Adalberto Mattos: “Rapins de hontem, artistas de hoje”
organização
de João Victor Rossetti Brancato e Arthur Valle
BRANCATO, João Victor Rossetti, VALLE, Arthur (org.).
Adalberto Mattos: “Rapins de hontem, artistas de hoje”. 19&20, Rio de Janeiro, v. XV,
n. 1, jan.-jun. 2020. https://doi.org/10.52913/19e20.vXVi1.00008
* * *
Entre
janeiro e abril de 1921, o artista e crítico de arte Adalberto
Pinto de Mattos (1888-1966) publicou na revista Illustração Brasileira
quatro crônicas sob o título Rapins de hontem, artistas de hoje.”
A série descreve casos do período em que Mattos estudou na Escola Nacional de
Belas Artes (ENBA), no início do século XX, quando aprendeu a arte da gravura
de medalhas e pedras preciosas. O termo “rapin” no título remete aos jovens
aprendizes de artista das academias e ateliês privados franceses do século XIX,
como apontam tanto a historiografia internacional quanto os dicionários e impressos
franceses do Oitocentos e início do Novecentos.
Bastante
original em seu conteúdo, as crônicas de Rapins de hontem são uma
rica fonte de informações acerca do cotidiano da ENBA em sua fase inicial. Elas
nos permitem conhecer e/ou imaginar um pouco do dia-a-dia dos alunos, a
personalidade dos professores, os modos de sociabilidade e, até mesmo, os
modelos e funcionários da Escola - algo bastante raro na literatura artística
brasileira. Uma leitura a contrapelo dos textos de Mattos revela, porém, as diferenças
sociais, étnicas e de gênero herdadas e mantidas pela Primeira República
brasileira.
Uma
advertência ao leitor: Mattos escreve cerca de vinte anos após os
acontecimentos que relata, sendo natural certos deslizes em relação às datas
fornecidas por ele em algumas passagens. Também não é possível afirmar que as
crônicas narrem fatos em alguma cronologia coerente. Nesse sentido, inserimos
já aqui algumas notas a fim de orientar a leitura. A grafia de todas as
crônicas foi atualizada. Mas a grafia e diagramações originais das publicações
podem ser consultadas em fac-símiles abaixo disponibilizados, cuja fonte é a
Hemeroteca Digital da site da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro (link).
*
MATTOS, Adalberto. Rapins de
hontem artistas de hoje. Illustração Brazileira, ano II, n. 5, jan. 1921, sem
paginação [fac-símile]
Quem há vinte anos aproximadamente
visitava a Escola de Belas Artes, ali no Beco do mesmo nome[1],
sentia qualquer coisa de estranho; a situação, o ambiente, os rapazes daquele tempo,
enfim tudo contribuía para deixar, no espírito de quem lá ia, um sentimento de
bem estar duradouro e confortante.
O ambiente, de austeridade
monacal, impressionava. Dentro da penumbra dos corredores, vivia o mistério que
penetrava no ânimo dos artistas moços, em busca do ideal sonhado. À entrada, o
“Gladiador Borghese”, majestoso na sua atitude, músculo retesados, empolgava.
As frisas de Fídias, que em torno ao saguão, como sentinelas avançadas, faziam
com que a juventude retrocedesse ao tempo de Péricles, Ictinos e Calícrates,
impulsionados pelo respeito dos grandes mestres.
A mocidade daquele tempo
trazia a cabeça descoberta diante de tanta magnificência e tinha um objetivo
que era sublime: ser artista. Esse sentimento em todos era calcado no respeito
dos mestres; gente simples e sonhadora sem o egoísmo enraizado e a mania do foot-ball...
Não havia ainda a praga dos
almofadinhas, e daí reunir a Escola de Belas Artes uma série de predicados que
calavam no ânimo dos rapazes que realmente desejavam ser mais alguma coisa do
que cabeleiras; o respeito que um novo nutria pelo adiantado era digno de
registro.
Quando algum deles passava era
como se um ente sobrenatural aparecesse!... O respeito mesclado com o desejo de
um dia ser como eles, adiantados, poder andar com uma caixa de pintura; ir ao
atelier do mestre! Oh! ventura!
Como iniciador da mocidade na
carreira das Artes, estava o mestre Daniel Berard, um
velho desempenado, de porte marcial, que sistematicamente usava guarda-chuva e
calças brancas nos dias de chuva, e faltava no dia 2 de cada mês...
Mestre Berard era um ardoroso
entusiasta da França, tinha-lhe um entranhado amor, tão grande como o que tinha
pela pátria; era monarquista; a sua veneração por Pedro II era tão grande, a
ponto de descobrir-se ou levantar-se todas as vezes que ao velho monarca se
referia.
Nunca tinha uma frase amarga
para os desafetos. Amigo dos discípulos que trabalhavam, que estudavam, ao
passo que intransigente para com os vadios, a sua intransigência chegava ao
ponto de usar de aspereza para com eles, não obstante a sua proverbial
delicadeza.
Havia no primeiro ano de
desenho do curso daquele saudoso tempo[2], um
rapaz um tanto vadio, que, levado pelos companheiros, não cumpria muito
regularmente as suas obrigações de estudante. Mestre Berard não o olhava com
bons olhos. Um dia, afinal, foi a ele, e, em plena aula perguntou-lhe em voz
alta: - “O Sr. Pretende ser artista? - “Sim,” respondeu o discípulo. -
“Pintor?” - “Talvez,” retrucou o aluno - “Então, é muito rico? - “Pelo
contrário, paupérrimo...” - “Nesse caso, meu amigo, desista, pois do contrário
o seu fim será aquele”, e apontou para um pobre diabo, uma sombra humana, que, pendurado
em uma escada, brochava as paredes da Escola em obras. “Quem quer ser artista,
estuda muito, prepara o espírito para a luta!”
Passaram-se os anos, o vadio
tornara-se um estudante aplicado, pelo sermão do mestre.
