A formação e a obra de Pedro Weingärtner no século XIX
Paulo
César Ribeiro Gomes
GOMES, Paulo César Ribeiro. A formação e a obra de Pedro Weingärtner no século
XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. XI,
n. 1, jan./jun. 2016. https://doi.org/10.52913/19e20.XI1.06a
[Deutsch]
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1. “Quero
ser artista! Vou-me embora para a Europa!” Assim começa a biografia oficial de Pedro
Weingärtner (1853-1929), escrita por Angelo
Guido em 1956. A abordagem direta do pensamento do artista e a reação
familiar descritas por Guido afiguram-se para nós, hoje, como uma risonha ficção.
Na verdade, não há dados biográficos dignos de confiança sobre Pedro
Weingärtner. Sua vida, seu pensamento, sua visão de mundo, tudo isso, com
exceção de sua obra, nos são interditos, pois não há entrevistas, cartas,
diários, anotações ou quaisquer outros documentos autógrafos do artista. A
cronologia de sua vida, suas andanças e obras constituem um emaranhado de dados
conflitantes e de enormes lacunas, resultado do bem intencionado, mas confuso,
esforço de seus primeiros biógrafos, que construíram uma espessa nuvem de
informações divergentes que, até o momento, não conseguimos ordenar. Temos a
estranha sensação de que sua obra não tem ninguém por trás: não sabemos o que o
levou a pintar, gravar ou desenhar quaisquer de seus trabalhos; temos apenas alguns
vestígios materiais do seu processo de criação artística, tais como desenhos
preparatórios, estudos e mesmo telas inacabadas. No entanto, esses são em
reduzido número.
2. A
situação de Weingärtner não é exclusiva ou rara: muitos são os artistas brasileiros
desse período sobre quem muito pouco sabemos. Se nos faltam documentos,
falta-nos antes a consciência patrimonial no que diz respeito à nossa história
da arte: mergulhamos de cabeça em análises formais, questões de recepção,
contextos sociais e tudo o que faz um historiador de arte mas, infelizmente,
são escassas os documentos autógrafos e diminutos os depoimentos. Quando
olhamos para obras de renomados artistas europeus da segunda metade do século
XIX, como, por exemplo, Édouard Manet (1832-1883), Paul Cézanne (1839-1906),
Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901), entre outros, rapidamente vêm-nos à
mente dados biográficos sobre suas origens, suas trajetórias, o contexto no
qual viveram, as críticas que receberam, ou seja, somos subsidiados por informações
que situam e contextualizam suas produções. Não se trata de uma apostasia, pois
não reivindicamos aqui a “ilusão biográfica” (BOURDIEU 1998), um modelo
definitivamente excluído da prática contemporânea da História, mas defender o
direito a familiaridade, situação necessária para que esse sujeito não fique
tão distante a ponto de parecer que ele não existe.
3. Pedro
Weingärtner foi pintor, desenhista e gravador. Um dos grandes artistas
brasileiros de seu tempo que, após incipiente formação no Rio Grande do Sul,
dirige-se para a Europa, estudando inicialmente na Alemanha, depois na França
e, finalmente, estabelecendo-se na Itália. Sua obra pictórica tem culminâncias
nas cenas de gênero, nas paisagens e nas cenas neo-pagãs, tendo feito também
grande sucesso como retratista da aristocracia nacional. Weingärtner
desenvolveu sua exitosa carreira na Europa e no Brasil, e sua obra foi exibida
e comercializada no exterior, mas principalmente em São Paulo e no Rio de
Janeiro. Seu prestígio crescente até a primeira década do século XX só
diminuirá ao final de sua carreira. Ele entra então numa espécie de limbo, no
qual a obra, apesar de manter-se objeto de desejo de colecionadores, deixará de
interessar os estudiosos. Para compreender os espaços ocupados por Weingärtner,
faz-se necessário observar sua trajetória e sua inserção na história da pintura
brasileira de sua época.
4. A
opção de Pedro Weingärtner em estudar na Alemanha (apesar de não estar
explicada por qualquer tipo de depoimento ou documento) pode, naturalmente,
estar associada à sua ascendência. Não temos informações se o artista tinha
familiares ou amigos naquele país, mas tanto sua origem germânica, como o
estímulo de amigos, e mesmo indicações, como a do jornalista Karl von Koseritz
(1830–1890), podem ter contribuído para sua decisão. Natural seria procurar a
sede do Império, a cidade do Rio de Janeiro, bem como sua prestigiada Academia
Imperial de Belas Artes, ao invés de dirigir-se diretamente para a Europa.
