As Exposições Gerais de Belas Artes como Propagadoras da Relação Ensino-Aprendizagem: Os Casos de Francisco Antonio Nery e Jean Palliére Ferreira na Exposição de 1859.*

Reginaldo da Rocha Leite

LEITE, Reginaldo da Rocha. As Exposições Gerais de Belas Artes como Propagadoras da Relação Ensino-Aprendizagem: Os Casos de Francisco Antonio Nery e Jean Palliére Ferreira na Exposição de 1859. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 4, out. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/copias_exposicoes.htm>.

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                     1.            O sistema brasileiro de ensino acadêmico teve uma dupla importância durante o século XIX no tocante à assimilação da tradição europeia. Proporcionou a ida de alunos à Europa com o Prêmio de Primeira Ordem[1] visando o contato direto com a tradição pictórica internacional e, também, motivou a aproximação dos alunos e do público em geral às cópias produzidas a partir dos originais dos mestres europeus pela organização das Exposições Gerais de Belas Artes.

                     2.            Criadas pelo então diretor da Academia Imperial Félix-Èmile Taunay em 31 de março de 1840, as Exposições Gerais de Belas Artes foram responsáveis pela divulgação do material enviado pelos pensionistas brasileiros, da Europa ao Brasil, tornando pública a metodologia do ensino empregada na instituição. Durante o Império foram realizadas vinte e seis exposições, entre os anos 1840 e 1884, financiadas pelo Estado nas quais, além de expor, os artistas concorriam à concessão de medalhas e tinham também a possibilidade de terem as suas obras adquiridas pelo governo no intuito de enriquecer a Pinacoteca da Academia com obras nacionais.

                     3.            Examinando a constância do Prêmio de Segunda Ordem,[2] verificamos que durante o período por nós estudado (1855-1890) a Academia organizou exatamente seis exposições com cópias de pinturas compondo parte do acervo (1859, 1862, 1872, 1879 e 1884). O material exposto abrangia obras de acervos distintos e também envios de pensionistas compreendendo uma significativa variedade de temas como: o retrato, as paisagens nacional e europeia, as cenas de gênero e religiosas, a mitologia greco-romana, alegorias e acontecimentos da história brasileira.

                     4.            Com a implantação da Reforma Pedreira em 1855 [cf. link], por Porto-alegre, ficou regulamentado que no fim de cada ano uma exposição com os trabalhos dos alunos seria organizada e, que numa periodicidade de dois em dois anos haveria uma Exposição Geral aberta a artistas nacionais e estrangeiros. No âmbito das Exposições Gerais não havia espaço somente para as cópias dos originais europeus, mas também para as cópias feitas a partir de telas nacionais. Era bastante comum os alunos da AIBA produzirem cópias das pinturas localizadas na Pinacoteca assinadas por ex-alunos da instituição e que haviam sido classificadas previamente pelos professores como obras de boa qualidade.[3]  Na exposição de 1884, por exemplo, os dois trabalhos assinados por Oscar Pereira da Silva eram cópias de pintores brasileiros; A Batalha do Avaí de Pedro Américo de Figueiredo e Melo e Descanso do Modelo de José Ferraz de Almeida Junior.

                     5.            Localizamos no arquivo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ alguns pedidos dirigidos à direção da Academia referentes ao desenvolvimento de cópias do acervo de pintura da instituição.  No entanto, no fim dos anos 1880, a Academia resolveu restringir o número de cópias a serem produzidas. Um dos motivos alegados aos alunos e aos professores, pela direção, foi o constante hábito de sujar-se o assoalho da Pinacoteca durante a produção das cópias. Contudo, a Academia consentia o empréstimo de obras pertencentes ao seu acervo aos alunos para que pudessem realizar em suas residências as cópias desejadas.

