Fotografias para o Barão do Rio Branco: O pintor Pedro Américo, como “diretor de fotografia” na Itália (1889-1898)
Vladimir Machado
MACHADO, Vladimir. Fotografias para o Barão do Rio Branco: o pintor Pedro Américo, como “diretor de fotografia” na Itália (1889-1898). 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/pa_brb.htm>.
* * *
PARTE 1 - A fotografia como fonte documental e de informação.
A partir de 1851, quando as técnicas fotográficas possibilitaram a multiplicação de uma imagem em milhares de cópias sobre papel, as fotografias passaram a ser comercializadas e a servirem como um substituto do objeto real. A visão tida como “realista” e “verdadeira” das fotografias, dava a ilusão de se viajar por cidades míticas como Roma e Pompéia sem sair de casa, ou de se possuir grandes obras de arte canônicas dos mestres da pintura e da escultura. Os artistas contemporâneos, ainda não consagrados pela História, passaram a fotografar seus trabalhos para também fazerem parte desse panteão. Afinal, o novo meio fotográfico parecia igualar obras da antiguidade, dos grandes mestres e da modernidade no mesmo espaço de glória conferida pela reprodução tecnológica. Fotografar as próprias obras com o objetivo de divulgação ou de vender as reproduções se tornou uma prática dos artistas, desde os que eram publicamente contra a fotografia, como Ingres nos anos de 1850/60, até os que utilizavam a própria câmera para fotografar, como Delacroix, Degas, Bonnard, Gauguin, Detaille e Vernet, em Paris, e Mesdag e Breitner, na Holanda.
E não foram só os pintores que se utilizaram dessa possibilidade informativa e documental, mas também escultores como Auguste Rodin, Constantin Brancusi e Medardo Rosso empregaram fotografias como meio para controlar a informação e a interpretação de suas peças. Rodin encomendava fotos a Edward Steichen, cujos instantâneos proporcionaram significados novos às esculturas, plenos de conteúdos poéticos. Rodin deixou um acervo considerável de 7.000 fotografias de suas esculturas, algumas também voltadas para o comércio de cartões postais.[1]
No Brasil, a utilização da fotografia também encontrou adeptos entre os artistas, entre os quais o pintor Pedro Américo. Analisando a correspondência de Pedro Américo com o Barão do Rio Branco, podemos constatar que o artista não só havia desenvolvido esta prática, comum aos principais artistas do século XIX, como teve um envolvimento muito maior e mais complexo com a fotografia do que o esperado.
Em 28 de fevereiro de 1889, Lavasseur terminava a Grande Enciclopédia Francesa, na qual estava reservado um verbete com o título Brésil. O verbete, que inicialmente constava de quatorze páginas e muitos erros, acabou com 51 páginas, menor apenas que o da Alemanha, graças à colaboração de um artigo do Barão do Rio Branco, que ficou exultante com o destaque conseguido.[2]
Mas o Barão não queria colaborar apenas com textos para a enciclopédia. Ele também queria incluir imagens e escreveu a Pedro Américo, no início de 1889, pedindo o envio de fotografias da tela na qual retratava o Imperador D. Pedro II (1872, Museu Imperial de Petrópolis-RJ) e do painel Independência ou Morte (1888, Museu Paulista -USP) para constarem dessa Grande Enciclopédia de Lavasseur. Pedro Américo considerava essa publicação “um grandioso empreendimento” e lamentou muito não ter essas fotografias nem reprodução alguma do retrato do Imperador que havia pintado para o Senado, no Rio de Janeiro.[3]
Nesse mesmo ano, o Barão do Rio Branco escreveu de Paris a Pedro Américo dando conta de que havia proposto o nome do artista para ser membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), provavelmente como retribuição a um trabalho fotográfico que Pedro Américo realizara em Florença, na Itália. Pedro Américo agradeceu a lembrança e elegantemente recusou o convite. Afinal de contas, ponderou Pedro Américo, o IHGB nunca o havia encomendado sequer uma pintura. Se o IHGB desse mesmo valor aos quadros históricos, ele há muito já teria oferecido “pelo menos fotografias dos painéis que tinha pintado com tanto estudo e consciência”. [4]
Tais fatos ilustram bem como Pedro Américo tinha a fotografia em alta conta, julgando-a capaz de, na ausência do original, representar muito bem um trabalho de pintura executado com todo o cuidado. O fato de mencionar o oferecimento de fotografias de seus quadros demonstrava um claro uso da fotografia como meio de alargar a circulação restrita da pintura única e original.
