Katú Kama-rãh: amizade, imagem e texto
segundo Algot Lange
Raphael
Fonseca
FONSECA, Raphael. Katú
Kama-rãh: amizade, imagem e texto segundo Algot Lange. 19&20, Rio de Janeiro, v. X,
n. 1, jan./jun. 2015. https://www.doi.org/10.52913/19e20.X1.02a
[English]
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1. Em 28
de setembro de 1912, é publicada no New York Times uma matéria sobre o
engenheiro naval e então almirante da Marinha brasileira José Carlos de
Carvalho. Intitulada Calls America a great school, versa sobre seu
encontro com o jovem explorador e escritor sueco Algot
Lange, durante a Terceira Feira Internacional da Borracha, realizada em Nova
York e de cuja comissão organizadora Carvalho era vice-presidente. Segundo a
matéria, Lange faria uma expedição na região abaixo do Rio Amazonas com
financiamento da Universidade da Pensilvânia e com interesse do governo
brasileiro no que diz respeito ao registro biológico e etnográfico de uma área
supostamente “não explorada pelo homem branco” até então. Segundo a entrevista
de Carlos de Carvalho,
2.
Eu estava falando com o senhor Lange e
concordamos que se pudéssemos colocar no Brasil um pouco do seu espírito de
Nova Iorque, convenceríamos rapidamente o mundo de nossa importância como uma
nação comercial. Os Estados Unidos são uma ótima escola onde o melhor dos
estudantes pode aprender mais do que nunca soube antes. Eu já estive em todo o
mundo, mas vocês fazem as coisas de modo diferente do que se faz em qualquer
lugar. Portanto, eu digo que todo homem, não importa o quão educado seja, pode
receber uma maravilhosa parte de conhecimento adicional com os Estados Unidos.[1]
3. Com os
preparativos marcados para início no dia 15 de outubro de 1912, Algot Lange só chega ao Brasil em abril de 1913, segundo
relata em livro publicado em 1914, em Nova York, cujo título completo é The
Lower Amazon: a narrative of explorations in the little know regions
of the state of Pará, on the Lower Amazon, with a record of archaeological
excavations on Marajó Island, at the mouth of the Amazon
River, and observations on the general resources of the country [Figura 1].
Antes de ressaltar alguns pontos dessa publicação, cabe uma pergunta essencial
para esta análise: quem é Algot Lange?
4. Na
inexistência de livros ou pesquisas baseadas nas narrativas de Lange, encontrei
uma entrada datada de 2008 no blog da New York Public
Library. A autora, Sachiko Clayton, atualmente
bibliotecária da instituição, afirma ter sido procurada por um pesquisador e
ter-se deparado com uma série de documentos conservados na biblioteca. Após
estabelecer contato com a instituição, pude rastrear um pouco da trajetória de
Lange. Nascido em 1884, em Estocolmo, na Suécia, imigra para os Estados Unidos
em 1904 e se torna um cidadão estadunidense em 1915. Nesse mesmo ano, retorna
ao Pará e lá permanece até, no mínimo, 1917. Em 1923, há em seu passaporte um
pedido de autorização para viajar ao Japão, China e Filipinas. Em 1927, há o
registro de seu retorno de Marseille para os Estados Unidos. Por fim, apenas se
sabe que aos 57 anos, em 1941, estava vivo, residia em Nova York,
identificava-se como “desempregado” em catalogação dos homens aptos para
participar da Segunda Guerra Mundial.
5. No que
diz respeito a artigos sobre o autor, as poucas referências bibliográficas são
Denise Schaan, professora de arqueologia no Brasil, e
dois pesquisadores estadunidenses, Oriana Lerner e
Victor Weiss.[2] Os últimos possuem textos publicados no
mesmo número do Journal of
Postcolonial Cultures and Societies, editado pela
Wright State University, em
2011, textos que versam sobre o primeiro livro de Lange, de 1912. Intitulado In
the Amazon jungle, esse
texto narra os acontecimentos que se sucederam à chegada ao autor à região em
torno do Rio Solimões, no Amazonas, em janeiro de 1910. Após a chegada à cidade
Remate de Males (atualmente nomeada Benjamin Constant), no estado do Amazonas,
Lange estende sua narrativa até o momento em que desmaia em meio à mata e é
supostamente capturado por índios. Convive com eles por cerca de um mês até ser
curado de uma doença, é liberado e retorna à cidade. Tomado pelas memórias dos
eventos recentes, dedica a maior parte desse livro a esse encontro entre homem
ocidental e homem selvagem.
