Manoel de Araujo Porto-alegre: 30 teses para debate em 1855

organização de Arthur Valle

Em Sessão Pública da Academia Imperial das Belas Artes realizada em setembro de 1955, o então diretor da instituição, Manoel de Araujo Porto-alegre, apresentou, para que fosssem desenvolvidos pelos membros da Academia, a lista de 30 “pontos artísticos” que abaixo reproduzimos. As sintéticas teses propostas por Porto-alegre, se por vezes beiram o fantasioso, demonstram, não obstante, a sua admirável sensibilidade para questões técnico/estéticas de grande envergadura e que, já delineadas no Brasil de meados do oitocentos, viriam a se tornar ainda mais prementes com o correr das décadas seguintes. Entre essas questões, podemos destacar: a real eficiência do ensino artístico centrado nas Academias, o estatuto e a orientação das diversas artes aplicadas, o desenvolvimento de repertórios oramentais baseados em elementos da natureza americana, o aproveitamento de tipologias arquitetônicas autóctones, a formação de uma “escola” de arte brasileira e os problemas colocados pelo desenvolvimento de técnicas como a fotografia. Nossa transcrição segue, com algumas alterações, a versão de Alfredo Galvão, publicada originalmente na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n.14, 1959, pp.57-61. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/>

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Ata da 2a Sessão Pública da Academia das Belas Artes, em 27 de setembro de 1855 – Presidência do Diretor.

A meia hora depois do meio dia, achando-se reunidos os srs. Professores, Dr. João Joaquim de Oliveira, Jó Justino de Alcântara, Joaquim Inácio da Costa Miranda, José da Silva Santos, Francisco Manuel Chaves Pinheiro, Ernesto Gomes Moreira Maia e Honorato Manuel de Lima, o sr. Diretor faz um discurso sobre o fim das sessões públicas, anuncia que convocara a presente sessão para que a Academia trate da criação do seu Jornal, em conformidade do artigo 10.° dos Estatutos, convida os srs. Acadêmicos a apresentarem suas idéias a respeito, e abre a sessão.

O sr. Vice-Diretor e o sr. Professor de Gravura de Medalhas, como relator da Sessão de Escultura, fazem cada um a leitura de algumas ideias capitais que devem entrar no programa do Jornal da Academia, e as quais vão a registrar.

O sr. Diretor propõe então que o Jornal se intitule - “O Artista” - e que comece a sua publicação quando a Academia tiver o material necessário. Discutida a proposta, é unanimemente aprovada. O sr. Diretor oferece os seguinte pontos artísticos para serem desenvolvidos pelos srs. Membros da Academia:

1.° - A Arte Cerâmica, depois de aperfeiçoada entre nós, dará para às Belas Artes os mesmos resultados que deu na Grécia, na Itália, na Saxônia e na França?

2.° - Donde procede o mau gosto, e mesmo a indiferença que temos tido até hoje para com a arquitetura, quais as razões porque os exemplares de Mr. Grandjean não frutificaram, e o que convém fazer em favor desta arte para ter um maior e seguro desenvolvimento?

3.° - A introdução do azulejo nas fachadas das nossas casas será o começo de uma decadência prematura; convirá destruir esta introdução ou aproveitá-la com melhor direção na decoração externa? Será melhor combatê-la rigorosamente para substituir este gosto dos habitantes pela pintura a fresco, pelo desenho chamado ''sgrafignato", pelo estuque, ou promover no país fábricas desta nova indústria?

4.° - Convirá mais auxiliar a litografia já plantada entre nós e com uma vida independente ou pedir ao Governo Imperial uma escola de Gravura a talho doce? A litografia no seu estado atual só peca pelo desenho e a gravura está ainda na infância, mormente a gravura histórica?

5.° - Que conveniências podem resultar das restrições impostas nos novos estatutos a respeito de serem preferidos os sujeitos dos concursos tirados da história nacional e religiosa? Não teria sido melhor deixar plena liberdade na escolha?

6.° - O novo sistema de educação artística, ordenado pela reforma, preencherá os seus fins, ou será necessário um novo método? Qual será mais proveitoso: começar pelos processos puramente técnicos para depois passar-se à teoria, ou começar-se pela teoria para depois passar-se à prática, ou o sistema de estudar a teoria de envolta com o prática?

7.° - Escrever a história da cenografia no Rio de Janeiro e dar as razões por que esta arte não tem progredido entre nós.

8.° - Para que o Brasil forme uma escola sua, que princípios deverá adotar a Academia como cânones invariáveis para obter esse caráter peculiar que mereça o nome de escola sem contudo precipitar-se no estilo amaneirado?

9.° - O princípio chamado da imobilidade no Egito foi útil ou fatal ao desenvolvimento das belas artes naquela região?

10.° - Se o sistema das recompensas públicas dos Atenienses fosse adotado no Brasil, frutificaria ele como na antiguidade apesar da nossa diferente organização social, e do nosso caráter individual, ou daria um resultado moral e artístico superior ao dos títulos e condecorações? Não pelejaria esta adoção com os resultados do passado, e não seria ela a base de uma revolução pacífica porém completa no futuro?

11.° - No momento em que os altos poderes do Estado decretarem a edificação de um palácio para o nosso Imperador, qual será o local mais conveniente,, mais belo e mais econômico para este monumento nacional?

