André A. Toral *
TORAL, André A.. A imagem distorcida da fotografia. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 1, jan. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/vm_toral.htm>.
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1. Na segunda metade do século XIX o estabelecimento de atribuições específicas para a pintura e a fotografia era um problema relevante. A relação do pintor com a natureza, tema digno de qualquer colóquio de estética, estava presente nas discussões que repercutiram na imprensa sobre obras produzidas nas décadas de 1860 e 1870. Por quê isso? Por quê o maior ou menor realismo de um ou outro pintor terminou por se converter praticamente numa questão política como veremos adiante?
2. A razão é simples. Por detrás da comparação entre um modelo de pintura mais realista (mais próxima à verdade fotográfica) ou mais idealista (mais próximo à imaginação e ao sentimento), tema, por exemplo, da chamada “Questão artística de 1879” [cf. link], discutia-se a estética da monarquia, ligada ao idealismo romântico em oposição a uma nova estética, mais objetiva, mais científica e republicana.
3. A estética oficial, o indianismo romântico, era, segundo a crítica republicana “arcaica”, anacrônica, incapaz de levantar e registrar os problemas nacionais, por meio da literatura ou das artes plásticas subvencionadas. A estética romântica e a monarquia têm, no Brasil, destinos entrelaçados. Se o classicismo dos emigrados franceses de 1816 marcou a obra da Real Escola de Ciências, Artes e Ofícios no Brasil português, o ramo dos Bragança que permaneceu em solo americano após a independência vai progressivamente adotar a linguagem romântica para se distinguir da estética da antiga metrópole. A partir de 1822, como as nações européias recém libertadas de Napoleão, a independência e a construção de uma identidade nacional serão o assunto privilegiado da academia financiada pela monarquia. No Brasil do Segundo Império, essa identidade era construída sob uma perspectiva monarquista e palaciana, por meio de uma concepção de cultura identificada com os projetos políticos da elite e definitivamente afastada de uma concepção de cultura popular.
4. Ao mesmo tempo, o aperfeiçoamento dos meios de reprodução mecânica da natureza, como a fotografia, fez com que as suas atribuições crescessem. De “auxiliar das artes”, mera referência a ser utilizada por pintores e desenhistas, a fotografia parecia ultrapassar suas atribuições primitivas e invadir domínios antes reservados à pintura, como paisagens e retratos. À estética oficial, construída pela pintura acadêmica, contrapunham-se outras maneiras de olhar a realidade. A uma visualidade “oficial”, na falta de um termo melhor, contrapunha-se a imprensa ilustrada e a litografia, a fotografia e técnicas que combinavam pintura e fotografia. Era preciso, sob o ponto de vista acadêmico, definir as atribuições das novas técnicas vis-a-vis a pintura, estabelecer limites. É precisamente desse limites que trata o próximo item.
Fotografia, essa “importante auxiliar das artes e da ciência”
5. Vitor Meireles, então com 34 anos e professor de pintura histórica da Academia Imperial de Belas Artes, foi convidado a fazer parte do júri de premiação das fotografias expostas na II Exposição Nacional de 1866. Posteriormente escreveu um relatório, em boa parte justificando as decisões tomadas e esclarecendo critérios de premiação.
6. Esse relatório era destinado ao ministro e secretário de estado dos Negócios de Agricultura, Comércio e Obras Públicas e Primeiro Secretario da Comissão Diretora do Império. Não utilizo aqui material inédito. Esse mesmo documento já foi analisado, até onde sei, por pelo menos dois pesquisadores (TURAZZI, 1995 e CHIARELLI, 2005).
7. Para os fotógrafos, em 1866, ser escolhido para a II Exposição Nacional representava a possibilidade de seu trabalho ser conhecido nacional e internacionalmente e a premiação era feita por meio da distribuição de medalhas. Não havia prêmios em dinheiro. A exposição reunia trabalhos de quinze fotógrafos profissionais.
