicação de nome. Eram conhecidas pela tradição oral. No lado da cidade que dava para a Baía Norte, além de fortes, existiam apenas algumas chácaras, geralmente a segunda residência, para onde se transferiam para descanso. De igual modo, esse hábito se arraigou e se perpetua até hoje. Primeiro passaram para o continente, com casas em Coqueiros e Itaguaçú e hoje são as casas de praia, distribuídas ao redor de toda a ilha.

A navegação era facilitada pelo porto e o comércio era razoável. ”Comia-se e bebia-se bem no Desterro, uma vez que a importação era normal e os artigos estrangeiros eram vendidos em qualquer loja ou armazém” (SOUZA in ROSA, 1982, p.23). Nas artes, a cidade também se projeta. Desterro possuía algumas escolas de piano e canto, sociedades musicais, o Teatro São Pedro de Alcântara. A biblioteca pública foi criada em 1854 e tínhamos poetas como Virgílio Várzea, Luiz Delfino e Cruz e Souza. Os que nasceram e cresceram nesta época, foram criados entre paredes brancas, janelas envidraçadas e telhados ocres, diz Sara Regina. Nas artes plásticas, apenas Victor Meirelles se destaca.

Do sobrado da Rua da Pedreira, o menino Victor visualizava a pequena cidade com sua praça sem árvores, sua igreja no cimo de uma pequena elevação, espreitando, lá embaixo, o mar trazendo as baleeiras dos homens das longínquas freguesias. Nos seus olhos de criança, lá pela quarta década do século passado, passavam apenas as pessoas, o mar, os cavalos trotando, o casario muito junto e muito branco, os telhados, o mundo que lhe pertencia. Mas seus olhos viram também o verde da vegetação do morro, o azul esverdeado do mar das duas baías, o incrível rosa-dourado do pôr-do-sol da Ilha-cidade. Os olhos do pequeno artista passaram, então, a combinar as gentes, as casas, a natureza e as cores e começa a aparecer a cidade de Nossa Senhora do Desterro em desenhos e pinturas [...] Victor, mesmo longe, vai ter a cidade na sua retina, principalmente as cores que envolvem esse pequeno paraíso do sul do Brasil (SOUZA in ROSA, 1982, p.25).

Para a autora, o mundo do artista foi um mundo de beleza e encantamento. A respeito do ilhéu e que tem relação com a ligação de Victor Meirelles com sua cidade e com o isolamento que a caracteriza, segue a citação:

O ilhéu tem de ser inventivo, suprir o seu racionamento, filho da solidão geográfica por uma vasta virtualidade de que dota todas as cousas...depois, o isolamento conserva puras formas e tradições perdidas ou adulteradas noutros lugares. Evolucionam, sem dúvida, mas ficam no fundo sempre as mesmas, sem mistura de estranhos elementos (RIBEIRO apud SOUZA in ROSA, 1982, p.25).

Alguns estudiosos no Brasil se dedicaram a estudar exaustivamente a obra de Victor Meirelles, como Alcídio Mafra de Souza, Ângelo de Proença Rosa, Elza Ramos Peixoto, Donato Mello Júnior, Argeu Guimarães, Teodoro Braga, Carlos Rubens, entre outros. A intenção aqui não é esta, apesar de o texto estar longo. Estou ressaltando principalmente a questão das paisagens e da ligação do artista com a cidade, mas é inevitável destacar aspectos de sua vida, pela relevância.

Em Alcídio Mafra de Souza encontrei um texto que fala de sua ligação com a cidade:

Por imposição da carreira e da vida artística, muito teve que viver longe dela. No entanto, sempre a amou e, embora diretamente, muito pouco a houvesse registrado em sua obra, indiretamente mostrou-a na maioria de suas grandes composições. Trouxe-a, sempre viva em sua memória - lembrança que aflora em quase toda a sua obra - recriada em cenários outros e que só mesmo os nascidos na ilha e familiarizados com seus belos aspectos percebem. São cantos de boniteza nunca vistos em outros lugares: nesgas de praia lambidas pelo mar ou pedaços de céu, onde esvoaçam passarinhos (SOUZA in ROSA, 1982, p.14).

Lembro claramente de uma palestra que assisti quando ainda era estudante de artes, ministrada por Alcídio Mafra de Souza, quando era diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ao falar da obra de Victor Meirelles, fez uma análise da vida e das obras do artista. Ao abordar o famoso quadro Primeira Missa no Brasil, mostrou, no slide, que um dos morros que aparecem ao fundo tem a mesma conformação morfológica do nosso morro do Antão. Fiquei muito impressionada e agora, ao reler sua obra, as análises e a forma como Ernst Gombrich aborda a representação, vê-se o quanto isto faz sentido. “O artista não pinta o que vê, mas o que sabe”.