                     6.            Numa seleção quantitativa, a exposição de 1859 foi a mais significativa em relação à divulgação de cópias pictóricas. Constavam nesse ano a cópia do artista Gaspar Dughet pintada em Roma por Agostinho José da Motta, a representação de Salomé com a cabeça de São João Batista [Figura 1] do pensionista Francisco Antonio Nery, a cópia de Rafael A Virgem de Foligno [Figura 2] feita por Jean Leon Palliére Grandjean Ferreira e duas reproduções produzidas pelo aluno Victor Meirelles de Lima O Amor Sacro de Tiziano e Tarquínio e Lucrecia de Guido Cagnacci. No entanto, na exposição seguinte em 1860 apenas duas cópias foram expostas, um desenho confeccionado pelo aluno da Academia João Zeferino da Costa a partir do original de Agostinho José da Motta e a tela Esperança de Guido Reni produzida por Victor Meirelles de Lima.  Em 1864 somente foram expostas duas cópias pintadas por Pedro Américo Rapto de Djanira pelo centauro Nessus de Guido Reni e Balsa da Medusa de Géricault.  Em 1872 Zeferino da Costa foi o único pintor a expor cópias, Amor Sacro de Tiziano, Madona em coro, Flora de Mancini e Retrato de Virginia de Charles Lebrun.  Em 1876 duas cópias não identificadas figuraram no Salão, Comunhão de São Jerônimo de Domenichino, tela oferecida à AIBA por Frederico Gustavo de Oliveira Roxo e Salomé com a cabeça de São João Batista de João Batista Salvi, dito Salsoferrato, adquirida pelo governo. A última Exposição Geral do período monárquico foi realizada em 1884 e por conseguinte, responsável pela divulgação das cópias dos pintores Oscar Pereira da Silva e Rodolpho Amoêdo. Do primeiro as já citadas A Batalha do Avaí e o Descanso do Modelo.  Do segundo, envios de Paris, São Paulo o eremita de Ribera e Tronco Masculino de Pagnest.

                     7.            A temática religiosa sempre esteve presente nas Exposições Gerais sendo um dos gêneros de pintura mais representados quantitativamente.  No entanto, em 1894 o crítico de arte Oscar Guanabarino escreve sobre a Exposição Geral daquele ano deixando transparente o descontentamento com pinturas históricas que tratavam de temas estrangeiros, entre elas as telas de assuntos religiosos.

                     8.                                                  A pintura progride, como nenhuma das outras artes, no domínio da República; e basta comparar a atual exposição com a melhor que conseguiu o antigo império em 1884, quando a academia tinha conselheiros e comendadores, a dirigi-la, para vermos o quanto temos caminhado. A pintura histórica, tão recomendada e exigida, apresentava sempre fatos históricos, que nenhuma relação tinha com a nossa vida. Pedro Américo, professor de arqueologia, caindo em constantes erros dessa matéria, dava-nos Joana d’Arc, Moisés, Judith, Heloísa e Abelardo, Voltaire, e tantos outros quadros de assunto estrangeiro, quando a nossa história ainda estava, como está, por explorar; e como esse pintor era quem dava a nota naquela época, todos os outros seguram-lhe nas águas e lá vinham as coleções bíblicas, em que S. Jerônimo não falhava.[4]

                     9.            Todavia, a regularidade proposta na sua gênese por Taunay não foi concretizada.  Houve um intervalo entre as montagens de 1852 e de 1859 de sete anos. Essa não foi a única interrupção, outras ocorreram por ausência de fomento causando a irregularidade do evento. Portanto, mesmo com as interrupções ocorridas, as Exposições Gerais de Belas Artes, além de fazerem da pintura linguagem artística predominante tornaram-se o campo de consagração do pintor nacional pela divulgação pública das obras expostas, entre elas as cópias das pinturas europeias. Contudo, as cópias enviadas à Academia Imperial pelos pensionistas explicitavam um traço relevante no processo de ensino-aprendizagem para o aluno, a assimilação das tipologias.  Fecharemos nossa abordagem em dois estudos de caso: Francisco Antonio Nery e Jean Leon Palliére Grandjean Ferreira, ambos, alunos da AIBA e que expuseram suas cópias de temática religiosa na Exposição Geral de 1859.

Francisco Antonio Nery: Salomé com a cabeça de São João Batista

                  10.            Na visão do corpo docente da Academia Imperial das Belas Artes o aluno brasileiro precisava ter contato com as tipologias consolidadas pela tradição pictórica europeia tendo como ponto de referência, principalmente, as obras de Tiziano e Rafael.  A observação e cópia das composições dos dois artistas italianos tornaram-se exercício obrigatório não só para os brasileiros que desejavam obter uma exímia formação artística em território nacional como também para os pensionistas que buscavam o aprimoramento de seus estudos em solo internacional.  Podemos citar a título de exemplificação as cópias enviadas à Academia brasileira pelos pensionistas Francisco Antônio Nery e Jean Leon Pallière Ferreira, respectivamente: Salomé com a cabeça de São João Batista e A Virgem de Foligno.