Mesmo naquele continente, talvez fosse mais compatível com as expectativas de
um artista brasileiro buscar formação em países como a França ou a Itália,
bases de estudos da maioria dos bolsistas e pensionistas do Império. Nesse
sentido, sua formação na Alemanha foi uma exceção, assim como foram exceção os
fatos de ter estudado na Europa e de ter feito sucesso no Rio de Janeiro e em
São Paulo, sem ter passado pela Academia Imperial de Belas Artes (CARDOSO,
2008).
5. Sua
permanência na Alemanha iniciou-se em fevereiro de 1878 e durou até maio de
1882, quando já se encontra na França. Neste país, fica até julho de 1884,
quando vai primeiro para Mayrhofen, no Tirol (Áustria) e, depois, para Munique,
de onde se transfere, em 1886, para a Itália, instalando-se de modo
intermitente na cidade de Roma, até seu retorno definitivo para o Brasil em
1920.
6. Sua
trajetória como estudante na Alemanha é uma lista de lugares, escolas e
professores sobre a qual não temos maiores informações. Neste país ele
estabelece-se inicialmente em Hamburgo, notável cidade-estado dentro do Império
Alemão (1871-1918) e sede de um dos maiores portos do Atlântico norte. Ali se
matricula na Hamburger Bewergeschule
(Escola de Artes e Ofícios) por um curto período, de fevereiro até setembro de
1878, quando se muda para Karlsruhe.
7. Karlsruhe
é uma cidade no sudoeste da Alemanha, próxima à fronteira com a França. Ali
Weingärtner fará estudos básicos, se formos considerar os desenhos que
sobreviveram desta época. Conforme as narrativas de Angelo Guido (1956) e de
Athos Damasceno (1971), ele estudou na Großherzoglich-Badische
Kunstschule (Escola de Artes Grã-Ducal de Baden), dirigida por Ferdinand
Keller (1842–1922) e tendo a orientação de Theodor Poeckh (1839–1921); é
provável que também tenha sido aluno de Ernst Hildebrand (1833–1924). Esta
instituição, fundada em 1854 pelo príncipe regente, mais tarde Grão-Duque
Friedrich von Baden, teve como primeiro diretor o pintor paisagista Johann
Wilhelm Schirmer (1807–1863). Enquanto professor e como reformador
administrativamente hábil, Schirmer desenvolveu um programa de ensino
extremamente arrojado para a escola, que na época já era vista como avançada,
tanto pelo encorajamento da pintura de paisagem, quanto pela grande variedade
de disciplinas artísticas incluídas no programa. Pelo que sabemos, a
permanência do artista na cidade vai de setembro ou outubro de 1878 até outubro
de 1880, quando se desloca para Berlim.
8. Berlim,
como resultado da revolução industrial durante o século XIX, tornou-se o
principal centro ferroviário e econômico da Alemanha, vindo a ser proclamada,
em 16 de abril de 1871, a capital do recém-fundado império alemão. Além da sede
administrativa e econômica do império, era também a capital cultural. Nesta sua
terceira cidade na Alemanha, Weingärtner matricula-se na Real Academia
Prussiana de Belas Artes. Conforme as narrativas biográficas de Guido e
Damasceno, no final dos anos 1880, ele passa por enormes dificuldades
financeiras, tendo que abandonar a academia, empregando-se em um estúdio
fotográfico. Para sobreviver, recebe auxílio financeiro de alguns amigos de
Porto Alegre: Martim Bromberg, Jacob Roch e J. Bartolomeo Sesiani, todos ricos
comerciantes.
9. Em
maio de 1883, encontramos Weingärtner matriculado na “Académie Julian”, em
Paris, só retornando em julho de 1884, inicialmente em Mayerhofer e, depois, em
Munique, a rica capital da Baviera. Em 1871, Munique já contava com 170 mil
habitantes e seu crescimento foi acompanhado de um incremento econômico e
cultural. Nesta cidade, ele se matricula na academia local e chega, inclusive,
a participar de uma exposição na “Moderne Galerie”, onde, conforme depoimento
de Karl von Koseritz (cf. GUIDO 1956, p. 37) vende a tela “Der Besuch im
Atelier” (“A visita ao Ateliê ou Cena de Atelier”) por mil francos.