8. As Exposições Nacionais, organizadas e patrocinadas diretamente pelo imperador, funcionavam como uma espécie de preparação e seleção do material das províncias que seriam remetidos para as feiras mundiais das quais o Brasil participaria. A participação brasileira nessas feiras tinha como objetivo tornar o Império, seus produtos e características, conhecidos. Buscava-se especialmente, associar a idéia do Império dos Bragança com a idéia da presença da civilização nos trópicos. Essa idéia do imperador como representante da “civilização” num ambiente tropical já foi exposto pela historiadora Maria Inez Turazzi (1995) e pela antropóloga Lilia Schwarcz (1994). Havia o interesse, por parte do grupo ligado ao imperador, em deixar patente a associação entre o imperador e a ciência, garantia de progresso e modernidade, bem como o convencimento das elites regionais da conveniência da forma monárquica como regime político. A Exposição Nacional de 1866 serviu à seleção do material que faria parte da Exposição Internacional de Paris de 1867.
9. No seu relatório Meireles não deixa dúvidas sobre o que seria a fotografia. Na primeira sentença do relatório a fotografia, uma invenção recente (estamos em 1866), é definida como “importante auxiliar das artes e das ciências”. Mais adiante essa “invenção recente” é classificada como “progresso” em razão dos “importantes serviços que poderá prestar a todas as artes em geral” (MEIRELES, 1869: 1, 5).
10. O desenvolvimento do laboratório fotográfico portátil, destaca, fez com que na Europa alguns corpos de artilharia dispusessem de serviços de fotografia. Vitor Meirelles lamenta o fato de o governo brasileiro não ter se lembrado (idem 1869, 5) de introduzir a fotografia em “algum dos corpos” do exército brasileiro que então combatiam as forças de Francisco Solano López, presidente do Paraguai, no que ficou conhecido como a “guerra do Paraguai” (1864-1870). Estrategicamente, como lembra Meirelles, o uso da fotografia interessava à qualificação técnica da nação, para uso civil e militar.
11. A variedade de produtos oriundos da fotografia e lembrados por Meirelles é interessante para se ter uma idéia da variedade de subprodutos gerados pela fotografia nessa época. Além das ampliações em papel em formato cartão de visita (o “carte de visite” francês) ou de dimensões maiores no caso de paisagens, Meirelles destaca que era corrente o uso da “gravura fotográfica” (ampliações sobre cobre, aço) permitindo sua impressão e também da “litofotogravura” (ampliação sobre pedra litográfica) o que também permitia sua impressão. Existia também a “foto-pintura” ampliações sobre papel que serviam de base para retratos a óleo por artistas que pintam sobre o retrato.
12. Fiel à concepção acadêmica de pintura como narrativa ilustrada de obras ou temas clássicos com valor moral evidente, certamente Meirelles, como homem de seu tempo e de seu meio, não pensou nem por um instante na fotografia como linguagem artística autônoma. Arte era então considerada atividade espiritual que não poderia ser substituída por meio mecânico (ARGAN, 2002: 79). Mesmo os que na época se preocupavam com o registro da modernidade sabiam esse registro do transitório da existência era apenas “metade da arte”; a outra metade era o eterno e o imutável (BAUDELAIRE (1869) 2004: 26). Obviamente que esse componente “eterno” de um trabalho “artístico” não era algo dado ou passível de ser captado de forma mecânica mas sim construído pelo pintor.
13. Ainda que se utilize a fotografia como referencia, a manufatura do quadro, no que diz respeito à quantidade de horas de força de trabalho investidas (ARGAN, 2002: 81) e a riqueza de seu sentido moral, dado pelo tema, faziam da pintura uma linguagem artística acima e além da fotografia.
14. Apesar da alegada transcendência da pintura a óleo, as aplicações da fotografia na época em que foi escrito o relatório eram muitas, como registra o próprio Meirelles: “festas públicas, monumentos antigos, manuscritos, cartas geográficas, quadros, estátuas, máquinas, objetos de história natural, imagens microscópicas, fenômenos astronômicos etc, etc, tudo a fotografia reproduz [...]” (MEIRELLES, 1869: 5). Evidentemente Vitor Meirelles nos oferece a visão de um homem, um pintor no caso, num contexto marcado pelo grande desenvolvimento da fotografia comercial na Europa, entre 1860 e 1870 e também no Brasil, ainda que em parâmetros mais modestos, naturalmente. Para termos uma idéia desse crescimento veja-se, por exemplo, o número de estabelecimentos fotográficos profissionais no Rio de Janeiro. Eram 11 em 1857 e 30 em 1864 (KOSSOY, 1980: 38; VASQUEZ, 1986: 20).