No desabrochar da nova era industrial, onde o valor de um bem ou objeto era ter sua posse ou propriedade, os objetos-culturais alcançaram enorme valor, justamente por serem objetos originais e únicos. Obviamente o valor de um quadro era infinitamente maior do que o da sua reprodução fotográfica, que não era o objeto em si, mas um pedaço de papel que continha informações sobre o quadro. Vilém Flusser sustentou que as imagens técnicas multiplicadas da fotografia sobre o papel, como objetos, diferente do original único da pintura, eram desprezíveis: ”Não tem muito sentido querer possuí-las. Seu valor está na informação que transmitem. Com efeito, a fotografia é o primeiro objeto pós-industrial: o valor se transferiu do objeto para a informação”.[5]
Pedro Américo soube combinar o peso do objeto-cultural arcaico de sua pintura com a leveza e a rapidez da informação contida na ilimitada reprodução fotográfica de seus quadros. O quadro original, magicamente mimetizado nas fotografias, era multiplicado e distribuído nos “círculos dialógicos” sem precisar gastar tempo e dinheiro transportando um grande painel. O método era considerado “progressista” para a época e foi justamente por ter a posse de uma fotografia do painel Batalha de Campo Grande, enviada por Pedro Américo, que o articulista de um jornal alemão pôde julgar, sem ver o quadro original, o “grande mérito técnico da composição”.[6] Assim, a informação visual, que antes se dava através da escrita ou de gravuras, foi passada adiante com muito mais precisão pela imagem fotográfica, sem a necessidade do original. Em 1888, a fotografia do painel Proclamação da Independência foi utilizada pelo pintor como prova, dada ao Visconde do Cruzeiro, de que painel estava concluído.[7] Além da função informativa, de foto-documento, Pedro Américo também utilizou fotos para montar uma “exposição virtual” desse painel, expondo a fotografia e os desenhos, os mesmos que seriam expostos mais tarde na Exposição Universal de Paris, em 1889.
Raul Pompéia escrevia uma crônica lamentando que a tela tivesse ido direto para São Paulo sem uma exposição no Rio de Janeiro e sentenciava: “Pelas fotografias expostas, avalia-se. Deve ser uma composição de efeitos audaciosos de colorido, como o é de desenho ...”.[8] Novamente uma “avaliação” da obra pôde ser feita sem a presença do objeto artístico. Pode-se constatar, nestes exemplos, que Pedro Américo dispensava uma atenção especial à qualidade das reproduções fotográficas de seus quadros e não era somente para ser fiel ao original. Essas fotografias, além se servirem para divulgar e informar sobre sua obra, eram também uma fonte de renda extra, pela comercialização das imagens.
Mas não era só isso. Para Pedro Américo, a fotografia ia muito além da divulgação e da comercialização dos seus trabalhos. O fato de fotografar um grande painel para vê-lo impresso em forma reduzida - como fez com as pinturas Batalha de Campo Grande, Independência ou Morte, Heloísa ou Batalha do Avahí - fazia com que suas obras tomassem parte em um “museu imaginário”, magicamente instaladas ao lado das obras dos grandes mestres, também impressas fotográficamente.
Ernest Lacan (1828-1879), em 1856, já havia previsto a utilidade social da fotografia a serviço da história da arte. Ele antevia os livros e edições de arte que iriam difundir o melhor da produção artística da humanidade, como as gravuras antigas, as obras-primas da pintura e da escultura e os monumentos célebres da arquitetura de todos os países.[9] E não foi pensando de outra forma que Pedro Américo resolveu enviar suas fotos para a Enciclopédia de Lavasseur, mesmo não sendo do quadro solicitado e estando com uma qualidade sofrível. Para não perder esta rara oportunidade, Pedro Américo chegou mesmo a enviar uma fotografia da Batalha do Avahí na qual o fotógrafo, pelas grandes dimensões da pintura, não conseguiu enquadrar todo o painel. O que não é de se espantar. Se hoje, com os mais sofisticados recursos técnicos, ainda é difícil fotografá-la, pode-se imaginar como não teria sido no final do século XIX.
