A etnografia
poética de Correia Dias: um passeio pela tradição indígena de sua piscina
mítica
Amanda Reis Tavares Pereira
PEREIRA, Amanda Reis Tavares. A
etnografia poética de Correia Dias: um passeio pela tradição indígena de sua
piscina mítica. 19&20, Rio de Janeiro, v. X, n. 1, jan./jun. 2015. https://www.doi.org/10.52913/19e20.X1.04a
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E
para despertar-lhes o interesse pelas nossas belatrizes,
Orellana fora informado de que elas eram possuidoras de enormes tesouros, a
começar pelos cinco suntuosos Templos do Sol que lhes enriqueciam os domínios.
Por outro lado, muito antes que os primeiros bergantins descessem o Amazonas e
houvessem sido flechados pelas supostas mulheres guerreiras, já Américo
Vespúcio e até Colombo tinham ouvido referências a tribos de Amazonas em outras
regiões da América, e isso era o bastante para mostrar que uma única e mesma
lenda andava na imaginação de muitos. Mas passemos a outro ponto, que é muito
interessante, e está intimamente ligado à tradição das amazonas. Os muiraquitãs
...
-
Amazônia misteriosa, Gastão Cruls
1. Em
1930, o português Fernando
Correia Dias (1882-1935), caricaturista, ceramista, artista
gráfico e decorador, radicado no Brasil desde 1914, realizou, a pedido do
empresário brasileiro Guilherme Guinle (1882-1960), o projeto de uma piscina,
uma fonte e dois bancos para sua propriedade na Gávea, Rio de Janeiro [Figura 1].
2. A pequena piscina
intercepta o curso de um riacho à beira da floresta que cerca a propriedade.
Foi incorporada a esse projeto uma grande pedra próxima à queda d’água. Em
torno dela, foram colocados vasos de planta com motivos marajoara, tal como o
são os azulejos. Na lateral direita, a água segue seu curso por uma pequena
escada. Dentro da piscina, de um pouco mais de um metro de profundidade,
podemos ver plantas aquáticas conhecidas como vitória-régia. O projeto seria um
jardim com um tanque para essa planta.[1] Também podemos observar, nos outros dois
lados, a imagem de pequenas escadas que dão acesso à água. Na lateral esquerda,
a única que não possui escada, é possível observar perfeitamente uma espécie de
fonte por onde a água passa. Em cima da fonte, há um grande muiraquitã. A
posição privilegiada desse elemento dentro do projeto (no local mais alto,
acima da fonte) evidencia sua relevância e o que ele pode evocar: o lendário Yaci Uarua, ou
espelho da lua, nome indígena do lago associado a uma das narrativas míticas
mais recorrentes no imaginário amazônico, a lenda das Amazonas e de seus muiraquitãs
3. Muito antes de ocupar essa
posição privilegiada no projeto de Correia Dias, o muiraquitã e as narrativas
em torno dele já haviam percorrido o mundo nos textos e histórias dos viajantes
europeus, instigando o imaginário tanto de exploradores quanto daqueles que
jamais se aventurariam na região.
4. Consta
ter ocorrido, ainda no século XVI (1541-42), a primeira expedição realizada ao
longo de todo o rio Amazonas, desde o Equador até a foz do oceano Atlântico,
cujo capitão foi o espanhol Francisco de Orellana (1490-1550). O cronista dessa
expedição, frei Gaspar de Carvajal (1504-1584), registra em seu texto o
confronto do grupo com as índias guerreiras que viveriam sem a companhia dos
homens, perto da foz do rio Jamundá:
5. Íamos desta maneira
caminhando e procurando um lugar aprazível para folgar e celebrar a festa do
bem-aventurado São João Batista, precursor de Cristo, e foi servido Deus que,
dobrando uma ponta que o rio fazia, víssemos alvejando muitas e grandes aldeias
ribeirinhas. Aqui demos de chofre na boa terra e senhorio das amazonas.
6. [...] Andou-se neste combate mais de uma
hora, pois os índios não perdiam ânimo, antes parecia que o redobravam, embora
vissem mortos a muitos dos seus, e passavam por cima deles, e não faziam senão
retrair-se e tornar a atacar.
7. Quero que saibam qual o motivo de se
defenderem os índios de tal maneira. Hão de saber que eles são súditos e
tributários das amazonas, e conhecida a nossa vinda, foram pedir-lhes socorro e
vieram dez ou doze. A estas nós as vimos, que andavam combatendo diante de
todos os índios como capitãs, e lutavam tão corajosamente que os índios não
ousavam mostrar as espáduas, e ao que fugia diante de nós, o matavam a
pauladas. Eis a razão por que os índios tanto se defendiam.
8. Estas mulheres são muito alvas e
altas, com o cabelo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça. São muito
membrudas e andam nuas em pelo, tapadas as suas vergonhas, com os seus arcos e
flechas nas mãos, fazendo tanta guerra como dez índios. E em verdade houve uma
destas mulheres que meteu um palmo de flecha por um dos bergantins, e as outras
um pouco menos, de modo que os nossos bergantins pareciam porco-espinho.[2]
9. Em
páginas anteriores ao fragmento acima transcrito, o frei já havia mencionado a
existência das amazonas e citado as precauções sugeridas por alguns índios caso
o grupo espanhol pretendesse adentrar suas terras. Trata-se do primeiro
registro escrito que apontaria a real existência dessas mulheres, que jamais
teriam sido avistadas novamente.