6. Voltando
para o livro de 1914, vemos já na introdução a assinatura de Frederick Dellenbaugh, explorador estadunidense e fundador do
Explorers Club, em 1904, também em Nova York. Sendo ele também autor da
introdução do primeiro livro de Lange, temos indícios da inserção e boas
relações que o explorador sueco possuía nos Estados Unidos já antes de seus
trinta anos. Dividido em 24 capítulos, o livro inicia sua narrativa com a
chegada do explorador no Pará, recebido por Emílio Goeldi, diretor do Museu
Paraense, instituição fundada em 1871, pioneira no que diz respeito aos estudos
etnográficos na região. A observação da estrutura e a leitura do texto de Lange
evidenciam, primeiramente, uma narração que parte da análise e do estranhamento
de cidades supostamente desenvolvidas para os padrões brasileiros de então –
especialmente tendo em vista o boom de infraestrutura da região Norte do
país devido à exploração da borracha – e, claro, sua comparação com suas
experiências anteriores nos Estados Unidos e na Europa.
7. Se, na
primeira estada no Brasil, Algot Lange foi,
supostamente, resgatado por indígenas, há aí um dado faltante que parece querer
ser restituído pelo autor nessa segunda expedição: o ato de fotografar os
nativos. Toda a narração de suas desventuras junto aos índios na primeira
publicação se dá de modo textual com fotografias que documentam lugares por
onde ele e sua equipe passaram antes de ser abatidos pela insuficiência
alimentar, ataque de insetos e afastamento contínuo dos espaços citadinos. As
imagens que mostram momentos aventurosos de sua trajetória ou mesmo os índios
são feitas, como era de esperar do explorador separado de sua câmera, através
de alguns poucos desenhos, como na capa da publicação.
8. Voltar
ao Brasil, portanto, após ter sobrevivido devido ao inesperado comportamento
pacífico de índios canibais, qual versão moderna de Hans Staden, agora com o
apoio de uma figura influente como Carlos de Carvalho, era uma oportunidade de criar novos vínculos com o ambiente dos exploradores nos
Estados Unidos. Para tal, mostra-se claro na leitura de seu livro o esforço por
conseguir, além de fotografar os nativos do Brasil e talvez como consequência
disso, explorar arqueologicamente objetos pré-históricos também advindos de
culturas indígenas na região da exploração da borracha.
9. Após
narrar o trajeto entre Belém, a Ilha das Onças e Tocantins, Lange segue pelo
Rio Moju. Já nesse capítulo de seu livro, o nono, demonstra a ansiedade pelo
encontro com os índios. Em dado momento, relata: “Às sete horas, Skelly grita: 'Ali estão os índios!' No final do estirão
aparece uma canoa manejada por três homens nus, mas eles não são índios. Pela
cor pintada da canoa, julgamos ser alguns caçadores do rio abaixo que retornam
de uma longa expedição”.[3] A cada passo, o autor narra a devastação
da paisagem e das habitações indígenas, tal qual uma caça ao tesouro.
10. No
capítulo seguinte, intitulado Meeting strange indians, os membros de sua comitiva são surpreendidos por
um grupo indígenas que vai a seu encontro. Lange descreve:
11.