12.° - O Estado, a moralidade pública, e o indivíduo lucrariam mais se todas as repartições públicas estivessem em um só edifício, ou convém separar os diferentes ramos da administração? Qual seria o melhor local, na primeira hipótese, para esta edificação, e que plano geral conviria adotar no desenvolvimento do seu todo para haver nele rápida correspondência e economia de tempo para o cidadão, de despesa para o Estado, e de ordem para a alta administração?

13.° - Que meios pode empregar já o Governo para enraizar o gôsto das belas artes no Rio de Janeiro, e torná-lo em utilidade pública ?

14.° - Nas diferentes arquiteturas conhecidas, será devido o seu caráter especial à qualidade dos materiais empregados, às crenças religiosas que elas simbolizam ou à organização social dos povos que as criaram?

15.° - A arquitetura grega deve ser proscrita dos nossos tempos ou modificada segundo as exigências do culto? De todas as arquiteturas derivadas da antiga, qual será a que mais convém adotar no Brasil?

16.° - Se a Santa Sede se tivesse estabelecido fora de Roma, a arquitetura cristã teria continuado na senda que lhe imprimiu o baixo império ou a idade-médla; teria retrogradado ao caráter antigo por causa da sua beleza ou solidez, ou então tomaria uma nova forma diferente da arquitetura ogival e da bizantina? Não terá sido a causa principal deste retrocesso a presença constante das ruínas da antiga Roma, e o emprego de materiais arrancados às mesmas ruínas e a constante influência daquela capital do Cristianismo sobre todas as nações católicas?

17.° - As diferentes escolas de pintura procedem mais da natureza do país onde florescem, ou das doutrinas especiais de seus mestres? Deverão ser elas consideradas pelos caracteres técnicos ou pelos morais? Será boa a atual classificação das escolas, ou convém adotar outra mais explícita, e menos confusa na sua ordem e filiação?

18.° - As nossas construções urbanas estão em harmonia com o nosso clima e vida doméstica? Mudarão elas na sua disposição interior depois da extinção da escravatura, e no caso contrário quais serão as introduções úteis que se devem adotar desde já para que se tornem mais belas, cômodas e sanitárias? E o que convém ao legislador decretar para este fim?

19.° - Se o imposto da décima fosse substituído pelo das portas e janelas, o que sucederia à arquitetura urbana?

20.° - O que tem mais concorrido para o atraso da arquitetura, as leis do nosso país, e educação dos nossos homens de Estado, ou a falta do gosto nos particulares?

21.° - Aonde estão as causas da decadência da Música no Brasil, onde a música é uma necessidade, e onde se pagam os cantores por preços fabulosos? O que convirá fazer para restaurar a música religiosa profanada escandalosamente pelos próprios músicos; donde partirá essa reação, que encontra nos devotos e nos artistas tão formidáveis adversários?

22.° - Quais serão as vantagens do emprego da arquitetura chamada doméstica pelo sr. Canina, quais os edifícios que melhor comportarão este sistema e quais os que perderiam com ele?

23.° - Que utilidade poderá colher o paisagista com o estudo da botânica e da geologia?

24.° - Aonde está a verdade desta máxima florentina: “A Anatomia é o segredo da arte”?

25.° - Qual será a razão porque muitas Academias se tem tornado infrutíferas e mesmo prejudiciais às belas artes em diferentes épocas e países?

26.° - O estudo da arquitetura clássica, conforme o sistema de muitas escolas, será bastante para criar arquitetos úteis a todas as necessidades sociais, ou deve ele entrar na educação artística como entra o estudo dos clássicos na literatura?

27.° - Sendo o Brasil um país agrícola, não convirá ao jovem arquiteto um estudo sério sobre a arquitetura rural aplicada ao fabrico e custeio das nossas fazendas, e a maneira de melhor colocá-las e tornar alegres, cômodas e saudáveis todas as suas fábricas e habitações?

28.° - Nás formas especiais das nossas plantas, flores e frutas não terá a arte cerâmica, principalmente a Mitecnia um manancial fecundo para novas inspirações?

29.° - A ornamentação e decoração dos edifícios, principalmente a executada pela pintura, deverá substituir os protescos e arabescos pelos objetos da nossa natureza americana; e qual tem sido a causa por que este caminho novo, apenas encetado por Sr. Debret e Francisco Pedro do Amaral, nos seus últimos dias, ainda não tomou o sen necessário e útil desenvolvimento? Nesta nova estrada convirá abandonar inteiramente os exemplos da antiguidade na composição, ou conservar somente a harmonia das linhas ou a simetria, como base geométrica e inalterável?

30.° - A descoberta da fotografia foi útil ou perniciosa à pintura? E se ela chegar a imprimir as cores da natureza com a fidelidade com que imprime as formas moiiocroiucaiueiite, o que será da pintura, e mormente dos retratistas e paisagistas?

Terminada a leitura destes pontos, e nada mais havendo a tratar, o sr. Diretor encerra a sessão às 2 horas da tarde.

Palácio da Academia das Belas Artes, em 27 de setembro de 1855,

Manoel de Araújo Pôrto-alegre

Diretor

João Maximiano Mafra

Secretário