10. Segundo
a tradição tupi, elas eram as icamiabas,
índias guerreiras que formavam uma tribo, apartada dos homens, perto da foz do
rio Jamundá. A semelhança com a narrativa da
Antiguidade Clássica consolidaria, para os europeus, a existência dessas
mulheres que, de acordo com a lenda tupi, eram responsáveis pela confecção de
pequenos amuletos, retirados do fundo do lago mágico, o Yaci Uarua.
11. No
século XVIII, os registros da expedição do naturalista francês Charles-Marie de
la Condamine (17701-1774)
pelo mesmo rio[3] apontariam a presença de pequenas pedras
verdes com formas zoomórficas no pescoço dos índios. Segundo o explorador, elas
eram conhecidas como “pedra das amazonas”. Data, portanto, desse século, o
registro da associação entre a tribo lendária e os muiraquitãs: artefatos em
pedra verde com forma brataquiana com furos laterais
duplos não visíveis pela parte frontal,[4] que, de acordo com a lenda, seriam feitos
pelas índias guerreiras.
12. A
confecção desses artefatos, vinculados à tradição dos povos Tapajó, Santarém e Conduri, demandaria tempo, muita habilidade, ferramentas e
técnicas apuradas, já que o jade é material difícil de ser trabalhado por ser
muito duro, o que sugere o domínio de técnicas complexas por parte dos povos
que os confeccionaram.
13. Os
muiraquitãs foram encontrados até na América Central, e muitos deles foram
levados para a Europa e presenteados como amuletos, símbolos de boa sorte.
Hoje, os poucos exemplares conhecidos estão em museus. Os relatos de La Condamine, datados do século XVIII, já mencionavam
propriedades curativas dessas peças, o que também já era amplamente difundido
entre os indígenas. Junto com esse artefato, também as lendas em torno dele e
das amazonas circularam pelo velho mundo, através dos registros e das histórias
dos viajantes exploradores.
14. No
projeto de Correia Dias, temos um muiraquitã redimensionado, com cerca de 50
cm, que teria sido esculpido em pedra. Tendo saído do pescoço dos índios para
habitar um riacho carioca, ele foi incorporado ao projeto como ornamento, e não
há dúvidas a respeito da centralidade simbólica de seu papel, já que está de
frente para a piscina e acima da queda d’água, o que sugere posição de
relevância. Também compõem a ornamentação do projeto sete vasos de planta,
distribuídos em torno da piscina.
15. Quando
realizou esse projeto, ancorado na tradição indígena, o artista português já
possuía extenso trabalho inspirado na tradição marajoara.[5]
Em 1928, a Companhia Cerâmica Nacional já fabricava azulejos desenhados por ele
a partir da estilização de padrões dessa cultura. Em seu ateliê, no bairro de
Botafogo, também eram conhecidos seus vasos de cerâmica inspirados nessa mesma
tradição, assim como seus abajures, tapetes, placas de bronze, objetos em ferro
batido, cofres em couro.[6] Desde seus primeiros anos no
Brasil, o comprometimento com uma arte brasileira baseada em elementos da
cultura nacional seria constante em seu trabalho.
16. Na
verdade, ainda em Portugal, o interesse pelas manifestações culturais populares
faria parte de seu repertorio artístico. Na resenha de Virgílio Ferreira,
publicada no periódico português A Águia,[7]
sobre a exposição de despedida do amigo, já é possível antever Correia Dias
envolvido com temas regionais. Ao chamar atenção dos leitores para a
compreensão que o artista possuía para o que havia de poético e artístico nos
regionalismos portugueses, Virgílio Ferreira alinha no trabalho de Correia Dias
o poético ao etnográfico, destacando o que considera ser um benefício para o
desenhista etnógrafo.[8] Essa associação não deixa de nos parecer
curiosa, já que o valor da obra de Correia Dias estaria mais relacionado a uma
habilidade subjetiva do que propriamente a um “método” de relato etnográfico, o
que seria mais esperado para essa disciplina. O ganho da etnografia portuguesa
seria justamente um olhar diferenciado, mais sensível aos elementos artísticos
regionais. Arriscar-nos-íamos a supor que aquilo que chama a atenção de
Virgílio Ferreira e o faz compreender a obra de Correia Dias como associação entre
o poético e o etnográfico seria o seu interesse pela estilização das
referências daquilo que compreendia como cultura nacional. A dimensão poética
estaria, portanto, a cargo de uma releitura desses elementos.
17. No
Brasil, a estilização de elementos da tradição marajoara marcará seu
pioneirismo em relação a um novo modo de apropriação do nativismo, como aponta
Paulo Herkenhoff: ao lado de Theodoro
Braga (1872-1953) e Manoel
Pastana (1888-1984), Correia Dias “desenvolveu a ideia de artes decorativas
com elementos nativistas. Ele iria tornar-se um grande propulsor da ideia de um
desenho industrial, nas artes gráficas e nas artes decorativas, pautado na
herança nacionalista da cerâmica marajoara.”[9]
O artigo do artista capixaba Vieira da Cunha O nacionalismo na arte (cfr.
link), considerado registro pioneiro
dessa intencionalidade nacionalista, dedicado às artes gráficas, foi feito no
período em que ele compartilhava com Correia Dias o ateliê de Botafogo.