15. O historiador e de arte Giulio Carlo Argan, além de Vitor Meirelles, também registra a passagem desses “serviços sociais”, antes atendidos pela pintura, para a fotografia (retratos, vistas da cidade e do campo, reportagens e ilustrações) (ARGAN, 2002: 78-9). A pintura torna-se definitivamente “atividade de elite”. Nesse sentido é bom lembrar que paralelamente ao crescimento do número de estúdios fotográficos acima apontado temos também um grande número de pintores ativos na capital do império. Entre eles contam-se os nacionais e os estrangeiros, principalmente franceses, italianos e alemães ativos na corte durante todo o século XIX. A título de exemplo, só entre os alemães conta-se cerca de 25 nomes no Brasil no período considerado (PEIXOTO, 1989: 24).
16. A fotografia, definitivamente, não fazia parte das chamadas belas artes. Era uma técnica “auxiliar”, como Meirelles deixa bem claro. Era entendida num horizonte conceitual que opunha arte (pintura) versus técnica (fotografia); isso permitia à fotografia dialogar com outras linguagens artísticas e a trazer o debate entre arte e técnica para seu interior. Tendo como amostra as Exposições Nacionais e Internacionais, o local físico reservado à fotografia migra progressivamente das “artes industriais” para as “belas artes”. Na verdade as relações entre fotografia e pintura são mais antigas e complexas, sendo que a primeira apresentação pública da fotografia em 1842 foi feita na terceira Exposição Geral da Academia Imperial de Belas Artes (TURAZZI, 1995: 110-111).
17. No entanto, qualquer alegação de oposição entre pintores e fotógrafos no Brasil deve levar em consideração, que eram freqüentes os casos de profissionais que se ocupam simultaneamente da pintura, fotografia e técnicas como “foto-pintura”, desenhos (guache e aquarelas) (TURAZZI, 1995; MOURA, 1983). A chamada foto-pintura consistia em um processo onde retratos a óleo, pastel ou guache eram feitos por meio da utilização de fotos em tamanhos variáveis, desde formato cartão de visita até outros maiores, onde a cor era aplicada diretamente sobre a foto em preto em branco que lhe servia como referencia. A fotografia também podia ser reproduzida, por pantógrafo ou “lanterna mágica”, num tamanho maior sobre a tela pelo pintor que já a considera como um esboço, tratando de colorir com óleo.
18. Geralmente quanto menores são os negócios de pintores e fotógrafos, maior é a variedade de serviços oferecidos. São comuns artistas que praticaram a foto-pintura como Ernest Paft, Ulrich Steffen, August Moreau e J. Courtois, ou de fotógrafos que também eram pintores como Joaquim Insley Pacheco (TURAZZI, 1995: 115). Nos países do cone sul a figura do artista polivalente também é comum, sendo um bom exemplo o fotógrafo e retratista de província, o argentino Candido López (1840-1902), que produziu vasta obra pictórica sobre a guerra do Paraguai (1864-1870).
19. Meirelles expressa seu desejo de que os artistas nacionais que praticam a fotografia, “trazida de além-mar pelos estrangeiros” pudessem contar também com “a proteção do governo” para o aprendizado da técnica. Levava em consideração alguns fatores como: a utilidade estratégica da fotografia sob o ponto de vista científico e militar e o grande número de estrangeiros na atividade, Ademais, como professor da Academia Imperial de belas artes acostumado à subvenção do Estado, via com naturalidade um apoio oficial à fotografia. A subvenção oficial à atividade, no entanto, sempre foi muito rala. Como já comentei num outro trabalho comenta-se muito o mecenato imperial no Brasil (FERREIRA DE ANDRADE, 1997; VASQUEZ, 1986) mas se conhece apenas um fotógrafo que Pedro II apoiou efetivamente como “mecenas”. É o caso de Victor Frond, cujo projeto de fotografar os “cantos mais longínquos do Império” custou a este ultimo cerca de 12 contos e 27 mil réis. Como termo de comparação duas telas de Vitor Meirelles sobre a guerra custaram ao Império 16 contos de réis. Como ironia, nenhuma das fotografias de Frond chegou até hoje; conhece-se apenas as litografias feitas com base nas fotografias que se encontram no álbum “Brasil Pittoresco”, impresso em Paris (VAZQUES, 1986: 2; TORAL, 2001: 81).