10. Se, na
Alemanha, mesmo sendo aluno de pintores mais tradicionais, ele conviveu com a
obra de artistas arrojados, tanto do ponto de vista formal quanto temático,
como Adolph Menzel (1815-1905), Wilhelm Leibl (1844-1900), Franz von Lenbach
(1836-1904) e Lovis Corinth (1858-1925), com os quais sua obra tem evidentes
afinidades, na França, ele conviveu com o sucesso dos pintores filiados ao
movimento naturalista. Fica evidente o parentesco da obra de Weingärtner com a
desses artistas; em ambos os casos há a obediência aos cânones do “desenho
correto”, da boa pintura e da importância dada aos temas simples, em oposição à
grandiloquência e à falsidade da pintura praticada por seus professores
franceses, mormente Adolphe-William Bouguereau (1825-1905).
11. A
viagem e a permanência de Weingärtner na França (de maio de 1882 a junho ou
julho de 1884), depois de seu périplo por diversas cidades e instituições de
ensino na Alemanha, está marcada na sua biografia pelo empenho em conquistar a
estabilidade financeira, que ele alcança graças a uma pensão anual dada pelo
Imperador Dom Pedro II. Do ponto de vista de sua carreira, se a estadia na
“Académie Julian” [Figura 1]
não deixou marcas evidentes, sua permanência em Paris certamente fez uma grande
diferença.
12. Em
dois artigos (2002 e 2005), a pesquisadora Ana Paula Cavalcanti Simioni analisa
o papel da “Académie Julian” em Paris e relaciona as etapas da formação
acadêmica francesa no período. Tendo grande destaque na formação do futuro
artista, o ensino do desenho [Figura 2, Figura 3, Figura 4 e Figura 5] iniciava com uma etapa na qual os alunos se
limitavam a copiar partes do corpo humano a partir de modelos de gesso. Num
segundo momento, eles copiavam modelos inteiros de gesso, bustos e corpos, para
exercitar o estudo da luz e dos volumes e, finalmente, um terceiro estágio
levava-os ao desenho de modelos vivos. Segundo Simioni, a “Académie”, ou desenho a partir
de um modelo vivo, era primordial na formação de artistas, com grande
significado simbólico em suas carreiras. Esclarece a autora que essa impositiva
presença do desenho estava ligada à hierarquia dos gêneros acadêmicos, que
tinha no patamar mais elevado a pintura histórica, que centrava suas narrativas
no herói, cujo corpo deveria ser marcado por musculatura visível e possante,
denotando potência física e vigor, qualidades eminentemente masculinas (SIMIONI
2005). Assim, a perfeição do desenho dos corpos humanos era requisito
fundamental para uma carreira de sucesso.
13. A
pintura era a segunda fase da formação acadêmica, passando por níveis
diferentes, desde a etapa 1, intitulada de “ébauche”, exercício visando o
aprimoramento técnico, no qual o aluno refazia, passo a passo, uma pintura dada
como modelo, um trabalho que deveria ser executado com uma paleta
cuidadosamente escolhida e seguindo todas as etapas de construção da
imagem (BOIME 1971: p. 36 e segs.). A etapa 2, intitulada “esquisse”, era
um ensaio geral da tela concebida, com a disposição da composição, cores e
luminosidades, mas com pinceladas soltas e sem preocupação com o acabamento; e,
finalmente, na etapa 3 ou “fini”, encontramos a tela propriamente dita; é
quando se recupera o “esquisse”, controlando os efeitos de luz e conferindo-lhe
o acabamento mediante o qual quaisquer vestígios das mãos do pintor deveriam
ser retirados, a fim de lhe conferir a impressão de perfeição almejada.
14. Com
sua formação praticamente completa, dados os quase sete anos de trânsito entre
escolas e diversos professores na Alemanha e na França, Weingärtner parece ter
conquistado com a pensão imperial, de uma só vez, a ambicionada independência
financeira (depois de vivenciar rigorosas restrições financeiras em 1880, na
Alemanha e, em 1883, em Paris) e sua identidade artística. Podemos afirmar que
é a partir da segunda metade dos anos 1880 que ele vai efetivamente constituir
um vocabulário particular.
15. Se
obras desse período são escassas, são elas as primeiras nas quais podemos perceber
um artista senhor de seus meios e assuntos, como podemos ver na pintura
intitulada No atelier [Figura 6], pintada em Paris ou, talvez, em Munique.