18. Portanto,
quando realiza o projeto para Guilherme Guinle, o artista português já é
conhecido por seu trabalho, realizado em diferentes suportes como desenho,
cerâmica, artes gráficas, além de ornamentos para a arquitetura aqui designada neomarajoara ou “déco” marajoara. Seu interesse por uma
arte nacional o colocaria em contato também com a estilização de elementos da
fauna e flora brasileiras,[10] além dos elementos da tradição africana.
Sua trajetória profissional, portanto, passará por todos esses referenciais e
encontrará na expansão da “art déco”, nas décadas de
1930 e 1940, o reconhecimento de um trabalho já denso no campo de revisão
dessas tradições.
19. Os
vasos em cerâmica com estilizações marajoara, que podemos observar em algumas
fotografias de seus trabalhos, eram também comuns em seu ateliê.[11]
Provavelmente, os vasos com plantas que ornamentam o projeto inicial foram
feitos sob as mesmas preocupações artísticas que encontramos nas cerâmicas
fotografadas. No projeto, eles parecem ser resistentes, para que fiquem ali
expostos não só como objeto de decoração, mas também como bons recipientes para
as plantas; portanto, não parecem ser pequenos. Em fotos de seu ateliê é
possível ver vasos possivelmente semelhantes aos que estavam previstos pelo
projeto original, já que atualmente os vasos não estão mais no local.
20. Ao
mesmo tempo em que fala da importância de Correia Dias como pioneiro nessa
incorporação do nativismo, Paulo Hekhenhoff ressalta
o caráter conservador dessa apropriação,
21. [...] que se mantém fiel às formas e
materiais dos vasos, à permanência da identidade gráfica do símbolo, aos
contrastes gráficos com a acentuação da tendência arcaica.
[...] Na obra de Correia Dias, as peças pequenas parecem demonstrar maior
liberdade experimental de formas e de decoração, menos imediatamente
tributárias dos motivos ornamentais originais.[12]
22. Não
podemos afirmar que o projeto confirma essa interpretação a respeito da relação
entre a liberdade criativa e o tamanho do vaso, mas sugerimos que a percepção
do crítico a respeito do modo como a apropriação se dá poderia também estar
relacionada à ligação do etnográfico ao poético, sugerida por Virgílio
Ferreira. Talvez, afastar-se demais da identidade gráfica dos padrões marajoara
comprometesse a relação ou identificação do trabalho com aquela cultura, o que
comprometeria o sugerido caráter etnográfico.
23. Herkenhoff
contrasta ainda essa abordagem de Correia Dias àquela feita por Theodoro Braga,
companheiro do artista no pioneirismo da difusão dessa estilização. Braga faria
uma estilização mais livre do que a do amigo. Ao mesmo tempo em que estabelece
esse contraste, porém, Herkenhoff identifica na obra do próprio Braga uma
diferença entre seu trabalho com a estilização marajoara e o academicismo de
sua pintura, cuja obra O muiraquitã (1920) [Figura 2][13] serve-nos de exemplo.
24.
Essa tela de Braga nos parece interessante para reflexão sobre a revisão da
apropriação da tradição indígena proposta nas primeiras décadas do século XX,
que reivindica outro diálogo com essa tradição, distinto daquele recorrente no
século XIX, quando o indígena representado conforme a tradição acadêmica de
formação europeia podia ser entendido como elemento mítico fundador de uma
nação recém-liberta do domínio português. O muiraquitã de
Theodoro Braga, embora esteja contextualmente inserido nas discussões a
respeito da modernização dessa apropriação, ainda comunga com um modo de
representação previsto pelo século XIX: basta observar os corpos das índias.
25. Parece-nos interessante
compreender, portanto, na figura desse artista, o momento de transição vivido
nas primeiras décadas do século XX, já que, ao mesmo tempo em que se firma como
moderno em seus projetos de arte decorativa, ainda deixa transparecer em sua
pintura uma tradição europeia na abordagem de temas nativistas.
26. O
século XX revisitaria essa relação, propondo outro intercâmbio. No período,
ocorre uma revisão estética da temática nacional e do modo de disseminar e
entranhar esse nacionalismo, de forma que o filtro europeu fosse abandonado em
nome da valorização da arte indígena enquanto criação artística, opondo-se
àquele modo de representação da figura do índio.[14]
Eliseu
Visconti (1866-1944), Theodoro Braga e Manoel Pastana, ao lado de Correia
Dias, seriam fundamentais para a divulgação dessa estética, que encontraria
numa sociedade industrializada as ferramentas consideradas por eles
fundamentais e fundacionais para difusão dessa nova iconografia nacional.[15]
27. O
projeto aqui analisado faz parte, portanto, dessa nova sugestão de apropriação
e é realizado no momento em que o trabalho desses
pioneiros começa a ganhar coro com o então fortalecimento do “art déco” e “déco” marajoara. Não estamos mais diante de um
olhar preocupado com a representação europeia do homem indígena e sim com a
apropriação estilizada de elementos de sua cultura material, como os vasos e
padrões dos azulejos, além de sua mitologia, como sugere o muiraquitã.