20. As idéias de Meirelles sobre o que considera um bom trabalho não são postas com clareza. Procurei reunir as qualidades negativas e positivas atribuídas aos diferentes trabalhos. Ao contrário da academia francesa que no início do século XVIII julgava em termos de invenção, proporção, cor, expressão e composição (FRÉART in PEVSNER, 2005: 150), Meirelles cobra da fotografia unicamente “semelhança”, além de outros atributos que, como veremos adiante, parecem ser próprios à pintura. Considerando-se a impossibilidade da fotografia reproduzir a contento, pois que se exigia dela atributos da pintura, existe uma certa desconfiança em relação às deformações operadas pela lente.
21. A veracidade, a observação atenta e fiel ao estudo a partir do modelo, matéria constitutiva das Academias, é evidentemente o ponto primeiro. Um retrato fotográfico de Pedro II e da princesa Isabel da firma Gaspar e Carneiro, colorido à guache por Courtois, foi fulminado por “não ser muito semelhante” e “menos bem colorido” (MEIRELLES, 1869: 13).
22. Aos que valorizavam o desenho como expressão da verdade da natureza, caso do ensino acadêmico, a fotografia aparece como um extraordinário recurso. Mas seu uso requer cuidados. Muitas vezes a fotografia, como diz Vitor Meirelles, não é a expressão da verdade da natureza:
23. Eu vou fazer rir talvez toda a classe dos fotógrafos afirmando que nenhum retrato é fiel, senão aquele que for tirado a uma distancia de dez metros do modelo ! Esta é a verdade, verdade matemática a que não se pode contradizer. (MEIRELLES, 1869: 12-13).
24. Meirelles busca estabelecer uma diferença entre as imagens geradas pelo olho humano e a lente da máquina. Poder-se-ia até pensar, como o crítico Clement Greenberg, que a defesa da pintura busca assegurar o que havia de específico nessa linguagem, evitando sua queda de nível para entretenimento puro e simples, garantindo seus padrões de qualidade próprios às manifestações de alta cultura e sua independência em face de outras disciplinas e tecnologias (GREENBERG, 1982: 5-6).
25. No entanto, Meirelles não pretende criticar os métodos de pintura acadêmica tradicional para subverte-los, ou para fazer uma autocrítica garantindo sua “pureza”, afirmando-a em sua área de competência e garantindo sua independência frente a outras linguagens, o que seria uma das características do modernismo (HARRISON, 1998: 162-3). Longe disso. Meirelles parece ter como objetivo a manutenção do vetusto monopólio acadêmico da produção de imagens por meio de matérias bem conhecidas como ótica, modelo vivo e perspectiva:
26. [...] enquanto não se abstiverem de reproduzir de perto, como se faz com os retratos, terão sempre as imagens sensivelmente disformes: a óptica e a lógica infalível da perspectiva não devem ser desprezadas” (MEIRELLES, 1869: 12).
27. A premiação das fotografias que faziam parte da exposição foi feita em duas categorias: retratos e paisagens. Na primeira, estima-se que cerca de doze profissionais apresentaram seus trabalhos; na última apenas um. Os fotógrafos participantes eram profissionais e muitas das obras eram enviadas como produtos de empresas, como Carneiro e Gaspar ou Stall e Wanchaeffer.
28. Pelo que se deduz do escrito de Meirelles, a premiação procurou valorizar características como “vigor dos tons”, “cor agradável”, “luz agradável”, “posições escolhidas com gosto e naturalidade”. A própria fotografia é por ele caracterizada como “a ciência do claro obscuro”. Desta forma J. F. Guimarães, primeira medalha de prata, tem seus trabalhos avaliados positivamente por Meirelles pela “fineza, nitidez e perfeição dos objetos representados e também pelo vigor dos tons”. Já os 3o. e 4o. lugares (menções honrosas), J. F. Villela e L. Chapelin, “pecam em geral pela aparência que tem de dureza e pouco transparência nas sombras”. Cobra-se da fotografia os efeitos que se cobram da pintura pela correta utilização da técnica da velatura, a transparência que se revela sobre as demãos de tintas. Dessa maneira, a qualidade das fotografias é medida “pela nitidez”, “vigor das sombras”, “beleza das meias tintas”.