Em diversos Salões de Belas
Artes, conquistou o prêmio, inclusive o de viagem à Europa. Mestre Berard, não
obstante o seu voto favorável, dado no Conselho Superior de Belas Artes, foi em
busca do antigo discípulo que se achava rodeado de colegas, e, em plena galeria
de pintura da Escola, e, com lágrimas caindo pelas faces, pediu perdão das
palavras duras, pronunciadas 7 anos antes!
Por esta simples, mas tocante
narrativa, é fácil verificar o seu caráter reto e a sua grandiosa alma, feita
para a Arte, incapaz de causar mágoa a quem quer que fosse.
Como homem, mestre Berard era
um exemplo. Como artista, impecável, de uma honestidade sem par. Nos seus
retratos, ele procurava dar mais que a simples semelhança, rebuscava no
recôndito do modelo, dentro da própria alma, a psicologia que os pincéis traduziam
para a tela, como uma página aberta aos seus olhos penetrantes de observador.
Certo dia, foi encarregado de
pintar o retrato do saudoso Barão Homem de Mello, que,
pela idade e pelo estado de saúde, não podia ir ao atelier do pintor, situado
em um segundo andar da Rua dos Ourives. A perspectiva do emprego da fotografia
era um suplício para o mestre! Durante muitos dias andou preocupado, triste,
sem coragem de dizer aos que desejavam o retrato do venerando Barão, que
precisava de uma fotografia em que o futuro retratado estivesse far- [quebra
de página] dado de Ministro do Império; recorreu ao discípulo Armando Magalhães Corrêa, para
obter o que desejava. Magalhães Corrêa procurou-nos para que déssemos
desempenho cabal ao desejo do mestre. Em dia e hora previamente combinados,
partimos em demanda da residência do saudoso professor de História das Artes,
na Praça da República, onde hoje se encontra a garagem da Assistência Pública
Municipal.
Fomos encontrar o velho mestre
já fardado, à nossa espera, no meio de uma balbúrdia de papeis, recortes de
jornais e livros de toda a espécie. Depois de uma curta palestra, começou o
mestre Berard a procurar uma luz que lhe conviesse para a fotografia, que foi
feita em poucos momentos, ficando a seu contento.
Tempos depois, fomos ver o
retrato e lá encontramos o venerando Barão em parte restabelecido, que, com
grande sacrifício subira os dois lances de escada para dar uma pose ao artista.
A nossa admiração pelo trabalho do mestre foi incalculável. Do espectro
fotográfico nada existia.
A efígie do venerando
professor, cheia de vida, refulgia com a sua barba branca de prata,
contrastando com o ouro do fardão glorioso, o olhar azul do velho mestre
refletia os fastos da sua vida de estadista insigne. Com satisfação incontida,
mestre Berard manifestava a sua gratidão ao venerando Barão, pelo sacrifício,
que fizera, de subir a escadaria para ir em seu auxílio, pois pela fotografia
não sabia fazer coisa alguma; tinha necessidade de ter diante de si a natureza
palpitante de vida, fonte perene de todas as grandezas da Arte. Era mestre
Berard tão rigoroso nas suas produções que pagou com a vida esse mesmo rigor.
Tendo recebido do Estado do Paraná a encomenda do retrato do então governador,
preferiu seguir para o Estado a lançar mão de recursos fotográficos. Executou o
trabalho diante da verdade; a mudança de clima, porém, ativou a sua morte, até
hoje sentida por todos os que dele se aproximaram e receberam ensinamentos de
Arte. Na Escola de Belas Artes, onde, durante tantos anos, o mestre transmitiu
os seus conhecimentos a uma legião de moços, não existe entretanto uma obra
dele que perpetue o seu valor como pintor, a sua individualidade estética,
emotiva é grande.
O que a Escola possui é a
prova do concurso feito para professor, um extraordinário desenho da estátua
famosa conhecida por “Idolino”, da autoria de Lykios, cujo original se encontra
em Florença.
Na galeria Jorge, encontra-se
presentemente um belo espécimen, onde o valor do artista pode ser medido, quer
como desenhador, quer como pintor. Em poder do escultor Magalhães Corrêa existe
também um retrato, pintado justamente na mesma época em que o mestre pintou o
retrato do saudoso Barão Homem de Mello e o do poeta Ignacio Raposo.
No tempo em que o mestre
Daniel Berard lecionava na Escola de Belas Artes, pontificavam também os irmãos
Bernardelli [Rodolpho
e
Henrique], Amoêdo
e
o mestre dos mestres João Zeferino da Costa,
glorioso por todos os títulos, o maior artista brasileiro que até hoje temos
possuído.
Na classe de Henrique
Bernardelli, o ambiente era agradável. O mestre amigo tinha sempre uma pilhéria
para o discípulo que “boiava”. Era comum os alunos irem em sua companhia para o
campo e para as praias, onde a par de estudos realizavam convescotes, sem que,
entretanto, a camaradagem diminuísse o respeito devido. Os alunos aprendiam com
prazer; guiados por mão sábia, produziam com vantagem. Entre os que
frequentavam a aula do professor Bernardelli, contavam-se elementos de valor
que hoje se encontram na vida prática, honrando as Artes patrícias: Lucílio
e
Georgina de Albuquerque, Trajano, Arthur Timotheo da Costa, Eduardo
Bevilacqua, Maria José, Oscar Boeira, Francisco Manna, [José]
Amarante, Gaspar
Magalhães e Julieta H.
Ribeiro, uma gentil figurinha de mulher em corpo de
criança, a “Julietinha”, como os colegas com carinho lhe chamavam, pela sua
bondade e simplicidade; de todos era amiga, o anjo da paz quando surgia uma
rusga. Era comum vê-la sentada no meio da roda a palestrar com os rapazes,
alegre, despreocupada nos seus 20 anos... De todos os rapazes havia um que não
tomava parte nas pilhérias. Era Eduardo Bevilacqua, o “malhar eterno que
‘morria’ em cima de um joelho durante uma semana inteira”...
Em compensação, outros havia
que permanentemente estavam às voltas com as descomposturas do mestre.