Percebe-se enfim, que além de ter sido o aluno aplicado, o artista determinado que dominava a técnica como poucos, foi o idealizador de um ícone da construção da nacionalidade brasileira. O seu quadro A primeira Missa no Brasil, tantas vezes mal compreendido, justamente pela falta de conhecimento em arte e de contexto de época, nem sempre teve a análise correta.O desconhecimento em arte faz com que não se perceba que a construção de um sistema de pensamento dá-se muito menos pelos objetos visíveis da história, do que pelos vestígios deixados por esse objeto. E este quadro deixou muito mais - pode-se dizer ser ele um retrato do nascimento do Brasil. Diz Jorge Coli:

A descoberta do Brasil foi uma invenção do século XIX. Ela resultou das solicitações feitas pelo romantismo nascente e pelo projeto de construção nacional que se combinava então. A ciência e a arte, dentro de um processo intrincado, fabricavam “realidades” mitológicas que tiveram e ainda têm, vida prolongada e persistente. O quadro de Victor Meirelles, retratando a primeira missa no Brasil, tal como foi descrita por Pero Vaz de Caminha, é um episódio muito expressivo dentro desses processos. Ele fez, em grande parte, com que o descobrimento tomasse corpo e se instalasse de modo definitivo no interior de nossa cultura (1998, p.107).

Para Coli, os responsáveis por essas idéias eram os historiadores, que com seu trabalho, fundamentavam cientificamente uma “verdade” desejada, e, de outro lado, a atividade dos artistas, criadora de crenças que se encarnavam num corpo de convenções coletivas.

Com relação às críticas que recebeu, por ser conservador, por não seguir influências impressionistas, por seguir fielmente a academia, temos que pensar que de modo geral, a crítica, feita desta forma, está à busca de paradigmas. O “olhar” brasileiro dessa época não conhecia o impressionismo nem os movimentos vanguardísticos que estavam surgindo na Europa. Esse homem teve que pintar pensando no olho que vai ver aquela pintura no Brasil e não no olho que está vendo os movimentos europeus. Tanto é que o impressionismo só chega no Brasil por volta de 1900. Como se queria que esse artista, em 1860, estabelecesse rompimentos? Ele já fez muito em mudar o eixo central da composição. Exigem dele, coisas que ele não queria fazer. O que não estava em seu desejo, nem em sua percepção de mundo. O olhar preconceituoso sobre a pintura histórica é também um olhar cultural impregnado pela cultura do modernismo, que instaurou a ruptura como princípio supremo, desvalorizando a história e buscando a originalidade a todo custo.

O que se pretende ressaltar neste estudo, é que Victor Meirelles se agiganta com o fato também de ter sido um dos primeiros, se não o primeiro artista brasileiro a eleger a cidade como tema de sua obra e a tratar a cidade como tema.

A paisagem sempre está presente nos quadros históricos que realizou, não obstante, sua vocação espontânea foi para os panoramas, isto é, a paisagem urbana com estudo minucioso de casario, de edificações. O estruturalismo de suas formas de composição está sempre dentro de um contexto de espaço-paisagem, e desde cedo o ambiente que o cercava o fascinou. As ruas e os casarios ocuparam sua atenção e um caráter histórico descritivo encontra-se em sua pesquisa incansável.

O descaso continua com a memória deste artista. Em reportagem do jornal Diário Catarinense, chamada “O endereço ilustre que pode virar pó” (2002), divulgou-se a notícia de que a casa situada na Rua Benjamin Constant, nº 30, no bairro da Glória, Zona Sul do Rio de Janeiro, onde morou o artista plástico no período de 1890 a 1903, não é tombada pelo Patrimônio Histórico e pode ser demolida a qualquer momento. O imóvel, um sobradinho, é atualmente propriedade da Companhia Editora Nacional, está fechado a 18 anos e agora foi colocado à venda.

