Félix Ferreira: Belas Artes: Estudos e Apreciações, 1885

FERREIRA, Félix. Belas Artes: Estudos e Apreciações. Rio de Janeiro: Baldomero Carqueja Fuentes Editor, 1885. Texto com ortografia atualizada, disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/

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Exposição do Sr. Aurélio de Figueiredo em 1883 - IV

Venho das regiões do belo, desses luminosos domínios onde só imperam os mais nobres sentimentos e as paixões mais elevadas, onde a arte impõe-se soberana. Venho do ateliê do Sr. Aurélio de Figueiredo, um artista de mérito, cheio de aspirações, uma individualidade, enfim, destinada a brilhante futuro.

É por enquanto ainda bem modesto o seu ateliê, apenas ocupa algumas dezenas de metros quadrados de um pavimento térreo no parque da Aclamação; um retiro quase longe do bulício do grande centro e das seduções da rua do Ouvidor. Uma porta sempre cerrada aos olhos profanos e duas janelas rasgadas para um pátio.

Paredes internamente pintadas de uma cor apropriada ao sobressaimento das molduras, teto de um tom de pérola, soalho polido e limpo, alguns móveis singelos esparsos, livros aqui, cavaletes ali, pincéis grupados em um vaso, ao lado a palheta, uma serenidade cenobítica derramando-se pelo ambiente eis o pequeno mundo do nosso artista.

É aí que ele vive e sonha, estuda, concebe e executa os trabalhos que nos vêm às vezes surpreender cá fora, nas exposições da Glace Elégante, e ora ali se reúnem; formando o luzido cortejo de apresentação de um grande quadro, Francesca da Rimini, uma vistosa tela e uma bela concepção.

Mal transpõe-se o limiar, dão logo os olhos com um retrato de corpo inteiro, de mulher, em tela estreita como um carton-promenade, emoldurada em veludo, como uma jóia, com uns floreios ornamentais de várias nuanças azuis e verdes guarnecendo os cantos da moldura e dando-lhes gracioso realce. A figura de perfil, ereta e gentil, ostenta uns traços elegantes, umas formas donairosas e um rosto iluminado por um sorriso e um olhar encantadores.

A um canto está um quadro de boas dimensões, que prenderia a atenção, se por cima não estivessem para absorvê-la umas cabeças tentadoras, entre as quais sorriem, por sobre uns ombros velados, uns lábios entreabertos como uma rosa que desabrocha.

Uma japonesa, com os seus ângulos faciais e olhos cortados em amêndoa, ostentando no toucado um pente de caprichosos arabescos, faz pendant com um Mefistófeles de riso sardônico e olhar de serpente. E entre uns pequenos quadros de fantasia debruça-se de larga moldura um busto feminino, nitidamente estampado em um belo fundo de audacioso colorido rubro, esbatido com uma gradação de tons, que descem carregados do alto da tela e se convergem e adelgaçam até um róseo firme e transparente, que circunda as formas esculturais do meio do corpo, como uma auréola da luz da manhã, avermelhada por um sol de verão. É mais do que um simples retrato, é um bom quadro.

A cabeça, tratada com esmero, é de uma beleza ateniense e de bom colorido. Ao decote do vestido, bosquejando com estudado negligé, entre os seios que palpitam sob o estofo, prende-se uma rosa, que parece ir pouco a pouco perdendo a seiva ao contato dessa vida que exubera por todos os poros de uma carnação admirável e opulenta.

Do lado oposto há dois formosos retratos de mulher, de cuidado desenho e agradável coloração; depois, dois quadrozinhos de uns amores alados, formando um pendant precioso; duas vistas d'après nature da ilha do Governador distinguem-se principalmente pelos efeitos da luz solar; uma delas acentua uma alameda de bambus, a outra uma figura de mulher.

Umas paisagens do morro de Santa Teresa, uns esbocetos mais ou menos acabados e umas miniaturas entremeiam-se nesses quadros, como as folhas aromáticas ou de esquisitos desenhos com que os jardineiros guarnecem os buquês de camélias ou violetas. Do meio desse grupo de produções, que em geral revelam talentos e vocação, sobreleva-se a obra capital, a tela de Francesca da Rimini.

É conhecida a triste história que inspirou a Dante os belos versos de um dos mais conhecidos episódios da sua Divina Comédia[1]: Francesca da Rimini, filha do Duque de Polenta, é dada por seu pai em casamento a Lanciotto Malatesta, que era disforme e feio; o irmão, Paolo, que, ao contrário, era elegante e gentil, seduz a cunhada, e um dia, que ambos em amoroso colóquio interrompiam a leitura de um livro para se beijarem, surpreendidos pelo enganado esposo, perecem vítimas de tão justo furor. É no inferno que o poeta florentino vai encontrar a adúltera ao lado do amante, é daí que nos conta ele o trágico sucesso, que tem fornecido assunto a mais de um pintor moderno, entre os quais sobressaem Ingres, Scheffer, Cabanel e o insigne pintor escocês Dyce.

