Revista do Brasil (1916-1918) - Artigos e Críticas de Arte

transcrição de Andréa Neves Farias, Arthur Valle e Camila Dazzi

VALLE, Arthur (org.). Revista do Brasil (1916-1918) - Artigos e Críticas de Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n.2, abr. 2009. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/revista_brasil.htm

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Resenha do Mês. A Pintura no Brasil [discurso de Laudelino Freire]. Revista do Brasil, São Paulo, ano II, jul. 1917, n. 19, p.392-398 [Texto com grafia atualizada].

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Recebido no dia 14 do corrente mês, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Sr. Laudelino Freire pronunciou então um discurso, em que tratou da pintura no Brasil. Eis os principais trechos desse trabalho:

“... A quanto possam remontar as referências dos que do nosso passado se têm ocupado é hoje fato que os primeiros pintores que vieram ao Brasil foram os seis pintores holandeses trazidos pelo Príncipe Maurício de Nassau, quando, em 1637, veio apossar-se da colônia do norte do país, dos quais apenas sabemos os nomes de Frans Post, Zacharias Wagner e Eckhout, este irmão de Gerbrandt [sic], discípulo de Rembrandt.

Os forasteiros holandeses não encontraram terreno preparado e ambiente propício para germinarem. Tudo lhes fora esquivo e contrário. Sáfaros o negro, o indígena e o português de “cobiça dessas coisas”. E uma vez expulsos, também expulsa ficara a arte peregrina, que, por acidente da história, aqui tentara aninhar-se.

Perdido que foi esse ensejo em que, sob os melhores auspícios, poderia ter despontado a arte, outro não se nos deparou no transcurso da vida de colônia.

É lendária por essa época a existência na Bahia, de um Euzébio de Mattos, como pintor laureado. Se de fato existiu, o seu pincel e obra não transpuseram os tempos.

A singular aparição da bisonha figura de Frei Ricardo do Pilar, é outro episódio que não logrou sequer transformar-se num antecedente.

Dão-lhe, é certo, virtudes morais de raros encantos. Sob a sua sotaina de monge sofredor e arredio das paixões mundanas, pulsava um coração de incomparável bondade que, unida à doçura de sua palavra, era o alívio de quanto desgraçado se acercava do claustro de S. Bento. Posto que muito tivesse produzido, segundo o testemunho de Porto-alegre, que salienta como a obra prima do frade beneditino a Imagem do Salvador, pertencente àquele mosteiro, nenhuma influência exerceu. Não teve discípulos e por isso não chegou a ser um precursor da pintura. Passou a vida dentro das quatro paredes do claustro a que se condenara, entregue a um misticismo mórbido, que de todo o afastara do convívio com os homens. Assim vivera trinta anos, vindo a falecer em 1700.

Só na segunda metade do século XVIII é que surgiram os precursores. E estes foram: José Joaquim da Rocha com os seus discípulos, na Bahia; José de Oliveira, João de Souza, Manoel da Cunha, Costa e Silva, José Leandro, Brasiliense e Solano, nesta cidade.

Que arte, porém, poderiam ter feito estes homens no meio inculto em que medraram?

As condições mesológicas do Brasil, no terceiro século da sua civilização, ainda não permitiam o surto de uma arte superior. No seio da sociedade em que eles viviam, formada por um conjunto de elementos ruins e explorada pela ganância, crueldade, intriga e fereza da época, seria inadmissível a existência de grandes artistas. A arte que então irrompera não podia deixar de ser acanhada, inferior, balda de inspiração. Era principalmente o produto da fé religiosa, que lhe determinara e traçara o círculo das inspirações.

Foi aquele reduzido grupo de medíocres pintores sacros, retratistas e decoradores que aqui viera encontrar a corte de D. João VI.