Entre esses, ocupava sempre o
primeiro lugar o Manna, um tipo curioso a Mürger[3], de
chapéu à banda e guloso a ponto de comer o miolo das frutas que serviam de
modelo, deixando-lhes as cascas pacientemente armadas no mesmo lugar, com
grande desespero de Arthur Timotheo, eterno rabugento, que possuía uma caixa de
tintas formidável, comprada num saldo do Cavalier, já bichada e maior do que a
sua figura. Com Francisco Manna fazia boa pena o José Amarante, o “Cavallaro”
da Escola[4],
atarracado, de cartolinha menor do que a cabeça, e charuto bichado, com tantos
buracos que os dez dedos não bastavam para tapá-los: era nas horas vagas o
porteiro da Associação Comercial. Apesar da grotesca figura, foi o maior
talento que passou pela Escola no seu tempo. Era músico, poeta e... mineiro de
Itabira de Mato Dentro. Era enfim uma completa organização artística,
infelizmente desaparecida da roda por loucura furiosa que o levou ao Hospício.
Gaspar Magalhães, o “menino do balão”, barulhento; eterno preocupado com amores
que duravam um dia e às vezes horas apenas. Soares Cunha,
namorador terrível, também dono de uma colossal caixa de pintura, verdadeiro
arsenal; tudo ali dentro se encontravam, menos dinheiro, coisa que aliás não o
preocupava em absoluto, desde que os companheiros conseguissem arranjá-lo.
Certo dia, resolveu Soares da Cunha montar um Cenáculo. Convidou dois ou três
colegas, e alugaram uma grande sala no pardieiro que era a Vila Ruy Barbosa. E.
Bevilacqua fazia parte do grupo e pagava em geral os aluguéis por inteiro, pois
era o “rico” da Escola... Ali, naquele recanto, executou Bevilacqua o quadro
com que conquistou o prêmio de viagem, o retrato da “Julietinha”, que figura na
Pinacoteca da Escola de Belas Artes, sendo um dos melhores trabalhos premiados
com a viagem à Europa.
Entretanto, Eduardo Bevilacqua
não gozou o prêmio. A morte de seu pai, Eugenio Bevilacqua, obrigou-o a assumir
a direção da casa comercial, onde ainda hoje se encontra. Poucos meses depois,
nova desgraça feriu Bevilacqua: a morte da “Julietinha”, o modelo do seu
quadro; pertinaz tuberculose roubou-a à amizade dos colegas e a Arte que tinha
nela uma cultora digna de apreço. Muitas lágrimas foram derramadas, lágrimas
sinceras de amizade pura. A dor repercutiu na Escola, no ânimo dos mestres;
Zeferino da Costa, o mais querido dos professores, com as faces lavadas pelo
pranto, homenageou a memória da morta com sentidas palavras, repassadas de
grande saudade... Para Zeferino da Costa a obrigação de discursar constituía o
maior dos sacrifícios; não sabia como começar nem como acabar, uma verdadeira
tortura.
Entretanto, naquela noite, a
dor deu-lhe coragem e inspiração. O velho mestre se transformou e comoveu os
que lhe estavam em torno, pendentes da sua palavra que então vibrava como as
suas telas, como as decorações da Candelária! Foi uma noite triste para a
rapaziada tão irrequieta das outras noites.
Dias depois, quando a
impressão já era menor, a classe foi sacudida por pitoresco incidente. Mestre
Bernardelli havia armado uma verdadeira arapuca de tabiques com panos coloridos
para a nova pose do modelo, o “Javary”, um velhinho siciliano, que usava
brincos e era um modelo quase que pré-histórico. Pousava [sic] desde o tempo de
Corrêa Lima!...
Uma vez pronta a arapuca e o
modelo na posição, foram os trabalhos iniciados. No dia seguinte, todos a
postos, mestre Bernardelli entrou na aula, de cabeça baixa, sem dizer palavra.
A rapaziada percebeu que o mestre não estava em água de santidade, um
formidável escândalo havia estourado no Júri do Salão de Belas Artes.[5]
O júri havia sido anulado e o mestre
estava metido em tal assunto. Sem cumprimentar ninguém, começou as correções,
não encontrando nada bom...
O silêncio era profundo,
quando um ronco formidável reboou pela galeria. Outro ronco ainda maior fez
tremer os planejamentos... Os alunos entreolharam-se sem atinar com a coisa,
loucos por uma risada.
Mas o mestre estava ali, e de
mau humor, segurando o queixo e de olhar fixo no ponto de onde os roncos
continuavam assustadoramente saindo, sem interrupção. A vontade de rir cedera
lugar à apreensão. Os roncos continuavam, continuavam agora precedidos de
trancos nas armações onde estavam os panos que serviam de fundo ao modelo.
Bernardelli ordenou ao “menino do balão” que fosse buscar o servente
encarregado da limpeza da sala, continuando a segurar o queixo.
O Lucio, antigo “Guaiamum”,
chegou gingando o corpo cansado, para receber as ordens do mestre Bernardelli,
que, incontinente ordenou que verificasse qual a causa do barulho. Lucio
marchou sobre o ponto, mas outro ronco o deteve, indeciso. Olhou para todos,
raspou a cabeça e avançou firme para o perigo. Com precauções inauditas,
apanhou uma das pontas do planejamento. Ergueu-o, aos poucos. A rapaziada que
havia feito roda para melhor verificar a causa de tão estranho rumor, estourou
em formidável gargalhada ante o hilariante espetáculo oferecido tão
inesperadamente. Francisco Manna era o roncador irreverente. Viera bem cedo.
Passara uma noitada patusca em um bailado no Itapirú. Ao entrar na aula, não
resistiu à tentação e deixou-se dormir calmamente atrás dos tabiques, enrolado
em uns panos vermelhos pertencentes aos modelos.
Mestre Bernardelli não
pronunciou palavra. Retirou-se. Momentos depois, o secretário notificava ao
irreverente dorminhoco que estava suspenso por oito dias!