Altos gritos distintos de Katú Kama-rãh vem de uma
vegetação densa e nós respondemos imediatamente do fundo dos nossos pulmões “Katú Kama-rãh”. Eu percebo que
estou falando a língua tupi e que as pessoas escondidas, pelo seu cumprimento,
simplesmente dizem “bons amigos” e estão realmente dispostas a serem amigáveis.[4]
12. Dessa
citação parte o título do presente texto. Segundo o autor, as palavras “katú kama-rãh” querem dizer bons
amigos. Em diversos trechos, visando demonstrar aos índios que suas intenções
eram boas, Lange se utiliza da repetição dessas palavras e da linguagem
corporal. Atualmente, ao se pesquisar através de dicionários da língua
tupi-guarani, inexiste termo que se pareça com o que o autor descreve em seu
livro, o que nos leva, naturalmente, a desconfiar de seu caráter documental e a
pensar através da chave da ficção. Tendo em mente, portanto, esse suposto
linguajar nativo, gostaria de refletir e analisar os modos de aproximação dos
quais o explorador se utiliza para se colocar numa possível via de mão dupla
com os habitantes locais. Poderíamos falar de uma “amizade” entre Lange e os
índios ou, trazendo talvez para um termo mais apropriado, uma espécie de
narrativa da boa vizinhança entre a figura do estudioso e do não ocidental?
13. É na
fotografia que o autor se concentrará nos capítulos seguintes a fim de explicar
ao leitor tanto sua capacidade de, enfim, capturar imagens dos índios quanto
seus esforços por adentrar uma ambiência cultural alheia a sua, mas sempre de
modo amistoso. Essa relação inicialmente não se sucedeu bem. Após alguns dias a
trocar objetos, armas e mantimentos com os nativos, Lange inicia sua aventura
fotográfica:
14.
Então eu tentei colocar os índios juntos
para tirar uma fotografia do grupo, mas isso se provou impossível – na verdade,
como eu rapidamente previ, era perigoso. Quando os homens e mulheres
descobriram que minha Kodak, a pequena caixa preta, de repente abria e ficava
maior, mostrando um ameaçador olho preto brilhando no seu centro, eles ficaram
suspeitos e quando virei esse “olho do mal” em direção ao grupo, eles ficaram
realmente assustados e as mulheres rapidamente desapareceram nos arbustos com
seus filhos. [...] Mas eu ainda tinha a intenção de
tirar a fotografia e me voltei aos homens, chamando minha tripulação no barco
para vir e dançar e jogar com os índios. [...] Agora a confusão se instaurou.
Os homens que se mantinham ao redor começam a grunhir e bater seus pés, como
crianças com raiva. O homem velho com o braço atrofiado chega perto e tenta
puxar a máquina de mim.[5]
15. O
trecho citado se demonstra interessante nessa análise, para começar, pela parte
que destaquei logo na primeira frase. Lange descreve um habitual procedimento
da fotografia etnográfica desde meados do século XIX, a saber, a organização
dos corpos dos “outros”, daqueles vistos como não pertencentes à cultura que se
colocava na posição de capturadora de uma imagem exótica (seja com fins
antropológicos, seja com fins de um sensacionalismo que levaria ao escárnio),
como se fossem objetos estáticos. Por mais que o resultado final seja o de um
retrato de grupo, mesmo que de homens agora anônimos, o tratamento dado remetia
a uma tradição iconográfica que diz respeito, por exemplo, ao livro de Victor Frond intitulado Brasil
pitoresco e publicado em 1861 [Figura 2].
16. Considerado
o primeiro livro de viajante a registrar o Brasil por fotografia, em suas
imagens há um esforço pela suposta documentação dos tipos locais, como, por
exemplo, o “trabalhador do mato” e um grupo de trabalhadores partindo para a
lida no campo. Suas fotografias formaram as bases de um grupo de litogravuras
que se disseminou pela Europa e contribuiu para uma imagem do Brasil
visualmente tão clara quanto o contraste entre o branco e o preto: homens
enquadrados ao centro das composições, grupos dirigidos para estar contidos nos
limites da fotografia. Nessa organização visual em que a simetria e as
identificações geográficas e funcionais são prezadas, os textos de Frond dirigem a leitura do espectador e se esforçam por não
deixar margens para a dúvida quanto à apreensão do exotismo do Brasil.
17. A
capacidade de domínio do objeto fotografado também é algo percebido, por
exemplo, em diversas imagens das selecionadas por Lange para a edição final de
seu primeiro livro, In the Amazon jungle. Nele, vários são os retratos dos trabalhadores
das regiões ribeirinhas do Amazonas e do Pará, cujo termo usado pelo autor,
“caboclo”, diz respeito, historicamente, à mestiçagem de homem branco e índio
no Brasil. Comandar esses corpos brasileiros, mas, antes de tudo, frutos da
mistura do Ocidente com o sangue indígena, é também ter controle sobre os
descendentes dos homens selvagens [Figura 3 e Figura 4].
