A experiência modernista em viagens: algumas possibilidades
CAETANO,
Renata Oliveira. A experiência modernista em viagens: algumas possibilidades. 19&20,
Rio de Janeiro, v. X, n. 1, jan./jun. 2015. https://www.doi.org/10.52913/19e20.X1.05a
[English].
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* *
1. O uso da viagem como ferramenta de aproximação com o
desconhecido já não era necessariamente novidade no século XX. No entanto,
naquele momento, o inicial estranhamento europeu para com a realidade
brasileira ganhou novo sentido, abrindo-se para manipulação nacional do código
dos viajantes pelos artistas e escritores modernistas. Lopez[2] destaca
que a ida de Mário de Andrade, Oswald
de Andrade, Tarsila do Amaral, entre outros, a Minas Gerais em 1924
“provoca um amadurecimento no projeto nacionalista de nossos modernistas,
fazendo com que a ênfase, que de início recaía [...] sobre o dado estético,
possa ir [...] abrangendo e sulcando o projeto ideológico.” A proposta de
encorpar a concepção de Brasil a partir dos relatos de viagem fazia circularem
conceitos e dava acesso ao olhar e a pensamentos de alguns narradores que,
muitas vezes, mais se ocupavam em comentar do que em tentar descrever de forma
verossímil a diversidade brasileira.
2.
Às vezes,
vemos seus parâmetros definirem o tipo de compreensão que têm - ou querem ter -
do Outro. Nesse sentido, deve-se reforçar que, quando se trata do estudo desses
relatos e imagens, percorremos também o terreno da subjetividade de seus
autores. Dessa forma, compreender o filtro que decodifica a realidade com a
qual tomam contato possibilita o melhor entendimento do tipo de construção
pretendida com a viagem.
3. Dentro da perspectiva construtiva interdisciplinar entre
arte e literatura dessas imagens ou relatos, o presente texto visa observar
duas produções específicas feitas na década de 1920 que têm a viagem como
princípio, mas que vão além do oferecimento da perspectiva do viajante: Quelques
visages de Paris, de Vicente do Rego Monteiro, e O turista aprendiz, de
Mário de Andrade têm em comum a invenção de dados, como se quisessem assumir e
incorporar a elaboração de possíveis leituras do país para além do compromisso
com a veracidade.
4. Sobre os autores, por um lado temos Vicente do Rego
Monteiro, artista nascido em Recife em 1899 que seguiu ainda jovem para a
Europa, tendo sua formação quase toda na França. Ainda em 1913 estabeleceu
contato com pintores como Modigliani, Léger, Miró, Gleizes, Metzinger, entre
outros. A Primeira Guerra Mundial fez com que sua família retornasse para o
Brasil, onde o artista se estabeleceu trabalhando e expondo primeiramente em
Recife. Em 1920 promoveu exposição itinerante por Recife, São Paulo e Rio de
Janeiro com desenhos e aquarelas com temática de lendas amazônicas. Nesse
momento ele contou com o apoio de Monteiro
Lobato, apesar de outros críticos já o taxarem como futurista. Essa espécie
de figuração estilizada - que tanto agradou Lobato - dialogou com os primeiros
movimentos entre intelectuais brasileiros no sentido de instaurar aquilo que
eles entendiam como um espaço moderno. A exposição itinerante fez com que o
artista se aproximasse dos organizadores da Semana de Arte Moderna, por
intermédio do poeta e escritor Ronald de Carvalho. Segundo Zanini[3]
“ressoavam [naquelas obras] valores europeus assimilados nos anos 1911-14, do
impressionismo e cubismo, ao lado do grafismo oriental e da própria cultura
autóctone do seu país.” Vicente do Rego Monteiro cedeu obras para a Semana de
Arte Moderna em 1922, mas, antes do evento, deixou o Brasil. Em Paris, no
período entre 1921 e 1925, além da produção nas artes visuais, também se
dedicou à ilustração, e é dessa fase a obra que mais nos interessa no presente
texto.
5.
