Pedro Américo: “Cartas de um Pintor”
contribuição de Camila Dazzi e Hugo Guarilha
Em 1884, a Gazeta de Notícias pede a Pedro Américo - que se encontrava em Turim - o envio de alguns escritos sobre a Itália contemporânea. Os artigos, publicados com o título “Cartas de um Pintor”, são o destaque do mês de agosto no periódico, um dos mais lidos do Rio de Janeiro de então. Texto disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/
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Cartas de um pintor, Gazeta de Noticias n. 236, ano X, sábado, 23 de agosto de 1884, p. 1.
Cartas de um Pintor
A Itália moderna. – Restauração do genio nacional. – A arte italiana. – Protecção do governo, do rei e dos papas. – Artistas contemporaneos. – Realistas e impressionistas.
A Italia goza em toda a Europa, em toda a parte do mundo em que haja cultura intellectual, da fama do paiz da arte, da poesia e do ideal. Mas a esse conceito universal, justo brazão de uma nobreza de muitos seculos, ajuntam os povos intelligentes e instruidos a convicção de que só de recordações vive presentemente a classica peninsula.
Isto é verdade até certo ponto, mas d’ahi por diante um crassissimo erro.
Não ha duvida que nenhum título maior do que as gloriosas tradições do renascimento, e mesmo da antiguidade etrusca, romana e grega, possue esta privilegiada região aos olhos dos estrangeiros estudiosos; porém, concluir d’ahi que o encantado cothurno não passa de um tumulo com uma multidão de sombras aureoladas a voltearem-lhe em torno, é uma violencia feita aos factos, e uma offensa á verdade manifesta e patente. Com effeito, desde a alta industria, a industria fabril animada do espirito emprehendedor dos turinenses e milanezes, até a producção de obras delicadas da arte florentina, e o extraordinario capricho do gosto italiano, tudo attesta a inexhaurivel fecundidade e a perpetua juventude d’este povo, mais que qualquer outro intellectualmente perfeito.
Muitas razões, principalmente, obscurecem-lhe as grandes e incontestaveis qualidades no conceito de quem os considera englobadamente, e vem a ser a multiplicidade dos caracteres das diversas provincias da Italia, a juventude d’esta como nação unida, e a flagrante inferioridade dos habitantes da Sicilia, e em geral de toda a região que vai de Napoles á ponta meridional d’aquella grande ilha; inferioridade tal, falta tão evidente de civilisação e policia, que, devéras, constitue a vergonha d’este pais e a continua macula que todos os seus inimigos indigitam para destruirem o effeito das enthusiasthicas apologias que lhe tecem os seus innumeros admiradores.
O salteador explica-se ordinariamente pela falta de policia ao sul do reino; porém, outras causas o produzem e animam, e estas são as mesmas que entre nós explicam a existencia do capoeira no meio do povo e mais [...] do mundo. É um anachronismo monstruoso, a que recorrem os politicos sem consciencia para atterrar e dominar; e um premeditado delicto que a sociedade devera castigar ao mesmo titulo que castiga o mandatário dos assassinatos ordinarios.
Fora d’isto, afóra esse terrivel senão, que auctorisa amargas ironias contra o florente reino, nada se póde citar em abono de uma opinião desfavoravel a respeito do paiz, que sem quasi despejar os cofres publicos e o sangue dos seus filhos, soube acabar com as nacionalidades perturbadoras do progresso geral, reconstituir-se, e subir em menos de vinte annos á altura de uma grande nação européa.
Para avaliar o progresso italiano bastará considerar o movimento financeiro, barometro infallivel das oscillações do credito, e por consequencia do bem ou mal estar de um povo; bastará considerar que ha sete annos eram necessarias 28 libras, ou francos italianos, em papel, para comprar-se uma libra esterlina, e que agora, depois da habilissima conversão da moeda-papel em ouro, as libras inglezas são cotadas ao par.
Não é porém, n’esse genero de considerações que se deve entrar para julgar os hodiernos italianos; é na contemplação das obras da intelligencia, producto directo do pensamento nacional e emanação mais ou menos pura do espirito caracteristico das diversas raças. É nas obras da litteratura, nos trabalhos scientificos e principalmente nas obras de arte, que devemos buscar as provas de que, longe de ser um paiz de mortos, como a chamou de Lamartine, a Italia é, ao contrario, uma vastissima arena onde se succedem as grandes lutas caracteristicas da vida activa dos povos a quem a Providencia assignou um papel importante no desenvolvimento da civilisação e do progresso.