29. A busca da qualidade narrativa da imagem por meio de uma perfeita representação da natureza, muitas vezes alterando-a de forma a melhorá-la, é um dos pressupostos das idealizações acadêmicas, seja no gênero neoclássico ou romântico. Quanto ao “vigor das sombras” e “belezas das meias tintas” são recursos próprios à pintura e obtidos por meio do uso de velaturas e aplicação de muitas demãos de tintas superpostas.
30. O tema dos trabalhos também informa sobre a proximidade com a pintura. O material exibido, retratos e paisagens, são felizes se representam com fidelidade os “lugares pitorescos do nosso característico país” (MEIRELLES, 1869: 10). É bom lembrar que “pitoresco” vem do italiano pittoresco, próprio para ser pintado.
31. A presença da natureza como tema de muitas fotografias apresentadas à Exposição Nacional chama a atenção se explica pela sua presença constante na iconografia do século XIX. Isso se dá primeiro pela importância comercial do gênero pitoresco no mercado consumidor de obras de arte, na forma de fotografias, pinturas, gravuras ou desenhos. Depois, pela ideologização do tema por parte do Estado Imperial brasileiro, por meio da construção de um modelo de história - o indianismo romântico - que privilegiava a figura do índio e da natureza idealizada nas artes plásticas, literatura e história.
32. A pintura romântica, engajada na reconstrução das nacionalidades após a derrota de Napoleão Bonaparte em 1815, tinha a missão de construir imagens da história, do povo e da natureza características dos países recém libertados, como mostram, por exemplo, os trabalhos de Caspar D. Friedrich (1774- 1840) em relação à paisagem do que viria a ser a Alemanha. No Brasil, a Academia de Belas Artes privilegiava o gênero histórico, que assim como entre suas congêneres européias, era a temática mais valorizada (FÉLIBIEN in PEVSNER, 2004: 151) por sua eficiência na construção daquilo que poderiam ser considerados os valores nacionais. Vitor Meirelles era professor de pintura histórica; julgava, como nós, pelo que conhecemos. Pertencia ao que o historiador Ilmar Rohloff de Mattos considerava a geração dos “consolidadores do império” (1800-1833), cujos objetivos eram o de consolidar a instituição monárquica e a conservação dos “mundos distintos” que o formavam (MATTOS, 1987: 125-6, 128).
33. O governo imperial não seguiu as recomendações de Vitor Meirelles. Não introduziu fotógrafos em unidades do exército para uso tático no registro de posições nem para fixar perante a história as “glórias obtidas (pelo exército) em tantos combates”. Ao contrário, o ministro da Marinha, Afonso Celso, encomendou à Academia duas pinturas sobre temas já escolhidos (a Passagem de Humaitá e Combate Naval do Riachuelo) para comemorar a tomada de Humaitá em 1868. A marinha imperial, tão criticada por sua hesitação frente à fortaleza paraguaia e distante dos êxitos de 1865, quando praticamente destruiu a marinha paraguaia em Riachuelo, finalmente encontrara um motivo para comemorar. Comemorou- se a tomada mas não a derrota da guarnição paraguaia que conseguiu evacuar a praça com sucesso. Do ponto de vista militar foi uma meia vitória.
34. A importância da encomenda fez com que a Academia selecionasse para a missão seu mais conhecido professor de pintura histórica, o próprio Vitor Meirelles. Era um trabalho de responsabilidade, onde a demanda sugeria o apoio velado do imperador, interessado em criar uma iconografia que celebrasse a vitória das armas imperiais. A partir de agosto de 1868 Vitor Meirelles permaneceu quase dois meses nas proximidades de Humaitá, hospedado no Brasil, nau capitânia da esquadra imperial. Realizou na ocasião uma série de desenhos, hoje chamados de “Estudos paraguaios” e guardados na Seção de Desenhos brasileiros do Museu Nacional de Belas Artes, onde conseguimos ter uma idéia do seu cotidiano em Humaitá: cadáveres brasileiros e paraguaios, expressões faciais de mortos, corpos retorcidos, tendões expostos. Além dos mortos, vemos a igreja da fortaleza, destruída pelos disparos da esquadra imperial, detalhes de armas e equipamentos militares capturados aos paraguaios [Figura 1a, Figura 1b e Figura 1c].