Na outra
extremidade temos Mário de Andrade, que já havia escrito um livro e alguns
textos quando conheceu Oswald de Andrade e Anita
Malfatti, em 1917. A partir desse momento, teve sua atuação expandida,
pois, além da escrita, passou a colaborar com algumas revistas e jornais
paulistas, sendo esse também o momento em que iniciou de fato sua coleção de
artes visuais. Participou da Semana de Arte Moderna em 1922 lendo seus poemas
no palco do Theatro Municipal de São Paulo e a partir daí tornou-se integrante
do chamado Grupo dos Cinco (juntamente com Anita Malfati, Oswald de Andrade,
Tarsila do Amaral e Menotti del Picchia). Nesse mesmo ano, lançou Pauliceia
desvairada, sendo esse um dos marcos da literatura moderna brasileira.
Consolidado como um dos mentores do modernismo nacional trabalhou em várias
frentes: política, artes, educação, cultura, imprensa, entre outras.
6.
Sua
distinta influência no âmbito cultural brasileiro tinha meta certa: definir a
identidade nacional a partir da valorização das manifestações artísticas e
culturais do país. O posicionamento demarcado por ideias colocadas não só nos
textos e livros, mas também pessoalmente e por correspondências, é importante
para os desdobramentos das tendências artísticas brasileiras posteriores. Nesse
sentido, sua força retórica o coloca entre os mais importantes intelectuais
brasileiros, sendo que muitas das suas ideias e colocações reverberam até hoje.
O caso do selvagem culto: reflexões
críticas sobre a civilização parisiense
7. Imaginemos
a seguinte situação: um índio brasileiro, chefe de tribo, segue incógnito para
Paris, onde toma contato com a arte e a cultura local. Observa e ao retornar
para sua oca descreve e comenta o que viu por meio de pequenos poemas e
ilustrações. Para fazer circularem suas observações, passa para um artista
brasileiro a compilação de seu olhar sobre a Cidade Luz, cabendo-lhe a
divulgação da obra peculiar.
8. Se
fosse realidade, já teria tom bastante curioso, pois faz com que o índio deixe
de ser o observado e passe a ser o observador do exotismo alheio. Além disso,
promove uma viagem indígena bem diferente daquelas que ocorriam no século XVI,
quando alguns índios brasileiros foram levados à corte francesa para que
pudessem apresentar uma amostragem do exotismo dos povos encontrados. Sobre
isso, Ginzburg destaca que
9.
No ensaio Sobre os canibais, Montaigne
falou com incrédulo estupor dos relatos sobre os índios brasileiros, cuja vida
pacífica e inocente parecia ressuscitar os antigos mitos da idade de ouro. Mas
no fim do ensaio, leva o leitor bruscamente de volta à Europa. Montaigne conta
a história de três índios brasileiros que haviam sido levados à França. Quando
perguntados a respeito do que mais os impressionara, mencionaram dois fatos.
Primeiramente, que indivíduos adultos e armados (a guarda suíça) obedecessem a
um menino (o rei da França), em vez de escolherem um verdadeiro chefe. Em
segundo lugar: “perceberam que havia entre nós homens cheios até o pescoço de
todo o tipo de riquezas e que as metades deles estavam mendigando às suas
portas, mirradas pela fome e pela pobreza; e achavam estranho que essas metades
necessitadas pudessem tolerar tal injustiça e não agarrassem os outros pelo
colarinho ou não tocassem fogo na casa deles.”[4]
10. Assim
como Montaigne, Vicente do Rego Monteiro se delicia com a suposta ingenuidade
do indígena, partindo “de seu apego à realidade do país”[5]
para criar uma história que não só manipula a memória legada pelos viajantes
estrangeiros no Brasil, associada ao índio e suas tradições, de forma diferente
daquilo que vemos normalmente, mas também, a partir dessa inversão de olhares,
ajuda a promover profunda reflexão sobre a questão da civilização/barbárie.