A arte é em toda a parte a expressão material do pensamento, a prova visível e incotestavel de que um povo tem ou não tem idéas, sensibilidade e aspirações proprias.
O paiz onde não houver arte, ou pelo menos litteratura, não é uma verdadeira patria para os homens que vivem da intelligencia; é um simples paiz, sem pretenção a abrigar uma sociedade predestinada.
O governo italiano comprehende tão bem esta verdade, e teme tanto ver desmerecer a nação no conceito das que em torno d’ella a contemplam, que não cessa de animar os artistas, exhortando-os para que produzam e exponham os seus trabalhos de um a outro extremo da peninsula, recompensando-os moral e materialmente, como se fizera a generaes que voltassem victoriosso depois de grandes e gloriosas pugnas; e o rei, ao aproximarem-se as exposições annuaes, em que a nação se esforça para dar ao continente uma boa idéa de si propria, convida os artistas a provas extremas, que elle remunera largamente. Só para um monumento a seu pai, em Turim, concorreu Humberto I com a somma de um milhão de francos; e de certo não subscreverá menos para a grandiosa memoria que se vai elevar com igual fim em Roma.
Em cada exposição em que figuram trabalhos dignos de lovor, gasta cerca de meio milhão em acquisições de quadros e estatuas. E não é como se poderia [...] um rei artista ????? é simplesmente um principe da casa de Saboia, casa sempre [...] por uma grande simplicidade e de um quasi exclusivo espirito militar.
O rei Victor Manuel ainda era mais liberal. Uma vez, em Flroença, visitando uma exposição de obras de mosaico, encontrou uma estupenda mesa feita por um moço relativamente pobre, que consumira cerca de dous annos na fabricação d’aquella admiravel peça. Mandou chamal-o, perguntou-lhe quanto valia o trabalho, e deu-lhe o sextuplo de que o artifice lhe pediu, isto é, 150 mil francos!
Pio IX não lhe cedia o passo no que respeita a munificencia em taes casos. No palacio em que habitava, conjuncto de maravilhas como não existe segundo na Europa, mostraram-se diversos artistas, que apezar de não terem o genio do Sanzio, não deixaram por isso de imprimir nos muros do Vaticano o cunho de um grande talento, que enche de pasmo a quem visita desprevenido a esplendida regia. Muitos d’elles, nossos contemporaneos, alli ensai ram os seus primeiros vôos, cresceram até se medirem com os maiores do seu tempo, fizeram boas fortunas e foram elevados a grandes difnidades na côrte pontificia.
É que para os principes italianos a protecção que merecem as bellas ares não é cousa discutivel; é uma verdade axiomática que todos devem comprehender instinticvamente, e contra a qual não se poderia invocar economias publicas nem razões politicas de qualquer ordem por mais capciosas que fossem.
É por isso que o genio italiano, depois de parecer exhausto com os grandes trabalhos do renascimento, e mesmo do longo e lento periodo de decadencia que vai da morte de Miguel Angelo á extincção das escolas bolonhesa e napolitana, renasceu em Napoles com Morelli e Micchetti, em Roma com Monteverde, em Florença com Vinea, em Genova com Barabino, em Milão com Hayez e Cremona, e finalmente em todo o resto da Italia com os multiplos reflexos do talento d’estes artistas, cuja importancia não é pequena na historia da arte contemporanea.
D’entre todos elles o mais notavel, para mim, é o Barabino, pintor genovez que filou-se á actual escola florentina, bem que não o considerem assim os napolitanos, que fazem do Morelli uma entidade superior, e o chefe da escola modernissima italiana tomada em geral. Depois d’estes dois artistas, cujas composições são por vezes de uma grande originalidade, cita-se como espirito moderno e ousado o Micchetti, intor cheio de phantasia e amigo de todas as aberrações do gosto que passam por expressões da arte contemporanea.