35. A maior parte desses desenhos nunca foi utilizada nas suas telas. Especialmente aqueles que hoje diríamos mais realistas simplesmente desapareceram de seus trabalhos posteriores. Foram descartados como referências. Por quê? Desenhos realistas que impunham visualmente a bestialidade da guerra não tinham nada a ver com o tratamento reservado aos personagens que aparecem numa construção literária sobre um evento histórico imaginado e destinado à celebração de valores cívicos, como são as pinturas acadêmicas. Os domínios da pintura acadêmica, como mencionamos atrás, não se confundem com os da fotografia. Não parece ter sido outra a conclusão do historiador de arte Paulo Herkenhof ao mencionar, na “acomodação” estabelecida entre pintura e as novas técnicas, a busca pela primeira de imagens idealizadas, alegorias “nacionais”, religiosas ou históricas, impossíveis de serem produzidas por meio fotomecânico (apud TURAZZI, 1995: 115).
36. Os dois trabalhos, Passagem de Humaitá e Combate naval do Riachuelo, foram concluídas em 1872, expostos no 22a. Exposição Geral da Academia. “A fama das duas telas atraiu à academia 63.949 visitantes” (MELLO JÚNIOR, 1982: 71). Se o público, o governo e a academia receberam bem as obras o mesmo não se pode dizer da imprensa, como Ângelo Agostini da Vida Fluminense (TORAL, 2001: 121) que fez críticas duras ao estilo do mestre acadêmico.
37. O romantismo idealizador e amaneirado praticado na Academia imperial de Belas Artes era considerado ultrapassado, não só na França, onde um realismo maior na representação da natureza e na descrição das mazelas sociais já se impusera no âmbito acadêmico, por meio do naturalismo, sobre as idealizações neoclássicas ou românticas, mas também no Brasil. O maior exemplo da falência da estética acadêmica no contexto de modernização da sociedade brasileira é representado pela “Questão artística de 1879” quando imprensa, críticos e parte da opinião pública foram mobilizados pela repercussão da exposição conjunta de Vitor Meireles e Pedro Américo que expuseram respectivamente A batalha de Guararapes e A batalha do Avahy. Meirelles seria o representante de um romantismo anacrônico, juntamente com José de Alencar e outros, ligado à estética oficial e ultrapassada do império; já Pedro Américo seria possuidor de uma representação mais realista, mais “moderna”, de acordo com a “verdade dos fatos”. O debate colocou em campos opostos Joaquim Nabuco e José de Alencar (TORAL, 2001: 116-9).
38. Vale dizer que Pedro Américo utilizava-se de fotografias para realizar seus trabalhos. Fotografias também foram usadas neste trabalho em particular, conforme vemos em sua correspondência (MACHADO, 2008: 22). Recentemente levantou-se a hipótese de que teria usado também uma “lanterna mágica”, um projetor de imagens bastante popular na época, conforme artigo recente do pesquisador Vladimir Machado (2008).
39. O público, indiferente aos tecnicismos, mas motivado pela polêmica, compareceu em massa. A exposição de 1879 reunindo os dois maiores pintores da Academia Imperial recebeu a visitação de 276.286 pessoas (MARTINS, 1994: 78), cifra notável para a época e mesmo para os dias de hoje.
40. O comprometimento pessoal de Pedro II em criar uma memória visual para a nação era tão expressivo que, depois do retorno de Meirelles do Paraguai ao Brasil, o próprio Imperador colaborou pessoalmente para ajuda-lo a encontrar um onde coubesse a gigantesca tela de 8.60 por 4.20 metros do Combate naval do Riachuelo.
