Os Salões Caricaturais de Angelo Agostini [1]
Rosangela de Jesus Silva [2]
SILVA, Rosangela de Jesus. Os Salões Caricaturais de Angelo Agostini. 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 1, mai. 2006. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/criticas/txtcriticas_rosangela.htm>
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Figura intrigante, crítica, política e ativa, Agostini marcou com seu traço a história brasileira. Nos periódicos pelos quais passou, ficou seu caráter militante, sua ironia e comicidade estampados nos seus comentários. Suas críticas provocaram inquietações e descontentamentos para os quais a imprensa serviu de tribuna de discussões.
Monteiro Lobato comparou a obra de Agostini à importância de documentação histórica que tiveram os trabalhos de Debret e Rugendas. Para Lobato “[...] em nada se estampa melhor a alma de uma nação do que na obra de seus caricaturistas. Parece que o modo de pensar coletivo tem seu resumo nessa forma de riso”[3].
Ao pensarmos em crítica de arte no Brasil, no século XIX, logo surge o nome de Gonzaga Duque Estrada, autor de uma crítica refinada, feita numa linguagem erudita. Segundo Tadeu Chiarelli[4], na introdução de A Arte Brasileira, o trabalho deste crítico caminhava na direção de tornar o debate artístico brasileiro tão sofisticado quanto o debate literário, cuja reflexão estava num patamar muito mais maduro que o referente às artes plásticas.
Porém gostaríamos de colocar aqui um outro nome, cuja importância no panorama da crítica de arte também deve ter sua relevância destacada, pois Angelo Agostini não foi apenas caricaturista, um homem da imprensa ou pintor, mas também um crítico bastante atuante.
A crítica de Agostini[5], que também considerava aspectos estéticos e formais, demonstrou uma preocupação política e militante muito forte. Além disso, seu trabalho alcançou uma importante repercussão popular. É muito provável que existisse uma intenção de repercutir da forma mais ampla possível, portanto, uma linguagem menos sofisticada ou mais popular como a caricatura poderia garantir um diálogo mais abrangente.
Agostini tinha presente a questão política em suas reflexões porque, entre outros aspectos, sabia que as artes estavam atreladas à política imperial.
No âmbito artístico, uma constante nas reflexões de Agostini foi o ensino das Belas Artes. Para o crítico, o grande centro irradiador, representado pela Academia de Belas Artes, sofria de grandes deficiências como, por exemplo, o despreparo dos professores. Esses não seriam suficientemente competentes para este ofício, pois não dominariam as técnicas que deveriam ensinar, e seus métodos só fariam esterilizar a criatividade dos alunos. A falta de modelos representativos da história da arte para estudo dos alunos era outro problema, pois na corte não haveria ambientes adequados para o desenvolvimento de uma aprendizagem, como bons museus para incutir na população o gosto pelas artes e dar aos estudantes modelos enriquecedores. Havia ainda, segundo a avaliação de Agostini, a submissão a uma estética patrocinada pelo governo imperial e, portanto, limitada à produção oficial. Além dessas questões, Agostini sentia falta de espaços de exposição tanto para mostrar a produção nacional quanto para que os artistas pudessem tomar contato com as obras de grandes artistas estrangeiros.
A crítica que se produzia também foi alvo das reflexões do artista, como podemos observar no seguinte comentário publicado na Revista Illustrada:
Mesmo em paizes adiantadíssimos os críticos de arte são raros. Entre nós, porém, é quase tentar o impossível, pois em uma sociedade torturada como a nossa, por problemas cruéis, a attenção pública não está ainda desassombrada para cuidar d’esses assumptos. E a crítica é destinada a corresponder ou a elucidar uma preocupação geral, por este ou aquelle assumpto[6].
Para realizar sua crítica Agostini utilizou-se não apenas dos recursos textuais, mas também dos desenhos. Quando observamos as caricaturas de Agostini, percebemos o quanto a preocupação com o desenho está presente em seu trabalho. O seu traço não apresenta como principal característica a deformação da figura. Suas representações atuam mais como retratos que indicam com clareza de quem se trata e o que se quer mostrar. Além do desenho, as caricaturas vinham sempre acompanhadas de pequenas legendas salpicadas de comentários por vezes divertidos, irônicos ou mesmo bastante ácidos.