18. As figuras
fotografadas aqui ainda possuem nome, como João ou Marques. Suas poses,
frontalidade e distinção entre figura e fundo nos deixam tentados a lê-las por
uma chave da tradição clássica. Mesmo quando os caboclos estão trabalhando na
extração de borracha, suas ações parecem construídas com o fim de proporcionar
claras apreensão e compreensão do espaço por parte do futuro leitorda .
Mesmo que a cultura visual clássica ecoe nessas imagens, há um notável
estranhamento por parte do espectador não vendo diante de seus olhos um nobre
como D. João III, um dia rei de Portugal, mas um João que trabalha em
plantações. Mantém-se o nome próprio, mas a imagem do Velho Mundo se rende aos
não mais anônimos da ex-colônia.
19. Após o
fracasso de sua primeira tentativa de registro dos índios, Lange redige outros
dois capítulos sobre a única saída possível que encontrou para concretizar seu
objetivo: residir junto aos nativos. Portanto, nos capítulos 11 e 12, a saber,
Sozinho com os índios e Descobrindo o nome da tribo, o autor descreve o grande
número de presentes que teve de entregar aos índios Ararandeuara,
habitantes dos entornos do Rio Ararandeua,
aproximadamente no que seria atualmente a cidade de Rondon do Pará: “Eu estive
ali no meio das pessoas da tribo, contando em torno de quarenta no total,
incluindo as crianças, e abri meu saco de Papai Noel para distribuir os
presentes em frente do olhar maravilhado de todos”.[6]
Depois de muitas trocas, não apenas materiais, mas também afetivas, o autor insiste
em elencar algumas pessoas da tribo que, em sua visão entre o carinho e o
eurocentrismo, destoam de sua ideia previamente concebida do que seria um
indígena. Como um bom exemplo, temos o caso de Tudé,
que o acompanha durante uma parte de sua permanência na comunidade. Em suas
palavras,
20.
Seus olhos irradiam uma luz de
inteligência e um brilho notável difícil de se achar entre as pessoas que
sempre viveram nas mais primitivas condições – quase como bestas nas florestas.
Seus traços me parecem fortemente hebraicos; portanto, eu não consigo não imaginá-lo vestido como um homem civilizado com “roupas de
lojas”, colarinho e gravata, e um chapéu.[7]
21. Após a
impressão de ter conseguido a confiança dos nativos, Lange tenta fotografar
novamente. Tendo percebido a importância das palavras e da gestualidade para os
índios, se utiliza do mesmo primeiro intercâmbio de comunicação feito através
do “Katú Kama-rãh” para se
aproximar com sua caixa preta. Já proclamando o resultado da nova tentativa, o
capítulo seguinte de seu livro se chama O sucesso com a câmera. Ele demonstra
aos índios, sentado sobre sua rede, como é a estrutura da máquina fotográfica
e, ao perceber que estes riem com o ruído feito pelo clique, o famoso “tick-tick”, explora essa sonoridade a fim de capturar
imagens dos integrantes da tribo. Entre risadas e batidas sobre o peito, Lange,
finalmente, faz as imagens que tanto queria. Mas o que podemos extrair delas?
22. Ao
olhar algumas imagens, tenho a impressão de que elas se encontram entre uma
tentativa de formalização mais simétrica, tal qual em seu primeiro livro, e
alguns detalhes que, devido ao caráter de aparente improviso dessa relação, em
que os índios não foram propriamente “domados” pelo fotógrafo, mas convencidos
temporariamente a não o atacar, quebram as harmonias compositivas. Numa das
primeiras imagens produzidas com o suposto consentimento indígena, Lange
escreve logo abaixo “Posing for the camera” e vemos um grupo de quatro crianças com expressão
coagida para a lente [Figura 5].