Adalberto Mattos
(Continua no próximo número)
*
Imagens
Uma visita ao Museu Nacional
em 1904 - o Barão Homem de Mello e os seus discípulos Henrique Costa, escultor falecido em Paris; M. Leão, arquiteto; Mlle Arinda Sobral,
arqueiteta; Mlle Dinorah de
Azevedo, gravadora laureada com o prêmio de viagem à
Europa e Mlle Adelaide
Gonçalves, pintora laureada nos "Salons" de
Belas Artes. [imagem]
OS IRMÃOS BERNADELLI EM 1903.
FOTOGRAFIA NO ANTIGO ATELIER DA RUA DA RELAÇÃO. [imagem]
MESTRE ZEFERINO DA COSTA.
FOTOGRAFIA TIRADA EM 1903. [imagem]
Aula do mestre H. Bernardelli
em 1904 (Pintura) - 1. José Cordeiro,
falecido em 1912; 2. Maria José; 2 Bemvinda de Assis,
filha da escultora Nicolina Pinto do Couto; J.
Amarante, "O Cavallaro"; 4. Gaspar Magalhães, "O menino do
balão"; 6. Angelina Agostini,
filha de Angelo Agostini,
atualmente em Londres, onde pratica o retrato com sucesso; 7. Soares da Cunha,
"O namorador", falecido na Suiça; 8. Angenor de
Barros, "O fachada". [imagem]
JOSÉ AMARANTE DE OLIVEIRA -
"O CAVALLARO" - O PINTOR DE MAIOR TALENTO DA SUA GERAÇÃO (1902)
FALECIDO. [imagem]
"A JULETINHA", QUADRO
DE EDUARDO BEVILACQUA EXISTENTE NA PINACOTHECA DA ESCOLA DE BELAS ARTES (PRÊMIO
DE VIAGEM). [imagem]
FRANCISCO MANNA, - O
"RONCADOR" [imagem]
MATTOS, Adalberto. Rapins de
hontem artistas de hoje. Illustração Brazileira, ano II, n. 6, fev. 1921, sem
paginação [fac-símile]
Depois da desagradável nova
que dava a mestre Manna um repouso forçado de oito dias, muito desolado, ele
arrumou a tralha e retirou-se debaixo da galhofa dos companheiros. Rumou para o
seu atelier, onde uma grande tela o esperava, trepada em uma tripeça que
pretendia ser um cavalete de pintor. Não perdeu tempo. Atirou-se ao trabalho
com alma. Dentre de poucos dias convidava os colegas a irem ver o trabalho já
vem esboçado. Representava o quadro um contraste doloroso. No primeiro plano,
um homem, de aspecto miserável, descalço, pés nodosos, roupas estraçalhadas
pelo uso demasiado. Ao fundo, o reboliço do luxo de uma grande avenida. “Claro
escuro social”, intitulava-se o trabalho, que foi enviado ao Salão de Setembro,
causando verdadeiro sucesso, merecendo as honras de um sóbrio soneto da autoria
da arquiteta Arinda Sobral e publicado na “Renascença”, pelo saudoso mestre Araujo Vianna. Ao
mesmo salão enviaram trabalhos de real valor os “rapins” Arthur Timotheo,
Bevilacqua, [Rodolpho] Chambelland, [Eugenio]
Latour, Evencio Nunes,
Soares Cunha, e outros. Arthur Timotheo, quebrando a monotonia dos envios
usuais, mandou um quadro de nu, irreverente, mas bem resolvido, que,
atrevidamente, intitulou “Livre de preconceitos”. Enviou também uma cabeça de
negro, para a qual servira de modelo o velho Lucio, antigo “guaimum”, de andar
ondulante, trazendo sempre no canto da boca grossa uma “barata” prestes a
queimar-lhe a beiçola.
Bevilacqua mandou “Orpheu”,
Chambelland a “Noite de espetáculos”, Latour a “Escolha difícil”, Evencio Nunes
a “Morte de Anchieta”, e Soares Cunha o retrato de um colega. A luta para a
conquista do prêmio de viagem foi renhida, saindo vencedor Eugenio Latour, com
a “Escolha difícil”, um quadrinho de gênero, que reproduzia uma cena caseira,
uma figura de mulher a escolher entre duas galinhas a mais gorda para o
sacrifício...[6]
Na seção de escultura, Honorio da Cunha
Mello expôs um busto que lhe valeu
por muito tempo a alcunha de “Coalhada”, pela razão seguinte: alguém, por
perversidade, aconselhou ao inexperiente “comedor de barro” que o leite dava
uma boa pátina ao gesso; Cunha Mello, sem mais aquela, dá um banho de leite ao
trabalho ainda molhado e manda-o para o Salão; o efeito não se fez esperar; uma
fedentina terrível infeccionava o ambiente, o busto tresandava a leite podre!
Devido a esse pouco cheiroso acontecimento, Cunha Mello foi promovido de
“Brontolone” a “Coalhada”; chamavam-no “Brontolone” por ter copiado o busto
daquele ilustre senhor, feio, horrendo, cheio de rugas. Era companheiro de
“Brontolone” o Moreira Junior, que
tinha um apelido tão feio que não pode ser dito aqui. Certo dia estavam todos
na portaria da antiga Escola, atazanando o velho Travassos, quando apareceu na
porta da Escola, carregando uma caixa de pintura, o Galdino Bicho.