41. Num contexto de final do império, a tarefa que se impunha nos meios republicanos e progressistas era o de levantar cientificamente os problemas da nação. A fotografia, como já comentei num outro trabalho (TORAL, 2001: 157-8), era um dos meios que mais se aproximava desse pretendido realismo, agora convertido em paradigma de modernidade. A pintura acadêmica, dentro do regime de “encomendismo” governamental pretendia uma hegemonia na representação da nação. A popularização da imagem, processo acentuado nas décadas de 1860 e 1870, se deu paralelamente à busca, por parte de extratos médios da população urbana, tecnicamente qualificados e politicamente excluídos buscavam de novas formas de cidadania mais concretas do que as pressupostas pelas idealizações românticas da academias. A fotografia e seus subprodutos, a litografia e a imprensa ilustrada representaram o canto do cisne da hegemonia da academia brasileira sobre o meio artístico.
42. Se os partidos envolvidos na “Questão Artística” possuíam uma identidade política bem definida o mesmo não se podia dizer de suas opiniões. Mais ou menos realistas ambos concordavam no entanto que pintura tinha uma missão, um sentido moral. Para ambos pintura era, no fundo, ilustração literária. A ninguém ocorreu a idéia expressa por Picasso de que o surgimento da fotografia chegou na hora exata para liberar a pintura de toda literatura, da anedota e mesmo do tema (BRASSAÏ, 2000: 74).
43. Esta concepção acadêmica, literária, de pintura no Brasil, é contemporânea ao surgimento, na França das associações de artistas conhecidas como “Escola de Barbizon” e “Amigos da natureza”, onde a pintura adotava novos temas, a natureza e o camponês, numa celebração dos valores telúricos numa Europa industrializada e em conflito social agudo entre capital e trabalho. A construção desse novo sujeito, o camponês, é feita por meio de uma pintura em contato direto com a verdade da natureza. Apesar da objetividade, do realismo pretendido por Gustave Courbet não (Le Réalisme era o nome da sua exposição protesto de 1855) a pintura ainda servia a um propósito moral. Progressista ou não pintura ainda se fazia com literatura, e não só no Brasil, nas décadas de 1850 e 60.
44. Gustave Courbet e Jean-François Millet tinham atitudes diferentes em relação à fotografia. O primeiro não hesitava em transpor para a tela imagens extraídas da fotografia, embora achasse que a manufatura do quadro, o número de horas investidas isso era trabalho do pintor e, portanto, insubstituível (ARGAN, 2002: 81); o segundo conhecia a fotografia, demonstrando pouco interesse, apesar de admirar o trabalho do fotógrafo norte-americano Harrison que esteve em 1865 em Barbizon, para citar apenas um dos muitos fotógrafos que estiveram no local, trabalhando os mesmos temas e paisagens (HEILBRUN, 1986: 10).
45. O poeta francês Charles Baudelaire também desconfiava da fotografia, considerando-a como incapaz de traduzir a transcendência do olhar humano sobre o mundo que o cerca, bem como de transmitir o sentimento do artista. Acreditava que a fotografia pertencia ao mundo burguês das novidades científicas e tecnológicas vulgares, produto do mundo industrial em ascensão. Era, definitivamente técnica e não arte.
46. Nesse ponto as idéias sobre o que “verdadeiro” e o que é “belo” de Meirelles e Baudelaire aproximam-se. Como dizia este último a respeito do salão de 1859: “[...] O gosto exclusivo pelo Verdadeiro [...] oprime e sufoca o gosto pelo Belo”. Nessa mesma crítica lamenta o desenvolvimento da fotografia que terminará por arruinar o que existir de divino no espírito francês. “ 'Visto que a fotografia nos dá todas as garantias desejáveis de exatidão (eles crêem nisso, os insensatos), a arte é a fotografia’. A partir desse momento a sociedade imunda se lança, como um único Narciso, à contemplação de sua imagem trivial sobre o metal” (BAUDELAIRE (1859) in Études Photographiques, 1999).
47. Essa confusão entre arte e indústria, “doença dos imbecis”, faz com que os artistas se limitem a pintar, cada vez mais segundo Baudelaire, o que vêem e não o que sonham. Os olhos se habituaram a considerar os produtos de uma ciência material como se isso se pudesse confundir com o etéreo e imaterial, ou seja, aquilo que é especificamente humano e divino (BAUDELAIRE (1859) in Études Photographiques, 1999).
