Estrutura e Originalidade na Obra de Antônio Parreiras
Fábio Pereira Cerdera [1]
CERDERA, Fábio Pereira. Estrutura e Originalidade na Obra de Antônio Parreiras. 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 2, ago. 2006. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/artistas_parreiras_01.htm>.
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Sabe-se que ao longo de toda a história da arte, muitos artistas transitaram entre meios de expressão diferentes, entre médiuns distintos, sendo este fato justificado, ou por uma melhor definição e racionalização de suas próprias práticas, ou pela desconfiança de que um determinado meio tem sua própria forma de afirmação do mundo, ou, ainda dizem alguns, por uma questão de habilidade e de sua necessidade interna de expressão. O certo é que essa é uma das influências possíveis na arte, sendo o artista visual atingido por inúmeras outras determinantes.
Poucos não são aqueles que percebem nessa intersemioticidade, nesse exercício de metalinguagem, seu benefício maior, que é o enriquecimento de sua práxis de origem. Para citar apenas alguns nomes tarimbados pela boa convivência entre artes visuais e artes literárias, por exemplo, podemos mencionar, o tratado artístico perdido do escultor grego Policleto (440 a.C.), os fragmentos do que seria um tratado que abrangeria a comparação entre várias artes, do ícone italiano Leonardo da Vinci (1452-1519), os poemas, do escultor italiano Miguelângelo (1475-1564), do pintor inglês William Blake (1757-1827) e do pintor francês Degas (1834-1917), os escritos teóricos de vários artistas do modernismo europeu, como Paul Klee (1879-1940), W. Kandinsky (1866-1944), Fernand Léger (1881-1955), André Lhote (1885-1962) ... sem falar, por outro lado, dos desenhos do escritor francês Victor Hugo (1802-1885), das tentativas pictóricas do também escritor francês Paul Valéry (1871-1945) e tantos outros.
No Brasil, em parte pelo regime colonial-escravocrata, essa prática inexistiu até meados do século XIX e início do XX. Um dos poucos - assim como os pintores-escritores Araújo Porto-Alegre (1806-1879) e Pedro Américo (1843-1905) - foi o pintor fluminense Antônio Parreiras (1860-1937). Trabalhou em paralelo, obra gráfica, pictórica e escritos diversos (desde noções materiais sobre a arte da pintura, críticas e discursos, passando por uma autobiografia com ilustrações próprias, até alguns contos). Podemos dividir a obra plástica de Parreiras, simplificadamente, em duas partes: 1 - a pintura paisagística, que se inicia por volta da década de 1880; e 2 - a pintura histórica, de 1896 até sua morte em 1937. Dois gêneros diferentes, o primeiro, gênero inferior na escala de importância das antigas academias artísticas, caracteriza-se por uma tendência à dissolução, à homogeneidade: nas grandes distâncias, todas as partes se fundem, está ausente uma ação, na qual encerre acontecimentos, personagens e objetos específicos,;o segundo caracteriza-se por uma tendência à segregação, à hierarquia, na proximidade e no foco as partes se separam, porém, mais do que isso, sua estrutura simbólica, isto é, o próprio fato narrativo exerce grande força no sentido de criar uma ordem extremamente complexa por uma maior perspectivação de seu conteúdo.
Ambas as tendências, antes de se excluírem, dialogam na obra pictórica de Parreiras, assim como há um intercâmbio entre sua obra literária e a pictórica. Há em seus contos a forte presença de imagens (valores verbais), e imagens da natureza (no sentido da produção de quadros dentro do texto, a descrição ou ekphrasis grega),[2] assim como o sentido sequencial de uma narrativa, a “ação” aristotélica, invade sua pintura.[3] Dessa forma, podemos falar, no caso de Parreiras, em primeiro lugar, num diálogo entre gêneros (os gêneros da paisagem e da pintura de história) e, secundariamente, de modos de operação entre meios distintos (a pintura e a literatura), promovendo o “dialogismo” bakhtiniano[4] e, mais especificamente, seu índice, a ieéia de “discurso citado”, de representação na/sobre a representação, trabalhada por Uspênski no campo da pintura.[5]
Daí que, ao falarmos de uma transmigração de modos de operação, conceitos entre mediuns, gêneros e até autores distintos, tocamos na questão da autoria e da originalidade que cerca a Criação e passamos a considerar esta com os olhos do Outro (uma instituição, um meio de expressão, um gênero artístico, forma de compor, etc), não fazendo parte necessariamente do campo da língua, mas, de acordo com as palavras do pesquisador Robert Stam em relação a Bakhtin (1895-1975), o “dialogismo opera dentro de qualquer produção cultural, seja letrada ou analfabeta, verbal ou não-verbal, elitista ou popular”.[6]