O Vinea, joven e espirituoso florentino, que apegou-se ás scenas do XVII seculo, quer sejam cavalleirescas como o rapto de uma dama em viagem, quer vulgares como um soldado a virar garrafas de vinho em companhia da vivandeira do regimento, o Vinea, dizemos, é um pintor talhado para as pequenas telas e uma organisação essencialmente adaptavel ás exigencias da arte commercial moderna. Suas composições, em geral, pouco menos microscópicas que as do velho Meissonnier, são bem comprehendidas, de um desenho correctissimo, cheias de espirito e só inferiores ás dos antigos pintores flamengos do mesmo genero, no que respeita ao colorido, que nas pequenas télas do Vinea é dominado pela nota cinznta, ultima expressão esthetica da luz conforme a vêm os artistas actuaes d’este paiz, onde, entretanto o céo é azul, o sol brilhante e a atmosphera trasparente e dourada como em parte nenhuma da Europa e muito menos na Hollanda.
Esta particularidade do clima italiano que tem sido celebrada por todos os viajantes desde que a Italia começou a ser visitada pelos estrangeiros intelligentes, não impressiona os pintores nacionaes, esses perpicazes observadores, que tudo vêm, menos o que é bello e essencial como os grandes espectaculos naturaes ou sociaes do paiz em que nasceram. A respeito da luz elles só percebem os raios cinzentos, isto é, os raios reflectidos das paredes pntadas d’esta côr, de que se compôem os studios, ou officinas, em que assentem e copiam o modelo.
Teambem não os impressionam os formosos typos que se encontram em toda a peninsula, e que attestam a intelligencia, a vivacidade e as nobres origens da raça contemporantea. Apezar de se chamarem impressionistas, obstinam-se a vêr por toda a parte, e systematicamente, physionomias vulgares, caras horrendas e patibulares, pés enormes e corpos sem proporção nem semelhança com os typos geraes da humanidade. Para elles ahi é que está o bello e a fonte principal da inspiração do artista. Toda a tentativa para restaurar o culto da fórma e manter as antigas delicadezas do gosto, afigura-se-lhes um attentado contra a grande republica da mediocridade, do materialismo erigido em [...] supremo dos factos sociaes e dos phenomenos da historia e da arte.
Ora, é claro que, considerada d’este modo, a arte torna-se muito mais facil do que para aquelle que anda á pesquiza de typos ideaes, e que, longe de se contentar com a humanidade tal qual ella se nos apresenta, procura corrgil-a nas proprias concepções artisticas, enobrecendo-a de continuo, para poder apresental-a como modelo ás gerações vindouras, ou como objecto de deleitosa contemplação aos homens sensiveis e intelligentes.
Um quadro, por exemplo, em que haja figuras desproporcionadas, cabeças sem desenho e corpos ou extremidades disformes, onde, ao lado de um individuo obeso e geigantesco figure outro rachitico e anão, onde a expressão do riso seja dubia e a colera se exhiba po caretas, onde, finalmente, nenhuma regra de bom gosto domine as linhas principaes e nenhum conhecimento das leis estheticas presida aos meios de [...]
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Cartas de um pintor, Gazeta de Noticias n. 241, ano X, quinta-feira, 28 de agosto de 1884, p. 1.
Cartas de um Pintor
Indiferença dos artistas italianos perante os politicos. – Causas d’este phenomeno. – Roma e o orgulho nacional italiano. - [...] contra a França. – Sentimentos hostis a respeito dos padres. – O exercito e a disciplina.
Os povos são como os individuos. O homem que se fia no proprio talento estuda pouco. É o que acontece aos artistas italianos, em geral dotados [...] maior sentimentos que os francezes e allemães. A impressão pessoal basta-lhes e os grandes esforços lhes são estranhos. D’ahi procede a surperficialidade com que encaram os phenomenos da natureza e os phenomenos sociaes de que se inspiram, e também a pobeza das concepções que lhes são familiares, concepções por vezes tão ridiculas, que desdizem do espirito dos seus auctores, em grande parte illustrados e dignos de representarem melhor papel no desenvolvimento da historia do seu paiz.
Longe de se commoverem com Miguel Angelo, com os acontecimentos que em tão pouco tempo mudaram a face das cousas e decidiram da sorte da Italia, longe de se regosijarem com a emaneiração politica da patria e com os phenomenos sociaes que de dia para dia vão consolidando a uinificação e a grandeza italiana, conservam-se indifferentes á corrente que arrasta a nação para o progresso e continuam a buscar suas fontes de inspiração nas scenas da vida burgueza, nos episodios militares sem importancia, e até na vida claustral, hoje esquecida de todos, e cujas peripecias representam pelos seus lados mais comicos e ridiculos. Uma criança a cavallo na bengala do avô, um soldado a conversar com a criada do visinho, um frade a suar de cançaço, emquanto o jumento que lhe serve de montaria recusa-se a prosseguir na ladeira que conduz ao convento, ou o mesmo a dormir embriagado entre as pipas e os [...] da adega monacal, taes são os quadros que os pintores d’este paiz offerecem de ordinario á curiosidade estrangeira.