Outra obra significativa do período é o Recanto
de ateliê em München [Figura 7], de 1884,
com evidentes ecos da célebre Das
Balkonzimmer (1845) [Figura 8], obra de
Adolph von Menzel (1815-1905), hoje na Alte Nationalgalerie, em Berlim.
16. O que
podemos observar nestas obras é uma evidente filiação ao que convencionou-se
chamar, inadvertidamente, de “pintura realista”. Dizemos inadvertidamente,
pois, conforme lembra Jorge Coli,
17.
A evolução da História da Arte em nossa
época lembra um vasto império que alarga cada vez mais os seus domínios. Desde
a recuperação do barroco uns 130 anos atrás até, mais recente, a da arquitetura
historicista e da pintura oficial do século XIX, passando pela reconsideração do
maneirismo, do art nouveau, do neoclassicismo, da pintura romântica,
setores inteiros da produção artística que estavam na sombra há algumas
décadas, surgem ao olhar do historiador e de um público cada vez mais vasto.
(COLI 2010, p. 285)
18. Dentro
dessa lógica de revisão e reescritura da História da Arte, o Naturalismo surge
como uma tendência que permite a visualização e o entendimento das expectativas
de um grande grupo de artistas atuantes nas últimas décadas do século XIX, que
não se enquadram em qualquer dos movimentos do período, Impressionismo e
Simbolismo, por exemplo, sendo, portanto, simplesmente descartados da maioria
dos estudos de história da arte. No caso do Brasil, por exemplo, muitos foram
os que ficaram nesse “não-lugar”, apertados e indefinidos entre o final do
academicismo do Segundo Império e o modernismo da década de 1920.
19. Como
sabemos, o Naturalismo foi um movimento artístico que surgiu por volta de 1870,
principalmente na França, seguindo de perto o seu antecessor, o Realismo, mas
mantendo “uma grande distância entre o realismo de Courbet - cuja relação
sujeito-objeto não passa pela vocação da neutralidade e da universalidade - e o
naturalismo do fim do século, que deseja fazer o retrato de sua época, num
projeto próximo ao dos Rougon-Macquart” (COLI 2010, p. 291).
20. Do
Realismo, o Naturalismo retoma algumas características, como a importância dada
ao motivo, a percepção sensível da natureza e o interesse pelo mundo da
burguesia e dos camponeses. É primordialmente pela perspectiva darwiniana da
existência e pela crença da futilidade dos esforços do homem face à potência da
Natureza que o movimento se caracteriza, além do interesse temático calcado no
mundo dos operários e pelo destaque maior dado à figura em detrimento do
cenário.
21. Caracterizá-lo
significa agrupar qualidades comuns, e a que se destaca mais é o seu “caráter
internacional bastante homogêneo” (COLI 2010, p. 287) que tem em Paris o seu
foco principal, na “Escola de Belas-Artes, mas também nos ateliês de mestres
diversos e em academias, a mais notável sendo a Académie Julian” (COLI 2010, p.
287). Outra característica apontada por Coli em seu texto é a paixão em
descrever e situar socialmente os objetos representados: “Não buscando inovar
no plano do ‘fazer’ artístico, mas, ao contrário, tentando dispor instrumentos
picturais perfeitamente adquiridos e dominados ao serviço da intenção de
‘descrever’ a ‘realidade’, os naturalistas apresentam um métier anônimo, quase
intercambiável” (COLI 2010, p. 287).
22. A
afinidade formal e temática da obra de Weingärtner com os naturalistas é
irrefutável. Essa constatação não é incomum nos dias de hoje, como podemos
observar no texto de Luciano Migliaccio:
23.
Derrubada [Figura 9], do gaúcho Pedro Weingärtner, talvez seja a
obra de maior êxito dentre todas as que se inscrevem no filão da retomada da
paisagem nacional baseada no exemplo de [Félix-Emile]
Taunay. Contudo, nos troncos retorcidos e nas raízes revoltas, expostas a
uma luz crua, o artista soube captar as consonâncias simbólicas do tema, ao
passo que resolve os planos e os contrastes luminosos mediante densos empastos
de cor na superfície. Em sua pintura de gênero, Weingärtner fundou um novo e
vigoroso regionalismo na pintura brasileira, representando o mundo dos
emigrantes do sul do país. (MIGLIACCIO 2000, p. 180)
24. A
percepção do caráter particular e localista, apontada por críticos e
comentaristas contemporâneos do artista, foi compreendida antes como uma
espécie de regionalismo. Essa visualidade estaria, teoricamente, dando
continuidade ao processo de construção da identidade nacional, movimento
iniciado no academicismo romântico, de inspiração literária, notável em algumas
obras “indianistas” de pintores como Vitor
Meireles (1832-1903) e Rodolfo
Amoedo (1857-1941). Nesse caminho identitário, a continuidade estaria na
observação da realidade local, como na obra do paulista José Ferraz
de Almeida Júnior (1850-1899).