Em se tratando de um diálogo entre as obras, não seria o procedimento paródico, algo explícito (a sátira como meio de apropriação de algo), exacerbado pelo modernismo, mas, no campo das influências a que todos somos passíveis de sofrer e que recebemos todo o tempo, a paráfrase - desenvolvida paralelamente à paródia e à estilização bakhtiniana pelo poeta e escritor Affonso Romano de Sant’Anna - um dos aspectos mais constantes (talvez, um dos mais previsíveis também) para descrever o processo pelo qual qualquer produção artística se materializa[7] Se ficarmos atentos, noções como originalidade e autoria serão sempre relativizadas, ou seja, tornar-se-ão subjetivas ou desprovidas de sentido direto, já que, como Stam mencionou a respeito da teoria bakhtiniana do dialogismo, “a consciência individual é um fato sócio-ideológico: sem seu conteúdo semiótico, ideológico, ela não existe”.[8] Isso foi postulado por Janson, no que diz respeito à esfera da arte, como aquilo que o meio chama de “tradição”:
Cada obra de arte ocupa seu próprio lugar específico no espectro daquilo que chamamos de tradição. Sem a tradição - a palavra significa “aquilo que nos foi legado” - nenhuma originalidade seria possível; ela nos propicia, por assim dizer, uma plataforma sólida e segura a partir da qual o artista dá o seu salto de imaginação. [...] Estejamos ou não conscientes dela, a tradição é a estrutura dentro da qual forjamos nossa opinião sobre as obras de arte e avaliamos seu grau de originalidade.[9]
Seguindo esse raciocínio, vemos, por exemplo, uma solução compositiva como a encontrada pelo pintor Victor Meireles (1832-1903) em sua obra Primeira Missa no Brasil (1860) [Figura 1], um dos primeiros quadros históricos de Antônio Parreiras, A Conquista do Amazonas (1907) [Figura 2] e um plano cinematográfico da primeira missa em O Descobrimento do Brasil (1937) [Figura 3], filme do cineasta Humberto Mauro (nascido em 1897), num processo de citação sucessiva, isto é, de “discurso citado” dentro da imagem, processo este, às vezes presente de modo quase imperceptível, que, na maior parte dos casos, é pouco considerado ou tem sua importância diminuída em todas as esferas artísticas.
[1]Bacharel em Pintura, Mestre em Ciência da Arte UFF/RJ, Professor Assistente do Curso de Artes Visuais/Desenho de Ilustração das Faculdades Pestalozzi e Professor Substituto do Departamento de Análise e Representação da Forma da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[2] “As ‘influências’ recíprocas da literatura e da pintura, em uma tradição humanista, inscrevem-se no recurso retórico clássico da ekphrasis. Da descrição, como era definida pela antiga retórica, ao quadro ou retrato como vemos em Les figures du discours de Fontanier, trata-se sempre da aplicação do mesmo preceito, de uma irmandade das artes, as Musas filhas de Apolo, que os barrocos exploram ao afirmar: ‘Toda a natureza é objeto da poesia’ e a poesia ‘é ela própria uma espécie de pintura e de música’”. (MELLO, Celina Maria Moreira de. A Literatura Francesa e a Pintura - Ensaios Críticos. Rio de Janeiro: 7 Letras; Faculdade de Letras/UFRJ, 2004, p. 9); ainda sobre as relações entre pintura e literatura, no contexto da arte brasileira da Primeira República, o leitor pode consultar no presente site o fragmento introdutório do livro A retórica dos pintores de Modesto Brocos.
[3] “[...] a tragédia é imitação não de pessoas, mas de uma ação, da vida, da felicidade, da desventura; a felicidade e a desventura estão na ação e a finalidade é uma ação, não uma qualidade”. (ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A Poética Clássica. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 25).
[4] “Vemos, assim, que na obra de Bakhtin a palavra ‘dialogismo’ vai incorporando sentidos e conotações, sem nunca perder a idéia central de ‘relação entre o enunciado e outros enunciados’”. (STAM, Robert. Bakhtin - Da Teoria Literária à Cultura de Massa. São Paulo: Ática, 1992, p. 73).
[5] USPÊNSKI, B. A.. “Elementos Estruturais Comuns às Diferentes Formas de Arte. Princípios Gerais de Organização da Obra em Pintura e Literatura”. In: SCHNAIDERMAN, Bóris (org.). Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva, 1979.
[6] STAM, op. cit., p. 75.
[7] SANT’ANNA, Afonso Romano de. Paródia, Paráfrase e Cia. São Paulo: Ática, 1985.
[8] STAM, op. cit., p. 30.
[9] JANSON, H.W.; JANSON, Anthony F. Iniciação à História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 9.