O Rei, querendo aproveitar a capacidade de artistas franceses , que como ele, foragidos, vieram buscar asilo às nossas plagas, e que lhe buscaram a sua real e graciosa proteção para  serem empregados no ensino, criou por decreto de 12 de agosto de 1816, a primeira escola de instrução artística no Brasil. Houve por bem mandar que se lhes pagassem pensões  que ainda , por efeito da sua real munificência e paternal zelo pelo bem público, lhes fizera favor para a sua subsistência, determinando-lhes firmassem contrato pelo tempo de seis anos, o que posteriormente foi feito.

Os termos do decreto real afastam desde logo a hipótese de terem sido mandados contratar no estrangeiro artistas que aqui vieram ter em virtude dos sucessos políticos ocorridos em sua pátria por ocasião de subir ao trono Luiz XVIII.

Com o aproveitar-lhes as habilitações, prestou D. João inolvidável serviço à nossa cultura.

É fato que essa colônia de franceses, tão liberalmente aproveitados em prol da nossa nacionalidade, para logo entrou a desfazer-se. E tais foram as dificuldades para a realização dos fins a que se obrigaram que só dez anos mais tarde, a 25 de Novembro de 1826, ficara definitivamente instalada a primeira academia artística.

Por essa época, do primitivo grupo aproveitado, que em começo se compunha de 11 artistas, restavam apenas Grandjean de Montigny e João Baptista Debret.

É na pessoa deste eminente artista que a pintura brasileira entra na sua fase orgânica, já hoje dividida em duas grandes épocas: uma de formação e outra de desenvolvimento.

Da primeira que se estende até 1860, foi ele o fator principal. Coube-lhe formar o primeiro grupo de pintores nossos, que foram: Porto-alegre, Francisco Amaral, Francisco de Souza Lobo, Arruda, Carvalho dos Reis, Simplicio, Moreira e Affonso Falcoz. Em Julho de 1831, com a consciência do dever cumprido, regressou à pátria. Aqui, porém, deixara o seu grande esforço frutificado, e assegurada à cultura artística a continuidade necessária na pessoa dos discípulos, que mais tarde se fizeram mestres.

Debret lecionara a pintura histórica. Secundaram-no no magistério o vulto, por muitos títulos simpático, de Félix-Émíle Taunay, o segundo Barão deste nome, a cargo de quem, desde 1824, ficara o ensino da paisagem.

Da ação inicial e conjunta destes dois ilustres artistas franceses, resultara a formação, já em nosso meio, de pintores cujo merecimento não pode ser contestado.

Entre estes excelem Augusto Muller e Agostinho da Motta os maiores artistas da época de formação, seguindo-se-lhes Correia de Lima, Maximiliano Mafra, Leão Palliere.

Augosto Muller, hoje injustamente esquecido, foi o mais notável artista de sua geração e um dos maiores pintores brasileiros. A sua arte é larga e vigorosa. Jugurtha na Prisão, O retrato de Montigny, que figuram na galeria nacional, são disto comprovação.

Com estes primeiros artistas começara a acentuar-se a tendência da pintura para libertar-se da estreita preocupação do estilo decorativo e do gênero sacro, e em cujo trabalho não se deixara de fazer sentir a ação de pintores estrangeiros, que aqui se vieram domiciliar. Ferdinado Krumoltz conosco convivera dez anos, elevando a pintura do retrato; Julio Le Chevrel, por espaço de um lustro cooperou esforçadamente para o desenvolvimento da pintura de gênero; Vinet nosso hospede de vinte anos foi interprete fiel da natureza brasileira em contraste com a técnica amaneirada, minuciosa, mas, todavia, inconfundível do seu émulo Facchinetti; Baptista Borely iniciara a pintura a pastel; Henrique Fleiuss, delicado aquarelista foi grande professor das artes gráficas.

A despeito dos progressos da técnica da evolução gradativa da pintura dos claustros e das igrejas, das irmandades e dos conventos para pinturas de todos os gêneros - faltava, com tudo, à arte a indispensável liberdade e, consequentemente, um mais largo conceito estético. Começava ela a expandir-se, é certo, mas detida nos círculos, que lhe traçaram a realeza e a igreja, ao espírito áulico que se impunha ao artista, erguia-se-lhe uma espécie de determinação tácita para que “não ultrapassassem as raias de uma mediocridade discreta”.