28. São muitas as versões da
lenda a ele associada. Elas circularam pela América e pela Europa, desde o
século XVI. Vinculada comumente à tradição tapajó, que associa os muiraquitãs
às amazonas, é recorrente a história de que eram fabricados pelas icamiabas ou
amazonas. Em noite de lua cheia, elas receberiam índios da tribo escolhida, com
quem passavam a noite. Nessa mesma noite (ou à meia noite, em algumas versões
da lenda), elas mergulhavam no lago mágico, em torno do qual encontravam seus
guerreiros, e retiravam do fundo das águas um barro mole que se transformava em
um muiraquitã, amuleto entregue aos índios, que os penduravam no pescoço, como
um talismã que os ajudaria na caça, além de trazer boa sorte, felicidade e ser
símbolo da fertilidade daquele encontro. Em outra versão da lenda, no fundo do
lago moraria a mãe dos muiraquitãs, que dava às índias o amuleto em situação
muito semelhante: a de receber os índios. Também é conhecida a versão de que as
icamiabas jogavam vasos com água
perfumada para purificar a água de onde retirariam o muiraquitã. No projeto de
Correia Dias, também são os vasos que ornamentam o entorno da piscina -
deslocados de suas funções de carregar água ou mantimentos para a ornamentação
29. Parece-nos interessante
recordar que são recorrentes na região amazônica as figuras míticas associadas
à água, como a sereia Iara e a mãe d’água. As figuras de Iemanjá e Oxum também
foram incorporadas ao imaginário nacional que endossa a água como espaço
mítico.[16]
30. No contexto de uma
sociedade em processo de industrialização do início do século XX, em que o
conceito de moderno prevê essa releitura, vale sempre observar que a
apropriação dessa tradição se submete a um projeto ocidental de modernidade.
Toda a retórica sobre uma nova concepção do índio não deixou de ser feita sob a
mesma hierarquia. Apropria-se da estilização dos elementos indígenas e não
propriamente de sua cultura material, já que os elementos incorporados estão
desviados de suas funções previstas pela cultura marajoara, na qual a
iconografia possui simbologia específica[17]
e os vasos são fabricados para armazenar alimentos ou servir de urnas
funerárias.[18] Nessa nova perspectiva, não se propõe um
diálogo com a tradição indígena pela problematização ou valorização de sua
cultura, mas pela estilização de seus traços e formas.
31. A iconografia dos azulejos
da piscina ilustra bem o interesse pela estilização: é priorizado o efeito
estético da geometrização dos elementos visuais. Podemos identificar o diálogo,
sobretudo nas figuras antropomórficas presentes nas laterais da piscina. São
azulejos de padrão que sugere um rosto humano pela presença de olhos, nariz e
boca. Na tradição marajoara era recorrente a antropomorfização nas cerâmicas, e
a representação dos olhos e nariz em forma de “Y” ou “T”.[19] Esta última letra seria a mais próxima
do que encontramos nos azulejos da piscina e está acompanhada de dois quadrados
que representam os olhos. Nos dois azulejos que compõem a boca parece haver a
sugestão dos dentes na parte inferior. Todos os azulejos são monocromáticos, e
os desenhos estão em relevo e possuem contorno geométrico também em relevo.
Servindo como suporte para as plantas, os azulejos da parte superior compõem um
padrão exclusivamente geométrico. Próximo ao muiraquitã, uma faixa de azulejos com
outro motivo geométrico contorna a queda d’água. Esses azulejos que contornam o
muiraquitã, assim como os que estão na parte superior, parecem-nos estilizações
mais distantes dos referenciais originais.
32. É curioso que, embora
dialoguem com aquela cultura, os azulejos não pertenciam a ela, mas estão
associados a uma vasta tradição portuguesa, apesar de essa também não ser sua
origem. Nesse trabalho, portanto, Correia Dias oferece ao diálogo com o
nacionalismo nativista uma extensa tradição lusitana ao incorporar o azulejo
como material primordial do projeto.
33. Contextualmente, a década
que separa O muiraquitã “europeizado” de Theodoro Braga daquele “moderno” de
Correia Dias é marcada pela ampliação da indústria, do mercado editorial, da
fotografia e da consolidação da etnografia, o que facilitou a circulação e a
recepção de imagens da região amazônica, vista, desde do
século XVI, sob uma lente mítica, como nas narrativas de frei Gaspar de
Carvajal. Na piscina, a evocação dessa lenda é sugerida não só pelo muiraquitã
- bem maior do que os verdadeiros -, mas também pela vitória-régia e pelos
vasos, que ornam um projeto arquitetônico neomarajoara
instalado em uma queda d’água, espaço simbólico recorrente na imaginação mítica
do Brasil. Temos acesso ali à evocação da narrativa, que se vincula menos a uma
experiência daquela cultura do que a uma alegoria sobre ela.[20]
34. É fundamental recordar que
no período que separa as obras do artista paraense (1920) e do artista
português (1930) permaneceu a apropriação da tradição indígena, que foi sendo
digerida, como bem sugere a antropofagia, num diálogo sólido com diferentes discussões
sobre a Modernidade.
