O Ciclo de Pinturas de Guttmann Bicho no CAPS Ernesto Nazareth -
Ilha do Governador/RJ
Arthur
Valle *
VALLE,
Arthur. O Ciclo de Pinturas de Guttmann Bicho no CAPS Ernesto Nazareth - Ilha
do Governador/RJ. 19&20,
Rio de Janeiro, v. II, n. 1, jan. 2007. http://dx.doi.org/10.52913/19e20.ii.01.02
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1. Galdino
Guttmann Bicho (1888-1955) é um nome pouco discutido nos círculos da
historiografia de arte brasileira. Usualmente lembrado como uma personalidade
forte, irreverente e polêmica, Bicho era filho de pai português e mãe
descendente de alemães e nasceu na cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro, mas
passou quase toda a infância na região Nordeste brasileira, em cidades como
Penedo e Aracaju. Durante sua vida - marcada por memoráveis peripécias, das
quais não citaremos aqui mais do que algumas passagens -, travou contato estreito
com algumas das mais interessantes figuras da intelectualidade brasileira de
inícios do século passado e com toda a plêiade de artistas plásticos que
dominou a cena artística fluminense, antes do advento do Modernismo.
2. Nesse contexto, a sua atuação polimorfa -
além de pintor, foi ceramista, artista gráfico e arquiteto -, teve considerável
importância, especialmente durante as primeiras três décadas do século XX.
Desde 1906, seus trabalhos já figuravam na Exposição Geral de Belas Artes,
então o maior certame artístico do Brasil. Nessa época, ele ainda se
apresentava como discípulo de Auguste
Petit, retratista francês radicado no Rio de Janeiro na década de 1860 e
muito solicitado desde os tempos do Segundo Reinado. Bicho também frequentou o
Liceu de Artes e Ofícios e a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), onde foi
aluno livre e manteve contato com mestres decisivos para a sua formação, como Belmiro de Almeida e Eliseu Visconti. Nas Exposições
Gerais de Belas Artes, recebeu todas as principais premiações, tendo sido a
mais importante, sem dúvida, o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, ganho em 1921
por um quadro chamado Panneau Decorativo, que hoje pertence ao acervo do
Museu Nacional de Belas Artes.[1] Depois de tal consagração, o artista
figurou com frequência como membro do júri da Exposição Geral e teve também uma
importante atuação como professor,[2] além de expor em diversas capitais
brasileiras.
3. De toda essa atividade, hoje pouco se fala.
Na nossa historiografia de arte, Guttmann Bicho habita uma espécie de limbo, cujo
aspecto nebuloso as breves e repetitivas referências presentes nos dicionários
de artistas plásticos brasileiros fazem pouco para aclarar.[3]
Nesse ostracismo, Bicho não está só: junto com ele, se encontra toda uma
geração de artistas que, oriundos da ENBA e começando a atuar igualmente na
passagem para o século XX, foi praticamente esquecida, obliterada por uma
imagem exclusivamente retrógrada e repressora da instituição oficial, forjada
mormente pela retórica dos defensores do Modernismo, desejosos de se valorizar,
por contraste, como renovadores e libertários. A unilateralidade de tal manobra
ideológica já há algum tempo vem sendo relativizada, bem como o que há de
insustentável na crença em uma ruptura radical nas artes visuais brasileiras,
cujo “divisor de águas” seria a Semana de Arte Moderna de 1922.[4]
Hoje, parece óbvio que a produção dos artistas ligados a ENBA nas primeiras
décadas do século XX possuía grande diversidade e vitalidade e, ao mesmo tempo
que manteve os laços com a produção oitocentista, apontou decididamente para
concepções renovadoras do fazer pictórico. No momento, porém, ainda escasseiam
os estudos aprofundados sobre tal produção, que permanece sendo de difícil
acesso para os eventuais interessados.
4. O presente artigo pretende trazer uma
contribuição nesse último sentido, através de um estudo de caso bastante
circunscrito: analisando um conjunto de pinturas realizadas por Guttmann Bicho
por volta de 1930, para o atual Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Ernesto
Nazareth, localizado na Ilha do Governador, Estado do Rio de Janeiro,
pretendemos apresentar um exemplo da complexidade estrutural que, via de regra,
pode ser encontrada na produção de artistas oriundos da ENBA no início do
século passado.
5. Tal ciclo de pinturas, que retrata a ações
dos sanitaristas no combate ao surto de febre amarela que assolou o Rio de
Janeiro em finais dos anos 1920, apresenta algumas características peculiares.
Em primeiro lugar, dentro da obra de Guttmann Bicho, é um dos trabalhos da
maturidade do artista que decididamente se afasta do tratamento pontilhista,
que fora bastante frequente em sua produção desde a década de 1910, e que se
intensificara após a sua estadia na França. É importante salientar tal fato,
uma vez que muitos comentaristas privilegiaram quase exclusivamente essa
tendência pontilhista na obra do artista, com a intenção, mais ou menos
manifesta e nada inocente, de recuperá-lo como uma espécie de “precursor” das
tendências modernistas ligadas à afirmação da pura visibilidade pictórica.[5]
A obra de Bicho, todavia, não comporta uma tal redução. Nesse sentido, o ciclo
de pinturas que analisaremos é um excelente exemplo da maneira como Guttmann
Bicho manipulava o aspecto semântico da imagem como elemento fundamental para a
estruturação de suas obras.