Mesmo tendo enviado essas fotos, Pedro Américo preocupava-se com a sua má qualidade, que poderia dificultar a sua reprodução no livro. Por isso, escreveu ao Barão do Rio Branco indicando os locais onde ele poderia encontrar perfeitas reproduções de seus quadros. Essas reproduções “perfeitas” segundo o pintor, não foram feitas por qualquer um. Tratava-se da importante Galeria de arte e editora Goupil. A Casa Goupil tinha várias sucursais em Bruxelas, Londres, sendo uma em Haia, na Holanda, onde trabalhou Van Gogh, então com 16 anos em 1869, transferido depois para Londres em 1873. Essa importante galeria vendia pinturas mas também gravuras reproduzindo pinturas e tinha uma “Galeria Fotográfica” onde expunha fotografias reproduzindo os quadros dos artistas de sucesso da época, como os pintores ingleses e belgas. Em carta a seu irmão Théo, que trabalhava na mesma Casa Goupil em Haia, Van Gogh indagava se existiam, nessa sucursal, fotografias dos pintores belgas Wauters, Lagey, Braeckeleer,Tissot, Mauve, Ziem, entre outros, o que indicava um intenso comércio de “fotografias de pinturas”. Van Gogh dialogava com seu irmão sobre a arte de pintores ingleses “hábeis” como Millais, Constable e Reynolds a partir das informações das gravuras e fotografias, que ele “certamente devia conhecer”, ou sobre o quadro Puritanos Indo à Igreja, do pintor inglês Boughton, que Théo conhecia “da nossa galeria fotográfica”[10].
Em Paris, Pedro Américo havia encomendado à essa Casa Goupil, a edição em dois formatos, de uma fotografia do quadro Heloísa, que na França intitulava-se La priére d’Héloïse par Figueiredo.[11] Esta, entre outras fotografias, estavam à venda nas casas Beussard, Valadon e no Boulevard St. Germain.[12]
Fica claro, nesses exemplos, que Pedro Américo dava à fotografia a função de incluir sua obra no universo moderno do consumo imaginário das obras-de-arte, a baixo custo, garantindo uma fonte de renda com as vendas das reproduções autorizadas de seus quadros ao editor Goupil. É fácil entender a grande decepção de Pedro Américo por não ter boas fotografias, naquele momento, para enviar para a Enciclopédia de Lavasseur. De fato, as fotografias enviadas acabaram não sendo utilizadas, sendo aproveitada apenas a composição do painel Brado do Ipiranga. Pedro Américo tinha conseguido um bom clichê deste painel e via nele a possibilidade inteligente de negociar suas reproduções de forma independente, fora da enciclopédia.[13] Inicialmente, pensou em negociar com o Barão do Rio Branco a posse de umas vinte reproduções avulsas da fotografia. Meses depois, aumentou para duzentas as folhas impressas desse painel, que serviriam para a divulgação do seu trabalho.
Exigente com a qualidade, o pintor desejava que “as photogravuras da Independência fossem estampadas em muito bom papel [...] e do tamanho da photographia no mesmo gênero daquela de tamanho médio” que o Barão havia lhe mostrado em Paris. Era tão grande a necessidade dessas fotografias reproduzidas que não fazia questão de preço: duzentos francos ou mais, o que fosse, ele pagava.[14]
Em 1889, o Brasil participaria da importante Exposição Universal de Paris, em comemoração ao centenário da Revolução Francesa. A comissão brasileira, composta por Cavalcanti, pelo Barão do Rio Branco e por Eduardo Prado, se preocupava em apresentar não só os produtos de exportação brasileiros, como o café, mas também a produção artística, exposta em um pavilhão grandioso, de estilo eclético. Nele, uma torre de quarenta metros, uma cúpula envidraçada, seis estátuas colossais simbolizando os rios do Brasil e 27 telas representando frutas tropicais do pintor negro Estevão Silva enfeitavam salas mais vazias.[15]
Pedro Américo deveria marcar presença com o painel Independência ou Morte, exposto em grande estilo. Porém, durante os preparativos para a exposição, surgiram obstáculos para a participação de sua pintura no Pavilhão do Brasil. A Comissão do Monumento do Ipiranga, presidida pelo Barão de Ramalho, alegando falta de segurança e verba para o transporte, decidira que não liberaria o painel para a exposição em Paris. A Comissão Central do evento, no entanto, garantiu que a Comissão do Monumento não teria nenhuma despesa, comprometendo-se a transportar o painel gratuitamente: “...daí para esta Corte, daqui para Paris, e mais tarde de lá para S. Paulo”.