23. Uma
delas se encontra à frente, com dois braços segurando o tronco de uma árvore, e
as três menores estão ao fundo, já um pouco desfocadas. A perspectiva causada
pelo espaçamento dos corpos no espaço é, metaforicamente, a mesma distância
técnica e cultural entre a tribo e um indivíduo que invade seu espaço de um
modo aparentemente cordial e rouba suas imagens com a finalidade de divulgação
científica. Se a figura da frente se encontra ao centro, por outro lado, está
logo na mesma direção de uma figura do fundo, criando uma amálgama de corpos
que se organiza como os troncos que estão ao seu redor e geram diferentes
linhas de força.
24. Em
outros dois pares de imagem, a mesma sensação de coação pode ser percebida. Na
ausência de certeza sobre uma visão dirigida da pose feita por Lange, esses
índios mais parecem se apoiar nesses pedaços de árvores a fim de escorar seus
corpos ou tentar esconder-se da violência da caixa preta a sua frente. As
legendas aqui, novamente, são pensadas de modo malicioso. A “garota Ararandeuara”, como o próprio Lange descreve, é “uma serviçal que, dia após dia, fica de pé contra uma
árvore me olhando” [Figura
6]. Já seu par, chamado de “um dos índios”, é “um homem, outro tipo
não indígena”.[8] A relação de imagem e texto, portanto,
sempre se subjuga à narrativa da publicação e, no caso da primeira imagem,
tenta condicioná-la a uma suposta ideia de verdade histórica, ou seja, a
fotografia é a prova de que essa garota efetivamente fitava o explorador
encostada em uma árvore – mas quem pode garanti-lo? Na ausência de outros meios
de documentação e na certeza da dimensão de realidade que essas imagens proporcionavam
no começo do século XX, talvez seja melhor encarar Lange como um grande
contador de histórias e também produtor das imagens
que as embasam do que propriamente um dono da verdade.
25. Por
fim, dois exemplos bem contrastantes, mas próximos na ordenação do livro [Figura 7]. Em uma foto
intitulada Na maloca, Lange cita seu próprio texto: “ela se deixa
fotografar, mas sua expressão mostra que ela pensa que tudo isso não faz
sentido.”[9] Vemos a imagem de uma mulher com a mão na
cintura e vista de baixo para cima. Quebrando a centralidade da imagem, troncos
de árvore que dão sustento a uma habitação cortam a fotografia de cima a baixo.
Desconfiança, insegurança, relutância – muitas poderiam ser as palavras
evocadas aqui, mas mais interessante talvez seja pensarmos a dimensão da
afirmação “ela se deixa fotografar” – haveria outra opção? Atacar aquele que
contribuiu com sua subsistência ou cair sob os encantos da dança primitivista do
“tick tick”? O domínio das
mãos do fotógrafo é notável atualmente quando se folheia sua publicação e se
percebe claramente o apagamento das púbis masculinas,
ou seja, se violenta a imagem referente a fim de atenuar o estranhamento do
público leitor futuro.
26. No
meio desse catálogo de imagens da tribo, em contraposição a essa imagem
anterior, há um retrato duplo dos indígenas que mais chamaram a atenção do
explorador – Tudé e Domingo [Figura 8].
27. No
texto, ele informa sobre o segundo:
28.
Domingo é uma espécie esplêndida de
selvagem, quase com seis pés de altura. [...] Seus membros são longos e
sinuosos; seus movimentos, elásticos e, como todas essas pessoas, graciosos. Na
fotografia feita no meu último dia com os Ararandeuara,
ele está ao lado de Tuté [...] Nessa fotografia ele
mostra um sorriso muito inteligente, desviando muito do tradicional estoicismo
do índio.[10]
29. Na sequência
desse trecho do texto, ao comentar um retrato do chefe da tribo junto de suas
netas, Lange escreve: “a mobilidade das formas e a expressão são muito de uma
questão de individualidade, assim como é com as pessoas civilizadas”.[11]
Em outras palavras, o autor se impressiona com a suposta espontaneidade das
figuras dos indígenas perante sua lente. Nas poucas imagens em que eles
aparecem relaxados ou mesmo sorrindo para a câmera, rapidamente o autor traça
paralelos com as “pessoas civilizadas”, a saber, ocidentais, industrializadas e
conscientes do processo fotográfico.