35. No início da década de
1920, o artista plástico recifense Vicente do Rego Monteiro
(1899-1970), cujo trabalho foi exposto na Semana de Arte Moderna de 22, seria
fundamental para uma nova apropriação do indígena. Em 1920, ele expõe em São
Paulo, Rio de Janeiro e Recife aquarelas de inspiração indígena. Embora o
diálogo com essa tradição esteja presente em quase toda a sua obra, destacamos
a relevância de Lendas, crenças e
talismãs dos índios do Amazonas e Algumas
vistas de Paris, ilustradas pelo artista e publicadas na França em 1923 e
1925, respectivamente.
36. Em 1925, o escritor
carioca Gastão Cruls
(1888-1959) publicaria Amazônia
misteriosa, romance sobre exploradores que se perdem na selva e encontram a
lendária tribo das icamiabas. Para
compor sua narrativa, Gastão Cruls usou como referência suas pesquisas sobre
relatos históricos acerca das amazonas. Sem conhecer a região, redige seu
romance a partir de uma extensa pesquisa nos relatos sobre expedições
realizadas na região.
37. Também nessa década se
situa a Semana de Arte Moderna de 1922, que corrobora a revisão do passado
histórico nacional. Macunaíma: o herói
sem nenhum caráter (1928), do paulista Mário de Andrade
(1893-1945) e Cobra Norato (1931), do
gaúcho Raul Bopp
(1898-1984),
obras literárias fundamentais para o movimento, foram realizadas a partir de
lendas indígenas da Amazônia e foram escritos depois que seus autores visitaram
a região.[21] Em Macunaíma,
o personagem-título perde seu muiraquitã, acontecimento que desencadeia a
narrativa.
38. O questionamento sobre a
real existência da tribo de mulheres guerreiras e seus muiraquitãs esteve
presente também no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em
1838. Na década de 1840, o então diretor do Instituto de Arqueologia do IGHB, Manoel de Araújo Porto Alegre,
escreveu uma peça teatral, cujo título - A
estátua amazônica: uma comédia arqueológica[22]
- ilustra bem a tensão entre as narrativas científicas e ficcionais sobre a
região e a persistência dessa narrativa no imaginário brasileiro. A motivação
para a obra teria sido o caso do expedicionário francês Francis de La Porte
(1810-1880), conhecido como conde de Castelnau, que encontrou
39.
Na região de Barra do Rio
Negro (atual Manaus), uma estátua de pedra, que logo foi enviada para a França
e exposta no museu do Louvre, junto com outros objetos coletados. Apesar de
muito raros (atualmente não se conhecem mais de 50 exemplares), outros ídolos e
estatuetas de pedra seriam encontrados na região amazônica, sobretudo a partir
de 1870. Atribuídos, hoje, à cultura pré-cabralina
denominada de Santarém, representam figuras de homens e animais. Mas na época
de Castelnau foram vistos como indícios reais da civilização das amazonas! O
explorador estava certo de que o artefato não provinha de sociedades
consideradas primitivas. Para explicar sua origem, recorreu ao sedutor mito da
sociedade de mulheres guerreiras, em declaração ao jornal parisiense L’Illustration.[23]
40. Considerada uma enorme
falácia por Porto Alegre, a exposição lhe inspirou a caricatura de Castelnau na
figura do expedicionário francês conde Sarcophagin,
uma metonímia do imaginário fantasioso de exploradores que criam interpretações
mirabolantes para compreender o que encontravam.[24]
O explorador, igualmente presente na narrativa de Gastão Cruls, também se
converte em ficção, sendo incorporado como personagem ao imaginário amazônico.
41. A selva evoca, portanto,
desde os primeiros relatos europeus, um imaginário fantasioso, misterioso,
desconhecido e maravilhoso, fonte inesgotável para as expectativas não só dos
cientistas e expedicionários como também dos artistas. Desse modo, para compreender
a região, talvez fosse mais instigante recorrer a esses textos do que
propriamente aos mapas ou registros científicos, já que a Amazônia poderia ser
interpretada sob a lente da projeção histórica dessas narrativas ocidentais.
42. A todos os eventos
mencionados soma-se, a partir da década de 1930, o debate sobre as artes
aplicadas e sobre o “art déco”, que ganha fôlego e
difunde-se. Também data dos anos 30 o livro Introdução à arqueologia
brasileira: etnografia e história (1934),[25]
de Angyone Costa, que impulsiona esse debate no Brasil.
Certamente, entre o quadro de Theodoro Braga e a publicação de Angyone há uma intensificação das discussões sobre o local
que a etnografia passa a ocupar no âmbito das ciências humanas e, por extensão,
também se realocam os possíveis desdobramentos dos interesses pela alteridade,
o que vai conduzir, inevitavelmente, a novas projeção e apropriação da tradição
indígena.[26]
43. Parece-nos
instigante, pois, a tensão entre os discursos científico e ficcional que
compõem o imaginário sobre a região desde o século XVI, mas, sobretudo, desde o
final do século XIX e as primeiras décadas do XX - período de consolidação não
só da etnografia como disciplina, mas também das revisões históricas e
estéticas já mencionadas a respeito daquele contexto industrial.