De acordo com um dos maiores estudos sobre os caricaturistas brasileiros feitos por Herman Lima, até o aparecimento de Angelo Agostini:
[...] ou melhor até o aparecimento da Revista Illustrada, a caricatura no Brasil, quando não fosse uma simples expansão de incipientes garatujas da província ou da corte, alguns de incontável talento e verve era ainda legitimamente européia, ou falando com mais rigor, legitimamente francesa[7].
Lima confere a Agostini um caráter de inovação do trabalho caricatural. O traço de Angelo Agostini foi marcante e fundamental para a formação de muitos outros artistas nesse campo. Acreditamos que só com a chegada de Bordalo Pinheiro[8] ao Brasil, é que o estilo de Agostini enfrentou alguma concorrência.
Os desenhos de Agostini dedicados às Belas Artes eram tratados de diferentes formas. Uma delas foi a litografia da obra com o intuito de mostrá-lo ao público da revista, como fez, por exemplo com algumas obras do escultor Rodolpho Bernardelli, nas quais exaltava a qualidade do trabalho do artista, representado em detalhes e com perfeição. Vale lembrar que a Revista Illustrada, obra de grande vulto realizada por Agostini, circulava fora da capital, atingindo um público que não tinha um contato efetivo com o ambiente artístico da corte. Dessa forma, Agostini levava a este público seu parecer sobre as obras por ele escolhidas.
Assim como as obras, também foram divulgados retratos de vários artistas, sendo que, em alguns deles, o interesse do crítico pelo artista em questão é facilmente identificado pelo tratamento dado ao mesmo.
Algo que também marcou sua produção, a partir de 1872, são os comentários ilustrados sobre as Exposições de Belas Artes. Caricaturas nas quais Agostini ressaltava aspectos que, segundo sua interpretação, foram deformados ou mal estruturados pelo artista, seus “Salões Caricaturais”. Nesses salões também divulga algumas obras que considera de qualidade, porém com um espaço menor do que aquele dedicado a um artista, quando o trabalho deste estava em foco. Esses desenhos, em sua maioria, apelavam para o cômico e eram seguidos de comentários freqüentemente bastante irônicos.
O salão caricatural foi um gênero artístico amplamente desenvolvido na França, ou melhor, uma particularidade parisiense, cujas origens estão no século XVIII. Naquele momento algumas publicações utilizaram ironia e humor em detrimento da crítica séria, para comentar as obras expostas nos salões oficiais parisienses.
Esses salões foram publicados nas páginas dos periódicos da época ou em álbuns avulsos. A partir da década de 40 do século XIX começaram a ganhar força. “D’une maniere générale, dans na plupart des journaux à caricatures ou tout simplement à images, le salon, textuel ou imagé, est encadré, pris entre l’autres épisodes de la vie sociale et culturel"[9].
Assim é possível observar que estes salões são plenos de referência àquela sociedade e seus debates. As idéias circulavam com as imagens. Para um observador do nosso tempo algumas dessas nuances podem passar despercebidas, já que é difícil ter acesso a todos os códigos de uma determinada sociedade em um determinado tempo e espaço, mas certamente um material bastante rico de informações.
Os salões caricaturais contribuíram para um sentido de popularização das obras, já que a memorização de uma charge poderia ser mais fácil do que a de uma obra, inclusive por sua forma de apresentação. Da mesma forma, o caricaturista também pode interpretar o sentido da apreciação popular em torno das obras, pois tinha a oportunidade de ver as obras na exposição e de ouvir os comentários sobre as mesmas antes de desenhá-las.
Angelo Agostini também criou seus próprios “salões caricaturais”[10]. Algumas características como o humor, o formato – desenho e legenda –, o caráter popular, se aproximam do gênero francês. Todavia, Agostini tem suas particularidades. A identificação do artista e da obra, algo nem sempre comum na França, é freqüente na sua produção, ou melhor, sua marca. Seus comentários tinham que ser diretamente endereçados, afinal o crítico estava dialogando, ou ainda criticando seu grande alvo: a instituição oficial e sua produção. Seu traço caricatural também não tinha a agilidade e simplificação do traço observado em alguns artistas franceses.