Os inglezes já estão tão aborrecidos de vèr os taes quadrinhos demonges com [...] de vinho ás voltas que, quando encommendam alguma tela de genero aos pintores florentinos, impõem a estes a condição de não pintarem rades beberrões como assumpto principal.
Eis o estado a que chegou a arte do renascimento, a grande arte de Leonardo de Vinci, de Adnréa del Sarto e de outros artistas, hoje deprezados, nas mão dos realistas, impresionistas e mais representantes das diversas variedades do materialismo hodierno. Em vão clama contra tamanha depressão moral um ou outro artista de organização [...] individual pode modificar, nem os esforços do governo supprimir de um para outro dia. Para modifical-as, ou as supprimir, fôra necessario que as necessidades da sociedade tambem se modificassem, que o artista entrasse na organisação da machina productora do equilibrio europeu, e servisse ainda que indirectamente, para desenvolver e manter as forças materaes e moraes do paiz; e é esta a verdade que ainda não comrehenderam os homens politicos incumbidos de velar sobre a manutenção e o desenvolvimento da tradição artistica n’esta parte da Europa civilisada.
Roma jacta-se de interpretar mais do que Napoles ou Florença o sentimento da nação. Engana-se. A moderna capital do reino d’Italia é apenas um centro de attracção para onde concorrem os principaes artistas da peninsula nas occasiões solemnes. Falta-lhe a iniciativa de Napoles, o espirito da Toscana, a coragem de Milão e a confiança de Turim nas proprias forças. Ella ha de celebrar a sua Exposição Universal á custa da estranha selva; quando porém, esta negar-se á contínua transfusão de que se alimenta a velha cidade, Roma voltará ao seu antigo estado de uma esplendida ruina habitada por homens orgulhosos e indolentes.
O orgulho, entretanto, não é sentimento privativo dos romanos: todos os habitantes do reino o exhibem admiravelmente; o de Roma, a titulo de cidadão da capital do orbe catholico e descendente dos antigos dominadores do mundo; o da Toscana, como filho da região que maiores homens produziu entre as mais fecundas da Europa; o de Turim, por ser compatriota do estadista e do rei que souberam aproveitar o ensejo para libertar a Italia do jugo estrangeiro; o de Milão, como representante da actividade industrial e artística; o de Napoles, como desfructador do paiz o mais bello e do clima o mais agradavel do mundo; o da Sicilia, finalmente, pela posição especial da terra que lhe foi berço e pela tradição dos tempos em que era de lá que partiam os bardos e menestreis que, espalhando-se pelas côrtes feudaes da peninsula, deram aos habitantes d’esta as primeiras idéas da arte e da litteratura italiana.
Deveremos acrescentar que a multidão de estrangeiros de continuo extasiada perante os monumentos da arte do renascimento e das antigas ruínas da época romana, e a affirmação constante d’elles de que não ha paiz mais formoso que Napoles ou Como, galerias mais ricas que a do Vaticano ou do Pitti, cidade mais interessante que Roma ou Veneza, radicam-lhe cada vez mais no espirito a convicção de que, sahindo-se da Italia, nada mais se encontra que mereça a attenção do homem de gosto. N’isto se parecem os actuaes italianos com os nossos mais singelos matutos, os quaes vendo os naturalistas estrangeiros á caça das borboletas, persuadem-se de que estão fazendo pr[...] visões para de futuro não passarem fome nos seus respectivos paizes.
Grandes pelas tradições da arte e da litteratura, não admittem presuppostos offensivos á dignidade nacional, como por exemplo a superioridade da França ou da Allemanha consideradas como potencias militares ou como representações de uma civilização mais completa. Reconhecem, entretanto, a certos respeitos, que lhes são inferiores, mas attribuem essa inferioridade á perda de duas provincias em favor da França e á impossibilidade de assimilarem-se Trieste e a região circunvisinha. Attribuem-na ainda mais á presença do chefe do catholicismo na capital da Italia, que [...] deram contaminada do espirito reaccionario, que de um momento para outro poderá invadir todas as classes.