25. Interessante
observar que essa filiação temática e formal não escapou aos observadores mais
atentos. Sua primeira mostra individual, junto ao ateliê fotográfico de Insley
Pacheco, no Rio de Janeiro, em 1888, foi recebida de maneira entusiástica
por Oscar
Guanabarino (1894) que, entre outros elogios, escreveu:
26.
Atualmente aparece uma arte, que, se não é
francamente nacional, acentua bem a tendência para isso. Nesse ponto temos três
artistas notáveis, que pintam cenas brasileiras, produzindo quadros magníficos
- Almeida Junior, Brocos e Weingärtner. Weingärtner não se limita a ser
brasileiro - torna-se bairrista. Atualmente os seus quadros são cenas do Rio
Grande, ou pelo menos do Sul.
27. Se
nesta exposição ainda não havia uma ênfase destacada na apresentação de temas
do sul do país, isso se dará de maneira superlativa na sua mostra de 1892,
também no Rio de Janeiro. Nas obras desse período, entre as quais Chegou Tarde! (1890) [Figura 10], Kerb
(1892) [Figura 11], Fios Emaranhados
(1892) [Figura 12], Charqueada (1893) [Figura 13],
podemos observar, de maneira inegável, a presença dos princípios do
Naturalismo, no que esse tem de mais destacado, ou seja, o foco na vida dos
pequenos agrupamentos humanos e suas atividades cotidianas. Esse aspecto
naturalista, que percebemos na descrição precisa dos habitantes da região do
Vale do Rio dos Sinos em Kerb, nos da
região serrana em Fios Emaranhados e Chegou Tarde! e,
finalmente, nos moradores e nas lidas do extremo sul em Charqueada.
28. A obra
de Weingärtner tem grande afinidade temática e mesmo formal com a obra de um
grande número de artistas europeus, tanto franceses quanto alemães. Notável é,
por exemplo, a afinidade que existe entre ele e o belga Évariste Carpentier
(1845-1922), pintor de cenas de gênero e paisagens. Observar a pintura
intitulada Les Étrangères (1887) [Figura 14] é lembrar-se irresistivelmente de Chegou Tarde! (1890) e Fios Emaranhados (1892). São artistas que, reproduzindo de maneira fiel a
realidade das coisas, estão menos preocupados com “[...] a realidade e mais
[com] a defesa de uma concepção da natureza relacionada a uma forma de
representação tradicional da realidade. Neste sentido, Weingärtner é mais um
pintor ‘naturalista’ do que propriamente um ‘realista’” (COSTA 2010, p. 8).
29. Se
esse movimento ficou centralizado na França e, principalmente em Paris,
conforme já vimos, ele desenvolveu-se amplamente e com grande receptividade por
toda a Europa e mesmo no Brasil, classificados indiscriminadamente de
realistas, naturalistas, “macchiaioli”, “veristas”, realistas burgueses etc.
Assim, permanecendo nos limites geográficos da atuação de Pedro Weingärtner,
podemos alinhar aos franceses Jules Bastien-Lepage (1848-1884), Jules Breton
(1827-1906), Julien Dupre (1851-1910), Alphonse Moutte (1840-1913), o português
José
Malhoa (1855-1933) [Figura 15], os
italianos Ettore Tito (1859-1941), Telemaco Signorini (1835-1901), Antonino
Leto (1844-1913), Francesco Loiacono (1841-1915), os alemães Adolph von Menzel
(1815-1905), Hans von Marées (1837-1887), Wilhelm Leibl (1844-1900), Fritz von
Uhde (1848-1911), Wilhelm Trübner (1851-1917), Max Libermann (1847–1935), os
espanhóis Joaquín Sorolla y Bastida (1863-1923) e Mariano Barbasán Lagueruela (1864–1924) [Figura 16], este último companheiro de Weingärtner nos
verões em Anticoli Corrado, além dos já citados brasileiros Rodolfo Amoedo e
José Ferraz de Almeida Júnior. São artistas que, além de pertencerem a uma
mesma geração, pois a maioria nasceu por volta da metade do século XIX, têm em
suas obras características formais muito próximas, como a manutenção da
perspectiva tradicional, a nitidez e objetividade na representação dos objetos
e das pessoas e uma paleta realista, ou seja, a fidelidade à representação
mimética das coisas.