30. Um
paralelo interessante e que diz muito de um discurso baseado em preconceitos
étnicos pode ser feito a partir de uma breve comparação com um momento posterior
do livro. Após sair da região povoada pelos índios, Lange se encaminha em
direção da Ilha de Marajó, também no estado do Pará. Compondo essa região
formada por pequenas ilhas, chega, finalmente, a Ilha de Pacoval, local famoso
devido à concentração de vasos e pedaços de cerâmicas que o autor denomina
“pré-históricos”. Segundo Denise Schaan, trata-se de
um sítio arqueológico que já havia sido explorado por arqueólogos
estadunidenses que chegaram a publicar em revistas especializadas artigos sobre
suas experiências.
31. Após
sua chegada, Lange estreita laços com Ludovico, caboclo cuja família constituía
a suposta população da ilha, responsável por ajudar o explorador na coleta de
mais de seis mil peças de cerâmica indígena. Para documentar essa experiência, o
autor convida esses habitantes do lugar para uma fotografia e narra a situação
ao leitor [Figura 9]:
32.
Eles são todos caboclos de boa natureza
aos quais aprendi a ter muito respeito e estimar. No dia seguinte, quando eu os
convidei para ficar em frente da casa para ser fotografados, eles rapidamente
aceitaram, depois de ficar cerca de uma hora colocando suas melhores roupas.
Então, eles fizeram uma fila com as expressões mais sérias como se estivessem
diante de uma corte marcial e fossem condenados à execução ao nascer do sol. É
uma pena que a fotografia não possa reproduzir os vestidos multicoloridos das
mulheres, que eram verde, rosa e amarelo de bolinhas e
brilhavam devido ao sol.[12]
33. Com
seu conhecimento de fotografia e também devido a maior
domínio do idioma português, Lange foi capaz de organizar esses corpos do mesmo
modo que pôde organizar, no mesmo livro, as novidades em cerâmica de suas
buscas arqueológicas. Curiosamente, porém, enquanto ele subjuga a reação
simpática ou de estranhamento dos indígenas a sua raça, no que diz respeito aos
caboclos, por mais que ele sempre frise sua origem mestiça nas descrições, as
igualmente “estoicas expressões” dessas pessoas não são reduzidas a um dado
étnico. Há aqui, segundo as palavras de Lúcio Ferreira, pesquisador em história
da arqueologia no Brasil, um colonialismo interno, ou seja, trata-se de
reiterar “uma das características básicas da legitimação do colonialismo pelas
potências imperiais: a representação e classificação científica ou literária do
'outro' como 'primitivo', 'degenerado', um ser inerte frente aos desdobramentos
e transformações ditadas pela evolução e pelo progresso”.[13]
34. Creio,
portanto, que a publicação ainda pouco estudada de Lange pode contribuir com o
campo ainda em expansão dos estudos das relações entre antropologia,
arqueologia e etnografia no Brasil, especialmente no que diz respeito a uma
perspectiva do viajante estrangeiro. Através de suas imagens e descrições,
percebo que o elemento “não ocidental” de sua narrativa não diz respeito apenas
aos indígenas, mas também aos frutos da mestiçagem, os caboclos e, mais do que
isso, ao Brasil como um todo. Importante é lembrar que em muitos departamentos
de história da arte há clara distinção entre professores e grupos de pesquisa
de “western art” (ou apenas “art”)
de um lado e, de outro, “Latin American art” ou outros termos como “Eastern art”.
Quando muitos pesquisadores europeus e dos Estados Unidos mencionam uma
produção de imagens que não advém daquilo que pensam ser uma unidade cultural e
geográfica comum a eles, é necessário determinar geograficamente sua origem.
Essa consciência de uma herança artística é tão fictícia (e explorada pelos
mais diversos autores, como Vasari, Winckelmann e Burckhardt) quanto
a criação do mundo “não ocidental”.