Moreira murmura uma palavra que fere a dignidade artística de Galdino, Bicho de
nome e de fato, pois frequentava a Escola pela primeira vez. Galdino, que
ouvira a palavra, retrucou, prometendo vingar-se. A ousadia do calouro, que se
insurgia contra um veterano querido por todos, foi bastante para causar
reboliço em toda a Escola. Em um momento, foi resolvido que o atrevido fosse
julgado com todas as regras do estilo. Constituiu-se um júri, com todos os
requisitos, em uma sala da Escola. Tomou a presidência dos trabalhos um dos
veteranos mais temíveis para um “trote”, o Soares Cunha. A acusação ficou a
cargo de Ernani Bilac, que, em brilhante bestialógico, salientou as qualidades
criminosas do acusado, que se remoía de raiva, no “banco dos réus”. Em seguida,
teve a palavra a defesa, representada por Antonio Pitanga, que,
além de calouro, era surdo-mudo” Antonio Pitanga, depois de muitos berros e
gestos desordenados, deu por finda a “defesa”. Os jurados recolheram-se à “sala
secreta” e deliberaram que o acusado fosse condenado a atravessar a “zona chic”
que circundava a Escola, com o casaco do avesso e o balde e a vassoura de lixo
às costas, tendo por acompanhamento todos os veteranos e bichos. Inútil é
dizer-se que dentro de poucos momentos o que havia de mais “elegante” na
redondeza fazia parte do acompanhamento. Puxava o préstito o “Marufi”, um turco
engraxate, muito sem vergonha, que engraxava as botas dos “rapins” à razão de
três um tostão, e às vezes fiado!
“Marufi” era um tipo curioso e
amigo da rapaziada; não cobrava nunca os níqueis que lhe deviam. Tão
identificado ficou com o ambiente que acabou modelo. Pouco trabalhou, coitado.
A peste bubônica levou-o em poucos dias, e, com grande saudade, foi recebida a
notícia da sua morte, na Jurujuba, abandonado de todos e da família.
Não demorou muito tempo vago o
lugar do “Marufi” nas grades da estátua de João Caetano. Substituiu-o José, um
mulato doceiro, que, dentro de muito pouco tempo, estava amigo de todos, e,
impreterivelmente, comparecia ao meio dia em frente à Escola, comungando com a
sentinela postada na porta do edifício. Certo dia, foi a Escola abalada com a
triste notícia de que José tinha sido preso por um dos ventrudos guardas
fiscais e que seguia a caminho da Agência, na rua da Carioca. A notícia
impressionou seriamente os rapazes, que deixavam as aulas como estavam, uns em
mangas de camisa, outros de longas blusas sujas de tinta e gesso, e, em grupos,
empunhando palhetas, tentos, desbastadores, seguiram em grande berreiro pelas
ruas, invadindo o sobrado em que estava instalada a Agência. Ninguém se
entendia. Todos gritavam a um tempo. O agente não sabia o que fazer; por fim,
prometeu não punir o doceiro e mandá-lo em paz, logo que evacuassem a sala. O
agente cumpriu religiosamente o prometido. Mi- [quebra de página] nutos depois
o José surgia, lampeiro, no Beco das Belas Artes. Nesse dia, ninguém pagou os
doces comidos, porque o coitado do doceiro, por agradecimento, não quis
absolutamente receber dinheiro. À noite, um espetáculo pouco comum sacudiu a
aula de modelo vivo. Mestre Zeferino havia chegado de mau humor, sentara-se à
sua mesa sem dirigir a palavra aos alunos, o que no velho mestre representava
um termômetro de precisão. O silêncio era completo. Quando menor se esperava,
quebrou o silêncio uma melodia irritante, um acorde repetido de caixa de música
ordinária: tlim, tlim, tão, blim, dim dão, tlim...tlim...
Mestre Zeferino pigarreou
forte, levantou-se arrastando o seu reumatismo e foi colocar-se de observação
no alto do anfiteatro. A música parou para dar lugar ao pipocar de um
“espanta-coió”, partido da bancada onde o irreverente “rapin” Francesco Manna
tinha assento. Mestre Zeferino dirigiu-se vagarosamente para lá e, radiante,
soltou a sua frase favorita: “Peguei um!” De fato, havia pegado um com a boca
na botija. O Francesco Manna, depois de soltar o “espanta-coió”, divertia-se em
atacar à parede uma enorme caricatura do mestre. Representava a caricatura,
feita pelo J. Arthur, um grande perfil do mestre,
desenhado em uma folha de papel “Ingres”, tendo a entrar-lhe pelo crânio um
enorme parafuso. “Peguei um” Peguei um!” Exclamava o velho mestre, enquanto a
caixa de música gemia irritante: tlim, tlim, tão, bli dim dão, tlim...
...
Acabou a festa pelo fechamento
da aula naquela noite e por novas férias forçadas para o Francesco Manna, que,
àquelas horas, não tinha outro remédio senão ir perambular pelo Café Paris,
onde a boemia da época se reunia, tendo à frente o saudoso Chacon, canalhamente
assassinado em seu Estado natal pela politicagem desenfreada!
No Café Paris, no largo da
Carioca, reuniam-se todos eles à noite, a discutir Arte, Ciência... e a vida
alheia. Naquele tumulto de ideias incendiárias nasceu o pensamento da primeira
publicação exclusivamente de Arte. Do pensamento à execução nada custou. A
“Atheneida” surgiu, gloriosa, pregando ideias novas e a matracar aos quatro
ventos o talento do Helios Seelinger
e
os desenhos de Heitor
Malagutti.
Tomavam parte diária nas
reuniões do Paris os irmãos Timotheo, irmãos Chambelland, Correia Lima,
Helios, Malagutti, Chacon, Luiz Edmundo, Bastos Tigre, Emilio de Menezes,
alguns dos atuais imortais da Academia, médicos, advogados e engenheiros, hoje
notabilidades.
Nesse meio tempo, encerram-se
as aulas da Escola. Começam as férias. Os ricos foram fazer estações de água e
os pobres cavar a vida dentro das próprias habilidades e conhecimentos. João Timotheo, os
irmãos Chambelland, Carlos
e
Rodolpho retocavam fotografias no Zaramella e Bastos Dias; Arthur Timotheo
fazia cenografia. J. Arthur fazia desenhos para “O Malho” do tempo de Chrispim do Amaral
e
Raul Pederneiras.
Enfim, cada um “cavava” a vida como podia...