6. Em segundo lugar, se nas pinturas do posto
de saúde Bicho afasta-se da “tentação” abstracionista, por outro lado ele nega,
simultaneamente, o caráter alegórico que caracteriza boa parte de pintura
decorativa realizada por seus contemporâneos de geração. Bastaria lembrar aqui
das decorações para as duas grandes sedes do poder legislativo construídas na
então Capital Federal durante os anos 1920 - os atuais Palácio Tiradentes e
Palácio Pedro Ernesto -, assinadas por nomes como Lucílio de Albuquerque, João Timotheo da Costa e os irmãos Rodolpho e Carlos Chambelland, repletas de
figurações alegóricas e/ou retratando em chave heroicizante personagens e
passagens da história brasileira, para nos darmos conta da singularidade das
pinturas de Bicho, cujo caráter é bem mais prosaico e sóbrio. Essa divergência
é um indicador das particularidades da orientação estética de Bicho e também
daquela diversidade da produção pictórica da época, acima aludida. Cremos que a
particularidade da obra se deve, igualmente, às condições bastante singulares
que envolveram a sua concepção e realização, e às quais gostaríamos de nos
referir no que se segue.
7. O CAPS Ernesto Nazareth [Figura 1]
localiza-se na atual Avenida Paranapuan, número 435, na Freguesia, bairro da
Ilha do Governador. Pela ausência de documentação, vários detalhes de sua
história são ainda obscuros e demandam maiores investigações. Sabemos que o
prédio de dois andares, cuja construção teria alcançado seu término às vésperas
da Revolução de 1930, funcionou inicialmente como um centro de saúde - tido
como o primeiro da região -, assumindo posteriormente diversas funções: além de
servir como posto de vacinação, abrigou originalmente um lactário, e, nas suas
mais de sete décadas de atuação, lá funcionaram serviços de pneumologia
sanitária, dermatologia, fonoaudiologia, entre outros. Em meados da década de
1990, foi instalado no posto um centro de atendimento destinado ao tratamento
de pacientes portadores de distúrbios psicológicos. As fontes disponíveis
reiteradamente afirmam, ainda, que a ação de Guttmann Bicho foi fundamental na
idealização do prédio.
8. É o que testemunha, por exemplo, o médico
Phocion Serpa, que na época da fundação do posto chefiava o Serviço de
Saneamento Rural do Estado do Rio de Janeiro e era amigo de Bicho - este,
inclusive, retratou Serpa em quadros que figuraram nas Exposições Gerais de
1929 e 1930. Em um texto publicado no Jornal do Commercio, por ocasião
da morte de Bicho, em 1955,[6] Serpa recorda que, no final dos anos
1920, o Rio de Janeiro fora assolado por um surto de febre amarela que alarmou
as autoridades sanitárias. Assim que a doença se alastrou para Ilha do
Governador, Guttmann Bicho - sempre lembrado por seus ideais comunitários e
como ferrenho defensor das riquezas naturais da localidade -, se apresentou
voluntariamente para trabalhar como “mata-mosquito”, como eram popularmente
conhecidos os sanitaristas dedicados à função de eliminar os insetos
transmissores da doença. Nesse sentido, sua atuação teria também sido
importante, contribuindo para a resolução de conflitos que frequentemente
surgiam entre os funcionários da saúde pública e os habitantes locais,
submetidos à pressão de uma rigorosa vigilância sanitária. Depois que a doença
foi controlada, seria novamente Bicho quem teria a ideia de aproveitar um
terreno que fora transferido à Saúde Pública para a construção de um posto de
saúde. Como afirma Serpa, “o edifício que se ergueu no local, só se tem, graças
ao entusiasmo de Guttmann Bicho, que se desdobrou em mestre de obras,
desenhando a planta, em operário, preparando o terreno, furando os cafofos,
britando e alinhando pedras, transportando tijolos, amassando e carregando o
barro [...] o artista pintou a óleo e ornamentou as paredes do edifício.”[7]
9. Para a decoração do CAPS Ernesto Nazareth,
Guttmann Bicho realizou ao todo onze telas: duas delas encontram-se no andar
superior e retratam cenas de aleitamento [Figura 2],
recordando uma das funções originais do posto de saúde. As outras nove
encontram-se no hall de entrada do andar térreo. As pinturas foram
realizadas a óleo sobre telas coladas diretamente nas paredes do posto de
saúde, seguindo o então usual método do marouflage.[8] Atualmente, o estado de conservação do
conjunto é precário: no final da década de 1980, após uma campanha promovida
pelas entidades culturais da Ilha do Governador, as pinturas foram tombadas na
categoria de bem público municipal[9], mas seus trabalhos de restauração, até o
momento da escrita do presente texto, não foram iniciados.
10. Como pode ser intuído pelas plantas e
elevações do Esquema
1, as pinturas do andar térreo cobrem toda a extensão das paredes do
lado direito e esquerdo do hall de entrada, começando a partir de cerca
de 1,50 metros do chão, sendo limitadas, na parte inferior, por um friso em
argamassa decorado com motivos florais e, na parte superior, pelo próprio teto
do hall. As pinturas contornam, inclusive, os vãos das portas que dão
acesso a consultórios laterais e que individualizam, grosso modo, nove
quadros independentes, cada um dos quais apresentando uma cena diferente. Temos,
dessa maneira, quatro quadros na parede direita, enquanto na esquerda estão
localizados os outros cinco.