30. Outros
aspectos importantes do Naturalismo, que não temos como desenvolver aqui, são
ainda destacados por Jorge Coli, tais como a função destas obras junto ao seu
público e a relação que esses artistas mantinham com a fotografia: “Comparada à
pintura, o que a reprodução fotográfica nos oferece é um testemunho acidental,
um fragmento distinto da visão global contida no quadro. [...] O pintor [...]
recria o real; ele não o apreende no que de parcial, mas o recompõe de um modo
mais satisfatório para o espírito que busca a síntese” (COLI 2010, p. 292).
31. Se
sobre a opção por estudar na Alemanha não temos informações consistentes,
inconsistentes também são os dados sobre a súbita mudança para Paris. Neste
caso, considerando o desenvolvimento e resultados posteriores da sua carreira,
compreenderemos que a estratégia da mudança se justifica pela aproximação a um
artista admirado pela aristocracia brasileira, como o celebérrimo Bouguereau,
que abriu um caminho de conforto material para Weingärtner. Sobre a opção pela Itália
também não temos dados. Curiosamente, essa foi a opção menos compreendida pelos
estudiosos, que a consideram como um retrocesso, visto que esse país, no século
XIX, depois dos esplendores do Renascimento e do Barroco, era considerado como
um centro estagnado e adepto de um gosto tradicional, senão retrógrado.
32. Entretanto,
entendo que é impossível falar em estagnação: a Itália não vivia mais a
exuberância do seu passado, é claro, mas isso não significa um apagamento de
sua produção artística. Roma ainda era um grande centro de ebulição cultural;
veja-se, por exemplo, a questão da música italiana no período, a mais
prestigiada e admirada da Europa naquele momento. E a literatura? E os
“Macchiaioli”? Sem estendermos muito a explicação, parece-nos que Gonzaga
Duque (1863–1911), em texto de 1888, criticando a exposição de Henrique
Bernardelli (1857-1936), colega de estadia na Itália e, de acordo com
alguns documentos, amigo de Weingärtner, esclarece com precisão essa opção, ao
escrever que:
33.
Sob esse ponto de vista, a Itália apresenta
grandes vantagens, e entre muitas acha-se a de uma certa semelhança com o nosso
país, mormente pela persistência do tom e a imutalidade da luz [...] ora,
habituando-se o pintor a estudar ao ar livre a isolada natureza italiana, com a
maior destreza e facilidade produzirá a nossa paisagem. Parece-me justa essa
opinião e por ela sou levado a crer que nenhum pintor moderno conseguirá
representar com mais exatidão a nossa natureza do que Henrique Bernardelli [...]
No meu modo de ver, para quem dispõe de poucos anos de aprendizagem, a Itália é
o único país em que um paisagista brasileiro pode se aperfeiçoar. (apud DAZZI
2005, p. 124)
34. Em sua
ficção Ana em Veneza (1998), o
escritor João Silvério Trevisan centra parte de sua narrativa na trajetória do
compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920) e de suas relações com
outros artistas brasileiros na Europa. Assim é que participam indiretamente da
narrativa os pintores Henrique Bernardelli e Pedro Weingärtner. Os três viveram
por longos períodos na Europa e eram amigos muito próximos. Trevisan
possibilita-nos uma perspectiva inteiramente nova das andanças do artista
gaúcho, situando-o num contexto verossímil e inteiramente coerente no que diz
respeito à sua participação na vida cultural de Roma no período. Trevisan, em
seu discurso ficcional dirigido a Nepomuceno, escreve que Weingärtner
35.
Com seu perfeito conhecimento da cidade, [...] introduziu-te
nos segredos e maravilhas de Roma, que considerava mais católica e a mais pagã
de todas as capitais do mundo. [...] Weingärtner levou-te também para os mais
movimentados cafés romanos, especialmente o Café Greco, ponto de encontro de
artistas combativos - onde conheceste o grupo do Ferrari, Bertolla, irmãos
Coleman, Morani, Cabianca e outros pintores da campanha, amigos do Weingärtner,
que se metiam em longas discussões sobre estética e política, quando não
matavam o tempo simplesmente jogando xadrez. (TREVISAN 1998, p. 313)
36. Na
verdade, Trevisan está descrevendo o grupo do In Arte Libertas, movimento de tendência separatista italiano que
propunha uma reformulação da pintura italiana, enfatizando os aspectos
simbolistas e defendendo a paisagem como o gênero mais adequado aos seus
propósitos.