Para tanto parte do ponto de vista daquele que, para o
europeu, tem um olhar limitado para a vida de uma forma geral. Nesse sentido,
Ginzburg ressalta que “compreender menos, ser ingênuos, espantar-se, são
reações que podem nos levar a enxergar mais, a apreender algo mais profundo,
mais próximo da natureza.” [6] No caso relatado por Montaigne, o autor
ainda destaca que “os índios, incapazes de perceber o óbvio, tinham visto algo
que costuma ser ocultado pelo hábito e pela convenção.”[7]
Cabe ainda observar que o artista aproximou-se da temática
indigenista num momento em que ela estava em baixa como símbolo das
representações do nacional na arte. A partir das reflexões de Ginzburg, podemos
inferir que essa escolha, a princípio deslocada da agenda imagética daquele
momento, não é aleatória. Se, por um lado, dialoga com o repertório do artista
que, apesar da educação europeia, nunca esqueceu de suas raízes brasileiras
formada fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, por outro, a personagem é
completamente capaz de promover essa inversão interpretativa ricamente
arquitetada por Monteiro. No entanto, críticos brasileiros da época não viam
tal fato negativamente e até destacavam como o artista teria “embelezado” os
índios que se apresentavam sem a “fealdade que se costuma atribuir aos
habitantes das selvas”[8] ou reconheciam a tentativa de aproximação
observando que ele “criara um complexo próprio de representações endógenas.”[9]
11. Poderíamos
trabalhar com a hipótese de que mesmo para os brasileiros os índios encontrados
em viagens eram o Outro. Ou ponderar sobre como o olhar estrangeiro formou o
nosso, sendo até tomado como parâmetro, pois o próprio Vicente do Rego Monteiro
tinha Johan
Moritz Rugendas e Jean-Baptiste Debret como inspiradores de suas obras. No
entanto, da pesquisa ocorrida a partir de interesses ecléticos - cultura
marajoara, art déco, cubismo e gravuras japonesas -
surge em 1925 o nada óbvio Quelques visages
de Paris, em que um importante representante daqueles que muitas vezes
estiveram no centro das aproximações de viajantes que passaram pelo Brasil faz
o percurso oposto. Sai do lugar de objeto etnográfico transcendental e ocupa o
espaço do desbravador que filtra cada encontro com seu objeto de interesse,
narrando o que seu olhar conseguiria captar. Mas o que um selvagem veria em
Paris?
12. Ginzburg
destaca que “para ver as coisas devemos, primeiramente, olhar como se
não tivessem nenhum sentido.”[10] Aquilo que é taxado pelo autor como “poderes
corrosivos do estranhamento”[11] parece ser tomado como o ponto de início
da obra de Vicente do Rego Monteiro, que parte da reinterpretação da ideia de
primitivo com as anotações da suposta viagem, de onde surgem dez vistas e
pequenos poemas sobre Paris relativos aos seguintes locais: Notre
Dame, Torre Eiffel, Louvre, Viaduto de Austerlitz, Ponte de Passy, Sacre Coeur, Praça da Concórdia, Trocadéro, Jardim das Plantas e Arco do Triunfo.
Evidencia-se a relação crítica no tocante à representação do índio no contexto
das viagens. Em Quelques visages de
Paris, assim como em boa parte da obra de Vicente do Rego Monteiro, o
princípio é outro, distinto daquele dos primeiros viajantes que, ao terem
contato com os índios, ressaltavam o exótico, a catalogação documental passando
por seus filtros muitas vezes construídos por alegorias que circulavam
anteriormente. Da mesma forma, na arte acadêmica temos um índio histórico
muitas vezes sem envolvimento com o índio real. A obra aqui apresentada trata
da incorporação do índio retirando-o da margem imposta pela arte moderna. No
entanto, não podemos esquecer que se trata de um índio diferente, inventado
para dar voz às críticas e restrições que a civilização pode ter quando
observada do ponto de vista do primitivo. E ao mesmo tempo o exercício de fazer
com o Outro o que foi constantemente feito conosco durante anos. Nesse sentido,
Ginzburg destaca que no contexto do estranhamento, “o leitor é envolvido num
esforço cognitivo que transforma a conclusão implícita numa espécie de prêmio.