Depois de prolongadas férias
volveram todos às aulas, rumorosos, cheios de novas energias. Os calouros
andavam pelos cantos, medrosos dos “trotes” e dos batizados”. Consistia o
“batizado” em um completo banho, que servia para purificar a alma e o
sentimento artístico ainda nascente. Essa operação tinha lugar invariavelmente
em uma área existente ao fundo da velha Escola. No fim da operação, a vítima
era mandada em paz, com a intimação de pagar, no dia seguinte, a “patente”,
para poder cumprimentar os veteranos... As “patentes” variavam, conforme as
posses de cada um, tendo o valor mínimo de dez mil réis.
Com o produto das “patentes”
eram organizados laudos banquetes, em que só tomavam parte os veteranos. Aos
bichos era permitido assistir à festa, sem direito, porém, de tomar parte
nela... O próprio mestre Zeferino era o primeiro a indagar dos bichos de já
haviam pago tal obrigação. Uma vez passado o período das troças, atiravam-se
todos ao estudo com ardor. Após as aulas, cada qual procurava o seu ganha pão,
pois naquele tempo os que frequentavam as Belas Artes eram na maioria
paupérrimos. Não obstante essa circunstância, o salão anual era fértil de
coisas de Arte saídas das mãos dos “rapins”.
Na pintura brilhavam: Latour,
Macedo, Evencio, De Agostini, Bolato, que tinha a propriedade de pintar sem
tinta, Puga Garcia, Lucilio,
Rodolpho Chambelland, Carlos Chambelland, J. Arthur, João Timotheo, o bacharel,
Eudoxio Trajano, Amarante, o Cavallaro, a Julietinha, Arthur Timotheo, Eduardo
Bevilacqua, Francisco Manna, Maria José, Georgina Albuquerque, Angeline [sic]
Agostini, Soares Cunha, e mais tarde: Moraes Silva, Raul
Bevilacqua, [Augusto] Bracet, Eustorgio Wanderley, Annibal Mattos, Manoel Domenek, Argemiro Cunha,
Angenor Barros, [Henrique] Cavalleiro, Marques Junior
-
o homem do guarda-chuva - Gaspar - o menino do balão - Oscar Boeira, Fedora
Monteiro, Isolina Machado,
Guttman Bicho. Na escultura, Nicolina Vaz de Assis, Bonifacio, Moreira Junior e Cunha Mello. Na gravura de
medalhas, o Armindo Francisconi, que
nas horas vagas era manipulador de pílulas no Laboratório Militar, Eduardo de Barros, o guarda civil, e o rabiscador destas
linhas cavavam o aço ao som do zurzido do “ordegno” de mestre [Augusto]
Girardet, sempre escondido atrás de uns tabiques
complicados. Representava a aula de gravura o maior mistério para a rapaziada,
pois era a única aula em que ninguém penetrava, porque as ordens eram severas.
Mestre Girardet não dava
(Termina no fim desse
número) [quebra de página]
uma folga, sempre enfurnado lá
dentro da manhã à noite; tal procedimento provocava o humor da rapaziada, que
propalava por toda a Escola que o mestre cozinhava na aula os gatos da
vizinhança, e daí o seu gênio impertinente. A classe que mais se prestava às
troças era a do saudoso barão Homem de Mello. O venerando mestre havia sofrido
uma operação de catarata, estando, por consequência, com a vista muito fraca.
Certo dia, resolveu ele dar a aula de história das Belas Artes diante dos
belíssimos modelos existentes na Escola, na sala em que o restaurador João José
trabalhava. Em grupo alegre, todos rodeavam o bondoso mestre, que, depois de
muito olhar uma estátua, apalpar-lhe as formas, começou, com voz clara, a
explicar como fora encontrada a Vênus de Medicis. Falou com entusiasmo da
estatuária antiga. A sua voz assumia expressões apaixonadas; as suas mãos
trêmulas acariciavam as formas da estátua: “Vejam, meus amigos, quanta
mocidade, como o artista exprimiu a virgindade no modelo desta soberba Vênus!”
E as mãos subiam, fazendo sentir as nuances, o modelo suave da estátua. Os
rapazes entreolhavam-se, apertando os lábios, contendo o riso. O mestre
continuava sempre, cantando as formas de Vênus. Calou-se, de repente. Retirou
as mãos da estátua. Ela não representava Vênus e sim Apolo... Uma gargalhada
estourou e duas lágrimas borbulhantes caíram dos olhos quase mortos do grande
mestre, e, lentamente, por entre as rugas, deslizaram, até desaparecer no
emaranhado das longas barbas brancas...
ADALBERTO MATTOS
(Continua no próximo número.)
*
Imagens
NICOLINA DE ASSIS - ESCULTORA,
DISCÍPULA DE BERNARDELLI, 1905. [imagem]
O "RAPIN" ARTHUR
TIMOTHEO FINGINDO DE IMPORTANTE - 1905. [imagem]
O BATISMO DE UM
"BICHO." - 1, LUIZ CORDEIRO (FALECIDO); 2, ANGENOR BARROS "O
FACHADA"; MANOEL HENRIQUE; 4, JOAQUIM SOARES CUNHA (FALECIDO); 5, MANOELA
(MODELO); 6, JOSÉ AMARANTE DE OLIVEIRA ("O CAVALLARO"); 7, GASPAR
MAGALHAES ("O MENINO DO BALÃO"); 8, [ADALBERTO] MATTOS (O FRANGO
D'AGUA"). - 1904. [imagem]
"O MARUFI". [imagem]
"UMA AULA DE ANATOMIA: OS
'RAPINS" RAUL BEVILACQUA E OS IRMÃOS MATTOS, 1905. [imagem]
UMA EXPOSIÇÃO ESCOLAR - 1905.