                  11.            Ao analisar um quadro do pintor veneziano Francesco Maffei (c.1605-1660) que traz como legenda Salomé com a cabeça de São João Batista, Erwin Panofsky levanta uma questão fundamental ao entendimento do processo de aprendizado do aluno a partir das tipologias pictóricas.[5]  Segundo o teórico, o artista ao iniciar a confecção de um quadro necessita ter o embasamento oferecido pelo campo semântico e, além disso, verificar como a tradição pictórica dos grandes mestres materializou aquele devido assunto.  Sendo assim, Maffei ao pintar uma cena bíblica não especifica claramente pela representação imagética qual é a personagem a ser representada. Mas é importante que se diga que o quadro possui um título, Salomé com a cabeça de São João Batista.[6]  Academicamente esse seria um grave descuido do artista, ou mesmo uma solução incoerente, ao unificar dois textos bíblicos distintos pelos atributos das personagens.[7]  Por isso Panofsky atenta para o mergulho do pintor no campo tipológico levando em conta não só o documento escrito, mas fundamentalmente, os tipos ideais de representação para cada invenção artística.  Esse detalhe era exaustivamente abordado na Academia Imperial das Belas Artes durante a confecção das cópias pictóricas.

                  12.            Francisco Antônio Nery ao produzir uma cópia de Salomé com a cabeça de São João Batista , de Tiziano [Figura 3], durante o seu pensionato em Roma, não está somente reproduzindo uma tela para atender uma das obrigatoriedades do Prêmio de Viagem.  Além de assimilar as configurações propostas pela Escola Veneziana também está alimentando o seu repertório temático absorvendo, assim, tipos de representação.  Ao observarmos a cópia de Tiziano pintada por Nery e localizada no Museu D. João VI/EBA/UFRJ, o objetivo desse exercício didático torna-se bastante claro.  Sabemos que os docentes da AIBA tinham Tiziano como o mais importante representante da Escola Veneziana por seu trabalho cromático.  Portanto copiar a Salomé com a cabeça de São João Batista significava mergulhar num manancial de conhecimentos que a tradição consagrou.  O pintor italiano explora com maestria a profusão de cores na cena bíblica no contraste entre o vermelho e o verde tradicionalmente utilizado em obras de Giorgione.  Salomé inclina a cabeça para o lado esquerdo da tela aproximando-se da sua criada.  O olhar da serva forma uma diagonal ao encontrar com o rosto de Salomé que direciona o seu olhar para fora da composição ao ultrapassar a cabeça do Batista.  O choque entre luz e sombra é bastante intenso, pois hipervaloriza as figuras que se destacam do fundo.  Salomé encontra-se extremamente iluminada configurando uma instável composição ao evidenciar uma enorme diagonal.  O arco pleno localizado ao fundo funciona não só como equilíbrio entre zonas de sombra e luz, mas transparece o escapismo da cena ao representar a transcendência espiritual de João ao universo celestial.

                  13.            Não era qualquer artista que os pensionistas da Academia copiavam, apenas os indicados pelo corpo docente. Assim, a seleção das obras e autores a serem reproduzidos representava uma séria preocupação para a instituição, pois deveriam ser exímios exemplares para os estudos, a fim de não permitir que o aluno copiasse uma obra com incoerências tipológicas ou retóricas.

Jean Leon Palliére Grandjean Ferreira: A Virgem de Foligno

                  14.            Se os venezianos contribuíam com suas composições magistralmente confeccionadas cromaticamente com o ensino acadêmico brasileiro, Rafael mostrava-se como a principal fonte para o aprendizado estrutural no que concerne à organização de uma composição na relação entre a história das configurações e a história dos tipos. Tal situação pode ser visualizada na cópia A Virgem de Foligno executada pelo pensionista Jean Leon Pallière Ferreira.

                  15.            Originalmente, a Virgem de Foligno de Rafael [Figura 4] foi pintada,

                  16.                                                  [...] para o altar principal da igreja franciscana de Sta. Maria em Aracoeli, no Capitólio romano, construída sobre o local onde (de acordo com a Mirabilia Urbis Romae medieval) o imperador Augusto teve uma visão no céu, e em que uma Virgem com o Menino, de uma beleza esmagadora, apareceu, por entre um disco luminoso dourado, sobre um altar.[8]

                  17.            As figuras representadas na zona terrena retomam o topo arredondado do quadro, completam o círculo e simultaneamente projetam-no, através do seu posicionamento escalonado no primeiro plano, para a terceira dimensão. A forma circular repete-se novamente na auréola que envolve Maria e no arco-íris sobre a paisagem.  A estrutura da composição proposta por Rafael serviu de referência para artistas de diferentes nacionalidades e épocas [Figura 5], consolidando dessa maneira, a assimilação das tipologias ideais para a materialização do tema em discussão, ou mesmo como alicerce para composições com outras vertentes da iconografia mariana.

