Configurando a
América Latina: as visões de Rugendas e Marianne
North
Vera Beatriz Siqueira
SIQUEIRA, Vera Beatriz. Configurando a América
Latina: as visões de Rugendas
e Marianne North. 19&20,
Rio de Janeiro, v. X, n. 2, jul./dez. 2015. https://www.doi.org/10.52913/19e20.X2.09a
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Os trópicos de Rugendas
1. Quando
o jovem pintor de batalhas Johann
Moritz Rugendas chegou ao Brasil, em 1821,
acabara de se formar na Academia de Munique e não tinha nenhuma experiência
profissional. Seguia os passos de outros naturalistas e artistas que haviam
aberto as portas do Novo Mundo para a Europa. A grande virada em sua trajetória
se deu com a contratação como desenhista da missão científica do Barão de Langsdorff, cônsul-geral do Império russo no país [Figura 1]. Nessa missão,
e depois por conta própria, Rugendas dedica-se a
documentar a natureza e a cultura brasileiras. De volta à Europa, em 1825, com
o apoio entusiasmado de seu compatriota Alexander Von Humboldt, publica em
Paris seu monumental livro, Viagem pitoresca ao Brasil, cuja primeira
edição, por encomendas, é de 1827, com imediato sucesso editorial, levando-o a
firmar a ideia de tornar-se o ilustrador da vida na América Latina.
2. A
conversão de seus desenhos em gravuras provavelmente levou-o a perceber o
quanto ainda tinha a aprender para dar conta da tarefa ilustrativa. Artistas
que litografaram suas pranchas, como Richard Bonington,
amigo pessoal de Delacroix, ou Jullian
Vallou de Villeneuve, aluno de Millet, devem ter-lhe
revelado os novos caminhos por que trilhavam a arte e
o gosto modernos. Bonington produziu uma das pranchas
mais românticas para seu livro, Entrada da Baía do Rio de Janeiro,
contando com o apoio de um descritivo desenho de lápis duro do Morro do Pão de
Açúcar, transformado em cenário de uma tormenta tropical, com barcos inclinados
pela força do vento, céu e mar revoltos. Villeneuve transformou o esboço de uma
caverna de Rugendas [Figura 2] em uma cena marcada pelo mistério,
pelo isolamento contemplativo do viajante e pelo jogo de luz e sombra (Grutas
perto de São José) [Figura
3].
3. Portanto,
antes de retornar ao continente, Rugendas permanece
na Europa, estudando em Paris e Roma. À ampliação de sua rígida formação
acadêmica se soma o rico conjunto de informações sobre a América Latina, que
reúne a partir da proximidade com Humboldt. Sua intenção era publicar uma obra
de caráter enciclopédico e artístico sobre o continente. Sua viagem começa,
então, em 1831, com a ida ao México; de 1834 a 1844 viajou para Chile,
Argentina, Uruguai, Peru e Bolívia; em 1845 retornou ao Rio, onde permaneceu
até 1846. Viagem tão longa, a mais extensa realizada por um artista na América
Latina, possibilitou uma variedade temática muito grande.
4. No
México, primeiro país que visita, dedica-se especialmente às vistas naturais e
às paisagens, segundo as recomendações de Humboldt [Figura 4]. A partir da
compreensão enciclopédica da natureza, cria vistas que são a representação
fisionômica da paisagem, com precisão topográfica e botânica. Paulatinamente
vai-se afastando dos conselhos do mestre, especialmente de um deles:
"Evite as zonas temperadas, Buenos Aires e Chile [...]. Vá aonde haja
muitas palmeiras, samambaias, cactos, aonde existam
montanhas cobertas de neve e vulcões, vá à Cordilheira dos Andes [...]. Um
grande artista como você deve ir em busca do monumental".[1]
5. Rugendas não
deixa de viajar pelos Andes e registrar a natureza monumental. Percebe-se,
porém, em sua estada de oito anos no Chile, significativa alteração em seu foco
de atenção. Talvez motivado pelo próprio desinteresse de Humboldt na paisagem
do cone sul da América Latina, mas certamente inspirado pelas ideias liberais
de personalidades latino-americanas com quem estabelece contato, como o
venezuelano Andrés Bello (editor da revista El
Araucano que defendia a abertura para a cultura europeia e criticava a
censura da Igreja católica), deixou de lado a descrição topológica e as vistas
em prol do registro das populações indígenas e das cenas de costumes. Nas
primeiras obras feitas no Brasil, assim como nas que fez no México, a
representação de costumes e as cenas da vida cotidiana atendiam antes de mais nada às exigências dos registros de viagens e
subordinavam-se ao interesse naturalista. Mas as feitas no Chile e, posteriormente,
na Argentina e no Uruguai possuem novo sentido.