Um ciume exagerado das grandes nações que a rodeiam e uma irritação constante contra os pad4es, eis a caracteristica da Italia presente e os sentimentods que a levam a commetter continuas injustiças na apreciação dos factos, não diremos sómente politicos, mas ainda de outros generos. Houve uma época em que era moda insultar a França, a qual, entretanto, desfazia-se em protestos de uma amizade diariamente attestada por actos altamente sifnificativos. No mesmo momento, por exemplo, que a commissão promotora de uma colossal memoria em Roma ao rei Victor Manuel negava o premio de cem mil francos, a que tinha direito um pensionista da escola franceza na velha capital, e com subterfugios que a imprensa tornou ruidosos adiava a conclusão de um incideente que irritava a consciencia publica, o preisnte da republica franceza condecorava os officiaes italianos que tinham assistido nos [...] ás manobras militares e offerecia banquetes ao Verdi e a outros artistas italianos de muito menor merecimento.
Factos desta natureza repetiram-se durante mais de um anno, sem que o povo frances se commovesse, e ainda continuariam a reproduzir-se com a mesma insistencia, se a repugnancia dos prussianos e austriacos em acceitar as interessadas homenagens politicas dos italianos não estivessem quotidianamente provando a estes ultimos a leviandade em que incorriam, alienando de si as sympathias da naçao sem a qual nunca, talvez, o seu [...] pela emancipação politica da patria teria passado de um platonico desejo.
Desacorçoada [...] depois das humlhadoras tentativas de alliança com a Austria e a Prussia, é contra o papa que se volve exclusivamente a opinião publica, principalmente desde que o principe imperial da Allemanha, com um acto de profunda deferencia ao virtuoso chefe do catholicismo, quiz provar solemnemente, em quanto hospede do rei Humberto, que sua patria, de que elle era então o verdadeiro representante em Roma, não podia prescindir, apezar de mais protestante que catholico, de apoio moral do Summo Pontifice.
É verdade que a linguagem dos orgãos [...]mamente, adquirindo por vezes as apparencias de uma benignidade inverossimil; porém o sentimento que a dicta [...] frequentemente em invectivas difficeis de disfarçar com essa moderação puramente litteraria. A intenção é sempre violenta e radical, como o são as composições com que os pintores e os esculptores italianos costumam, nas grandes exposições artísticas que se celebram annualmente nos pontos principaes da peninsula, expôr á curiosidade da multidão os episodios mais turvos da historia do papado, isto é, da instituição a que attribuem os amigos da actual dymnastia reinante todos os males que affligem Italia, moralmente considerada.
A necessidade de resistir a uma invasão eventual e ao mesmo tempo de suffocar com a força o inimigo que o ameaça internamente, concentra no exercito e na marinha os esforços, as esperanças e as sympathias geraes. O uniforme militar eis o objecto sagrado para o actual governo, e o idolo de quantos vivem assombrados pelo phantasma do contagio republicano, e pelas imaginarias conspirações do Vaticano. Quem entra n’este paiz não pode deixar de notar a formosura dos officiaes do exercito e o incrivel aceio do soldado, cujo aspecto rivalisa com o dos mais disciplinados da Allemanha. Não se vê uma farda velha, um signal de desconchavo, um vislumbre de indisciplina. Os castigos os mais severos são comminados contra aquelle que ousar infringir mesmo levemente as regras militares; e é necessario uma causa muito poderosa para levar o soldado a um acto contrario ao decoro patriotico. Os tres ou quatro factos de insubordinação que commoveram ultimamente a Italia inteira explicam-se pelas seducções do espirito, quer reaccionario, quer republicano, que circula de vez em quando entre as grandes corporações da peninsula, a não ser o facto do calabrez em Napoles, cujas causas occasionaes foram as repetidas imprudencias dos camaradas.
O militar em terra e os grandes couraçados no mar, eis as pedras angulares do actual edificio politico. Pelo menos assim os consideram os italianos, para os quaes não ha somno tranquillo diante da imagem da republica e da reacção.
Pedro Americo de Figueiredo.
Florença, 16 de julho de 1884.
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Cartas de um pintor, Gazeta de Noticias, n.260, ano X, terça-feira, 16 de setembro de 1884, p.1.
Cartas de um Pintor
Frequencias das exposições italianas. – Os napolitanos e em geral os habitantes do sul da Peninsula. – Os piemontezes e sua modestia perante os meridionaes, que elles consideram como os representantes da arte italiana.