Esquema 1: Planta baixa e elevações do hall
de entrada do CAPS Ernesto Nazareth - Ilha do Governador/RJ
11. As pinturas do andar térreo são portadoras
de um indiscutível valor documental, uma vez que, como já adiantamos, retratam
o cenário da Ilha do Governador e as condições de existência de sua população,
presumivelmente na passagem dos anos 1920 para os 1930. Registram, também, as
práticas profiláticas da saúde pública de então: estas se baseavam em um modelo
conhecido como sanitarismo campanhista, o qual confrontou-se
energicamente com as grandes epidemias que assolavam o Brasil no início do
século XX e que geravam consequências desastrosas, tanto para saúde coletiva,
quanto para diversos setores da economia. O sanitarismo campanhista, como o
próprio nome indica, tinha uma inspiração eminentemente militar,
fundamentando-se em um modelo de decisões centralizado e em um estilo
repressivo de intervenções no corpo individual e social, que incluía medidas
como a vacinação em massa e o saneamento de espaços urbanos e rurais. O modelo
prevaleceu no Brasil até meados da década de 1960, e teve seu ponto alto por
volta de 1940, com o aval de Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e
Saúde Pública do governo Getúlio Vargas. Nos seus primeiros anos, as medidas
relacionadas ao sanitarismo campanhista foram frequentemente mal-recebidas pela
população. Basta lembrar da onda de insatisfação popular que se seguiu à
instituição obrigatória, para todo o território nacional, da vacinação antivariólica
por Oswaldo Cruz, em 1904, e que levou ao movimento que ficou conhecido na
história brasileira como Revolta da vacina.
12. Apesar da obtenção de importantes vitórias
no controle das doenças epidêmicas, resquícios de desconfiança pública com
relação às ações sanitaristas eram ainda perceptíveis quando o novo surto de
febre-amarela de finais dos anos 1920 irrompeu no Rio de Janeiro, e
demonstrações de insatisfação análogas àquelas do início do século XX foram
verificadas quando da campanha na Ilha do Governador.[10]
Cremos que esse é um ponto importante a ser frisado, uma vez que, como veremos,
permite-nos lançar algumas hipóteses para uma melhor compreensão da razão de
ser do ciclo de pinturas e das funções por ele desempenhadas.
13. No artigo citado, Phocion Serpa afirma que
a iniciativa de pintar a ação dos sanitaristas nas paredes do CAPS Ernesto
Nazareth teria sido do próprio Guttmann Bicho. Se a concepção do programa das
pinturas foi mesmo dele, o artista muito provavelmente visava constituir um
registro, para a posteridade, das valorosas ações das quais ele havia
participado. É muito plausível, igualmente, que não estivesse ausente de tal
iniciativa o interesse pessoal de Bicho: sabemos que no início dos anos 1930,
ele foi empregado pelo Departamento Nacional de Saúde Pública como “Desenhista
da Inspetoria de Propaganda e Educação Sanitária”[11]
e, de certo, as suas habilidades, tão bem demonstradas nas decorações do então
posto de saúde, contribuíram para a obtenção de tal cargo.
14. Todavia, cremos que a principal função das
pinturas se baseava na própria ideologia campanhista e era, a um só tempo, propagandística
e educativa. Mesmo com a epidemia controlada, as ações profiláticas
deveriam continuar se realizando rotineiramente. Isso implicava na alteração de
algumas práticas tradicionais dos habitantes da Ilha do Governador, como as
formas de armazenamento da água e de higiene, o que gerava potencialmente novos
conflitos entre habitantes e sanitaristas. Cremos ainda que as pinturas de
Bicho, ao mostrarem as ações de saúde pública inseridas no contexto da Ilha do
Governador sob uma ótica mormente conciliadora, visavam contribuir para o
esforço de persuasão dos insulanos com relação à necessidade imperiosa de um
convívio harmonioso entre estes e os agentes da saúde pública, convívio este
que representava a única maneira julgada então possível de erradicar as doenças
e proporcionar uma melhor qualidade de vida.
15. Essas hipóteses a respeito da função
principal do ciclo encontram respaldo no fato de que, desde as primeiras
décadas do século passado, práticas de propaganda e educação baseadas no uso da
imagem foram promovidas pelos órgãos governamentais responsáveis pela saúde
pública. Era comum “a exibição de aspectos dos trabalhos realizados por meio de
exposições organizadas pelo governo brasileiro, que, de forma geral, expunha,
como em uma vitrina, elementos considerados notáveis em termos de obras
realizadas, utilizando um amplo leque de suportes de comunicação visual, como
fotos, cartazes, objetos etc. Dessa forma, produzia-se uma espécie de
'prestação de contas' pública, que, ao mesmo tempo, contribuía para a
divulgação e a propaganda das iniciativas governamentais.”[12]
Também entidades particulares como, por exemplo, a Fundação Rockfeller,
parceira do governo brasileiro no combate às doenças endêmicas desde a década
de 1910, promoviam tais ações. O ciclo de pinturas de Guttmann Bicho
inserir-se-ia, assim, em uma prática já tradicional e estabelecida de
conscientização da população a respeito dos problemas sanitários, feita através
das imagens - ainda que, como procuraremos demonstrar, sua significação não
possa ser reduzida somente a esse aspecto didático.