6. É o
que vemos quando comparamos Costumes da Bahia (1835, litografia
colorida) [Figura 5],
feita no Brasil, A rainha do mercado (óleo, 1833-1835), feita no México
[Figura 6], e O
rapto de Trinidad Salcedo, pintura de 1836, feita
no Chile [Figura 7].
A primeira cena possui forte sentido documental da população local, descrita
com iguais minúcia e individualidade às das plantas que compõem o cenário
natural. A segunda aponta para o aprendizado de Rugendas
com artistas europeus ligados ao paisagismo de Barbizon,
uma vez que a cena ganha em vivacidade e naturalismo pictórico, embora ainda
sustente interesse documental. Já a última possui nítida inclinação literária,
tendo sido provavelmente feita a partir de relatos orais e escritos de
conflitos indígenas nas regiões de fronteira. O rapto de uma mulher pelos
araucanos é tema recorrente em seus trabalhos no Chile. Rugendas
acerca-se literariamente do tema, enfatizando o drama e incorporando elementos
da visualidade romântica.
7. No
Peru e na Bolívia, os temas costumbristas continuam a
atrair seu interesse, mas é a monumentalidade da arquitetura colonial e dos
monumentos pré-hispânicos que se tornam motivos importantes. É claro que esse
novo interesse, como sempre acontece com os artistas europeus em trânsito, já
vinha codificado anteriormente. O Peru, e mais especificamente sua capital,
Lima, era conhecido na Europa por seus luxo e riqueza. Humboldt se havia
posicionado contra essa fama mítica: "Na Europa nos apresentam Lima como a
cidade do luxo, magnífica e de notáveis belezas femininas. Não vi nada disso."[2]
Mas Rugendas parece ter se impressionado mais com as
palavras de seu amigo, o artista Juan Espinosa, que saído do Chile se
estabeleceu em Arequipa e de lá lhe escrevia longas cartas celebrando a
originalidade da arquitetura e dos costumes peruanos. Na pintura A Praça
Maior de Lima [Figura 8],
a curiosidade pelos habitantes e costumes desse país - que leva o artista a se
dedicar minuciosamente às vestimentas e aos gestos característicos da
sociabilidade local - convive com a representação acurada da catedral ao fundo.
A intenção documental permanece viva também nos diversos desenhos de temas
arqueológicos e arquitetônicos que faz.
8. Na
Argentina e no Uruguai, renova-se o foco costumbrista
em cenas da vida nos pampas. O contato que havia tido com intelectuais
argentinos exilados no Chile - como o diplomata Domingo del
Oro, o poeta Juan Guadalberto Godoy e o liberal
Domingo Augusto Sarmiento - levou Rugendas a
configurar uma iconografia particular para a Argentina, na qual o gaúcho era
figura de relevo. Sua liberdade era celebrada por Domingo del
Oro em artigo que enviou a Rugendas em 1839: “Um
gaúcho pode viver a seu gosto, trabalhando muito pouco tempo. [...] De ninguém
depende. Em seu cavalo, laço, bolas e faca leva todas as suas propriedades e
não conhece obstáculo que lhe impeça ficar ou ir para onde queira. É o ser mais
livre que existe.”[3]
9. Os
desenhos e pinturas com temas de gaúchos feitos pelo artista revelam extremo
cuidado com os detalhes. Mesmo uma pintura como Boleando avestruzes,
1845-1846 [Figura 9],
terminada no Brasil, submete a dramaticidade da cena ao linearismo
preciso e caprichoso. Como se a mítica liberdade dos gaúchos tivesse que ser, a
um só tempo, homenageada e contida pelo rigor descritivo.