A anciedade dos italianos para sahirem da inferioridade relativa perante as grandes nações limitrophes da Peninsula, manifesta-se principalmente nas exposições artisticas e industriaes, que se succedem de um a outro extremo do reino, com uma celeridade espantosa. Ainda não está encerrada uma grande exposição, que já outra se organisa em ponto diverso, e lisonjeia o amor proprio da nação, fecundado pelas rivalidades das diversas provincias, entre as quaes ainda reina certa hostilidade, apezar do patriotismo que as une nas occasiões difficeis e solemnes.
Turim, Roma, Napoles e Milão de continuo promovem e realizam d’essas esplendidas festas da intelligencia, cujo effeito moral é sempre grande e salutar, não só para os italianos como para os mais povos que a ella concorrem, quer com suas producções especiaes, quer com a observação e o estudo.
Devidas á iniciativa municipal, [...] affirmam eloquentemente a vitalidade do paiz e o amor ao progresso, quasi geral na Peninsula. Só o Siciliano e o Sardo resistem á tentação de exhibir, em exposições proprias, os productos de sua industria ou do solo patrio á consideração nacional e estrangeira; tambem porque nas duas grandes ilhas italianas o calor tolhe ao homem a energia das populações do norte. Deveremos accrescentar que quasi nenhuma industria existe em toda a região que fica ao sul de Napoles, cidade formosissima e situada sobre o terreno o mais fertil, talvez, que ha na Europa, porém habitada por uma gente que quando não está a dansar ou a cantar, com toda a certeza está dormindo.
Entretanto Napoles tem celebrado ultimamente diversas exposições grandiosas, em que a arte napolitana se tem mostrado digna emula da actual arte franceza, e se as grandes industrias nunca foram n’ellas representadas largamente, ao menos o foram as que se inspiram directamente das artes do desenho. Nada ha mais delicado, mais bem delineado do que os coraes de Santa Luzia, as lavas de Resina, e os vasos e as estatuasinhas de fòrma e gosto antigo que se encontram em mil pontos d’aquella grande cidade. Todos conhecem as massas napolitanas, inimitavel alimento de que vive quasi toda a população, que o tempera com o succo das fructas do mar, isto é de uma infinidade de molluscos polposos que habitam nas costas do golfo e nos rochedos das ilhas circumvisinhas. Essas massas e esses molluscos são vendidos nas praças publicas por um preço tão infimo, que não ha bolsa a que não seja accessivel.
Acostumado a comer e a dormir, o napolitano é naturalmente feliz, e por conseguinte preguiçoso e alegre, sem que por isso lhe falte a energia virtual para o trabalho. Falta-lhe apenas o habito d’este, porque as grandes necessidades lhe são desconhecidas; porém, se estas pesam-lhe, ainda que o seja excepcionalmente, ninguem mais do que esse ruidoso cantador e apregoador dá exemplo de uma prodigiosa actividade.
Nunca me hei de esquecer que um dos mais vastos e rasos campos de Napoles foi reduzido a um esplendido passeio ajardinado, com arvores e arbustos das formosas especies meridionaes, apenas no espaço de quinze dias!
Acerca da indole do povo, os viajantes em geral não concordam com a opinião de alguns escriptores illustres, como por exemplo, Michelet e Castellar, que consideram a plebe napolitana como a mais morigerada do mundo. É inutil dizer que para os europeus, sejam ou não instruidos, o modelo do mundo é a parte do globo na qual nasceram. A minha impressão não é boa, e nem póde sel-o quando, todas as vezes que desembarco em Napoles, não me bastam as mãos e os olhos para guardar as vestes e os saccos de viagem contra a avidez dos larapios que circulam impunemente. É-me indifferente a sua nobre origem grega, o seu innato sentimento da melodia e da fórma; a doçura virtual do seu caracter, desde que vejo essa plebe dar exemplos taes de moral degradação.
É verdade que o baixo povo de Londres não lhe é superior, e que afóra a falsa idéa que tem o napolitano da alheia propriedade, idéa que a leva ás vezes a commetter delictos em pleno dia, ainda se me afigura muito superior ao berlinez, sempre disposto ás agressões criminosas. Se entre nós o napolitano passa por um ente que leva de continuo a oscillar entre o macarrão e o realejo, é porque as populações do sul da Peninsula, em geral atrazadas em civilisação, que diariamente emigram para a nossa terra pelas affinidades da raça e do clima, dão-se em toda a parte por napolitanos, quando muitissimos d’esses colonos de pouca actividade e pouca consciencia nem sabem para que parte do globo demora Napoles.