16. Uma vez discutidas as condições de produção
e as prováveis funções do ciclo de pinturas, gostaríamos de passar à sua
análise propriamente dita, começando pela identificação de cada uma das cenas
apresentadas no andar térreo. Em boa parte dos casos, pudemos encontrar, em
arquivos como os da Fundação Oswaldo Cruz, fotos contemporâneas documentando
ações similares, o que nos permitiu reconhecer de maneira mais segura a
natureza do que as pinturas representam. Todavia, especialmente a identificação
de certos pormenores das imagens é ainda imprecisa, o que certamente demanda o
aprofundamento da pesquisa; cremos, todavia, que as lacunas na identificação do
tema não chegam a comprometer o essencial das considerações que em seguida
teceremos.[13]
17. No Esquema 2
abaixo, apresentamos um diagrama linear dos quadros, ilustrando as disposições
relativas desses últimos, e acompanhado por siglas identificadoras, às quais
faremos referência no texto, quando for necessário indicar algum quadro
específico. Assim, os temas dos quatro quadros localizados na parede direita,
considerados a partir da entrada do hall, seriam os seguintes:
Esquema 2: Disposição das pinturas dos
sanitaristas nas paredes do
andar térreo do CAPS Ernesto Nazareth - Ilha do Governador
/ RJ
18. D1 - O primeiro quadro apresenta uma habitação com
um banheiro separado, como era comum nas áreas menos urbanizadas do Rio de
Janeiro das primeiras décadas do século XX.
19. D2 - O quadro seguinte, o maior do ciclo, retrata a
chegada de embarcações a uma praia que evoca a da Freguesia (devemos lembrar
que, na época, a ligação da Ilha do Governador com o continente era ainda feita
exclusivamente pelo mar).
20. D3 - O terceiro quadro da parede direita mostra os
trabalhos de profilaxia em um curso d'água: poderia tratar-se da sua
desobstrução ou, ainda, da sua construção, visando à drenagem de águas paradas.
21. D4 - O último quadro da parede direita mostra outra
habitação, dessa vez feita de pau-a-pique, que, analogamente àquela de D1,
apresenta um banheiro separado.
22. Já os temas representados nos quadros da
parede esquerda, considerados também a partir da entrada do hall, são os
seguintes:
23. E1 - A inspeção de uma cisterna, realizada pelos
sanitaristas, cercados por alguns habitantes locais.
24. E2 - No segundo quadro, vemos o isolamento de uma
casa para realização de um expurgo de mosquitos: para isso, os sanitaristas
empregavam enxofre ou pó de piretro (também chamado pó da Pérsia), que era
queimado dentro da própria residência, cujos telhados eram cobertos por toldos
e cujas portas, janelas e frestas eram devidamente vedadas (no caso, com
grandes lençóis), para evitar a fuga dos insetos.
25. E3 - O quadro central da parede esquerda mostra uma
cena de vacinação, na qual podemos ver os funcionários da saúde pública
imunizando crianças sob o olhar de um casal de adultos, presumivelmente seus
pais.
26. E4 - Os sanitaristas realizam a capina de uma
trilha, visando, possivelmente, à eliminação de focos de mosquitos.
27. E5 - Por fim, no quinto quadro da parede esquerda,
um sanitarista efetua o exame de uma caixa d’água no teto de uma casa.
28. Em um primeiro momento, podemos perceber
que as cenas guardam uma relativa individualidade, que tem a sua contraparte
concreta no próprio espaço arquitetônico. Neste, as sete portas que dão acesso
aos diversos consultórios anexos, interrompem o fluxo pictórico; sobretudo, a
separação entre as paredes divide em duas partes confrontantes o conjunto de
pinturas. Todavia, à medida que observamos com mais atenção, podemos constatar
que, simultaneamente, existem vários recursos compositivos que relacionam entre
si os diversos quadros. É justamente por essa dinâmica integrativa,
responsável pela relativa unidade do ciclo de pinturas, que gostaríamos de
iniciar nossa análise[14].
29. No ciclo de pinturas do CAPS, diversas
equivalências compositivas manifestam-se nas simetrias, na repetição de ritmos
visuais e nas direções compositivas que integram os quadros. Nesse sentido, não
podemos deixar de fazer referência, em primeiro lugar, à regência cromática do
ciclo, um procedimento através do qual todas as cores dos painéis são
neutralizadas através da mistura com a cor branca - fato que pode ser mais bem
percebido na apreciação in loco do ciclo. Essa regência cromática parece
desempenhar várias funções: em primeiro lugar, contribui para a harmonia geral
de toda a área pintada, uma vez que facilita as passagens cromáticas, minimiza
os contrastes de valor (claro-escuro) e possibilita uma melhor integração das
pinturas com o entorno arquitetônico. Simultaneamente, ela parece vincular
certas conotações simbólicas, principalmente as ideias de pureza e limpeza,
relacionadas aos objetivos das ações sanitaristas. Embora devamos ser
cautelosos com relação ao caráter redutor de tal tipo de interpretação,[15]
ela parece particularmente convincente com relação a certos trechos do ciclo,
como por exemplo no painel central da parede esquerda (E3), no qual são
confrontadas as crianças e os funcionários da saúde pública, banhados pela luz
solar e trajando roupas claras, com o casal de adultos semiobscurecidos debaixo
do vão da porta: nesse quadro, a clareza poderia ser interpretada como um
atributo das ações civilizatórias de erradicação da doença - que no caso são
representadas pela vacinação -, enquanto a escuridão identificar-se-ia com a
atitude de desconfiança refratária.