[imagem]
UMA AULA DE PINTURA AO LIVRE
NO MORRO DE SANTO ANTONIO - 1906 [sic][7]. [imagem]
MATTOS, Adalberto. Rapins de
hontem artistas de hoje. Illustração Brazileira, ano II, n. 7, mar. 1921, sem
paginação [fac-símile]
Em seguida ao incidente tão
doloroso para o velho mestre veio a reação. As lágrimas, provocadas pela
irreverência da rapaziada, puseram termo às troças, continuando a aula debaixo
de uma impressão de tristeza. Os provocadores de tão grotesca brincadeira nunca
poderiam calcular que a sensibilidade do bondoso mestre se sentisse tão
profundamente ferida. Dos professores daquele tempo, fora de qualquer
contestação, era o barão Homem de Mello um dos melhores corações e o mais
ilustrado. As questões de Arte, eles as conhecia com segurança. O seu
sentimento atingia o exagero em uma insignificante representação. Uma figurinha
recortada de um jornal era motivo para que a sua emotividade vibrasse
profundamente. Espírito de esteta, não obstante a idade avançadíssima. Através
do seu encarquilhado semblante o entusiasmo pela vida e pela natureza era
encantador. Em todas as troças dos rapazes, passado o primeiro instante,
encontrava motivo para uma prosa, que deixava transparecer a bondade e a
cultura. Dono de uma memória prodigiosa, prendia com as suas narrações de
viagens. O Egito representava o ponto sensível do velho mestre. Quando as aulas
recaíam sobre os principais episódios do antigo povo, era um gozo ver como se
transformava a fisionomia do Barão. Entrava pela hora regimental, sendo preciso
que o guarda lhe chamasse a atenção.
Quando um estudante entrava em
exame de história da Arte, e o ponto sorteado era completamente estranho aos
seus conhecimentos, logo se agarrava, como tábua de salvação, ao Egito, e
estava salvo. Os olhos do velho mestre brilhavam de satisfação, os seus colegas
de banca compreendiam a manobra do examinado, fingiam que não percebiam,
deixando que o colega preenchesse a hora destinada ao estudante para responder
sobre o ponto sorteado. O resultado da esperteza era uma simplesmente muito
ordinária, mas que, em todo o caso, servia para mandar o coitado ao ano
seguinte.
Curiosos era ver-se a zanga do
saudoso Dr. Araujo Vianna, quando o barão Homem de Mello a ele se dirigia.
Nunca o tratava pelo próprio nome, e sim de venerando college! Era
fatal, que, antes de iniciar as suas aulas de Mitologia, comentasse o Dr.
Araujo Vianna tal tratamento, e isso ele o fazia com revolta mal disfarçada. É
que ambos queriam ser jovens, embora já tivessem passado da casa dos
sessenta...
Nesse mesmo ano, muitos
episódios interessantes se passaram entre os professores e alunos.
Entre eles, tivemos um que
custou a perda de alguns dentes a um calouro, muito guloso e intrometido. Não
havia caixa de tintas em que ele não mexesse, nem modelos de natureza morta
(frutos, etc.) que ele não comesse... Coitado, andava atrasado...
Certo dia, os colegas do
comilão arranjaram com os rapazes da aula de escultura uns suspiros de gesso,
bem feitos e ocos, para que não ficassem pesados. Depois, arrumaram um canto
pitoresco, onde os suspiros ficavam bem à vista. Deram início ao trabalho com a
maior calma deste mundo. No espírito de N. ficou logo estabelecido que daria
cabo das guloseimas; disfarçou, como hábil comediante, deixou-se ficar por
último e, zás! trincou um dos suspiros com valentia... Nisso, a rapaziada, que
espreitava, aparece repentinamente, apanhando em flagrante o pobre coitado, que
se maldizia e lastimava pela perda dos dentes...
Precisamente nessa época
sacudia a Escola uma questão de rivalidade, que perturbou seriamente os ânimos
dos estudantes. Havia na Escola duas espécies de alunos, os matriculados e os
livres; os matriculados eram os que tinham preparatórios feitos no Pedro II e
os livres os que faziam apenas um pequeno exame na Secretaria da Escola; os
primeiros acusavam os segundos de serem ignorantes e de frequentarem as aulas
por favor. Daí a grande discórdia que perturbou o andamento dos estudos e da
boa camaradagem existentes.[8] Dias
depois desses incidentes, comemorava-se a morte de Floriano, e a Escola fora
convidada a comparecer, tendo a respectiva comissão posto à disposição dos
alunos um landau. Muito se discutiu quais os que deveriam representá-la,
surgindo novamente a questão anterior. Uns diziam que os alunos livres não
podiam comparecer em caráter representativo, outros que podiam. Enfim, houve
tal barulho que foi preciso a nomeação de um árbitro, sendo escolhido o velho
Zeferino da Costa, professor de modelo vivo. Foi ele de parecer que os alunos
livres deviam ter representação, pois, como os matriculados, também pagavam
matrícula.
Terminado o incidente foi
eleita uma comissão de cinco membros, sendo dois alunos livres e três
matriculados. Como prova de consideração foi o estandarte da Escola confiado a
um dos alunos livres, que muito cônscio do papel que representava, compareceu
no dia designado para a comemoração com a melhor roupa e os cabelos mais ou
menos penteados. Formado o préstito, no antigo largo da Mãe do Bispo, seguiram
todos rumo do cemitério de S. João Baptista, e, uma vez ali chegados, saltaram
e caminharam a pé até o túmulo do grande brasileiro. Os discursos faiscavam
mais do que o sol ardente em cima dos mármores dos mausoléus; muito entusiasmo,
muito patriotismo e frenéticos aplausos ao orador, general Gomes de Castro,
então major.
(Continua no próximo número.)
A. MATTOS
*
Imagens
HENRIQUE CAVALLEIRO, PRÊMIO DE
VIAGEM; ATALMENTE EM PARIS. [imagem]
"LUCIO", PINTADO
PELO RAPIN ARTHUR TIMOTHEO, EM 1906. [imagem]
[JOÃO] BAPTISTA DA COSTA,
QUANDO NOMEADO PROFESSOR DA ESCOLA DE BELAS ARTES. [imagem]
"INFÂNCIA DE ORFEU,
QUADRO DE EDUARDO BEVILACQUA, PREMIADO COM MEDALHA DE PRATA, EM 1906. [imagem]
MATTOS, Adalberto. Rapins de
hontem artistas de hoje. Illustração Brazileira, ano II, n. 8, abr. 1921, sem
paginação [fac-símile]
Ora, os três patifes
matriculados haviam combinado uma trapaça aos dois outros e principalmente ao
porta-estandarte, que suava em bicas, no cumprimento do dever. A trapaça
combinada foi a de dar o fora, deixando sem condução os dois coitados e mais o
estandarte. Terminada a romaria, voltaram as comissões em busca dos carros.