48. Vitor Meirelles demonstra extrema preocupação com a “foto-pintura”. Reserva a última parte de seu relatório para comentar alguns exemplares de foto-pinturas enviados para a II Exposição Nacional. Essa preocupação não é gratuita. É devido às diferenças de linguagens entre fotografia e pintura, e especialmente pela maior importância desta última, que as aproximações entre as duas técnicas parecem perigosas aos olhos de Vitor Meirelles. É por esta razão que ele condena veementemente a “foto-pintura”. Os exemplares dessa técnica foram descritos como um “regresso da verdadeira arte” (a pintura, claro). A “foto-pintura” só teria merecimento se um “pincel hábil e inteligente” corrigisse os defeitos aparentes nas “provas amplificadas” das fotografias (MEIRELLES, 1869: 10- 11). Esse procedimento, que é chamado de “regresso da verdadeira arte”, que só deveria ser exercida “segundo seus indeclináveis preceitos”. As “provas amplificadas” da fotografia, segundo Meirelles, tinham que ser corrigidas pelo olhar do pintor, capaz de reconhecer os defeitos da fotografia “no que toca às proporções”:
49. Quem terá deixado de notar estas irregularidades vendo-se retratado com uma mão maior que a outra, com um pé enorme e quase o dobro de seu semelhante, e o nariz excessivamente grosso sobre a ponta ! (MEIRELLES, 1886: 11)
50. A fotografia distorce, a pintura corrige, tais são as idéias de Meirelles. A pureza da técnica da pintura deve ser preservada e a aproximação com a fotografia, evitada. Evitar o perigoso contágio da pintura acadêmica ultrapassada pela fotografia, mantendo os privilégios e a alegada transcendência da primeira, tais parecem ser os objetivos de Meirelles ao reduzir a fotografia a uma técnica mecânica, ainda que a maestria de seus praticantes não fosse homogênea e pudessem ser avaliadas pela sua proximidade com as qualidades da pintura. Esta última, entendida como arte, deveria ser preservada das deformações do real operadas pela fotografia. O olhar humano, auxiliado pela disciplina acadêmica, ainda era superior ao método mecânico. Note-se que Meirelles não usava a fotografia por desconhecimento, pois era amigo do fotógrafo Marc Ferrez e freqüentava sua casa e estúdio no Rio de Janeiro como muitos outros pintores da sociedade da época. Também o diretor da Academia de belas Artes e seu antigo orientador quando se encontrava estudando em Paris, Manuel Araújo de Porto-alegre, era um entusiasta da incorporação das novas tecnologias ao universo acadêmico. O ambiente acadêmico encontrava-se definitivamente contagiado pelo “esprit nouveau”, pela aproximação da arte e da indústria. A apreensão do real não se limitava, no entender de Meirelles, a uma mera reprodução, mas à sua correção por meio do idealismo. Como se as técnicas acadêmicas, pudessem trazer de volta uma realidade neoplatônica superiora, baseada na idéia e na correção da natureza ordinária, por meio do desenho, em meio à agitação da passagem do império para a república e a introdução de novas técnicas de registro visual.
51. As preocupações de Meirelles, como foi dito, se aproximam às de Baudelaire. Mas enquanto esse último pretendia uma pintura que refletisse um olhar renovado sobre um mundo moderno em transformação, já Meirelles aparece preocupado em defender as atribuições da pintura e da invasão do seu campo de atribuições. É por causa da “distorção” operada pela fotografia que a técnica fotográfica deve ser vista com reservas e não pela ausência do elemento humano. Suas preocupações são mais triviais e parecem ligar-se à defesa de técnicas e prerrogativas acadêmicas, o que certamente não é o assunto de Baudelaire.
Referências
bibliográficas
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Companhia das Letras, São Paulo, 2002.
BAUDELAIRE, Charles. Curiosités
esthétiques et autres écrits sur
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* André Toral, 50 anos, doutor em História pela Universidade de São Paulo, é professor de História da Arte na Faculdade Armando Álvares Penteado e autor, entre outros, de Imagens em desordem. A iconografia da guerra do Paraguai (Humanitas- FFLCH/USP 2001).