30. Especificando um pouco mais a nossa análise
do jogo de equivalências compositivas presentes no ciclo, podemos considerar
agora como em cada uma das paredes uma relativa simetria interna é induzida
principalmente em virtude das relações de semelhança e contraste estabelecidas
entre seus quadros externos - D1 e D4 na parede direita, E1 e E5 na
parede esquerda.
31. Tais equivalências são mais facilmente
perceptíveis entre os quadros externos da parede direita [Figura 3]:
nestes, são mostradas habitações interioranas da época e, entre estas, a
similaridade semântica é ainda enfatizada por uma composição geral bastante
parecida. Subjacente a essas similaridades, todavia, D1 e D4 apresentam climas
atmosféricos contrastantes, caracterizados respectivamente por um aspecto mais
etéreo e outro mais sólido. Uma relativa continuidade visual e semântica
estabelece-se entre D1 e D2, por um lado, e D3 e D4, por outro, sublinhando uma
cisão na parede direita, a qual voltaremos a nos referir mais à frente. Cremos
que a principal função das equivalências presentes nesses quadros é servir de
índice para que o espectador realize uma comparação entre o tipo e o
estado das duas casas apresentadas: dessa maneira, o contraste entre a casa de
pau-a-pique deteriorada de D4 e a casa de tijolos de D1 serviria para exaltar
essa última como resultado da ação civilizatória que procurava criar melhores condições
de vida para os habitantes. Tal procedimento de induzir o espectador a realizar
uma comparação valorativa era também empregado nas campanhas educativas
promovidas pelos serviços de saúde pública, que exibiam imagens fotográficas de
dois momentos - um “antes” e um “depois” dos procedimentos de profilaxia
sanitária [Figura
4] - buscando assim associar aos trabalhos efetuados um valor de
progresso.[16]
32. Na parede esquerda, as similaridades
existentes entre os quadros externos E1 e E5 restringem-se à natureza comum das
ações dos sanitaristas, que realizam a inspeção de reservatórios de água [Figura 5].
Entre eles, porém, não só a composição, mas também o número e a disposição dos
personagens variam bastante. São, então, as oposições de forma e
significado que ganham maior importância. Se nos dois quadros temos um mesmo
tipo de ação, em E5 esta é realizada em uma caixa d’água - i. e., para cima
-, enquanto em E1 essa ação realiza-se no sentido espacial inverso - i. e., para
baixo. Em E1, os sanitaristas, de frente para o espectador, estão no centro
da composição e das atenções dos habitantes que observam o trabalho, parecendo
a própria relação entre as figuras amena e desprovida de tensão. Já em E5, tudo
se inverte: deslocado do cento do quadro, o sanitarista nos é de mostrado de
costas, enquanto sua relação com a outra única figura da cena - uma criança
localizada na extrema direita - parece ser de completa alienação.
33. Entre os quadros internos das duas
paredes existe ainda uma série importante de equivalências que contribuem para
relativizar a separação entre as mesmas. Entre E2 e D2 [Figura 6],
podemos destacar várias similaridades, sendo talvez a mais evidente a repetição
da mesma figura de sanitarista nos dois quadros: observando sem interferir,
isoladas de seus companheiros, essas figuras servem, em certo sentido, como elo
de ligação entre o próprio espectador e os painéis, uma vez que o seu gesto de
olhar as atividades que ocorrem em um plano espacial mais recuado ecoa a
maneira como o próprio espectador olha para estes últimos. Uma outra
similaridade entre E2 e D2 pode ser percebida na configuração da espacialidade
dos dois quadros, caracterizada por um tipo similar de recuo perspectivo, com a
faixa de terra em E2 e a praia em D2 desviando-se em direção a pontos de fuga
lateralmente induzidos para além dos limites das respectivas cenas.
34. Analogamente, entre D3 e E4 estabelecem-se
paralelismos estreitos [Figura 7]: novamente, nesses dois quadros, a ação
realiza-se em um plano espacial mais recuado e temos, em primeiro plano,
figuras isoladas que, apesar do contraste na caracterização, possuem uma
atitude semelhante. Aqui, ao contrário do que se verifica em E2 e D2, as duas
figuras encarem o espectador de uma maneira incisiva, mas, analogamente, as
ações são executadas sobre elementos semanticamente relacionados por possuírem
uma mesma função, a de servir como via de circulação; por fim, o espaço
configurado nos dois quadros apresenta estreitas analogias, o curso d'água e a
trilha apresentando um tipo semelhante de recuo espacial, com um ponto de fuga
que convergindo para o centro das obras.
35. Um diagrama resumindo as equivalências que
destacamos é mostrado abaixo, no qual as relações entre os quadros são
representadas por setas. Podemos observar que a configuração simétrica da rede
de equivalências como que isola o quadro E3 da parede esquerda, retratando a
vacinação, induzindo-o como uma espécie de centro de todo o ciclo. Esse dado é
sublinhado ainda por outros fatores visuais, especialmente a convergência para
o ápice do telhado da casa de E3 de importantes direções compositivas de
E2 - a diagonal em perspectiva do telhado da casa -, e de E4 - a direção
induzida pelas copas das árvores [Figura 8].