Dai a ausência nos pintores da época, do que poderíamos chamar o “instinto de nacionalidade”, único capaz de mover o artista, como representante da sua raça, a contrapor-se aos excessos do idealismo da sociedade do tempo e a beber inspirações na harmonia da crença com o sentimento pátrio.

Tal fora a situação a que atingira a pintura até 1860.

Transposta a primeira metade do século, firmados estavam os fatores fundamentais da vida constitucional do país - a independência, o trono e a ordem. O Brasil firmara-se na política, prosperara na economia e desenvolvera a cultura.

Acontecimentos de várias ordens e de procedências internas e externas refletem-se sobre a nossa consciência.

De um lado, a Guerra do Paraguai, a questão do elemento servil e a luta religiosa abalam as consciências, e agitam fortemente a alma nacional; de outro, chegam-nos os ecos da guerra franco-prussiana, do advento da República em Espanha, a queda do segundo Império napoleônico e imediata proclamação da República em França.

A vida literária atinge a fase brilhante da segunda geração romântica. Os poetas identificam-se, comunicam-se com o meio social em que florescem; e a sua poesia ungida de sinceridade, já é a expressão da alma de um povo, ao cabo de três séculos de vida histórica e de algumas dezenas de anos de vida autônoma.

Como a literatura, a pintura não poderia deixar de refletir os salutares efeitos de tão poderosos elementos de renovação, e nesse ambiente de maior liberdade espiritual, em mais dilatado campo de inspirações, entra a desenvolver-se nas propícias condições que o meio já lhe proporcionara.

E é precisamente neste momento histórico que nos aparecem as figuras dominantes de Victor Meirelles e Pedro Américo.

Através do século decorrido - foram eles os que firmaram à época de verdadeiro desenvolvimento da pintura, ao mesmo tempo que foram seus maiores representantes. Iniciaram o que poderia chamar a nacionalização da arte, dura a inspirar-se no sentimento das coisas pátrias e embeber-se em motivos propriamente nacionais - arrancaram-na dos laços em que a detinha a estreiteza dos meios e levaram-na a concepções mais amplas e a cultura de todos os gêneros. Investiram-na de formas brilhantes e a souberam concretizar telas que nos honrariam em qualquer meio adiantado e culto. Por fim, êmulos e competidores, na verdadeira luta artística, se tornaram nossos maiores mestres.

A influência de Victor sobrexcede a de Américo no ministrar o preparo técnico, na dedicação ao magistério, no esforço em prol da formação de uma escola brasileira, assegurando a continuidade da cultura nos discípulos que preparara e que vieram a formar a gerações de 79 e 84. A nenhum outro pintor foi dado exercer a ação mais significativa e preponderante.

A obra de Pedro me Américo, porém, sobreleva-se na unidade criadora das manifestações do gênio.

Em nenhum momento da nossa desenvolução, tivera pintura pincéis que a traduzissem com acentos de inspiração tão subida, de mais nobre pensamento e superioridade de expressão. Se o sentimento, a correção estética de cada um tem, por vezes, uma feição especial, traduzindo-se na variedade dos temas, ações e episódios de que se ocuparam, não raro a emoção os unificara no mesmo culto do amor cívico, do entusiasmo pelos feitos da história, pelas crenças e lendas dos nossos homens e a da nossa cultura.

Não foi fatigarei com o estudar a obra de cada um destes dois grandes Brasileiros. Nelas apenas procurarei transmitir a impressão da identidade de sentimentos que os irmana na criação da epopeia na pintura.

As primeiras manifestações do talento de Victor Meirelles se concretizaram na Primeira Missa do Brasil e na Moema, trabalhos de fina e apurada arte. A Primeira Missa no Brasil foi o primeiro quadro de pintor brasileiro e exposto no salão de Paris. Com Moema, o autor conquistara a láurea do nosso salão de 66.

... Por seu lado, Pedro Américo se estreava nos mesmos voos de inspiração fecunda e grandiosa.