                  18.            No caso do aluno da AIBA, Pallière, a cópia enviada à instituição brasileira compreendia somente um fragmento da tela original.  E então nos questionamos: por que apenas a área superior do quadro foi reproduzida pelo pensionista?  Tudo nos leva a crer que a resolução de Rafael ao criar elementos curvos que se repetem seja tão harmônica que possivelmente tenha encantado os docentes e o próprio Pallière. A nossa hipótese toma vulto ao visualizarmos que vários artistas extraíram essa mesma resolução de Rafael e transladaram-na para o universo das suas criações.  O que nos é bastante transparente é que a configuração criada por Rafael para atender às exigências temáticas da tela Virgem de Foligno consolidam a necessidade de o pintor inventar tendo a tipologia como eixo criativo. Com isso, a noção estilística não representava na Academia Imperial das Belas Artes um referencial, ao contrário da tipologia que manteve-se durante todo o oitocentos como pilar da construção e da formação artísticas. Portanto, as Exposições Gerais de Belas Artes além de tornarem público o trabalho dos alunos da Academia, também difundiam a metodologia utilizada pela instituição como eixo da formação do pintor oitocentista no Brasil, a tipologia a partir da produção de cópias dos grandes mestres consolidados pela tradição.


[1] O Prêmio de Viagem à Europa era também denominado Prêmio de Primeira Ordem.

[2] As Exposições Gerais de Belas Artes eram também conhecidas como Prêmio de Segunda Ordem.

[3] No documento 3679 - 15 de junho de 1875 - localizado no Arquivo do Museu d. João VI/EBA/UFRJ, consta a minuta de cópia de aviso autorizando a reprodução do quadro de propriedade da Academia A Primeira Missa no Brasil durante quatro anos, pelo sistema cromolitográfico ou oleográfico e obrigando o autor da cópia a ceder, como proposto ao Governo Imperial as primeiras matrizes de vidro miniaturizadas para serem recolhidas ao Museu Nacional e a fornecer seis exemplares da reprodução sendo três para a Academia e três para a Biblioteca Pública.

[4] GUANABARINO, Oscar. Jornal do Commercio, 01/10/1894, p.02.

[5]Uma publicação recente reproduz um quadro do pintor barroco veneziano Francesco Maffei, quadro que deve representar, de acordo com a legenda, Salomé com a cabeça de São João Batista. Essa designação é compreensível na medida em que a cabeça masculina decapitada, inteiramente de acordo com o descrito no Evangelho de São Mateus, se encontra sobre uma bandeja; mas é surpreendente e estranho o fato de que a ‘Salomé’ tenha na mão uma espada, a qual (pois sem dúvida não executou a decapitação com suas próprias mãos) ela teria de ter subtraído ao carrasco. Essa espada gera a suspeita  de que não se trata de uma Salomé, mas sim de uma Judite, para a qual a espada, enquanto signo do seu ato de libertação, possui de certo modo um significado mais essencial; contudo, tal suposição se choca com o motivo da bandeja, pois no tocante a Judite diz-se expressamente que ela ‘deu a cabeça de Holofernes a sua criada e ordenou que a enfiasse em um saco’.”. PANOFSKY, Erwin. Sobre o problema da descrição e interpretação do conteúdo de obras das artes plásticas. In: LICHTENSTEIN,Jacqueline (org.). A Pintura/textos essenciais, vol.8, São Paulo: Editora 34, 2005, p.96.

[6]Naquele mesmo tempo, Herodes, o governante distrital, ouviu relatos sobre Jesus e disse aos seus servos: ‘Este é João Batista. Ele foi levantado dentre os mortos, e é por isso que operam nele obras poderosas.”. Pois Herodes havia mandado prender a João, amarrando-o e lançando-o na prisão, por causa de Herodias, esposa de Filipe, seu irmão. Porque João lhe estivera dizendo. ‘Não te é lícito tê-la’. No entanto, embora quisesse matá-lo, temia a multidão, pois consideravam-no o profeta. Mas, quando se celebrava o aniversário natalício de Herodes, dançou nesta ocasião a filha de Herodias [Salomé], e ela agradou tanto a Herodes, que ele prometeu com juramento dar-lhe tudo o que pedisse. Ela disse então, sob as instigações de sua mão: ‘Dá-me aqui numa travessa a cabeça de João Batista’. O rei, embora contristado, em respeito pelos seus juramentos e pelos que se recostavam com ele, ordenou que lhe fosse entregue; e mandou e fez que João fosse decapitado na prisão. E a cabeça dele foi trazida numa travessa e entregue à donzela, e ela a levou à sua mãe. Por fim, vindo os discípulos dele, removeram o seu cadáver e o enterraram; e vieram relatá-lo a Jesus. Ouvindo isso, Jesus retirou-se dali de barco para um lugar solitário, para isolamento; mas as multidões, chegando a ouvir isso, seguiram-no a pé, vindo das cidades.. Mateus 14:3-13. Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, São Paulo: Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 1984.