36. Certamente, essa disposição não é obra do
acaso. No nosso entender, a posição de pivô compositivo que a cena da vacinação
desempenha se configura como o equivalente, na composição do ciclo como um
todo, da eminente importância dessa ação profilática como a mais efetiva aliada
no combate às doenças. Ainda, nesse sentido, um outro aspecto interessante é o
fato de crianças serem o foco da vacinação. Em termos da ideologia campanhista,
a presença das crianças é bastante significativa e está relacionada com a necessidade
de se imprimir no indivíduo, desde a mais tenra idade, a consciência da
importância da educação sanitária para uma vida saudável. Devemos notar também
que, além de E3, as crianças aparecem somente nos dois quadros externos da
parede esquerda, E1 e E5, simetria que mais uma vez reforça a posição de E3
como pivô compositivo.
37. Se, por fim, nos lembrarmos que a vacinação
era então ainda encarada com desconfiança pelos moradores da Ilha do Governador
- tema evocado em E3 pela atitude aparentemente desconfiada do par de adultos
sob o umbral da porta -, não parece mera coincidência que a vacinação seja a
única ação mostrada que se realiza diretamente sobre os próprios
insulanos. Por todos esses fatores, o caráter educativo/propagandístico que
postulamos como uma das principais funções das pinturas parece encontrar a sua
tradução na própria estrutura compositiva do ciclo, que frisa, pelo jogo de uma
rede de equivalências sabiamente configuradas, a importância da vacinação e
contribui para minimizar seu caráter polêmico.
38. Todavia, a descrição que até aqui
procuramos fazer do ciclo de pinturas ficaria incompleta se só considerássemos
a sua referida dinâmica integrativa. Existe ainda uma segunda dinâmica
compositiva que atua no conjunto, que se caracteriza pela justaposição de
momentos formais e temáticos desconexos. Essa dinâmica - que poderíamos
apelidar disjuntiva - já foi introduzida no presente texto, quando
procuramos descrever cada uma das cenas isoladas, mas, cremos, possui uma
importância ainda maior.
39. O aspecto descontínuo do ciclo é
particularmente notável na passagem entre alguns quadros - ainda que,
normalmente, Bicho evite “cortes” bruscos entre estes. Na parede esquerda, por
exemplo, as cenas apresentam uma ambientação relativamente homogênea e a
presença de construções serve de pano de fundo que reduz a profundidade do
espaço e emoldura as ações. Mesmo aí, porém, em alguns momentos uma cisão pode
ser verificada mais claramente, como a representada pelo quadro E4, no qual a
natureza ocupa quase todo o espaço do ambiente representado [Figura 9].
É, todavia, na parede direita que se encontra a cisão semântica mais radical do
ciclo, justamente na passagem entre os quadros D2 e D3, onde mar e terra são
justapostos sem nenhuma preocupação em criar qualquer continuidade verossímil.
40. Ainda nesse sentido, podemos considerar a
disjunção existente entre as paredes direita e esquerda. Expressa da forma mais
óbvia na própria separação física entre as paredes, tal disjunção é
relativizada, como vimos, pelas equivalências cruzadas existentes entre alguns
quadros. Porém, quando considerados em seu conjunto, os dois grupos de quadros
confrontantes apresentam contrastes formais e semânticos acentuados. Na parede
direita, por exemplo, existe uma clara predominância de elementos que
poderíamos designar, grosso modo, como naturais: a paisagem da
Ilha do Governador subordina as figuras e as obras humanas e encontra-se
associada a planos panorâmicos (especialmente em D2 e D3), que conduzem o olhar
até o horizonte distante. Além disso, as grandes direções horizontais servem
aí, em termos compositivos, como um elemento unificador das cenas, conferindo a
todo o conjunto um caráter de pouco dinamismo visual.
41. A situação é bem diferente quando
analisamos em conjunto os quadros da parede esquerda. Não há aí qualquer
categoria semântica claramente dominante; ao contrário, a participação de cada
uma oscila bastante de quadro para quadro. Isso pode ser verificado, por
exemplo, na variação da presença da paisagem natural, que em alguns momentos
domina a cena (como em E4) e em outros está praticamente ausente. Em contraste
com a parede direita, predominam os planos médios e as tensões compositivas são
mais variadas, conferindo ao conjunto um aspecto de maior dinamismo. Guttmann
Bicho enfatiza, assim, um contraste entre o conjunto de quadros da direita e o
da esquerda. Esse contraste, no nosso entender, pode ser interpretado como a
contraparte compositiva da separação espacial existente entre os dois conjuntos
de obras que, como vimos, são caracterizados ainda por uma assimetria numérica,
cada conjunto com um número de cenas diferente.
42. Nossas considerações a respeito das
descontinuidades presentes no ciclo poderiam se estender a níveis estruturais
ainda mais subordinados. Considerando cada uma das cenas separadamente, podemos
verificar que existe pouco interação entre os diversos personagens que executam
suas tarefas ou simplesmente observam, sem relacionar-se de maneira decisiva um
com os outros. Essa falta de interação está vinculada à maneira algo irônica,
por meio da qual o artista retrata as cenas. Apenas em alguns quadros - em E3
e, em menor medida, em E1 -, poderíamos dizer que as atividades dos
sanitaristas são mostradas de maneira enfática e mais ou menos unívoca. Nos os
outros, uma série de procedimentos compositivos como que relativizam a
importância das ações: esta são colocadas em planos recuados com relação a um
primeiro plano onde nada acontece (como em D2 e E2); são mostradas os tempos
fracos e desarticulados das atividades (como em E4); os seus realizadores
viram-nos as costas (como em E5), etc. Em resumo, privilegiando tal tipo de
apresentação, Bicho parece fazer deliberadamente com que as ações dos
sanitaristas percam algo da sua importância enquanto tema central de algumas
cenas; nesses momentos, ganha maior destaque a representação dos aspectos
naturais da Ilha do Governador ou as condições de vida de seus habitantes.