A despeito do oferecimento dos organizadores e do pedido de liberação invocando a “boa vontade” e o “patriotismo” dos paulistas, acrescidos ainda de uma carta de Pedro Américo no mesmo sentido, a tela não participou da Exposição Universal de Paris, indo para lá somente a fotografia e os desenhos.[16] O artista sentiu-se despojado de sua grandeza, atingido no seu orgulho de pintor da história brasileira, expressando toda a sua indignação por ter que ir visitar a exposição “como um vendilhão, um roceiro qualquer”.[17] Mesmo com a acanhada exposição “virtual” da fotografia e dos desenhos do painel, esses trabalhos foram vistos por Ernest Meissonier, membro do júri de premiação da Exposição o qual, diante do descaso e do amesquinhamento de uma exposição que, em lugar do original de 4,15 x 7,60m exibia apenas uma reprodução fotográfica e alguns desenhos, viu-se impedido de dar um prêmio de pintura a Pedro Américo e ao Brasil.[18]
Novamente, em 26 de outubro de 1889, Pedro Américo respondia a uma carta do Barão do Rio Branco na qual, provavelmente, o encarregava de fazer reproduções fotográficas da coleção de retratos existentes na antiga Galeria de Florença. A escolha de Pedro Américo para realizar este trabalho nos permite assistir o desenrolar de uma atividade, senão humilde, pelo menos que de nada acrescentaria à trajetória artística do mais famoso pintor de história no Brasil. Pedro Américo, morando em Florença, falando bem italiano, bem relacionado e que conhecia os melhores fotógrafos profissionais, era o homem ideal para coordenar com sucesso o trabalho.
Estes documentos, no entanto, necessitavam de uma autorização do Ministério da Instrução Pública em Roma, o que sinalizava que este trabalho não seria fácil nem rápido. Depois de enviar a Roma o pedido de licença para serem fotografados os três retratos históricos, Pedro Américo passou a coordenar uma equipe de fotógrafos que ampliariam as cópias (1/3 do original), a cargo da “bella signorina” Andreocci, que se encarregaria de levar seu equipamento para fotografar os documentos na Academia de Florença, e que enviaria “uns 15 retratos photographados de cada personagem acompanhados dos respectivos clichês”, totalizando trezentos francos os dois trabalhos, “fora o encaixotamento e transporte”. Apesar das dificuldades apontadas por Pedro Américo, o trabalho foi concluído em cerca de três meses.[19]
Cinqüenta anos depois da invenção da fotografia, para um pintor como Pedro Américo, ela continuava sendo um auxiliar precioso, com uma função nitidamente técnica, utilitária, como um instrumento para uma tradução objetiva de belas visões do mundo, como queriam Delacroix e Rodin.[20] A relação de Pedro Américo com a fotografia era bem delimitada: tratava-se de uma fonte documental e com objetividade científica, como nesse trabalho realizado para o Barão do Rio Branco, embora até aceitasse que fotografias retocadas produzissem “melhor effeito, para quem não preferisse imagens authênticas”.[21] Nota-se, então, que Pedro Américo admitia que, em um trabalho livre, as fotos retocadas se tornavam um trabalho artístico, criativo, como as intervenções da foto-pintura e dos retoques dos fotógrafos pictorialistas, que no final do século já eram amplamente disseminados.[22]
Durante o trabalho realizado para o barão, quando um fotógrafo explicava a Pedro Américo, cheio de eloqüência e orgulho profissional, as limitações e qualidades técnicas da fotografia, este teceu um comentário irônico sobre aquele a quem ele chamava de “artífice”, que desenvolveu perante ele “um capítulo inteiro de mecânica e estética adequado”.[23] Tudo porque o fotógrafo tentava justificar os tamanhos das chapas fotográficas - possivelmente clichês de vidro - que seriam maiores ou menores que o tamanho das cartas do Barão do Rio Branco (18 x 12cm), segundo a exigência e os limites da “arte fotográfica”, tão minuciosamente explicada. Porém, o trabalho para o barão não se tratava de “arte fotográfica” e sim de documentar fotograficamente retratos de personagens históricos, realizados há mais de duzentos anos. Assim, Pedro Américo teve que frustrar as pretensões artísticas do “artesão fotógrafo” contratado, que queria retocar umas fotografias que haviam saído escuras, o que poderia comprometer sua autenticidade “devido à fantasia do artífice”.[24] Como pintor de história, este devia ser o dilema de Pedro Américo.