37. O
Simbolismo foi uma tendência que defendia a não-objetividade na arte,
valorizando aspectos até então ausentes das narrativas pictóricas, como o
inconsciente. Ele enfatizava temas que incluíam a indagação sobre o sentido da
vida e da morte, a fantasia, o sonho, o mito, o enigma, o mistério etc., ou
seja, tudo o que, naquele momento de grande avanço científico e tecnológico,
afastava o homem da sua essência espiritual.
38. Considerando
a escassa divulgação do Simbolismo fora da França e da Bélgica (ambos os países
com volumosa história publicada), o movimento também teve adeptos e um grande
desenvolvimento em outros países, como na Itália e inclusive, em menor
intensidade, no Brasil. Sob a forte influência do poeta Gabriele d’Annunzio
(1863-1938), artistas como Adolfo de Carolis (1874-1928) e Giulio Aristide
Sartorio (1860-1932) vão desenvolver um estilo de pintura que recupera a
tradição renascentista, associada ao gosto pelo mito e pela alegoria, presentes
principalmente na pintura dos ingleses pré-rafaelitas.
39. In Arte Libertas foi
fundado em 1886, por (Giovanni) Nino Costa (1826-1903), talentoso pintor romano
que tinha também grande capacidade de organizador e líder. Deixando a
influencia dos Macchiaioli,
movimento de pintura de vanguarda com temática naturalista e influência da
técnica e da paleta impressionista, In
Arte Libertas tinha uma evidente vocação antiacadêmica, restabelecendo a
importância da pintura com a vida, colocando os artistas em contato direto com
o assunto a ser representado. Girando em torno da paisagem e da natureza, a
pintura do “In Arte Libertas” era carregada de sentido simbólico e metafísico,
identificada, principalmente, com a pintura da École de Pont-Aven.
40. Não
sabemos se Weingärtner chegou a ter uma integração muito próxima com o grupo do
Café Greco, conforme narra Trevisan, além de frequentá-lo. Assim, não sabemos
se ele participou da exposição do “In Arte Libertas”, organizada em Londres em
1888, que permitiu ao grande público ver, pela primeira vez, as obras dos
italianos expostas com as de Camille Corot (1796-1875), Edward Burne-Jones
(1833–1898), Arnold Böcklin (1827-1901), junto com outros pré-rafaelitas
ingleses.
41. O
grupo dissolve-se no início dos anos 1900, articulando-se mais tarde em outro
grupo, intitulado os XXV della Campagna
Romana, ainda seguidores dos preceitos de Costa, saindo juntos para
representar em pintura o campo romano e para comer bem em tavernas locais. O
grupo, tendo como líder Henry Coleman (1846-1911), era formado por Onorato
Carlandi (1848-1939), Giulio Aristide Sartorio (1860-1932), Filiberto Petiti
(1845-1924), Duilio Cambellotti (1876-1960) e deixou uma vasta produção
paisagística que influenciará toda a nova pintura italiana a partir de então.
42. Dois
aspectos interessam-nos nessa aproximação de Weingärtner com esses artistas
dissidentes: a temática simbolista e o gênero paisagem. A pintura intitulada Tempora Mutantur (1898) [Figura 17] parece ter afinidades com as duas questões
acima enumeradas.
43. Uma
das obras-primas do artista, a pintura teve longa gestação, ao menos no que diz
respeito à paisagem na qual se situam os personagens, pois a mesma paisagem é o
tema de uma tela datada de 1893, com idêntica configuração, até os menores
detalhes e, com o mesmo tratamento pictórico.
44. Desde
o seu título, que tem um acentuado caráter simbólico, até na sua configuração,
a pintura tem um clima de contenção e subjetividade que sempre causou
interrogações no público e mesmo em alguns de seus analistas. As interpretações
vão da leitura literal do título, que é a abreviação do provérbio que remonta a
um ditado atribuído ao Imperador Lotário I (795–855) e que, na íntegra, é
“Omnia mutantur, nos et mutamur in illis”, significando que “Todas as coisas
mudam e nós, nelas, também mudamos”. Sempre que usada, a frase expressa a
sensação de estranhamento que os tempos modernos causam nas pessoas, mesmo
trazendo melhorias, exigindo delas a aceitação e a conformidade, visto que as
mudanças representam a própria evolução.