O efeito tanto artístico como retórico é infinitamente mais forte.”[12]
13. Um
exemplo disso seria a observação do indígena ao se deparar com o Trocadéro de 1925, onde funcionavam algumas instituições
culturais, entre elas o Museu de Etnografia: “Casa do grande guerreiro / a
julgar por seus troféus, / ele é muito competente na arte / de embalsamar e
empalhar / cabeças e corpos de seus inimigos / foi com o maior / aperto no
coração que / vi meus ancestrais em posturas tão estranhas.” A civilização é
posta em xeque quando vemos o “selvagem” estranhar a postura do sujeito branco
que expõe homens como objeto de estudo daquilo que seria o primitivo. Para Squeff,
14.
Aqui, pela primeira vez, o texto opõe de
modo explícito europeus e índios, evocando não apenas o processo da
colonização, como invertendo um dos grandes discursos que o embasou - o do
processo civilizador. [Os] “troféus” trazidos pelo europeu de suas incursões
pelo território americano são um indício da destruição a que foram submetidos
os índios. Se também os europeus se apropriam dos corpos de seus inimigos,
expondo-os, porém aos olhos de quem quiser ver, onde está a civilização?[13]
15. No
caso do índio, é tão estranho ver os ancestrais empalhados quanto ver animais
presos. Em “Jardins das Plantas” constata: “Pergunto-me como / teriam ali se
abrigado. / Seria a arca de Noé onde os / animais viviam em harmonia. Uma coisa
/ Me dilacera o espírito! / O motivo de colocarem / grades entre eles.”
Novamente o filtro se mostra orientando o olhar para aquilo que parece sem nexo
e nada civilizatório no comportamento do Outro.
16. Aqui,
vemos “o estranhamento [ser usado] como um meio para superar as aparências e
alcançar uma compreensão mais profunda da realidade.”[14]
Essas duas passagens mostram como, em Quelques visages
de Paris, temos uma inteligente inversão de discursos em que civilização e
barbárie são colocadas frente a frente criando um jogo de espelhos, no qual as
projeções mostram o inesperado senso do primitivo, por um lado, e a violência
do europeu, por outro. Um jogo que não pretende dizer quem está certo ou
errado, mas simplesmente promover um momento de suspensão para que as práticas
dos viajantes sejam revisitadas de forma reflexiva.
A
viagem etnográfica de Mário de Andrade: percursos interpretativos do selvagem
brasileiro
17. Em
1927, Mário de Andrade decide investigar mais alguns lugares de um Brasil
distante de sua realidade paulista. Naquilo que poderia ser entendido como uma
capa dos manuscritos originais de O turista aprendiz escreve entre
parêntesis: “Viagem pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia, por
Marajó até dizer chega.”[15] Para essa incursão era previsto um
grande grupo de modernistas interessados, mas após toda a confusão do embarque,
seguiam apenas dona Olívia Guedes Penteado, sua sobrinha Margarida Guedes
Nogueira e Dulce do Amaral Pinto. Nas palavras do escritor: “éramos um grupo de
amigos paulistas, curiosos de conhecer outros brasis, viajando cada qual por
conta própria, pela vaidade ou ventura de conhecer coisas.”[16]
18. Mesmo
contrariado por ser o único homem do grupo, o escritor segue, entendendo que tal
acontecimento não atrapalharia seu maior intento: narrar os fatos da viagem em
um diário, que posteriormente se tornaria um livro. A proposta de um “olhar
etnográfico,” pautado principalmente pela coleta de dados, vem do empenho de
Mário “em entender a realidade brasileira dentro de um quadro latino-americano
e em traçar [...] coordenadas de uma cultura nacional, tomando o folclore e a
cultura popular como instrumentação para seu conhecimento de povo.”[17]
19. No
entanto, apesar da aproximação e do fato de as vivências serem legitimamente
narradas por Mário de Andrade em seus escritos, não podemos desconsiderar que
seu olhar não está totalmente isento de códigos anteriores. Talvez, isso possa
ser bem exemplificado pela passagem de abertura do diário, datada do dia 7 de
maio de 1927:
20.