PARTE 2 - A fotografia contra “os monstros da imaginação”
Em 1892, com dificuldades em encontrar fontes iconográficas para pintar uma série de painéis históricos sobre a Inconfidência Mineira - só sendo realizado a pintura Tiradentes esquartejado (Museu Mariano Procópio-MG) - expressava dúvida em saber se havia ou não “vantagem para o artista a liberdade completa na criação de tipos históricos”. Essa dúvida era um eco do avanço da pintura de cavalete que pregava a espontaneidade ingênua e livre, contra as exigências práticas e “documentais” da produção dos painéis de pintura de história. A dúvida foi apenas momentânea.
O pintor preferia a certeza de uma vida voltada para os temas e o metier da “grande arte” da pintura de história. Apesar das desilusões de muitos projetos fracassados, Pedro Américo continuava considerando glorioso pintar com fontes certas, como a fotografia, para não “criar monstros na imaginação”.[25] As fontes fotográficas davam, segundo se pensava na época, uma suposta fidelidade e autenticidade histórica. Esse era um valor fundamental para os pintores de história, principalmente porque o uso de fotografias tornavam a execução da pintura mais fácil e rápida, inclusive de paisagens e retratos.
Em 1898, o Barão do Rio Branco encomendou a Pedro Américo um novo trabalho associado à fotografia: registrar, de forma clara e com pretensão fac-similar, os documentos e mapas que constituíssem provas científicas para a defesa da disputa territorial do Brasil contra a França, nas Guianas. Quase dez anos depois de dirigir fotógrafos para os retratos históricos, Pedro Américo estava novamente às voltas com despesas com um fotógrafo que protestava ou alegava, para poder cobrar mais, que tinha que mandar o operador e as máquinas para fora de seu estabelecimento e que certamente cobraria pelo trabalho mais do que Pedro Américo esperava.
Outra dificuldade do trabalho - além do bériberi, doença que vinha se acentuando cada vez mais desde 1873[26] - relacionava-se às fotografias coloridas. Não havia, em Florença, fotógrafos especializados em fotografias que pudessem reproduzir “estampas polychromas” como a dos mapas do Brasil que estavam nos arquivos da Academia de Florença, e era muito difícil alguém colorir a fotografia. “Aqui não há quem faça esses trabalhos especiaes, e algum artífice melhor aproveita-se desta circunstância para moer a gente e extorquir dinheiro”.
Pedro Américo, que dava grande valor à rapidez e praticidade da era industrial, exasperava-se com os artesãos tradicionais que trabalhavam “devagar como uma aranha [...] É como eu já lhe disse [...]: só à força de dinheiro e paciência se altera isto”. No final do século, talvez considerando um erro para sua profissão ter escolhido morar na Itália, reconhecia que Florença não era Paris, mas “o reino da mesquinharia em tudo”. Tinha as fontes artísticas, mas escasseavam os meios sofisticados de reprodução industrial, como a fotografia, já na fase das câmeras portáteis da Kodak, impressa ao lado dos textos em jornais e nas imagens em movimento do cinema. Além disso, o fotógrafo contratado não encontrava grandes placas de vidro para fazer os clichês no tamanho exigido e criava todo tipo de entraves para transportar as máquinas fotográficas do estúdio para o arquivo da Academia de Belas Artes. A questão dos negativos maiores para fazer uma ampliação fotográfica maior esbarrava certamente na pouca intimidade do fotógrafo italiano com formatos não convencionais, quando, no Brasil, Marc Ferrez já havia desenvolvido, com a ajuda de óticos franceses, uma câmera panorâmica, com clichês de chapas de cristal de até 40 x 108cm, fazendo “a grande vista panorâmica do Rio de Janeiro [...] obtida de um só clichê [27] .