43. Se por um lado essa apresentação de algumas
ações parece vincular-se também a um desejo de hierarquizar o ciclo de
pinturas, subordinando algumas das cenas e conferindo maior destaque a outras
(como, por exemplo, no caso óbvio de E3), por outro lado ela parece enfraquecer
o hipotético caráter persuasivo do ciclo, de uma maneira que poder-se-ia mesmo
julgar decepcionante. No nosso entender, porém, a dinâmica disjuntiva presente
no ciclo de pinturas não poderia deixar de responder a uma intenção do autor.
Ela parece, simultaneamente, vincular-se a uma outra orientação estética:
enquanto o aspecto integrativo do ciclo, bastante evidente no jogo de
equivalências que acima aludimos, poderia ser posto em relação com a ideologia
campanhista, alguns aspectos da dinâmica disjuntiva revelam uma utilização
menos manipulada da matéria-prima temática fornecida pela interação dos
sanitaristas com ambiente e os habitantes da Ilha do Governador. O caráter de
instantâneo fotográfico presente em alguns quadros (e, nesse sentido, não
podemos nos esquecer de que Guttmann Bicho era um assíduo e talentoso
fotógrafo, sendo mesmo provável que tenha registrado aspectos da campanha
sanitarista da qual participou ativamente) revela uma orientação que poderíamos
denominar, na falta de um termo melhor, “realista”. Em cenas como essas, o
artista fixa de uma maneira relativamente mais neutra momentos da atividade dos
sanitaristas que revelam uma certa alienação dos mesmos, tanto com relação às
suas próprias atividades, quanto com relação ao contexto humano e natural da
Ilha do Governador.
44. No nosso entender, o caráter aparentemente
contraditório das dinâmicas integrativa e disjuntiva que analisamos e a
sobreposição de orientações estéticas contrastantes - uma mais “retórica”, a
outra mais “realista” - não atestam, necessariamente, uma incoerência por parte
do artista. Ao contrário, parece ser justamente essa tensão que potencializa,
em termos estéticos, o ciclo de pinturas de Guttmann Bicho, privilegiando uma
marcante ambiguidade e evitando que ele possa ser facilmente reduzido a
uma simples peça de propaganda educativa. Lembrando as palavras de Roman
Jakobson, segundo o qual as “maquinações” da ambiguidade encontram-se no
próprio cerne do objeto estético, cremos que é essa contradição interna o que,
em última instância, confere ao ciclo de pinturas do CAPS Ernesto Nazareth o
seu caráter poético e evocativo.
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* Este
artigo é uma versão modificada de texto originalmente publicado como VALLE,
Arthur. O Ciclo de Pinturas de Guttmann Bicho no CAPS Ernesto Nazareth - Ilha
do Governador/RJ. In: Revisão Historiográfica: O Estado da Questão -
Atas do I Encontro de História da Arte IFCH/UNICAMP. Campinas: Editora da
Unicamp, 2004. p. 102-117.
[1] Uma análise dessa obra
pode ser encontrada em VALLE, Arthur. Questões semânticas na obra de Guttmann
Bicho: uma análise do Panneau Decorativo. 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 2, ago. 2006. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_gb.htm
[2] Guttmann Bicho foi
professor no Liceu de Arte e Oficios carioca e responsável pela criação, em
1947, do curso de cerâmica artística na Escola Técnica Nacional do Rio de
Janeiro.
[3] Entre essas obras
podemos citar, por exemplo, CAVALCANTI, Carlos (org.) Dicionário Brasileiro
de Artistas Plásticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro MEC, 1973, p.
242; LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário Crítico de Pintura no Brasil. Rio
de Janeiro: Ed. ArtLivre, 1988, p. 241; MEDEIROS, João. Dicionário de es do
Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Irradiação do Brasil, 1988, p. 79.
[4] Nesse sentido,
poderíamos lembrar aqui dos artigos de Luiz Marques e Luciano Migliaccio reunidos
em recente catálogo - cfr.: MARQUES, Luiz (org.). 30 Mestres da Pintura no
Brasil. São Paulo: MASP / Rio de Janeiro: MNBA, 2001 - ou do texto de Paulo
Herkenhoff apresentando a Coleção Fadel em uma de suas últimas exposições - cfr.
HERKENHOFF, Paulo. Arte Brasileira na Coleção Fadel: da Inquietação do
Moderno à Autonomia da Linguagem. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio,
2002.
[5] Com relação a esse
tópico, a seguinte citação de Walmir Ayala é paradigmática: “[Guttmann Bicho]
foi elemento ativo na vida artística carioca, sobretudo antes do predomínio das
tendências modernas de que fora um dos precursores, pelo gosto na pesquisa de
luz dos impressionistas” (AYALA, Walmir. Museu Nacional de Belas Artes. Rio
de Janeiro: Colorama Ed. Arte Gráficas. s/d., p. 104).
[6] SERPA, Phocion.
Guttmann Bicho, o pintor. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 2 out.
1955.
[7] SERPA, idem.