[7]Por conseguinte, encontramo-nos aqui diante um fato singular onde se apresentam duas passagens bíblicas inteiramente diferentes para uma única e mesma imagem e para a qual são apropriadas e inapropriadas tanto uma passagem quanto a outra (pois com ‘Salomé’ concorda a bandeja, mas não a espada - com ‘Judite’ concorda a espada, mas não a bandeja); e sem outros indícios simplesmente não é possível encontrar uma solução. A importância da história dos tipos é esclarecedora aqui: ela não conhece nenhum caso em que seria permitido a uma Salomé apropriar-se da espada da heroína Judite, ao passo que, inversamente, e justamente no âmbito da arte italiana, pode identificar um número relativamente grande de casos (na via daquela ‘formação por analogia’, que desempenhou na arte antiga um papel muito mais essencial do que o tipo de invenção recente, que cria imediatamente a partir da fonte literária) onde ocorreu uma transposição da ‘bandeja de João Batista’ para a representação de Judite (exemplos de tais imagens de Judite, confirmadas pela presença de uma criada, são as pintures de Romanino e de Bernardo Strozzi do Kaiser-Friedrich-Museum de Berlim). A história dos tipos - e apenas ela - nos dá o direito e a possibilidade de dizer que também no caso do quadro de Maffei trata-se de uma ‘Judite com a cabeça de Holofernes’; e sob esse aspecto descobrimos posteriormente também que a cabeça decapitada, considerada em si mesma, apesar de estar sobre uma ‘bandeja de João Batista’, todavia corresponde segundo a sua aparência fisionômica, muito menos ao tipo do ‘Batista’ do que ao tipo não menos tradicional do ‘tirano’.  O caso em si e por si tão facilmente solucionado (que deixa transparecer com bela clareza o significado da ‘formação por analogia’, independente do texto literário) mostra, por um lado, que mesmo na interpretação de cenas cujas fontes históricas não pertencem àquelas que precisam ser ‘novamente desenterradas’, mas ainda estão vivas na consciência da época, pode haver problemas consideráveis se não for levada em consideração a história dos tipos; por outro lado, contudo, note-se o quanto é essencial o elemento ‘iconográfico’ mesmo para a compreensão de valores puramente estéticos. Pois quem compreende o quadro de Maffei como a imagem de uma jovem voluptuosa com a cabeça de um santo terá de julga-la, também por razões puramente estéticas, de um modo muito diferente de quem enxergar aí uma heroína abençoada por Deus com a cabeça de um criminoso. PANOFSKY, Erwin. Sobre o problema da descrição e interpretação do conteúdo de obras das artes plásticas”. In: LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A Pintura/textos essenciais, vol. 08, São Paulo: Editora 34, 2005, pp. 96-98.

[8][...] e esta visão que Rafael retrata, mas de novo na forma de uma Virgem entronizada (isto é, fisicamente presente) com os santos. A pintura foi provavelmente encomendada pelo doador Sigismondo de’Conti, secretário do Papa Júlio II e prefeito da Guilda de São Pedro. Morreu em fevereiro de 1512, aos 80 anos de idade, ainda a pintura de Rafael não estava completada, tendo sido sepultado no coro da igreja. A coexistência, numa composição, do divino com figuras terrenas, é um problema que Rafael domina aqui com os meios de uma pintura realista que alarga a todos os componentes que a constituem, tal como já havia tentado nos frescos da Stanze do Vaticano. A Virgem aparece no céu, mas a atmosfera à sua volta, composta por putti angélicos no topo, é baixa como uma real e verdadeira nuvem de tempestade. A própria Virgem tem as mesmas dimensões e está tão presente como os homens em baixo: São João, o pregador sombrio no campo; São Francisco de Assis, que olha para cima em adoração ao Cristo Menino enquanto lhe mostra a cruz; e São Jerônimo recomendando o doador a Virgem.”. THOENES, Christof. Rafael, Köln: Taschen, pp.60-63.