Pintando a “Carioca”, quando ainda não tinha os seus de 21 anos completos, não quis nela deter-se numa nova reprodução da beleza tradicional da arte, não “violando a ninfa grega, exilando-a dos vales da arcaica para as florestas e fontes da Guanabara.

A ninfa Carioca é brasileira, a sua beleza a das nossas patrícias; a sua “Carioca”, aprecia um crítico francês, a mãe da água, a náiade, a suave filha das águas, do perfume e dos raios do sol americano, é morena como uma Andaluza, de cabelos negros como asa da tormenta e flanco aveludado, com ondulações da serpente e graciosa virgindade das espáduas da onça indomável. Antevê-se naqueles olhos fitos, naqueles profundos olhos luminosos, o resplendor misterioso do horizonte em noite de tempestade chamejante, e do negro abismo do mar em cujo seio floresce o coral voluptuoso e a pérola se esconde na cristalina crisálida.

Como são belos, como são penetrantemente irresistíveis os contornos da náiade brasileira, cuja pele amorenada e rica de um sangue virgem faz o efeito das lâmpadas de alabastro coradas pela réstea da luz interior e viva!

Como Victor, Pedro Américo transportou também para a tela o infortúnio de Moema, rolando a flor das águas, numa suave transparência de beleza e graça.

Todas essas manifestações, porém, senhores, não eram senão prenúncios de uma arte mais ampla e vigorosa, com que os dois grandes artistas haviam de perpetuar os acontecimentos da história, que já eram patente afirmação do nosso espírito de nacionalidade.

Chegamos ao mais brilhante decênio, no qual parece que todas as forças e energias, até então latentes, se manifestam na mais alta expressão de vitalidade.

Na filosofia, o Visconde do Rio Grande dá a publicidade o primeiro trabalho vasado nas correntes do naturalismo darwinista, opondo-se ao impenitente espiritualismo. Na ciência, são acrescidos os novos cursos profissionais das cadeiras referentes às ciências físicas e naturais; surgem os estudos originais de antropologia, arqueologia, etnografia e história natural, pelos sábios: Lacerda Ladislau Netto, Rodrigues Peixoto, Ferreira Penna, Orvile Derby, Hart, Fritz Muller. Ruy Barbosa surge no cenário do pensamento brasileiro, assombrando-nos já com a vastidão da sua cultura, na Introdução do “Papa e o Concilio”. Na política, o ideal republicano se consubstancia num manifesto e se concretiza num partido. A mancha indelével da escravidão recebe o primeiro golpe, com a áurea lei do ventre livre. No romance, Machado de Assis, seguido de Taunay e Franklin Távora, sucede a Alencar. Na poesia aos últimos e geniais representantes do Romantismo, Castro Alves, Fagundes Varella e Tobias, sucedem os primeiros cultores do parnasianismo francês, que foram: Luiz Guimarães e Machado de Assis. O cantor imortal do Guarani firma-se nas cintilações de seu gênio musical.

Finalmente nas artes plásticas, é a pintura que se eleva ao esplendor e brilho desse decênio estranho num período de florescência como jamais tivera atingido.

Victor e Américo depois de terem produzido, o primeiro: “O combate naval do Riachuelo” e a “Passagem do Humaitá”, e o segundo: “O passo da Pátria” e a “Batalha de Campo Grande”, elevam a sua nobre arte à altura da “Primeira Batalha dos Guararapes” e da “Batalha do Avahy”, as mais potentes manifestações, ainda hoje inexcedidas, da nossa cultura artística.

O autor do “Guararapes” prosseguiu no caminho do verdadeiro fundador da pintura brasileira, chegando, por fim, por antes de falecer, a dar-nos os seus inolvidáveis panoramas, através de inauditos esforços, cuja narrativa seria a de uma pequena tragédia.