De qualquer modo, com as fotografias prontas, incluindo a foto-pintura dos mapas, todo o trabalho poderia ser considerado concluído a tempo e satisfatoriamente, para os fins a que se destinavam: servir de suporte visual para provar os antecedentes portugueses anteriores à presença francesa nas Guianas, defendidas com sucesso pelo Barão do Rio Branco em Berna, Suíça, em 5 de dezembro de 1899.[28]
Em resumo, esses episódios nos revelam que, no final do século XIX, Pedro Américo demonstrava intimidade com o meio fotográfico de Florença e conhecia vários estúdios, discriminando quais os melhores, como o estúdio dos Irmãos Allinari. Revelava, sobretudo, uma preocupação em fotografar seus quadros com o máximo de qualidade da imagem, para que a reprodução “perfeita” da obra fizesse parte de um “museu imaginário” para um grande público,que não poderia comprar a obra única.
Ao investigar a relação de Pedro Américo com a fotografia, tendo somente estas cartas como referência , poderia-se pensar que teria sido somente no final do século o contato de Pedro Américo com esse novo meio. Mas a fotografia não era algo ocasional e de uso somente informativo para o pintor, ela servia também como um importante instrumento documental para pintar. Alguns autores sustentaram que Pedro Américo tinha uma postura conservadora e era vinculado à tradição antiga do sistema neoclássico, dando a entender que o pintor seria mesmo um acadêmico tradicionalista reacionário, avesso às novidades técnicas e ideológicas de seu tempo. Uma pesquisa mais ampla nas fontes iconográficas e literárias, não só nestas cartas, mas no uso de fotografias como modelo para pintar suas grandes telas de batalhas - Avaí(1877) e Campo Grande (1871) - permitiu que se descobrisse um universo artístico surpreendente, fora da visão convencional sobre o artista[29].
_____________________________________________________
[1] Cf. catálogo da Exposição Os artistas e a fotografia. Museu Guggenheim, Bilbao, Espanha, 2000, p.7; e catálogo da Exposição Rodin e a fotografia. 7 de junho/13 de Julho, 1995. Texto Helena Pinet, curadora das coleções de Fotografia do Museu Rodin, Paris. Pinacoteca do Estado, SP, 1995, 40p.il. Ver também NÉRET, Gilles. Auguste Rodin. Ed.Taschen, 1994, 96p, p. 1.
[2] DE PARANHOS, Antunes. História do Grande Chanceler - Vida e Obra do Barão do Rio Branco. Ed. Biblioteca Militar, vol. 53, RJ, 1942, 125p.: il., p.38-9; e CALMON, P.. História de d. Pedro II, vol. IV, p.1504, citado por Lilian Schwarz em As barbas do Imperador: D.Pedro II, um monarca nos trópicos. Ed. Companhia das Letras, 1998. 623p.i, p.445.
[3] Carta de 22 de fevereiro de 1889- Arquivo do Itamarati-AI-Lata 12, m8, p.14.
[4] Carta enviada de Florença ao Barão do Rio Branco, em 26 outubro de 1889, um dia depois da Sessão em que foi feita, no RJ, a proposta da candidatura de Pedro Américo, em 25 outubro de 1899. Arquivo do Itamaraty-Lata 12, m8. A candidatura foi vetada pelo presidente do IHGB, o historiador Joaquim Norberto de Souza Silva. Em 1899, uma carta do pintor à Princesa Isabel exilada em Paris, revelava que ele distribuía fotografias de seus quadros nos circulos de influência e de opinião : “As fotografias que eu prometi a Vossa Alteza Imperial , remeterei de Florença, pois aqui tenho apenas uma , muito amarrotada”. Carta à Princesa Isabel - Paris , 4 /08/1899. MIP-Pasta M. 204- Doc 9298.