10. A
grande viagem americana de Rugendas termina no Rio de
Janeiro. Aí, a tarefa de ilustrador parece já ter-se cumprido na estada
brasileira anterior, permanecendo o artista sob a proteção da Corte de Dom
Pedro II e expondo na Academia. Seus únicos desenhos são vistas
panorâmicas da Baía de Guanabara feitos no dia em que chegou à cidade, além de
poucas paisagens de seus arredores. No mais, dedica-se a terminar pinturas
iniciadas anteriormente e tratadas com nova fatura romântica, que exibe com
grande sucesso na Exposição da Academia Imperial de Belas Artes de 1845. Entre
elas a obra O retorno da cativa, apresentada no catálogo como Retorno
de uma mulher branca do cativeiro entre os indígenas. Apesar desse título
essencialmente descritivo, Rugendas é elogiado pelo
diretor da Academia brasileira, Félix-Émile
Taunay, “não pelo colorido, nem talvez pela correção do desenho, mas pela
graça [...] e, sobretudo, pelos merecimentos superiores da composição e da
expressão, sendo o autor muitíssimo feliz nas suas linhas de equidade pelo
hábito dos corpos, as paixões e afetos da alma”.[4]
11. Entre
uma de suas primeiras imagens icônicas da floresta tropical - Floresta
virgem brasileira com grupo de figuras, 1830 [Figura 10] - e a figuração
dos trópicos que aparece ao fundo do Retrato de D. Pedro II, 1846 [Figura 11], há efetivamente um salto. Não apenas no que
se refere à trajetória do artista e à incorporação de questões pictóricas
românticas, mas também no que diz respeito à configuração visual do próprio
continente latino-americano. Com a multiplicação dos relatos de viagem e a
impressionante difusão de livros, gravuras, desenhos e panoramas que ocorreu
nas primeiras décadas do século XIX, a imagem dos trópicos, para usar uma
expressão de Nanci Stepan, se “tropicaliza”. Ou seja, ao público europeu
interessam menos as descrições fiéis da natureza e da geografia
latino-americana e mais a própria experiência romântica da viagem nos trópicos,
que confirmasse as sensações de estranhamento, temor e surpresa, e criasse uma
imagem entre verossímil e mítica, realidade e fantasia.
Éden e Eros: Marianne North
12. Em seu
primeiro romance, The Voyage out, publicado em 1915, Virginia
Woolf escreve sobre a viagem de Rachel Vinrace com
seu pai, de Londres para a América do Sul. Desembarcados no porto fictício de
Santa Marina, onde os tios de Rachel possuem uma Villa, os ingleses replicam em
miniatura o mundo fechado e imóvel das tradições estéticas e morais de seu país
natal. Universo que, entretanto, entra em choque com a experiência do
deslocamento e do estranhamento provocados pela viagem que realizam pelo Rio
Orinoco, se embrenhando na floresta tropical. A cada parada da embarcação em
pequenos vilarejos remotos ou portos improvisados às margens da selva, o grupo
se divide em grupamentos menores que percorrem trilhas no interior das matas.
13. Para a
jovem e inexperiente Rachel, a viagem é literalmente fatal. Leva-a a encontrar
o amor, cuja descoberta, na narrativa de Woolf, se associa à vertigem causada
pelo jogo de cores e sombras provocado pela floresta tropical. Diante da
desorientação e da falta de medidas dessa dupla vivência, Rachel irá sucumbir.
Acometida de uma doença não explicada, provavelmente alguma das pouco
conhecidas doenças tropicais, falece. Em seu enterro, apenas o amante aparece
dilacerado. Sua família e seus amigos consolam-se com a certeza de que os seus
valores tradicionais ali estarão, como um destino seguro, a Inglaterra natal
que levam consigo a toda parte e que estabiliza mesmo as experiências mais
radicais ou mais sombrias.
14. É
certo que, para Woolf, o destino trágico de Rachel representa o futuro
presumido das mulheres em geral, em uma sociedade ainda fortemente marcada
pelas tradições vitorianas. E foi em uma mulher que escapou desse destino
pré-moldado que a escritora se inspirou, entre outras figuras da época, para
falar da viagem transatlântica: a artista e naturalista amadora Marianne
North, que Woolf conhecia bem. Desde 1882 estava aberta a galeria North, em
Kew Gardens, nos arredores de Londres, reunindo as
pinturas de exemplares da flora de diversas partes do mundo, para onde a
artista viajou.
15. Em
outros textos de Woolf percebem-se referências mais diretas à cultura
naturalística de North. É o caso de sua última novela, Between
the acts,
em que cita a árvore conhecida como "monkey
puzzle tree", ou araucária imbricata,
que se notabilizou quando Marianne North, embora doente, decidiu partir para o
Chile, em 1884, com o objetivo exclusivo de representá-la [Figura 12]. Mas é
certamente em um pequeno conto, Kew Gardens,
escrito em 1919, que encontramos uma convergência poética central entre Woolf e
North. Nele, a escritora descreve a passagem de quatro grupos de pessoas diante
de um canteiro de flores em um dia de julho no célebre jardim botânico
londrino. Woolf compara o movimento irregular e randômico dos visitantes com o
voo em ziguezague das borboletas ou a lenta e determinada subida de um caracol
no canteiro. Ao final, amplia seu olhar e contrasta o canteiro próximo com os
sons e cores do jardim e com a cidade ao fundo. O recurso de composição
paisagística, com um primeiro plano muito próximo e um pano de fundo amplo e
distante é comum às duas artistas, e revela a pertinência da cultura naturalística
na constituição da modernidade visual e literária [Figura 13].