Imaginássemos representar a produção do excelso autor “Sócrates afastando Alcebíades dos braços do vicio”: por uma pirâmide de luz, cuja base assentasse na “Batalha de Avahy”, e em cujo ápice brilhasse a imagem sedutora da carioca brasileira: em cada uma das faces luminosas do poliedro refulgiria o gênio do artista, cujo admirável pincel houvera debuxado: A noite acompanhada pelos gênios do amor e do estudo, Judith e a cabeça do Holofernes, Joana D’arc, O voto de Heloísa, A virgem Dolorosa, David e Abisag, Jocabed levando ao Nilo seu filho Moisés, Voltaire abençoando o filho de Franklin, a Proclamação da Independência, Visão de Hamlet, Paz e Concórdia.

“A Batalha de Avahy” e “A Batalha do Guararapes”, foram apresentadas ao público na exposição oficial de 79, que, por isso, assinala o momento culminante da evolução da pintura.

A par dos dois eminentes artistas, outro mestre, com a alma aberta aos bons sentimentos, idealistas dos mais acentuados e com esmerada educação do fino colorista, serve a arte de Apeles, elevando-a, por seu turno, a essa transfusão e comunicação de vida palpitante.

Zeferino da Costa, depois de ter produzido “S. João Baptista no deserto”, “ O óbolo da viúva” e a “Caridade”, concentra a sua maior atividade na grande obra da Candelária e no formar discípulos, que se tornaram os representantes das gerações que se sucederam.

Faz-se também sentir no magistério a ação de Souza Lobo.

Arsenio Silva traz-nos da Europa o segredo de pintar guaches, gênero então desconhecido no país.

Começam a vicejar os primeiros pintores formados por Victor Meirelles, entre os quais sobressaem: Augusto Duarte, Pedro Peres, José Maria Medeiros, simples e retraídos, mas conscienciosos e delicados. Aparecem também os principais e mais direto discípulos de Pedro Américo, Decio Villares e Aurélio de Figueiredo. A pintura do primeiro, prima pelo sentimento poético, que é a sua nota pessoal; do segundo, bastaria para lhe ter firmado reputação a grande tela representando o “Baile da Ilha Fiscal”.

Henrique Bernadelli e Daniel Berard entram de lança em riste para as conquistas da grande arte.

No Norte, em Sergipe, a pintura eleva-se na palheta de Horácio Hora, produzindo trabalhos de admirável beleza, como “Peri e Ceci”, “A miséria e a caridade”.

Mas nos seus maiores traços, a pintura desce das epopeias, das batalhas para inspirar-se em assuntos de tocante serenidade, que se espelha na “Partida de Jacob”, no “Último Tamoio”, “Jesus em Cafarnaum” e “Narração de Filectas”; ou na simplicidade dos hábitos e costumes da nossa terra, dos tipos e aspectos do nosso meio, que se revelam no “Derrubador brasileiro”, nos “Caipiras negaceando” no “Caipira picando fumo” no “Violeiro” e na “Partida da Monção”.

Amoêdo e Almeida Júnior, nas revelações do engenho artístico, que se lhes desabrocha, com mais intenso brilho, na década de 80, são os continuadores das gloriosas tradições dos dois decênios anteriores.

A beleza moral dos sentimentos que se possam traduzir no ósculo materno, num sonho de amor, no lirismo bucólico, na piedade cristã e no sentimento vivo da poesia em seus aspectos mais sensíveis: eis o que resume a obra de Amoêdo, se tentássemos traduzi-lo numa síntese.

Da natureza tímida era o pintor predileto da Paulicéia. Modesto, provinciano, Almeida Júnior não quisera nem se preocupava jamais de renunciar aos hábitos e gestos do caipira. No entanto, nenhum pintor, mais que ele, soube alçar-se à eminência do momento estético da sua época. A sua arte foi sempre inspirada pelo amor das coisas pátrias, especialmente da sua terra. E nesta orientação deixou-nos com admirável simplicidade, obra imperecível de beleza. Com essa mesma simplicidade tratara de assuntos bíblicos, dando-nos “Remorso de Judas” e a “Fuga da sacra família” obras de mestre.

Dir-se-ía que ao pintar o “Descanso do Modelo” o artista devassara um ponto no céu, onde foi a embeber-se nas alturas puríssimas para maior refração do seu gênio.