35. Algot Lange
volta a Nova York em 1915, publica seu livro e leva consigo o material coletado
na Ilha Pacoval. No mesmo ano, no dia 7 de abril, o New York Times
publica uma nova matéria intitulada Threatens to dump antiques
in river: Algot Lange, Brazilian explorer, can find no one
to buy his
prehistoric pottery dug from Amazon
island. No texto, o explorador comenta a inexistência de um museu nos Estados
Unidos capaz de comportar o precioso material coletado no Brasil. Através de
uma retórica agressiva, ele afirma que, caso a situação permaneça desse modo,
irá atirar tudo que trouxe consigo no Rio East, próximo a Manhattan. No final
da publicação, ele afirma: “Nossa equipe chegou a uma pequena ilha em um lago e
fez uma investigação. Descobrimos que o fundo do lago, que é na verdade a parte
de cima de uma ilha afundada, estava cheio de coisas pré-históricas.”[14]
36. Nessa
narrativa, na distância do Brasil, no âmago da imprensa estadunidense,
perdem-se Ludovico, sua família de caboclos e o essencial intercâmbio frisado
todo o tempo em seu livro para que chegasse às descobertas arqueológicas. Do
mesmo modo, a história da arte esqueceu, proporcionalmente, a figura de Algot Lange. O que sucedeu em sua biografia após esse
retorno aos Estados Unidos? Na ausência de documentos e mesmo do conhecimento
de novas publicações, uma fotografia recente de autoria de Denise Schaan pode contribuir metaforicamente com essa reflexão;
se não sabemos o que aconteceu com o explorador, é perceptível
contemporaneamente o resultado do espaço explorado em que aquilo que estava sob
a terra, o objeto sagrado de barro, se converteu em superfície fragmentada. O
passado de cultura material de centenas de índios se converteu, literalmente,
em pó. O espaço que um dia foi cemitério para os índios se tornou um memorial
para o desaparecimento e apropriação de uma cultura material, uma espécie de antimonumento que, como diria Robert Smithson,
“em vez de nos lembrar o passado como velhos monumentos, os novos monumentos
parecem nos fazer esquecer do futuro”. Somem os objetos indígenas, mas ficam,
ao menos, os retratos fotográficos produzidos por Lange.
37. Ao final
de seu livro, comentando a versatilidade da língua portuguesa, o autor diz: “Amanhã, literalmente dizendo, significa
'tomorrow', mas praticamente falando significa
qualquer momento começando entre amanhã e terminando em algum remoto período
quando o cometa Halley reaparecer ou a Amazônia congelar.”[15]
Não esperemos, portanto, por esse momento fabuloso e fictício para que Algot Lange seja merecedor de estudos mais profundos. Aqui
anunciados e rascunhados, nos coloquemos também na posição de um explorador e
analisemos suas fotografias, seus textos e sua dúbia relação de “amizade” com o
Brasil.
Referências bibliográficas
Calls America a
great school. The New York Times, New York, 28 de setembro
de 1912.
FERREIRA, Lúcio Menezes. Território
primitivo: a institucionalização da arqueologia no Brasil (1870-1917). Tese de doutorado. Unicamp, Campinas, 2007.
LANGE, Algot. The Lower Amazon: a narrative of explorations
in the little know regions of the state of Pará. New York: The
Knickerbocker Press, 1914.
Threathens to dum antiques in river. The
New York Times, New York, 7 de abril de 1915.
______________________________
[1] Anônimo,
Calls America a great school. The New York Times, New York, 28 de
setembro de 1912. Tradução livre.
[2] Ambos os curtos artigos
resumem a narrativa do primeiro livro de Algot Lange
e estabelecem poucas conexões com conceitos como o de colonização e alteridade.
Não se trata também de escritas da história da arte, mas, como o próprio nome
do jornal em que foram publicados anuncia, enfocam na sua relação com o pós-colonialismo.
[3] LANGE, Algot. The Lower Amazon: a narrative of explorations
in the little know regions of the state of Pará. New York: The
Knickerbocker Press, 1914.
[4] Ibidem,
p. 183.
[5] Ibidem, p. 202.
[6] Ibidem, p. 218.
[7] Ibidem, p. 220.
[8] Ibidem, p. 243.
[9] Ibidem,
p. 251.
[10] Ibidem, p. 239.
[11] Idem.
[12] Ibidem, p. 319.
[13] FERREIRA, Lúcio Menezes. Território primitivo: a institucionalização
da arqueologia no Brasil (1870-1917). Master's thesis. Unicamp, Campinas, 2007, p 18.
[14] Threathens
to dum antiques in river. The New York Times,
New York, 07 de abril de 1915. Tradução
livre.
[15] LANGE, op. cit., p.
395.