[5] FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ed. Hucitec, SP, 1985, 92 p., p.53. Título do original em língua alemã: Für eine Philosophie der Fotografie. Tradução do autor.
[6] Um príncipe dos pintores. Traduzido e transcrito no jornal Gazeta de Notícias, RJ, 28 set 1877, ano III, nº 268, p.2, durante a exposição particular do painel Batalha do Avaí, na rotunda de Panorama na Praça Pedro II, no RJ, de setembro a novembro de 1877.
[7] Carta de Pedro Américo ao Barão de Ramalho, RJ, 5 de Agosto 1888. Arquivo do Museu Paulista -USP- Manuscrito nº 1491. Pasta A1-Pr58 P3 de 1423 a 1493 (Doc.1442 a 1485.).
[8] Crônica escrita a 2 de agosto de 1888 e publicada no Diário de Minas, Juiz de Fora, MG, em 5 de agosto de 1888. Em outra crônica no Diário de Minas-MG (26-08-1888), Pompéia também “avalia’ a partir de fotografias ,pondo em dúvida a divulgação do mau estado de saúde do imperador PII: “O imperador está mais gordo do que nas fotografias que por aí correm e principalmente apresenta cores no semblante que nem mesmo de um convalescente dir-se-ia.” in: POMPÉIA, Raul (Virgílio Moretzohn, org.). Crônicas do Rio. RJ, Secretaria Municipal de Cultura - DGRIC. Div. de editoração, Coleção Biblioteca Carioca, Vol. 41, 1996, p 27 e 33-34.
[9] Cf. LACAN, E. Esquisses photographiques à propos de l’Exposition universelle et de la guerre d’Orient. 1856, p. 205-219 in ROILLÉ, André. La Photographie en France-Textes & Controverses: une Anthologie 1816-1871. Ed. Macula, Paris, 1989, 549 p.: il.: p. 197.
[10] Cf. carta enviada a Théo. Londres, em 20 de julho de 1873. In: VAN GOGH, Vincent (1853-1890). Cartas a Théo. Tradução de Pierre Ruprecht. L&PM Porto Alegre, RS, 2002, 464 p., p.21.
[11] Esta pintura, comprada pelo Governo Imperial em 1884, pertencia à coleção da Academia Imperial, passando depois à Escola Nacional de Belas Artes e hoje se encontra no MNBA-RJ, fundado com o acervo da Escola. Tentamos sem sucesso, encontrar esta fotografia em Paris.
[12] Carta de 22 de fevereiro de 1889. Arquivo do Itamaraty, RJ. Lata 812 : 4:14. Ver também OLIVEIRA, J. M. Cardoso de. Pedro Américo Sua vida e Suas Obras. Edição especial comemorativa do centenário do seu nascimento. Imprensa Nacional, 1943, RJ. Ministério da Educação e Saúde (reimpressão da 1a ed. de 1898, revista e ampliada pelo autor), p.140.
[13] Carta ao Barão do Rio Branco. 23 de março e 27 de agosto de 1889, 4p. AI, RJ. Lata 812:4:14.
[14] Florença, 27/08/1889, 20 X 15, 4p. AI-Arquivo do Itamaraty, RJ. Lata 812 : 4.
[15] Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op.cit.,1998, p.445-6; e BARBUI, Helena. O Brasil vai a Paris em 1889: um lugar na museografia da Exposição Universal. In: Anais do Museu Paulista, SP, N.Sér. v. 4.327p:il. p.211- 241, p.226.
[16] Arquivo do Museu Ipiranga, USP-PR 46, Pasta 1, Doc. 537 I-2-11. Carta em papel oficial, impresso no cabeçalho, com letras góticas: COMISSÃO CENTRAL BRASILEIRA PARA A EXPOSIÇÃO DE PARIS em 1889 e carta de Pedro Américo ao Barão de Ramalho, de 30 de agosto de 1888, do RJ. Pasta A1-Pr58 p.3 de 1423 a 1493 (Doc.1442 a 1485).
[17] Carta ao Barão do Rio Branco, Florença, 23 março 1889. AI-Lata 812:4:14.