44. É
possível, portanto, pensar no projeto de Correia Dias como um mergulho nesse
imaginário, que foi apropriado por um estrangeiro que desenvolve no Brasil um
considerável e ainda pouco estudado trabalho com a tradição indígena, fruto de
seu interesse pelo nativismo e de seu contato com a obra de Theodoro Braga. O
projeto para a residência de Guilherme Guinle é mais um capítulo dessa
apropriação, que dialoga com os elementos escolhidos para ela. O trabalho de
Correia Dias, ao propor uma interferência arquitetônico-paisagista no curso de
uma queda d’água, interfere também na experiência daquele espaço,[27]
que passa a incorporar narrativas e simbologias - associadas à cura, proteção e
prosperidade, por exemplo - vistas sob a lente de um projeto dito moderno de
apropriação da tradição indígena.
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Paola. Theodoro Braga e as proposições para uma arte brasileira. 19&20,
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linguagem iconográfica da cerâmica marajoara. Dissertação de mestrado. PUC
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1996.
PAHL SHAAN, Denise. Cultura
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SCHAMA, Simon. Paisagem e
memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
___________________________________
[1]
HERKENHOFF, Paulo. Design e selva: o caminho da modernidade brasileira. The
jornal of Decorative and Propaganda Arts 1875-1945,
n.21, 1995.
[2] ACUÑA, Cristobal de; CARVAJAL, Gaspar de;
ROJAS, Alonso de. Descobrimentos do Rio das Amazonas. Disponível em: <http://www.brasiliana.com.br/obras/descobrimentos-do-rio-das-amazonas/pagina/59/texto>.
S.d. Acesso em 01/08/2014.
[3] O
trabalho do pesquisador francês la Condamine sobre a bacia hidrográfica amazônica, apresentado
em 1745 na Academia de Ciências de Paris (Relation abrégée d’un voyage
fait dans l’intérieur de l’Amérique Méridionale) teria
fomentado ainda mais o interesse europeu pela região.
[4]
BARATA, Frederico O muiraquitã e as contas do Tapajó. São Paulo: Revista do
Museu Paulista, n. 08, 1954. pp. 229-232.
[5] O
termo marajoara refere-se aos povos indígenas que habitaram a Ilha de Marajó,
no estado brasileiro do Pará. De acordo com a pesquisadora, Denise Pahl Shaan (1996) “a arte
marajoara é a arte que se desenvolveu na Ilha de Marajó a partir do ano 400
A.D. e que chega até nós por meio dos resíduos da atividade ceramista que se lá
se estabeleceu, segundo datas hoje amplamente aceitas, até 100 a 200 anos antes
da chegada dos europeus ao continente. Esse material arqueológico possui
características que, se por um lado atraem a curiosidade do pesquisador, por
outro lançam inúmeras incertezas e colocam diversas dificuldades à consecução
do trabalho de investigação científica. É um material riquíssimo em termos
quantitativos e qualitativos, havendo inúmeras peças que primam pelo requinte
técnico, com harmonia e singularidade de formas e designs, representando, sem
dúvida, uma das mais belas cerâmicas policrômicas da pré-história recente das
Américas. Em contrapartida, não há etnografia sobre a sociedade que a produziu
e que dela se serviu por cerca de novecentos anos. Existem muitas dúvidas sobre
a origem desse povo e a razão de seu desaparecimento, assim como sobre o modo
como viviam e como se adaptaram às complicadas condições físicas e geográficas
da Ilha de Marajó”.
[6]
HERKENHOFF, op. cit.
[7]
Virgílio Ferreira (1888-1944) foi conservador do Museu Etnológico Português
(1912) e do Museu Nacional de Arte Antiga (1915). Lecionou na Universidade de
Coimbra a disciplina de estética e história da arte, desde 1921, e a de
arqueologia, desde 1923, e dirigiu o Museu Machado de Castro, em Coimbra, de 24
de novembro de 1929 a 1944, quando faleceu.
[8] Em
março de 1914, a revista portuguesa A Águia publicou uma reportagem sobre
a exposição de caricaturas que Fernando Correia Dias havia feito no Salão da
Ilustração Portuguesa. Além de comentar a exposição, a reportagem, escrita pelo
amigo Virgílio Correia era também uma espécie de despedida, já que as obras ali
expostas atravessariam o Atlântico junto com o artista, que julgava ser o
Brasil um campo fértil para suas pesquisas. Ao fim da reportagem, Virgílio se
despede esclarecendo que “Correia Dias vae [sic] para o Brasil expor os seus
trabalhos, tentar aplicar as suas aptidões de artista decorador. Que a fortuna
não lhe o faça esquecer que além de tudo o mais a Etnografia portuguesa espera
o seu concurso como ilustrador, porque outro não há que compreenda e sinta tão
fundamente o que de amorável, de poético e artístico há em todos os
regionalismos e cousas populares de Portugal”.
[9]
HERKENHOFF, op. cit., p. 119.
[10]
Correia Dias teve acesso aos estudos de Theodoro Braga em A planta brasileira (copiada do natural) aplicada à ornamentação,
que possui estilizações da fauna e flora brasileiras além da cerâmica indígena,
sobretudo marajoara.
[11]
Infelizmente, a maior parte da cerâmica produzida por Correia Dias se perdeu.