Diz a reportagem que em um dos cômodos da casa, chama a atenção uma série de pinturas marinhas, que à primeira vista lembra embarcações do tipo pescadores. Apesar de sugerir que seria a representação da saudade sentida da terra natal, a antiga cidade de Desterro, hoje Florianópolis, não há confirmações de que a peça tenha sido mesmo feita por Victor Meirelles. De fato, nada foi encontrado a respeito no material pesquisado, mas é assim que se faz a história. E se for de autoria de Victor Meirelles, iremos perder também? O prédio está em estado de abandono, sendo uma obra belíssima da arquitetura brasileira do período posterior ao Segundo Reinado, trazendo no estilo traços das construções edificadas entre o final do século XIX e início do XX.

Certamente se Victor Meirelles tivesse vivido mais tempo aqui, em Florianópolis, teríamos desta cidade, um dos registros urbanos mais fascinantes da história do Brasil. A despeito do tanto que se perdeu, e essa é uma perda irreparável, suas obras continuam entre nós.

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* Sandra Makowiecky - Professora de Estética e História da Arte da UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina - Centro de Artes. Florianópolis - Santa Catarina - Brasil e do programa de Mestrado em Artes Visuais. Membro da Associação Internacional de Críticos de Arte - Seção Brasil Aica Unesco e Vice - Presidente da Associação Nacional de pesquisadores em Artes Plásticas - ANPAP, eleita para o biênio 2007-2008.

[1] O realismo de Courbet, Daumier e Millet não têm aqui seguidores, simplesmente porque eram muito diversas as condições socioeconômicas em nosso país e na França. Lembramos que na paisagem, o realismo se externaria primeiro, embora dentro de evidentes limitações, quase só se apontando em uma fase final na obra de Almeida Júnior, quando retrata temas brasileiros como Caipira picando fumo, de 1893, por exemplo.

[2] Concebida a partir da chegada da Missão Artística Francesa em 1816, a Academia Imperial de Belas Artes passa por várias alterações até ser consolidada sob os rígidos princípios do neoclassicismo trazido da Europa. A sua sede, projetada pelo arquiteto Grandjean de Montigny, só é oficialmente inaugurada em 1826. Na gestão de Félix Taunay (1834/1851), a Academia adquire suas bases definitivas por intermédio da regulamentação dos cursos, criação das Exposições Gerais de Belas Artes, organização da pinacoteca e instituição dos prêmios de viagem ao estrangeiro. As normas que regiam o pensionato no exterior determinavam aperfeiçoamento com mestres consagrados do academismo, impedindo a assimilação das novas tendências da arte. Depois do período áureo, o da direção de Porto Alegre (1854/1857), quando surgem artistas como Victor Meirelles e Pedro Américo, evidencia-se na década de 1880 uma crise na Academia, expressa pelo conflito entre "modernos" e "positivistas", que culmina na criação do Ateliê Livre. Com a Proclamação da República, ocorre a Reforma do Ensino em 1890, e a Academia Imperial é transformada em Escola Nacional de Belas Artes, em 1890.

[3] Georg Grimm buscou maior autonomia para a prática da pintura de paisagem por meio de um contato direto com a natureza. A polêmica entre modernos e positivistas levou à criação do Ateliê Livre, medida que apressou a reforma do ensino de 1890. Mas nada disso chegou a ameaçar seriamente os alicerces do edifício acadêmico. Grimm fundou seu próprio grupo de pintura ao ar livre e a transformação da Academia Imperial em Escola Nacional não trouxe modificações de fundo no ensino. Tanto que, ainda em 1931, uma greve de alunos obrigou Lucio Costa a demitir-se da direção da Escola Nacional de Belas Artes, cujo ensino ele tentara renovar com a contratação de professores não-acadêmicos e com a realização de um Salão Revolucionário.

[4] Apud PEIXOTO, 1982, p.109.

[5] Entre seus alunos destacam-se Antonio Parreiras, Zeferino da Costa, Henrique Bernardelli, Rodolfo Amoedo, Belmiro de Almeida, Oscar Pereira da Silva, Almeida Júnior, Modesto Brocos e Eliseu Visconti. Sua competência como professor e mestre sempre foi reconhecida.

[6] Já lançado em livro.

[7] Rosa, Angelo de Proença e outros. Victor Meirelles de Lima (1832-1903). Prefácio de Alcídio Mafra de Souza. Rio de Janeiro, Pinakoteke, 1982.

[8] Há telegramas transcritos no jornal do comércio de 14.3.1889 e 14.4.1889, com lisonjeiras referências a eles, comentando esse jornal que se os cariocas quisessem conhecer o panorama mesmo sem ir a Paris, onde foi exposto em 1889, deviam subir o morro de Santo Antônio e olhar para baixo e ao redor, que a ilusão é tão perfeita como a realidade dessas vistas.