[8] A marouflage consiste
em montar uma pintura realizada em um suporte flexível sobre um suporte mais
rígido: no caso das pinturas decorativas brasileiras, normalmente as telas,
pintadas no ateliê do artista, eram, depois de terminadas, coladas no local
definitivo que deviam ornamentar. O seu uso frequente pelos brasileiros durante
as primeiras décadas da República parece ter sido influenciado pela enorme
difusão que a técnica conheceu na França; como lembra Pierre Vaisse: “les
peintures sur toiles marouflées sur un mur [ont été] de loin la technique la
plus fréquemment utilisée en France au XIX siècle” (VAISSE, Pierre. La
Troisième Republique et les Peintres. Paris: Flammarion, 1995,
p.175).
[9] As pinturas foram
tombadas pelo decreto 6.602 de 05 de maio de 1987 do Conselho Municipal de
Proteção ao Patrimônio Cultural.
[10] A esse respeito,
Phocion Serpa recorda: “A população da Ilha, já naquela época, lutava e padecia
os rigores da escassez de água. Tornava-se pois indispensável conciliar os
interesses dos habitantes locais e a vigilância rigorosa, para que se evitasse,
a todo custo, a proliferação das larvas de estegomias transmissoras da
moléstia. A vigilância domiciliar era severa e os atritos frequentes, entre os
guardas de saúde e os moradores. Problema difícil e perigoso” (SERPA, Phocion, op.
cit.).
[11] Os familiares do pintor
possuem uma carteira de identidade Guttmann Bicho, datada de 18 de abril de
1933 e assinada por Phocion Serpa, então Secretário Geral do Departamento
Nacional de Saúde Pública, que atesta o cargo ocupado pelo [cf. Imagem].
[12] LACERDA, Aline Lopes de. Retratos do Brasil: uma coleção do Rockefeller
Archive Center. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro,
v. 9, n. 3, set.-dez. 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702002000300008&lng=en&nrm=iso
Acesso em 1 jun. 2007.
[13] Apresentei um
discussão mais centrada nos temas das pinturas aqui discutidas, bem como em
alguns problemas levantados pelas suas identificações, em VALLE, Arthur . A
representação das ações do Sanitarismo Campanhista nos quadros de Guttmann
Bicho. In: II Simpósio de Política e Cultura: Documentos e Abordagens.
Vassouras : Universidade Severino Sombra, 2006, n/p. Disponível em http://www.uss.br/web/arquivos/textos_historia/Arthur_Valle_A_representacao_das_acoes_do_sanitarismo.pdf
[14] Abrindo um parênteses,
cabe aqui um comentário sobre nosso método de análise, pois este deriva de uma
fonte aparentemente inusitada para um estudo sobre obras visuais: trata-se das
análises de poemas feitas pelo linguista russo Roman Jakobson, a mais famosa
das quais sendo, provavelmente, aquela do soneto Les Chats, de Charles
Baudelaire (cf. JAKOBSON, Roman. Questions de Poétique. Paris: Seuil,
1973, p. 401-419; existe uma tradução brasileira: LIMA, Luiz Costa. Teoria
da Literatura em suas Fontes. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves
Editora, 1975, p. 378-391). Para Jakobson, tal jogo de equivalências é o índice
mais evidente de uma dinâmica autotélica ainda mais importante, responsável
pela própria gênese constitutiva dos poemas. Em outro de seus artigos,
Linguística e Poética, de 1960 (cf. JAKOBSON, Roman. Linguística e
Comunicação. São Paulo: Editora Cultrix, 1969, p. 118-162.), o russo
denominou essa dinâmica de função poética, fazendo referência à teoria
das funções da linguagem formulada por Karl Bühler, e considerou-a como um
verdadeiro fator distintivo da poesia com relação às outras manifestações
linguísticas.
Tais
ideias encontravam-se mais ou menos explícitas no chamado pensamento
“estruturalista” desde pelo menos os anos 1930 e o que nos encoraja a aqui
utilizá-las é o fato de que já então eram consideradas como abrangendo todas as
manifestações estéticas, e não exclusivamente a literatura, como testemunham,
por exemplo, alguns escritos de Jan Mukarovský, um dos mais destacados
integrantes do Círculo Linguístico de Praga, do qual Jakobson também fez parte
(cf. MUKAROVSKÝ, Jan. Escritos sobre Estética e Semiótica da Arte.
Lisboa: Editorial Estampa, 1997). Ainda que a complexidade significativa de
qualquer obra de arte não possa ser descrita pela simples aplicação de tal
instrumental de análise, cremos que a estrutura configurada pelo jogo de
equivalências no caso das pinturas aqui analisadas é um fator fundamental na
vinculação da ideologia do sanitarismo campanhista.
[15] A utilização de
regências cromáticas em tons claros em quadros de destinação decorativa, com a
sua declarada reminiscência da técnica do afresco, foi na verdade
bastante frequente durante a Primeira República; cf. VALLE, Arthur. A estética
do decorativo na pintura brasileira das primeiras décadas da República. ArtCultura,
UFU, v. 12, jan.-jul. 2010, p. 115-132. O procedimento constituía então o que
poderíamos designar um modo: ao utilizá-lo no CAPS, Bicho, em certa
medida, não mais fazia do que seguir uma prescrição formal, que por convenção
era julgada adequada à função decorativa das pinturas Que o emprego de tal
regência cromática não necessariamente estava imbuído de conotações
purificadoras pode ser comprovado pelo fato de Bicho também empregá-la em obras
que pouco se relacionam com a ideia de pureza, como em suas paisagens e mesmo
em suas pinturas de nus.
[16] LACERDA, Aline Lopes de, op. cit.