O primeiro “salão” organizado por Agostini foi em 1872 n’O Mosquito. Seus comentários ilustrados foram publicados em três números consecutivos da revista. O primeiro utilizou duas páginas centrais da revista, a qual era composta de oito páginas, sendo quatro de ilustração num formato muito parecido com o que teve mais tarde a Revista Illustrada. Os outros dois números tiveram apenas uma página de ilustrações cada um, sendo esta a última página do periódico.
A XXIII Exposição Geral de Belas Artes de 1875 contou com a participação de quarenta e oito artistas. Dentre estes Agostini comentou as obras de dezoito. Agora em uma única página d’O Mosquito, no número 289.
A exposição geral de 1879 foi um marco importante para a ampliação das discussões em torno das artes no Brasil. Teve um grande espaço na imprensa, e como não podia deixar de ser, também recebeu um tratamento especial da Revista Illustrada.
A exposição contou com cento e dezessete artistas dos quais cinqüenta e quatro receberam menção de Agostini, às vezes em mais de uma obra. Tiveram destaque artistas que compunham a chamada “escola brazileira”, entre os quais figurariam Agostinho José da Mota, Félix Émile Taunay, Jean Leon Palliére G. de Ferreira, Manuel de Araújo Porto Alegre, Victor Meirelles, entre outros [Figura 1].
A última exposição geral ilustrada por Angelo Agostini foi a de 1884, recebida e saudada com entusiasmo pela Revista Illustrada. No número 388 o periódico destaca na primeira página a exposição com uma ilustração e um viva a pintura.
A exposição contou com a participação de oitenta e cinco artistas. Agostini comentou trabalho de quarenta desses expositores.
Para essa exposição Angelo Agostini organizou seu comentário ilustrado das obras através de seis salões localizados nas páginas centrais da revista, ou seja, doze páginas, duas por número. Todavia tratadas como uma única prancha [Figura 2 e Figura 3].
Dentre algumas dessas imagens podemos observar representações bastante curiosas, como retratos executados por Antônio Araújo de Souza Lobo. O leitor da revista só podia visualizar a parte posterior do quadro, onde se vê a estrutura de sustentação do quadro. E isso, porque o caricaturista não considerava as obras dignas de serem apresentadas ao público, tamanha poderia ser a vergonha e embaraço que causaria aos retratados e conseqüentemente ao artista. Certamente uma grande afronta ao artista cujo valor enquanto retratista foi totalmente questionado.
Uma outra figura que jamais recebeu a simpatia de Agostini foi Victor Meirelles de Lima. Foi alvo de diversos comentários irônicos por parte do crítico em várias oportunidades, e nos salões caricaturais não poderia ter sido diferente. Meirelles teve um tratamento bastante diferenciado, inusitado e único no tratamento dado ao seu Combate Naval do Riachuelo, pelos salões de Angelo Agostini.
O quadro foi apresentado em quatro fragmentos, distribuídos por quatro números da Revista Illustrada. O quadro foi cortado na horizontal e mostrado a partir da sua base até a parte superior, sendo que o último fragmento apresentado trouxe um comentário sobre a beleza do moldura.
A visualização do quadro foi totalmente comprometida. Sua apresentação dispensou inclusive as ácidas legendas, recurso muito utilizado pelo crítico. Esta foi a única obra apresentada dessa forma encontrada nos salões de Agostini. Como Victor Meirelles foi sempre o anti-exemplo para o crítico, esse recurso para mostrar uma de suas grande telas deve ter sido a estratégia de Agostini para dizer de maneira irônica que pela grandeza do quadro, este teve que ser fragmentado, para dessa forma ser colocado nas páginas da revista. Todavia, a obra quase desapareceu no meio das outras, perdeu sua grandiosidade e diminuiu a presença do artista na leitura da exposição. Além disso, a obra figura entre duas telas de Pedro Américo (Heloísa e Jacobed), a primeira tela bastante elogiada pelo crítico. Embora Américo também fosse um pintor oficial da Academia, Agostini lhe demonstrava alguma simpatia. Na questão de 1879, tomou partido pelo artista que segundo o crítico mostrava movimento e realismo em sua tela. Além disso, Pedro Américo teve muitas obras retratadas nos salões, algumas bastante elogiadas como é o caso da tela acima citada.