[18] O Barão do Rio Branco, em carta a Pedro Américo, contava que Meissonier parou diante de uma grande moldura onde estavam uns vinte desenhos e a fotografia do quadro A proclamação da Independência e lastimava a ausência da pintura porque, em nome do rigor e prudência, “on ne peut juger une peinture et donner un prix de peinture d’aprés une reproduction photographique” Cf. OLIVEIRA, J. M. Cardoso de. Op.cit. ,1943, p.175; e Cartas de Florença, 27 agosto de 1889, 20 X 15, 4 p. e 26 de outubro de 1889. AI-Lata 812:4:14.
[19] Carta ao Barão do Rio Branco em 26 out 1889,Arquivo do Itamarati (AI-lata 812 -maço 4) RJ..Se na correspondência entre o barão e o artista não foram mencionadas quais as obras que foram fotografadas, uma carta do Barão do Rio Branco, datada de 17 de dezembro de 1889, enviada ao Barão Homem de Melo, viria a esclarecer o fato. A carta, além de conter impressões sobre a República recém proclamada no Brasil, era acompanhada das fotografias dirigidas por Pedro Américo contendo os retratos fotografados do Gal. Francisco Barreto de Menezes, vencedor das duas batalhas de Guararapes e restaurador de Pernambuco; do Almirante Salvador Corrêa de Sá e Benevides, natural do RJ, vencedor dos holandeses em Angola no ano de 1648; e do Gal. Pedro Jaques Magalhães, Visconde da Fonte Areada, comandante da frota que bloqueou Recife em 1654. As fotografias eram destinadas ao Barão Homem de Melo, Capistrano de Abreu, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Biblioteca Nacional (de Paranhos, op.cit.,1942, p.37-8).
[20] Em um outro nível de significação, voltado para a prática de um artista-fotógrafo, Henri Cartier-Bresson afirmou que a câmera era para ele como um “caderno de esboços, um instrumento de intuição e espontaneidade...”. Disponível no site www.semcoop.com/abresson.txt; The Mind’s Eye: Writings on Photography and Photographers. Ed. Aperture, 1999, 109 p.
[21] Florença, 2 dez 1889, 2p. AI- Lata 12, maço 4, pasta 14.
[22] Sobre o assunto ver: MELLO, Maria Teresa Villela Bandeira de. Arte e fotografia: o movimento pictorialista no Brasil. Funarte, RJ, 1998, 216p:il.
[23] Florença 26/out/1889. AI-Lata 812:4:14.
[24] Carta datada de 2 de dezembro 1889, 2 p. AI-Lata 12:4:14.
[25] Alusão à célebre gravura de Goya El sueño de la razón produce monstruos, que seria capa para uma série de gravuras sobre Sonhos com o título Ydioma Universal/año 1797/ El autor soñando. Cf. Gassier, Pierre et al. Goya, Life and Work. Ed. Taschen, Alemanha, 1994, 400p.: il, p.181; e carta ao Barão do Rio Branco. Florença,14 nov. 1892, 4 p. AI- Lata 12:4, Pasta 14.
[26] Cf. carta ao Barão do Rio Branco: “[...] medo do frio terrível, inimigo [...] de quem tem nervos na cara e fibras no coração” 27.08/1889. “[...] há tempos persegue-me uma nevralgia facial que não me deixa tomar alento”. 30/12/1898.
[27] Caderno de anotações de Marc Ferrez, 1880-1900. Acervo da família Ferrez, citado por Turazzi, 2000, p.30. e AI- Lata 12, Maço 4, Pasta 14.
[28] Para mais detalhes sobre o assunto ver: DE PARANHOS, Antunes. Op.cit, 1942, p.56-69; e Barão do Rio Branco. Questões de Limites - Guiana Francesa-2a Memória. Ed. MRE, RJ, 1945, 206 p: il. Na página 189 consta o 1o Atlas Manuscrito de Bartolomeo Velho, de 1566, que agora sabemos ter sido fotografado com a supervisão de Pedro Américo em Florença.
[29] Sobre esse assunto ver a tese de doutorado do autor “Do esboço pictórico às rotundas dos Panoramas: a fotografia na pintura de batalhas de Pedro Américo”, USP-2002,283p.:il.