A pintura chega ao fim do segundo Império, senão com o mesmo intenso brilho dos periódicos anteriores, mas com exuberância relativa. Se diminuísse o número de finos espíritos que a cultivavam, paira ainda sobre ela o espírito liberal de Pedro II trazendo-a sob sua imediata assistência, de dar-nos artistas da ordem de Belmiro de Almeida, Weingartner, Oscar da Silva, Castagneto, Vasquez e Caron.

É a mesma época em que Antônio Parreiras se inicia auspiciosamente na paisagem, sob a segura orientação da pintura ao ar livre, aqui introduzida por Jorge Grimm, para logo depois, tornando-se independente nos estudos, que os fez por si, entrar a produzir uma obra na qual se não sabe o que mais possa impressionar - se uma altíssima inteligência, ou se a audácia, o esforço e uma espantosa capacidade de trabalho. Nesse se pode dizer que o temperamento de artista excede a obra do pintor.

Chegamos ao ano de 89, e com ele chegara a pintura a evidente grão de desenvolvimento progressivo. Cultivam-se todos os gêneros. Do sacro ao nu, do retrato às batalhas, do gênero histórico ao de natureza morta.

Como último representante da cuidada cultura no Império, um pintor aparece que se torna o nome representativo e de maior relevo da primeira geração que despontava na República.

Com Eliseu Visconti reveste-se a pintura de uma expressão superiormente vigorosa, em rasgos que transportam.

A Natureza brasileira, no que ostenta de sugestivo e empolgante, de belo e maravilhoso, não deveria deixar de produzir o paisagista. Aqui, como em nenhuma outra parte, deveria ter-se verificado o conceito de Taine: a natureza faz o colorista, o meio físico impõe ao artista os seus assuntos, os seus aspectos e o seu colorido. Por isso é estranho que no Brasil, no transcurso de todo um século de pintura, não tivesse havido um ciclo de grandes paisagistas. Sem apanharmos como fatores, os pequenos artistas, todos proporcionalmente iguais como diria o próprio Taine: “não houve da paisagem um cultor à altura do meio”.

Nascida tímida e sem voos, embora mimosa e delicada, na palheta de Félix-Emíle, poderia ter-se notavelmente desenvolvido com Agostinho da Motta, se os êxitos da sua capacidade artística não tivessem sido represados por mórbido e enervante egoísmo.

Depois dele, entrou a pintura na maior expansão de todos os gêneros, sem que, no mesmo pé destes se ostentasse a paisagem. De modo que, só tardiamente, e sem antecedentes que lhe trouxessem elementos vitais para a formação de uma individualidade, foi que chegamos a ter um intérprete no Sr. Baptista da Costa.

Mas se considerarmos a tautologia de uma técnica que se reveste sempre dos mesmos tons, dos mesmos aspectos, dos mesmos verdes, dos mesmos trechos, espantamo-nos de ver que na cultura da paisagem se não tenha verificado o conceito de Taine.

Mal se começara a extinguir o impulso comunicativo da cultura no Império, que chegara a dar-nos não pequeno número de bons pintores, alguns dos quais de universal renome; faltando-lhe por outro lado, como lhe tem faltado, o concurso do Estado que se deveria concretizar numa real e eficiente proteção: a arte é hoje não desarvorada, obediente ã direção de mãos remadores que a criaram.

Iniludível é o seu declínio ao atingir o primeiro marco secular da sua evolução.

Há vinte anos ela decai.

... É que lhe falta o espírito protetor de quem, com inexcedível empenho, velara, protegera e fizera a nossa educação artística; o espírito benfazejo, suplantado pelo desamor atual.

Os Mecenas de então mediam-se pelos fulgores da inteligência e pela extensão do saber; os de hoje medem-se pela bitola dos Calibãs de Shakespeare.

A República ainda não nos deu um grande artista; e assim como vai, não nos dará. O ensino cai de roldão. É o próprio Governo quem já reconhece e proclama a necessidade de batermos às portas estranhas para importarmos professores”.