Somente com uma estratégia de desenho e apresentação do quadro, Angelo Agostini demonstrou seu pouco interesse pelo grande pintor de história da Academia, reservando a este um lugar muito pequeno na sua galeria.
As possibilidades de leituras e informações nos salões caricaturais de Angelo Agostini são inúmeras. Tentou-se esboçar aqui uma pequena apresentação, mas com o objetivo de despertar interesse por este material rico de informações e reflexões críticas a respeito da produção artística da segunda metade do século XIX.
Referências Bibliográficas
ARGAN, Giulio Carlo. Arte e crítica de arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1988.
CAGNIN, Antonio Luis. Angelo Agostini: imagens do Brasil Império – caricaturas e quadrinhos. Haia, 1996.
CHABANNE, Thierry (Org.). Les salons caricaturaux. Paris: Edición de la Reunión des Musées Nationals, 1990. Les Dossiers du Musée D’Orsay.
CHADEFAUX, Marie-Claude. Le Salon caricatural de 1846 et les autres salons caricaturaux, La Gazette des Beaux-Arts, março, 1968. p.161-176.
CHIARELLI, Tadeu. Gonzaga-Duque: a moldura e o quadro da arte brasileira. DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. A arte Brasileira. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995.
LIMA, Herman. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963.
LOBATO, Monteiro. Idéias de Jeca Tatu. Ed. Brasiliense Limitada: São Paulo, 1946.
RIBEIRO, Marcus Tadeu Daniel. Revista Ilustrada (1876-1898), síntese de uma época. 1988. Tese (Mestrado) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ, Rio de Janeiro.
MIGLIACCIO, Luciano. O século XIX. In: MOSTRA DO REDESCOBRIMENTO: BRASIL 500 ANOS É MAIS, 2000, São Paulo. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais; Fundação Bienal de São Paulo.
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[1] Trabalho apresentado no Seminário “Crítica da Crítica”. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da USP. Realização: Associação Brasileira de Críticos de Arte, agosto 2005.
[2] Doutoranda em História da arte pela Unicamp. E-mail: rosangelad@gmail.com. Texto apresentado no Seminário nacional “Critica da Crítica”, organizado pela ABCA em 2005.
[3] LOBATO, Monteiro. Idéias de Jeca Tatu. Ed. São Paulo: Brasiliense Limitada, 1946.
[4] ESTRADA, Luis Gonzaga Duque. A Arte Brasileira: Pintura e Escultura. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
[5] Os artigos de crítica publicados na Revista Illustrada não apresentam autoria definida, são assinados por pseudônimos. Sabe-se, através de outros estudos que alguns desses artigos não foram escritos por Angelo Agositni. Porém, sendo o crítico proprietário da revista e atuante na publicação da mesma, consideramos que todos os artigos refletem a opinião do crítico, ou ao menos, tem o consentimento de Agostini. Além disso não foi observada nenhuma discrepância de opinião entre eles.
[6] Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 1886, ano XI, n.407. p.7
[7] LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1963.
[8] Caricaturista e ceramista português (1846-1905). Chegou ao Brasil em 1875 e permaneceu até 1879, período em que contribuiu nos periódicos O Mosquito, Psit!!! e O Besouro. Sobre Bordalo Pinheiro ver: ARAUJO, Emanuel (curador). Rafael Bordalo Pinheiro. O português tal e qual: da caricatura a cerâmica; O Grupo do Leão e o naturalismo português. São Paulo: IMESP, 1996.
[9] CHABANNE, Thierry. Les Salons Caricaturaux. Les dossiers du Musée D’Orsay. Paris: Éditions de la Réunion des musées nacionaux, 1990. p. 8.
[10] Na verdade, Agostini não foi o único artista no Brasil a se valer do formato dos “Salões Caricaturais”: durante a Primeira República (1889-1930), caricaturistas como Kalixto Cordeiro e Raul Pederneiras voltaram a fazer uso do gênero, atualizando-o; cf. Alguns dos “Salões Cômicos” de Raul no presente site: http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/sc_raul.htm