16. Na
obra de Marianne North, esse recurso narrativo, recorrente em suas pinturas, é
acima de tudo ponto de partida. Antes mesmo de embarcar para suas viagens ao
redor do globo, coloca-se como objetivo pintar a vegetação tropical in situ,
“no local, em sua natural abundância e exuberância”.
Para tal, irá perseguir e encontrar esses trópicos já configurados visualmente
como luxuriantes, que animam a imaginação geográfica dos europeus e conduzem
uma legião de exploradores e artistas amadores a percorrer o Novo Mundo. North
se diferenciou da maioria deles por sua exclusiva e diligente dedicação às
viagens e ao registro da natureza em todos os continentes. Jamais se casou. Não
teve filhos. A partir de 1869, com a morte de seu pai, usou o próprio dinheiro
para viajar e construir a galeria que leva seu nome em Kew Gardens
[Figura 14]. Na
época, esse “templo da natureza”, como gostava de chamá-lo, era visita
obrigatória de intelectuais das mais diversas áreas de atuação. A história
natural era uma parte importante da cultura do período. E, em certa medida, a
experiência direta da viagem intercontinental e a difusão de seus registros
foram essenciais para o desenvolvimento de uma Inglaterra moderna, liberal,
aberta para o futuro.
17. A obra
de North, porém, não era facilmente classificável. Muitos a acusam, por não
possuir formação seja em arte, seja em história natural, de fazer uma obra
inadequada tanto à tradição da pintura botânica quanto à tradição das belas
artes. Sua produção ficaria em um meio de caminho incômodo. Incômodo que
aparece até no prefácio para o catálogo de sua galeria, escrito por Sir Joseph Hooker, botânico e explorador britânico, diretor dos
jardins. Interessado em dar destaque à dimensão instrutiva das imagens, convida
o público a ver para além da beleza das pinturas, concentrando-se no dado
documental do trabalho de registro de “maravilhas do reino vegetal” que correm
sérios riscos de desaparecimento com os avanços da própria civilização.
18. No
interior da galeria, a organização geográfica das 832 pinturas (lá dispostas
entre 1882 e 1885) também busca enfatizar seu sentido ilustrativo. Mas o
conjunto das imagens, especialmente as de plantas exóticas, dá origem a outra
geografia, mais fantasiosa e poética, que delimita em linhas gerais uma ideia
de natureza tropical permanentemente exuberante e sensual. Seu roteiro de
viagens nos mostra esse desejo de percorrer o que se chamava genericamente de
trópicos: em 1871, em sua primeira viagem independente, vai para a América do
Norte, cruzando as regiões selvagens de EUA e Canadá. Ao final desse ano, como
anota em seu livro com entusiasmo, chega à Jamaica, alcançando os tão sonhados
trópicos: “Enfim nas Índias Ocidentais! Noite de natal!”.[5]
19. No ano
seguinte, seguindo seus planos de estudar as plantas tropicais, chega ao
Brasil, onde permanece até 1873. Em 1875 inicia uma viagem ao redor do mundo,
parando em Tenerife e depois seguindo para Califórnia, Japão, Bornéu, Java e
Ceilão. Passa 1878 na Índia e segue, em 1879, para Austrália e Nova Zelândia.
Em 1883 visita a África do Sul e de 1884 a 1885 trabalha nas ilhas Seychelles e
no Chile. Desiste de seguir para o México por motivos de saúde. Faz uma última
escala na Jamaica, origem e fim de sua experiência tropical.
20. Tanto
em sua descrição escrita quanto na pictórica, podemos perceber que está
particularmente empenhada em configurar a natureza tropical em sua exuberância
e sensualidade [Figura 15].
No livro, compraz-se com a descrição detalhada e sensível das vistas a partir
das janelas de seus quartos em casas, hotéis, pensões, cabanas. Descreve-as paisagisticamente, dividindo-as, como Woolf, em um primeiro
plano bem próximo (em que pode até sentir o cheiro da flor ou ouvir o zumbido
do inseto), média distância e plano de fundo longínquo. Recurso compositivo que
se repete em sua atividade como pintora. North faz desenhos e aquarelas
diretamente na natureza, que são finalizados como pinturas em suas instalações
de viagem ou no ateliê da Inglaterra (recorrentemente em ambos). Nelas
encontramos algumas vistas maiores e uma vastidão de representações
particulares de plantas e animais contra paisagem mais ampla e distante.