Partida de São Paulo. Comprei pra viagem uma bengala enorme, de cana-da-índia, ora que
tolice! Deve ter sido algum receio de índio... Sei bem que esta viagem que
vamos fazer não tem nada de aventura nem perigo, mas cada um de nós, além da
consciência lógica possui uma consciência poética também. Às reminiscências de
leitura me impulsionaram mais que a verdade, tribos selvagens, jacarés e
formigões. E minha alminha santa imaginou: canhão, revólver, bengala, canivete.
E opinou pela bengala.[18]
21. Percebe-se
que, antes mesmo de embarcar, o escritor já demonstra, com uma pitada de humor,
como o seu entendimento do selvagem estaria diretamente atrelado aos inúmeros
relatos de viagens que circularam dentro e fora do Brasil desde o seu
descobrimento. Contudo, logo após um mês de trajeto, Mário de Andrade registra
por meio de fotografia um grupo de índias tapuias na cidade de Parintins, algo
bem distinto da tapuia pintada por Albert
Eckhout em 1641, por exemplo, em uma obra curiosamente também vista por
alguns estudiosos como uma espécie de aproximação etnográfica. Segundo Lopez
22.
Mário de Andrade é um aprendiz meticuloso
em seu registro fotográfico; faz questão de escrever legendas e espreme
cuidadosamente sua letra no verso das cópias que são, em sua grande maioria, de
tamanho bastante pequeno (6 x 3,7cm). Nas legendas para as imagens da Amazônia,
sua preocupação não é apenas oferecer dados sobre a cena fixada, mas compor
também uma apresentação em discurso poético, explorando muitas vezes o humor.[19]
23. Assim,
a distância imagética e conceitual acerca do selvagem imaginado e efetivamente
encontrado faz entrarem em choque aquilo que Mário de Andrade espera no seu
primeiro dia de viagem e aquilo com que se depara logo de início em sua
jornada. Nessa balança que tenta mesclar o que vê, o que sente e o que
depreende da realidade, algumas vezes fala mais
alto o escritor que modela poeticamente o vivido, como observa Lopez:
24.
o diário, cuja abertura para a narrativa
de viagem visava não deixar escapar o peso de uma ótica impressionista, capaz
de unir a referencialidade à poeticidade, transformando a experiência vivida (o
sentido, o pensado, o biógrafico - o real, enfim), em
um texto com finalidade artística [...]. O confessional do diário e o
referencial pertencente ao dado da viagem, embora filtrados pela arte, ainda
permanecem com elementos do real, dado o hibridismo do gênero
mas a seu lado, firme, intromete-se a ficção.[20]
25. Dessa
forma, faz-se importante destacar algumas passagens em que vemos confrontadas
ficção e realidade em seus escritos. Ficam assim registradas as impressões em
relação à grandiosidade das paisagens, como a anotação de 19 de maio na cidade
de Belém, onde o autor observa que “A foz do Amazonas é uma dessas grandezas
tão grandiosas que ultrapassam as percepções fisiológicas do homem. [...] O
Amazonas prova decisivamente que a monotonia é um dos elementos mais grandiosos
do sublime.”[21] A
paisagem, elemento extremamente presente em nossa iconografia, ressaltada tanto
pelos artistas estrangeiros quanto por brasileiros de diversas épocas, é posta
em evidência pelo autor que descreve aquilo que muitos tentaram retratar.
26. Merecem
destaque, também, alguns momentos em que o povo é objeto da curiosidade do
escritor que, de forma muito perspicaz, anota em 20 de maio:
27.