O quadro de Ingres, que se admira no Museu de Angers, representa o momento em que os amantes são surpreendidos por Lanciotto [Imagem]; o de Scheffer, que goza de mais popularidade, reproduz o encontro das almas dos amantes com Dante e Virgílio nas regiões infernais [Imagem]; o de Cabanel, que é o mais moderno, e menos notável dos três, apresenta Paolo e Francesca expirando e confundindo em um último olhar o derradeiro enlevo do criminoso amor [Imagem]; o de Dyce segue em parte a descrição da Divina Comédia; como desenho é considerado uma obra-prima, como colorido tem um tom de melancolia que entristece o quadro [Imagem].

O Sr. Aurélio de Figueiredo pôs de lado Dante e foi pedir ao moderno poeta Silvio Pellico [2] inspiração menos lúgubre, ainda que também menos verdadeira, ou natural, reproduzindo o primeiro encontro dos amantes, ou, para melhor, o dia em que Paolo, conforme a sua narrativa da cena segunda do terceiro ato da tragédia, diz ter visto pela primeira vez Francesca, "... atravessando um adro, acompanhada das damas, parar junto a uma nova sepultura e, aí prosternada, levantar mudamente as mãos aos céus"[3].

O nosso artista modificou esta narrativa, a qual posto seja um tanto forçada, pois não é crível que Paolo se apaixonasse da filha de Polenta quando ela era ainda livre, sem tentar ser preferido ao irmão; e que essa paixão nascesse de um encontro em tão triste circunstância, como nos descreve Silvio Pellico em sua tragédia. É verdade que também Shakespeare fez quase o mesmo, incendendo veemente paixão em Julieta e Romeu, no momento em que também pela primeira vez se encontraram em uma igreja. A modificação do Sr. Aurélio de Figueiredo prejudica ainda mais a naturalidade; pois, pela disposição dos personagens, Francesca dá as costas ao grupo dos contempladores. É isto o que se pensa diante do quadro, mas essa não parece ser a idéia do artista, mas sim ter Paolo seguido Francesca, arrastado pela sua peregrina formosura, até que, vendo-a recolhida a tão piedoso devaneio, pára estático a contemplá-la, cheio de enlevo.

Afastando-se do poeta o nosso artista, em vez do cortejo feral colocou só uma dama de joelhos junto ao supedâneo; Francesca não prosterna-se, mas inclina-se sobre a parte superior do monumento; não levanta as mãos ao céu banhada em pranto; essa posição seria mais acadêmica, porém as lágrimas prejudicariam por certo a beleza olímpica da filha de Ravena.

A atitude da princesa não revela estudo de quem se suspeita admirada. Guiada pela dor e pela saudade, dirigiu-se ao túmulo materno, debruçou-se sobre a pedra insensível e fria, e, presa de um devaneio funéreo, magoada, parece ouvir a voz querida que lhe fala de regiões desconhecidas. Há no seu olhar como que um enlevo por uma visão que só ela vê e entende. A cabeça como que está voltada para o lado donde vem essa voz misteriosa e consoladora.

A figura de Francesca é bonita, imponente mesmo. O vestido de veludo negro rola a cauda pelos degraus de mármore escuro. A cabeça é bem talhada, e a opulenta cabeleira loura desce em duas tranças bastas e longas, que, eriçadas ao contato do veludo, esvoaçam fios sutis do cabelo, como se fossem de ouro puro. A epiderme da face, alva e macia, com uma tenuíssima coloração carmínea, põe em relevo uns olhos de uma nesga do céu em manhã de primavera.

Tudo nela respira isenção e pureza; é a virgem, por cujo espírito ainda não adejaram imagens apaixonadas; sonhos febricitantes ainda não agitaram aqueles nervos de menina. Só a dor da órfã absorve aquele coração, nítido como as páginas de um livro em branco. Não obstante todas essas belezas nota-se que a figura é demasiadamente alta; comparada com a dama que tem ao lado, é de exagerada estatura.

A poucos passos está aquele que deve um dia amá-la criminosamente e perdê-la, perdendo-se com ela, Paolo Malatesta, rodeado do seu cortejo, contempla Francesca, não cheio de espanto e agitado como Romeu, quando pela primeira vez vê Julieta, mas enlevado e pasmo, como um amador que admira uma obra de arte. A sua posição não nos parece natural; creio mesmo que desmente um pouco as leis do equilíbrio, pois descai o corpo para o lado contrário do ponto de apoio. O desenho da figura porém é elegante e o colorido cuidado. A cabeça, coberta com um gorro de seda, de corte gentil, é muito graciosa.

O velho que está ao lado traduz melhor a admiração de que se acha possuído, e a sua figura forma um bom pendant com a de Paolo. O pagenzinho que conduz a espada, posto não agrade tanto como as outras figuras, interrompe contudo a monotonia que existiria, se em seu lugar estivesse outro homem.