21. A
comparação de suas pinturas em “close-up” de plantas, pássaros e insetos [Figura 16] ou a coleção
de vasos de flores com espécies chamadas genericamente de
"selvagens", feitas em partes distantes do globo, nos revela a sua
geografia imaginativa dos trópicos, que não se submete aos limites da geografia
física. Os contextos e ambientes particulares de cada um dos lugares que visita
não parecem interessá-la, a não ser pelo dado pitoresco que podem acrescentar a
seu texto ou sua imagem. Tampouco o fato de nem todos esses lugares pertencerem
efetivamente aos trópicos. Sua lógica se aproxima muito mais do olhar generalista
e, por que não dizer, imperialista dos naturalistas britânicos.
22. Como
já mencionado, o próprio desenvolvimento, no decorrer do século XIX, das
viagens e dos meios técnicos de produção e difusão de seus registros teve como
consequência a criação de um novo tipo de viajante e de público para seus
relatos, a quem não interessavam apenas, ou prioritariamente, as informações de
caráter científico sobre a natureza tropical, e sim a experiência de ordem
estética e poética que suas imagens poderiam oferecer. Quando chega pela
primeira vez nos trópicos, na Jamaica, North se deleita com a variedade da
flora tropical que avista de sua janela [Figura 17] e exclama: “Estava em estado de êxtase, e
mal sabia o que pintar primeiro”.[6]
23. Suas
pinturas certamente ainda se submetiam a postulados científicos, retratando as
plantas em seu “habitat”. Mas deviam igualmente deslumbrar o espectador,
renovando a experiência de maravilhamento diante dos trópicos. Assim, suas
obras em cores vibrantes e algo rudes, muitas vezes aplicadas diretamente dos
tubos sobre o suporte, referem-se não somente ao colorido típico dos trópicos,
mas antes de tudo ao deslumbramento que devem provocar em quem as observa. Assim
como seus beija-flores e borboletas, que trazem um componente novo de
sensualidade e erotismo.
24. North
buscou e encontrou nos trópicos a exuberância, a sensualidade, o exotismo que a
paisagem de sua terra natal não lhe poderia oferecer. Mas, como seus conterrâneos
do romance de Virginia Woolf, a cada uma de suas viagens pelos trópicos
retornava à Inglaterra onde, por fim, após concluir sua galeria, dedicou-se à
sua própria casa e jardim em Alderley [Figura 18], escrevendo:
"Nenhuma vida é tão encantadora como aquela no campo inglês, e nenhuma
flor é mais suave ou adorável que as primaveras, prímulas, jacintos e violetas,
todas crescendo em abundância à minha volta".[7]
Sua doença, tão inexplicada quanto a da viajante ficcional Rachel Vinrace, por mais trágica que fosse, parecia o destino
ideal para essa viajante amadora (ou amante das viagens), pois levava ao
paroxismo o caráter aventureiro da viagem romântica e a própria imagem de
exuberância e exotismo da região latino-americana.
Referências bibliográficas
ADES, Dawn. Arte na América Latina. São
Paulo: Cosac Naify, 1997.
BANDEIRA, Julio. A
viagem ao Brasil de Marianne North. Rio de Janeiro: Sextante, 2012.
DINNER, Pablo. Rugendas 1802-1858. Augsburg: Wiesner, 1997.
NORTH, Marianne. Recollections
of a happy life: being the autobiography of Marianne North. London:
Macmillan, 1892.
RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca
através do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989.
STEPAN, Nanci. Picturing tropical nature. London:
Reaktion Books, 2001.
WOOLF, Virginia. Between
the acts; Kew Gardens; The voyage out. Textos disponíveis em
www.24grammata.com. Aceso em 15/10/2014.
______________________________
[1] Apud ADES, Dawn. Arte na América Latina. São
Paulo: Cosac Naify, 1997, p. 50.
[2] DINNER, Pablo. Rugendas 1802-1858. Augsburg: Wiesner, 1997, p. 51.
[3] Ibidem, p. 113.
[4] Ibidem, p. 117.
[5] NORTH, Marianne. Recollections of a happy life: being the autobiography of Marianne North. London:
Macmillan, 1892, pp. 1-80.
[6] Ibidem, pp, 1-83.
[7] Apud BANDEIRA, Julio. A Viagem ao Brasil de Marianne North. Rio de
Janeiro: Sextante, 2012, p. 17.