Seja porém como fôr, o que é verdade é que a civilisação moderna tem custado a penetrar em toda a região que se estende entre aquella formosissima cidade e os reconcavos de [...] exceptuando a bella e grande Palermo, quasi desconhecida aos habitantes do continente, poderiamos dizer o mesmo da Sicilia, onde o ardor do sangue [...] raridade da população explicam até certo ponto as resistencias que encontra o governo na sua incessante obra de aperfeiçoamento social.
A meu ver, não é ahi que devemos buscar os braços que nos vão falhando, porém ao centro e ao norte d’este paiz, isto é, na Toscana, na Liguria, no Piemonte e na Lombardia. Podemos comparar a Italia a uma zona de terra comprehendida entre dois meridianos que atravessem a França e a Hespanha desde Perigneux até a Murcia. Ao norte encontram-se homens activos e despertos, praticos e promptos para o trabalo ao sul [...]. [...] temperamentos apaixonados, intelligencias inspiradas, caracteres violentos, e costumes gerados pela indolencia, filha primogenita dos climas torridos e ferteis. O numero dos officiaes superiores do exercito italiano é muito maior no Piemonte do que em todas as outras provincias do reino, ou, por outra, aquella região tem fornecido militares mais dignos da confiança do governo e do respeito do exercito. Homens fortes e disciplinados, soldados que não conhecem o ciume conjugal e a flacidez dos temperamentos amorosos, taes são os compatriotas do conde de [...], nas mãos dos quaes está hoje a ordem do exercito, e, por conseguinte, a independencia do Estado.
Em vez, porem, de se mostrarem por isso orgulhosos e arrogantes entre os mais provincianos, manifestam por toda a parte uma grande modestia, que lisonjeia o amor proprio dos meridionaes, a quem consideram herdeiros da gloria dos poetas, dos artistas e em geral dos illustres pensadores que, creando uma grande patria intellectual, tornaram necessaria e possivel uma grande patria politica. Giotto Miguel Angelo, Raphael, os Carraches e outros notaveis reformadores do gosto nacional durante os quatro seculos que nos precederam eram relativamente meridionaes, do mesmo modo que Galileu, Palestrina, Guido Aretino, Dante e Machiavello. Ainda hoje os principaes artistas italianos, a não serem os musicos, que escolheram Milão para perpetuo convenio e moradia, residem no centro da Italia, o que dá a essa região uma especie de privilégio moral sobre todas as outras. A Ristori mora em Roma, o Verdi quasi sempre em Genova, o Rossi e o Salviol na << gentil >> Florença, como a chamava Dante, e como ainda a appellidam os estrangeiros. Apenas um ou outro desertor d’esse centro, seduzido pela belleza do lago de Como, do golfo de Napoles ou das margens do mar Ligurico.
Onde quer que habitem, porém, são considerados quaes os representantes do pensamento esthetico, progenitor das maravilhas da arte e da [...] intellectual e moral que se chamou o Renascimento. Mais do que isto: são os benfeitores da patria, a qual sem a gloria do nome d’elles, e sem os magnificos monumentos sahidos do seu engenho, nunca passaria, talvez, de uma grande peça de retalhos, destinada a pertencer a muitos despotas poderosos, e cégos diante de uma simples expressão geographica.
Tudo tem a sua razão de ser. No pais em que o artista não tem signifcação além da que[...] ração e do talento ninguem o considera. Poderá fazer prodigios de intelligencia, dar insignes exemplos de [...] de coragem e de patriotismos nunca passará de um importuno cantador de indecifraveis rapsodias, no qual a sociedade só atirará uma esmola para que se cale ou passe a outra porta. Pelo contrario, entre os povos que lhe devem o passado, e que esperam d’elle novas glorias e novos beneficios, todos o consideram, o amam, e quando o emcontram nos logares publicos folgam de lhes poderem manifestar a admiração e o respeito de que são credores o talento e a sabedoria.
É o que acontece em Florença e em todas as cidades illustradas italianas, com o Rossi, com o Salvini, com a Virginia Marini, com o Giovanni Emmanuel, e em geral com qualquer artista cujo nome, ainda inferior aos dos verdadeiros creadores, se recommenda á attenção dos seus compatriotas.
Pedro Americo de Figueiredo
Turim, 24 de julho de 1884.