Engraçado é que a gente a todo momento
imagina que vive no Brasil mas é fantástica a sensação
de estar no Cairo que se tem. Não posso atinar por que... Mangueiras, o Cairo
não possui mangueiras evaporando nas ruas... Não possui o sujeito passeando com
um porco-do-mato na correntinha...[22]
28. Peculiaridades
de um Brasil distante do paulista Mário de Andrade. Aqui vemos o estranhamento
com algo que não era um padrão social. Assim como o comportamento das indígenas
em relação às mulheres das cidades grandes, é observado em 4 de junho: “Mas o
que carece mesmo exaltar nestas índias das classes inferiores da Amazônia, é a
elegância discreta embora desenvolta com que elas sabem ficar nuas, que
diferença das mulheres civilizadas!”.[23] Vemos frente a frente o ‘correto’
confrontado com o ‘escandaloso’ na nudez das mulheres, no entanto, trata-se de
algo que agrada muito mais o escritor do que a vivência padronizada e
civilizada dos grandes centros. Do lado oposto, o comportamento típico do
brasileiro em relação ao comércio de peças indígenas o irrita, como vemos na
anotação de 1o de agosto:
29.
A falta brasileira de organização é
tamanha que tudo o que vendem dos índios, no mercado de Belém, é legítimo. É
tudo bastante feio, sem valor, usado. Inda não teve quem se lembrasse que é
falsificando que a gente consegue tornar estas coisas de mais valor, não só
fazendo mais bonito e mais bem feito que os índios, como valorizando as coisas
deles, por torná-las legítimas e mais raras. E o documento falso que torna o
verdadeiro, legítimo. Ora o valor nunca está propriamente na verdade e sim na
legitimidade, não acha mesmo? Eu não sei bem se acho, mas como já escrevi, que
fique. Vai por conta da desorganização nacional.[24]
30. Aqui
vemos claramente a defesa de Mário de Andrade para o inventado, ainda que isso
não seja o correto. Nesse sentido, temos algumas observações interessantes,
vindas diretamente do mundo fantástico em desdobramento na imaginação do
escritor, que no começo da viagem sonha:
31.
Sonhei assim:
32.
Com muito cuidado, escrevi um discurso em
tupi pra dizer a nossa saudação a todos, quando
estivéssemos entre os índios. Encontramos uma tribo completa bem na foz do
Madeira, não faltava nem escrivão nem juiz-de-paz pra
eu me queixar se alguém bulisse com a Rainha do Café. Vai, recitei o meu
discurso, que aliás era curto. Mas desde o princípio dele os índios
principiaram se entreolhando e fazendo ar de riso. Percebi logo que era inútil
e que eles estavam com uma vontade enorme de comer nós todos. Mas não era isso
não: quando acabei o discurso, todos se puseram gritando pra
mim:
33.
- Tá errado! tá
errado![25]
34. Dessas
misturas entre o real e o ficcional, temos a primeira visita a uma tribo
indígena. A ida ao reduto dos Pacaás Novos, tribo desconhecida e isolada, acontece no dia 8 de junho; segundo sua
descrição, tratava-se de uma comunidade “bastante curiosa pelos seus usos e
costumes.”[26] Isso porque conhecemos por meio do registro
uma tribo silenciosa, na qual era proibido não só usar a voz como também
mostrar orelhas e boca para as pessoas. Por isso se apresentavam completamente
cobertos na parte superior e descobertos na parte inferior, usando de uma série
de movimentos de perna que substituíam expressivamente a fala. Destacam-se nos
escritos de Mário a sujeira em volta da tribo, pois os índios defecavam em
qualquer parte, a narrativa do processo matrimonial, a forma como comiam
escondidos e o caso da dançarina pacaá que divertia os homens em uma espécie de
show obsceno, em que aparecia vestida, mas com a boca à mostra, cantando
músicas napolitanas e que, em revanche, foi comida pelas outras índias da
tribo.
35. O
encontro com índios de costumes tão curiosos faz aflorar cada vez mais o
ficcional na narrativa do escritor que, 20 dias depois, ainda parece incomodado
com a questão do índio - ou do Outro - e destaca:
36.
Eu creio que, com tais índios que
encontrei e que têm uma moral distinta da nossa, posso fazer uma monografia
humorística, satírica às explorações científicas, à etnografia e também social.