45. Outras
interpretações, ainda fundadas no título, afirmam um retrato da situação
histórica dos imigrantes italianos, face às dificuldades na terra nova ou,
ainda, uma leitura do ponto de vista da forte influência do Positivismo no
pensamento dos brasileiros no período da Proclamação da República,
principalmente no Rio Grande do Sul, onde a doutrina de Auguste Comte teve
enorme penetração.
46. Formalmente,
entretanto a tela lembra irresistivelmente Le
Pauvre Pêcheur (1881) [Figura 18], pintura
de Pierre Puvis de Chavannes (1824-1898). A obra teve enorme repercussão ao ser
exposta no Salão de 1881, em Paris, e é inevitável que consideremos a
possibilidade dela ser do conhecimento de Weingärtner. Se não ao vivo, ao menos
por reprodução, considerando que, em 1887, ao ser adquirida pelo Estado
francês, novamente causou espécie principalmente pelo arrojo da iniciativa, que
ia de encontro a todas as convenções pictóricas da época.
47. Objeto
de inúmeras interpretações, na obra se destaca, principalmente, seu caráter
sintético: uma pintura econômica que abre mão do modelado e da perspectiva
tradicionais. Comparada por Joris-Karl Huysmans (1848–1907) com uma imagem
extraída de um missal ou de algum afresco antigo, a pintura foi recebida com
entusiasmo pelos artistas, principalmente aqueles que estavam em busca de uma
nova orientação estética. Georges Seurat (1859-1891), Paul Gauguin (1848-1903)
e Maurice Denis (1870-1943), além de Pablo Picasso (1881-1973), em momentos diferentes,
entusiasmaram-se com o rigoroso despojamento e com a eficácia dessa obra
silenciosa, verdadeira porta de acesso para a nova pintura do século que se
aproximava.
48. Tempora Mutantur parece
ser herdeira direta dessas conquistas temáticas e formais: uma pintura de
história, certamente, mas também quase uma pintura de gênero, só que intimista
e sem anedota, plena de contenção e de uma intensidade incomuns no gênero. O
aspecto formal também tem correspondências nas duas obras: mesmo que Tempora Mutantur seja mais elaborada
formalmente, principalmente no realismo extremado das figuras, sua paisagem tem
tratamento despojado e simplificado - não tanto quanto a pintura de Puvis de
Chavannes, evidentemente, mas bastante arrojada para um pintor que vinha de uma
formação que pregava um rigoroso detalhismo minimalista na representação das
formas. Presentes em ambas as telas, além do tom baixo do colorido e a economia
da composição, o mesmo clima de contenção e resignação, de silêncio conformista
e de aceitação de um determinismo superior. São pinturas que promovem uma
percepção indefinida, um sentimento concomitante e contraditório de atração e
estranhamento, muito bem definida pelo crítico ao escrever “En dépit des
révoltes que soulève em moi cette peinture quand je suis devant, je ne puis me
défendre d’une certaine attirance quand je suis loin d’elle” (HUYSMANNS 1883,
p. 116). Para reforçarmos essa aproximação de Weingärtner com o Simbolismo deveríamos
analisar outras obras contemporâneas que tenham as mesmas características,
mormente a pouco conhecida e ainda por estudar Rosa Mística (1909), da coleção APLUB - Pinacoteca da Associação
dos Profissionais Liberais Universitários do Brasil (Porto Alegre), que deixa
claro, desde seu título até sua evidente iconografia, a filiação com o
movimento.
49. Desenvolvemos
aqui um exercício de relacionar a obra de Pedro Weingärtner às regras e
mecanismos de produção e circulação, que incluem não só o conhecimento histórico
do período, mas também às condições de formação dos artistas, do fazer
artístico e da difusão da arte junto às instâncias de divulgação, legitimação e
público. Nossa preocupação foi enfatizar a leitura das obras à luz desse
contexto. Esse é um exercício que exige fôlego, tempo e espaço para ser
desenvolvido in extenso: o que aqui apresentamos é um esboço, uma tentativa de
ampliar o universo do conhecimento da obra do artista. Procuramos ir além das
condicionantes impostas pela literatura produzida a respeito de sua obra e,
regra geral, da produção do século XIX no Brasil, fugindo dos esquemas
interpretativos e dos rótulos redutores.
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