O fundo da tela é de bom efeito; a entrada do adro e o pórtico arcado que lhe fica à esquerda, reproduzindo da arquitetura medieval seus cortes retos e formas geométricas, simboliza a rudeza e prepotência dos tempos feudais; aqui porém, mais que em qualquer outro ponto do quadro, é que o artista transgrediu as regras da perspectiva por tal modo, que vai além de simples descuido. Francesca da Rimini é um trabalho que faz honra ao moço artista, mesmo com os senões que os mais exigentes lhe têm notado.

O Sr. Aurélio de Figueiredo tem talento e não lhe falta amor ao trabalho; um pouco mais de estudo de bons modelos e de observação da natureza hão de fazer dele um artista de pulso. Se alguns dos seus trabalhos denotam ainda pouca ciência de perspectiva, e certas incorreções de desenho destoam às vezes do conjunto que geralmente é de bom efeito, em compensação a maioria dos seus quadros tem belezas que só uma inteligência superior pode produzi-las.


[1] DANTE, Alighieri.  Divina Comédia. Canto V Minós - Círculo da luxúria (2) Espíritos de Paolo e Francesca. Versão em português disponibilizada no site: http://www.stelle.com.br/pt/index_busca.html

Neste lugar escuro onde eu me encontrava, o som das vozes melancólicas se assemelhava ao assobio do mar durante uma grande tormenta. Os tristes sons emanavam de um enorme redemoinho. Eram almas sofredoras, sacudidas pelo vento que nunca cessava. Entendi que era o castigo pela transgressão da carne, que desafia a razão, e a submete à sua vontade.

No escuro vento vi várias sombras que passavam se lamentando [...].

- Poeta - eu falei - eu gostaria, se for possível, de falar com aqueles dois, unidos, que tão leves parecem ser ao vento.

- Espera - respondeu -, em breve estarão próximos de nós, e quando a fúria do vento diminuir, peça, pelo amor que os conduz, que eles virão.

Então, quando a tormenta cedeu um pouco, eu chamei:

- Ó almas sofridas, falai conosco, se isto for permitido! Elas ouviram, entenderam meu pedido. Deixaram o bando onde estavam as outras e se aproximaram. Uma delas falou:

- Ó ser gracioso e benigno, o que desejares ouvir ou falar conosco, nós ouviremos e falaremos, se o vento permitir. Nasci na terra onde o Pó deságua. Amor, que ao coração gentil logo se prende, tomou este aqui, pela beleza da pessoa que de mim foi levada, e o modo ainda me ofende. Amor, que a nenhum amado amar perdoa, prendeu-me, pelo seu desejo com tanta força que, como vês, ele ainda não me abandona. Amor nos conduziu a uma só morte. Caína aguarda aquele que tirou as nossas vidas.

Ao ouvir esse lamento, baixei o rosto, e permaneci assim, até Virgílio me despertar. Voltei novamente àquele casal, e perguntei:

- Francesca, o teu martírio me traz lágrimas aos olhos, mas dize-me, como permitiu o amor que tomásseis conhecimento de vosso sentimento recíproco?

- Não há maior dor, que lembrar da felicidade passada - disse ela - mas se teu grande desejo é saber, te direi como quem chora e fala. Líamos um dia a sós, sobre o amor que seduziu Lancelote. Várias vezes essa leitura nos ergueu olhar a olhar. Mas foi quando chegamos àquele ponto que falava do sorriso que desejava ser beijado por um perfeito amante, que este aqui que nunca me seja apartado, tremendo, beijou-me na boca naquele instante. Nosso Galeoto foi aquele livro e quem o escreveu. Desde aquele dia, não o lemos mais adiante.

Enquanto uma alma contava a sua história triste, a outra chorava sem parar ao seu lado, e eu, comovido de piedade e dor, desmaiei, e caí como um corpo morto cai”.

[2] PELLICO, Silvio. Tragedia di Francesca da Rimini. Firenze: Adriano Salani Editore, 1899; texto completo disponível no site: http://www.classicitaliani.it/index146.htm

[3] FRANCESCA: Fia vero?M'amavi?
PAOLO: Il giorno che a Ravenna io giunsi 
Ambasciator del padre mio, ti vidi
Varcare un atrio col feral corteggio
Di meste donne, ed arrestarti a' piedi
D'un recente sepolcro, e ossequïosa
Ivi prostrarti, e le man giunte al cielo
Alzar con muto ma dirotto pianto.
Chi è colei? dissi a talun.-- La figlia
Di Guido, mi rispose.-- E quel sepolcro?--
Di sua madre il sepolcro.-- Oh, quanta al core
Pietà sentii di quell'afflitta figlia!
 Oh qual confuso palpitar!... Velata
Eri, o Francesca: gli occhi tuoi non vidi
Quel giorno, ma t'amai fin da quel giorno.