Será mais rico de invenções humorísticas, dizer que eles, em vez de falarem com
os pés e as pernas, como os que vi [...] deram sentido intelectual aos sons
musicais e valor meramente estético aos sons articulados e às palavras.[27]
37. Nascia
assim a tribo “Dó-Mi-Sol,” invertendo a ordem natural do diário que, como
gênero híbrido, deveria ter o real se sobrepondo ao ficcional. Nesse episódio
específico, esses índios seriam uma invenção daquilo que poderia ser o selvagem
na compreensão de Mário de Andrade, sendo que a tribo teria agora complexa
forma de comunicação musical, que não era comum nem nas áreas ditas
civilizadas. Aquilo que Mário destaca como “tudo inventado” tenta dar conta do
local em que seriam encontrados (subida do Rio Madeira), sua fisiologia,
cerimônias, relações, religião, filosofia, lendas, etc.
A partir daí acontecem quatro aparições no diário, descritas como se
acontecidas realmente, dando conta de um cotidiano fantasioso. Quase um mês
depois, quando as aparições da tribo já são raras, ele escreve: “Em Monte
Alegre não tem prefeito. Mas tem a chuva nhã Marta que aprende meu nome e não
para mais de o repetir cantando, parece os índios Do-Mi-Sol, que já não estão
me interessando muito não.”[28]
38. A
viagem prossegue até 15 de agosto de 1927, importando-lhe partir das diferenças
“entre seu mundo conhecido de paulista europeizado e o mundo tropical visitado,
[fazendo] a ficção explícita [...]. Assim, não dilui a singularidade no
pitoresco, uma vez que não se mostra espectador embevecido, mas o criador capaz
de perceber criticamente a realidade.”[29] Realidade que se faz repleta de
encontros: com mariposas de 3,20 m, vitórias-régias, botos e peixes-boi e até
mesmo a visita da Iara que o saúda, mostrando toda a grandeza de um Brasil
feito de elementos muito complexos para se conseguir narrar como efetivamente
vistos.
Conclusão
39. Ambas
as obras aqui discutidas trazem imagens que fazem referência à América. Na obra
de Vicente do Rego Monteiro uma “Amerique” que se
sobrepõe a um dos grandes símbolos franceses: o Arco do Triunfo. Em O
turista aprendiz, segundo Lopez,
40.
O desenho a lápis, feito por Mário, é uma
cabeça de mulher com feições indígenas, mas coroada à europeia e com uma coroa
pequenininha colocada de lado, enfeite sem majestade que contrasta com a
severidade de seu rosto. Logo abaixo traz seu nome “América”, à guisa de placa,
como as esculturas de praça pública. A intenção de ornamentar a pasta que
conterá os originais leva-nos à hipótese de que o esboço poderia estar pensando
graficamente a capa de um livro, apesar de omitir o nome do autor. O desenho
ilustra, sem dúvida, a ideia de América existente no texto: o elemento tropical
tornado grotesco pela inadequação dos elementos europeus aplicados sobre ele.[30]
41. Ao
tomar contato com essas diferentes produções, percebemos como o ideário dos
viajantes se desdobra de maneira peculiar em obras artísticas/literárias do
século XX. Squeff destaca que Quelques visages de Paris, faz “uma reflexão não
apenas sobre a cultura europeia e seus impasses, ou sobre a cultura brasileira,
mas também sobre as relações entre uma e outra.”[31]
Esse espaço do meio, entre distintas formas de produção poética, é um
importante âmbito de pensamento sobre o Outro que pode estar em tanto em Paris
como no Brasil.
42. O jogo
de inversões faz com que a posição superior, inicialmente assumida pelo
europeu, vá se desconstruindo e se transformando criticamente. Guinzburg observa muito bem: “parece-me que o estranhamento
é o antídoto eficaz contra um risco a que todos nós estamos expostos: o de
banalizar a realidade.”[32] Assim, as invenções diminuem as
distâncias e pretendem fazer, no final das contas, o Nós emergir de dentro dos
discursos. No início de sua viagem, Mário de Andrade pondera que
43.