Da maioria de suas peças conhecemos somente fotografias. Seu acervo preservado
está sob propriedade da família, no Rio de Janeiro, indisponível à consulta.
Primeiro marido da poeta brasileira Cecília Meireles (1901-1964), Correia Dias
teve com ela, no Brasil, três filhas.
[12]
HERKENHOFF, op. cit., p. 120.
[13]
Quando realizou essa obra, o artista plástico paraense Theodoro Braga já
possuía trabalho comprometido com a difusão de uma iconografia brasileira
moderna, fruto de suas pesquisas sobre a estilização da fauna e flora
nacionais, além dos estudos a partir da cerâmica marajoara. Assim como Correia
Dias, trabalhou com diferentes suportes artísticos. Foi, como diversos outros
atores sociais do século XIX-XX, um profissional “multifacetado”. “Formou-se
advogado em 1893, pela Faculdade de Direito do Recife, mas na mesma cidade logo
cedo se inclinou à formação artística, a qual iniciou por volta de 1892, pelas
mãos de Jerônimo José Telles Júnior, mestre do paisagismo pernambucano, que,
segundo o historiador Edilson da Silveira Coelho, foi um dos responsáveis pela
construção de sua personalidade artística. Já no Rio de Janeiro, em 1894,
Theodoro Braga estudou pintura na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), com os
professores Belmiro de Almeida, Daniel Bérard e Zeferino da Costa, obtendo
conceito máximo, quando de sua formatura em 1898. Em 1899, recebeu o Prêmio de
Viagem à Europa e partiu para aperfeiçoamento na cidade de Paris, onde estudou
na Academia Julian, com Jean-Paul
Laurens, mestre da pintura histórica francesa. Na sua estada em Paris, Theodoro
Braga manteve contato com a arte decorativa francesa, assim como pôde percorrer
vários outros países europeus, estudando e colhendo informações e aperfeiçoando
técnicas para melhorias de suas obras. De regresso a Belém, em 1905, sua terra
natal, pôde desenvolver pintura alusiva à fundação da cidade [cf. Imagem], por
encomenda daquela municipalidade, fortalecendo seus vínculos com a pintura
histórica. Ali produziu A planta brasileira (copiada do natural) aplicada à
ornamentação, um repertório visual manuscrito com introdução de Manoel
Campello, no qual o artista se utiliza da flora e fauna e dos padrões
decorativos retirados da cerâmica produzida por culturas indígenas,
especialmente da cerâmica marajoara, facilmente identificável com suas tramas
geométricas, e labirínticas.” PASCOAL, Paola. Theodoro Braga e as proposições
para uma arte brasileira. 19&20,
Rio de Janeiro, v. VIII, n. 1, jan./jun. 2013. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/tb_pp.htm>.
Acesso em 09/09/2013.
[14]
MALTA, Marize. Percursos na construção de novas iconografias brasileiras: do
selvagem romântico às grafias marajoaras art déco.
Disponível em: <http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308172766_ARQUIVO_MALTAMarizeDiscussoesacercadeumanovaiconografiabrasileira.pdf>.
Acesso em 30/10/2013
[15] As
artes aplicadas, trabalhadas por ambos, seriam relevantes justamente por
permitir a confecção em larga escala de objetos que propagassem
iconograficamente uma concepção estética nacional atualizada. Tendo sido aluno
do francês Eugène Grasset
(1845-1917) em Paris, Eliseu Visconti havia voltado para o Brasil interessado
em aplicar, sem muito sucesso, seus estudos sobre o método, aprendido na
França, de composição ornamental a partir da estilização da flora e da fauna
nativas. Em 1901, realizou na Escola Nacional de Belas Artes uma exposição com
mais de setenta trabalhos de arte decorativa aplicada à indústria. O crítico
Gonzaga Duque, na época, lamentou a rejeição da indústria brasileira ao projeto
de Eliseu Visconti, criticando o fato de preferirem a “servilidade dos maus
modelos vindos do estrangeiro”.
[16] A
conotação mítica água também está presente na lenda da vitória-régia. É
atribuída ao povo tupi-guarani, a lenda de Naiá, a
índia que queria ser levada pela lua. De acordo com a narrativa, a deusa lua
sempre que se escondia atrás da montanha, levava consigo uma índia de grande
beleza e a transformava em uma estrela. O sonho de Naiá
era ser levada por ela, embora todos lhe advertissem de que uma vez levada não
retornaria mais à terra. Indiferente à advertência, ela corria em seu cavalo
nas noites de lua, sem nunca conseguir alcançá-la. Numa certa noite, muito
cansada, Naiá parou para beber água em um lago.
Devido à exaustão, acabou caindo na água e morrendo. A deusa, com pena da
jovem, que tanto se havia esforçado, decidiu transformá-la em uma estrela
diferente de todas as outras, transformando-a, então, em uma vitória-régia,
planta aquática que só floresce à noite.
Assim como a lenda de Naiá, a mitificação da região amazônica e da tribo de
mulheres que deu nome à região ajudou a difundir o imaginário de muitos
exploradores sobre o lugar.
[17] PAHL
SHAAN, Denise. A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara.
Dissertação de mestrado. PUC Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1996.
[18]
Patrícia Godoy menciona que a estilização dos modelos marajoara requer estudos
geométricos, o que pode alterar os padrões. Ela também chama a atenção para o
fato de nem sempre os artistas conhecerem os padrões originais. Isso nos induz
a ratificar que o interesse estético é o que vai ser privilegiado por aquele
intuito nacionalista (Cfr.: <http://www.unicamp.br/chaa/rhaa/atas/atas-IEHA-v3-078-086-patricia%20bueno%20godoy.pdf
>. Acesso em 15/10/2013).
[19] PAHL
SHAAN, Denise. Cultura marajoara. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2009.
[20]
Pensamos aqui na alegoria etnográfica proposta por James Clifford (2002): “A
alegoria (do grego allos,
‘outro’, e agoreuein,
‘falar’) normalmente denota uma prática na qual uma ficção narrativa
continuamente se refere a outro padrão de ideias ou eventos. Ela é uma
representação que interpreta a si mesma [...] Qualquer história tem uma
propensão a gerar outra história na mente de seu leitor (ouvinte), a repetir e
deslocar alguma história anterior. A compreensão da etnografia como alegoria
implica a aceitação de que o outro não pode ser representado, dada a
complexidade da experiência” (p. 65) “A alegoria nos incita a dizer, a respeito
de qualquer descrição cultural, não ‘isto representa, ou simboliza, aquilo’,
mas sim ‘essa é uma história (que carrega uma moral) sobre aquilo’” (p. 66).
[21] Em O turista aprendiz (1927), Mário de
Andrade publicará as fotografias que ele mesmo tirou ao longo de sua viagem
[22] Para ter acesso ao texto integral, ver:
<http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/01514900>.
Acesso em 23/09/2013.
[23]
LANGER, Jonni, disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/cacadores-da-lenda-perdida>.
Acesso em 21 set 2013. Consultar: LANGER, Jonni. As
amazonas: história e cultura material no Brasil oitocentista. Disponível em:
<http://www.cerescaico.ufrn.br/mneme/pdf/mneme10/amazonas.pdf>.
Acceso em 07/02/2015.
[24] No
artigo Como era ardiloso o meu francês:
Charles-Marie de La Condamine e a Amazônia das Luzes,
Neil Safier analisa os registros e palestras de La Condamine sobre a região amazônica quando de seu retorno à
França, demonstrando os interesses políticos por trás de suas palavras, bem
como as estratégias discursivas e de cópia das quais lançou mão para a
composição de seu texto, aparentemente um relato pessoal e original sobre a
região. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbh/v29n57/a04v2957>.
Acesso em 12/02/2015. KERN,
Daniela. The Amazonian Idol: the naissance of a national symbol in the Empire
of Brazil (1848-1885). Disponível em: <https://www.academia.edu/10956147/2013_The_Amazonian_Idol_the_naissance_of_a_national_symbol_in_the_Empire_of_Brazil_1848-1885>.
Acesso em 12/02/2015.
[25] Para
ter acesso ao texto integral, ver <http://www.brasiliana.com.br/brasiliana/colecao/obras/184/introducao-a-arqueologia-brasileira-etnografia-e-historia>.
Acesso em 2/02/2015.
[26]
Embora não seja nosso foco, este trabalho flerta com as discussões sobre a
apropriação da arte dita primitiva por parte dos grandes centros ocidentais. A
respeito dessa questão, destacamos a contribuição da antropóloga Sally Price (2000, p. 56): “Certamente, uma questão que surgirá
com frequência nesse livro é até que ponto podemos ver toda a arte como
tratando das mesmas ‘questões centrais’ e até que ponto a produção artística de
diferentes povos reflete a maneira especial pela qual cada um vê o mundo e o
seu lugar nele.” Nessa obra, a autora questiona a pertinência da aplicação de
conceitos e métodos ocidentais de arte em culturas que não compartilham esse
arcabouço. Desde o questionamento a respeito dos ditos conhecedores de arte
(críticos, sobretudo) até o questionamento sobre a formação das grandes
coleções de arte primitiva, o livro aborda a permanência desses centros como
locais de legitimação ou não do valor artísticos da arte primitivas,
evidenciando a persistência da hierarquia entre os “primitivos” e os
“civilizados” e o modo como ainda ocorre. A insistência no anonimato dos
artistas primitivos seria um exemplo disso. É interessante, para nós, refletir
sobre o modo como o contexto histórico aqui mencionado fomenta essa hierarquia.
[27] A
respeito da experiência dessa interferência, lembramos Paisagem e memória,
de Simon Schama (1996): “Se a visão que uma criança
tem da natureza já pode comportar lembranças, mitos e significados complexos,
muito mais elaborada é a moldura através da qual nossos olhos adultos
contemplam a paisagem. Pois, conquanto estejamos habituados a situar a natureza
e a percepção humana em dois campos distintos, na verdade elas são
inseparáveis. Antes de poder ser um repouso para os sentidos, a paisagem é obra
da mente. Compõem-se tanto de camadas de lembranças quanto de estratos de rocha
(p. 17). “Perceber o contorno fantasmagórico de uma paisagem antiga, sob a capa
superficial do contemporâneo, equivale a perceber, intensamente, a permanência
dos mitos essenciais” (p. 27).