Nos orgulhamos de ser o único grande
(grande?) país civilizado tropical... Isso é o nosso defeito, a nossa
impotência. Devíamos pensar, sentir como indianos, chins, gente de Benin, de
Java... Talvez então pudéssemos criar cultura e civilização próprias. Pelo
menos seríamos mais nós, tenho certeza. [33]
44. O
universo poético presente em cada um desses percursos inteira ou parcialmente inventados ajuda a desconstruir a leitura geral que fazemos
da relação entre o selvagem e o civilizado, demonstrando que as suas barreiras
podem ser bem mais tênues do que aparentam ser. Ao mesmo tempo, percebemos que
a riqueza da viagem não está no relato fiel de suas passagens, mas nas
entrelinhas da compreensão individual de quem viajou.
Referências
bibliográficas
ANDRADE, Mário. O turista
aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez (org.). São Paulo: Duas Cidades,
Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976.
GUINZBURG, Carlo. Olhos de
Madeira: nove ensaios sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
LOPEZ, Telê Porto Ancona (org.). O
Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976.
SQUEFF, Letícia C. Paris sob o
olho selvagem: Quelques Visages de
Paris, de Vicente do Rego Monteiro. In: MIYOSHI, Alex (Org.). Anais do
Seminário: O selvagem e o civilizado nas artes, fotografia e literatura no
Brasil. Campinas: Centro de História da Arte e Arqueologia, Programa de
Graduação em História do IFCH, 2010.
ZANINI, Walter. Vicente do
Rego Monteiro - Artista e Poeta 1899-1970. São Paulo: Marigo, 1997.
___________________________________
[1] PPGartes/Universidade
do Estado do Rio de Janeiro.
[2]
LOPEZ, Telê Porto Ancona (org.). O Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, Secretaria
de Cultura, Ciência e Tecnologia,
1976, p.16.
[3] ZANINI, Walter. Vicente
do Rego Monteiro - Artista e Poeta 1899-1970. São Paulo: Marigo, 1997, p.
107.
[4] GUINZBURG, Carlo. Olhos
de Madeira: nove ensaios sobre a distância. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001, pp. 28-29.
[5] ZANINI, op. cit., p.
66.
[6] GINZBURG, op. cit., p.
29.
[7] Ibidem.
[8] Crítica publicada no
jornal O País citada por Zanini, op. cit.
[9] ZANINI, op. cit., p.
80.
[10] GINZBURG, op. cit., p.
22.
[11] Ibidem, p. 30.
[12] Ibidem, p. 31.
[13] SQUEFF, Letícia C.
Paris sob o olho selvagem: Quelques Visages
de Paris, de Vicente do Rego Monteiro. In: MIYOSHI, Alex (Org.). Anais
do Seminário: O selvagem e o civilizado nas artes, fotografia e literatura
no Brasil. Campinas: Centro de História da Arte e Arqueologia, Programa de
Graduação em História do IFCH, 2010, pp. 12-13.
[14]
GINZBURG,
op. cit., p. 36.
[15] ANDRADE, Mário. O
turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez (org.). São Paulo: Duas Cidades,
Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976, p. 50.
[16] ANDRADE, op. cit., p.
150.
[17]
LOPEZ, Telê Porto Ancona (org.). O Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, Secretaria
de Cultura, Ciência e Tecnologia,
1976, p. 15.
[18] ANDRADE, op. cit., p.
51.
[19] LOPEZ, op. cit., p.
22.
[20] Ibidem, p. 31.
[21] ANDRADE, op. cit., p.
61.
[22] Ibidem, p. 62.
[23] Ibidem, p. 82.
[24] Ibidem, p. 183.
[25] Ibidem, p. 56.
[26] Ibidem, p. 15.
[27] ibidem, p. 127.
[28] Ibidem, p. 168.
[29] LOPEZ, 1976, p. 42.
[30] Ibidem,
p. 25.
[31] SQUEFF, op. cit., p.
23.
[32] GINZBURG, op. cit., p.
41.
[33] ANDRADE, p. 61.