Todos desfilavam e os dois pobres diabos continuavam firmes, à espera do landau.
Esperava... O landau... era uma vez... Desesperados, meteram o
estandarte dentro do primeiro bagageiro que passou, despachando-o para o antigo
largo da Carioca, onde permaneceu por muito tempo, até que um funcionário da
Escola o foi retirar.
Dessa pilhéria resultou grande
sarilho no primeiro dia de aula, tornando-se novamente os ânimos bastante
azedos.
Enquanto a maioria dos alunos
se digladiava, discutindo sobre o assunto, a minoria estudava, procurando dar
relevo às obras que poucos meses mais tarde deveriam apresentar ao Salão do
ano.
Um acontecimento notável teve
grande influência no ânimo de todos: a visita que os congressistas
latino-americanos anunciaram; iriam visitar a Escola dentro de pouco tempo.[9] Foi o
bastante para ativar a produção: cada qual queria ser o melhor representado; de
tudo isso resultaram magníficas impressões para os ilustres visitantes,
impressões que foram externadas publicamente em entrevistas concedidas à
imprensa diária, não só daqui como também das Repúblicas vizinhas.
No dia em que os congressistas
visitaram a Escola, deu-se um fato altamente cômico, que teve por protagonista
o “rapin” J. Arthur Bevilacqua.
Poucos minutos antes das 8
horas da noite, quando se encerrava a aula de modelo vivo, J. Arthur, sentindo
necessidade de ir a certo sítio, foi... e pegou no sono... Às tantas da
madrugada, acordando, deu fé que estava trancado na Escola. Apavorado, arranjou
meios de sair. Forçou os trincos internos da grande porta que dava para o beco
das Belas Artes e foi saindo; doeu-lhe, porém, a consciência de deixar a porta
aberta. Voltando sobre os calcanhares, foi comunicá-lo à sentinela. Deu-se um
verdadeiro estardalhaço! A guarda do Tesouro fez cerco ao edifício, julgando
tratar-se de um provável assalto de malfeitores. Veio a polícia. Fizeram
barulho, atacaram as estátuas impassíveis na eterna imobilidade, e ninguém
soube como a porta se abrira... O espírito de coleguismo foi mais forte do que
a situação. A polícia retirou-se, naturalmente julgando que o culpado fora o
Manoel do Gasômetro, como se chamava o servente da aula de modelo vivo, e a
rapaziada ria a bom rir do estômago de J. Arthur, da sua resistência, que lhe
permitiu dormir em um local tão pouco higiênico...
Este foi o último caso que
presenciamos na velha Escola.
Os causadores das gaffes
e dos distúrbios aos poucos foram deixando os cursos, para tratar praticamente
da vida, e aí estão, cheios de lembranças de um passado risonho, salpicado de
peripécias, que, em vez de trazerem desânimo, davam alento, encorajando-os a
seguirem a estrada da Arte gloriosa que hoje praticam nobremente. Estamos
certos de que muitos sentirão as saudades que sentimos do tempo da
irresponsabilidade escolar, e que, se dado fosse, voltariam a borboletear, a tomar
parte nas pilhérias que os de hoje naturalmente fazem, alheios a tudo que os
cerca, irresponsáveis e irreverentes como todo o rapin que se preza...
Essas recordações do bom tempo
da esperança e da inexperiência consolam, depois, quando a vida já não tem
segredos que esconder... E elas são, talvez, na biografia dos artistas, como na
história de todos os homens, os melhores instantes...
Mas, viver não é só
recordar... Já recordamos bastante. E o trabalho aí está, que nos chama.
Felizes enganos dos dias velhos, adeus. Adeus, ilusões amadas, que nunca se
realizaram.
Adeus, mocidade!...
ADALBERTO MATTOS
*
Imagens
UM GRUPO DE "RAPINS"
EM 1907 [sic][10] [imagem]
O "RAPIN"
BEVILACQUA, EM 1906. [imagem]
UMA AULA DO PROFSSOR BAPTISTA
DA COSTA, EM 1907. [imagem]
______________________________
[1] Trata-se do antigo
edifício da ENBA, ocupado anteriormente pela Academia Imperial de Belas Artes.
Sobre o histórico de construção da edificação ocupada posteriormente na Avenida
Central – hoje Avenida Rio Branco – confira: RICCI, Claudia Thurler. A Escola
Nacional de Belas Artes - Arte e técnica na construção de um espaço simbólico. 19&20,
Rio de Janeiro, v. VI, n. 4, out./dez. 2011. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/arte decorativa/ctricci_enba.htm
[2] O curso de Desenho
Figurado era uma das primeiras disciplinas cursadas pelos alunos, conforme
previsto no Estatuto da Escola de 1901. Cfr.: VALLE, Arthur Gomes. A pintura
da Escola Nacional de Belas Artes na 1ª República (1890-1930): da formação
do artista aos seus modos estilísticos. Tese (Doutorado em História e Crítica
de Arte) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em
Artes Visuais, 2007, p. 55-65 [link].
[3] Referência ao célebre
romance de Henry Mürger (1822-1861), Scenes de la vie de bohème, de
1851. A obra mais tarde inspirou óperas como a de Giacomo Puccini, La bohème.
[4] O apelido reportava-se
a um outro professor de Amarante de Oliveira no Liceu de Artes e Ofícios do Rio
de Janeiro, Stefano Cavallaro. Assinando com seu pseudônimo “Ercole
Cremona,” Mattos aborda melhor a questão no artigo: O pintor José Amarante de
Oliveira. O Malho, Rio de Janeiro, ano XXI, n. 1009, 14 jan. 1922.
[5] O escândalo em questão
pode ter sido aquele ocorrido na Exposição Geral de Belas Artes de 1906, quando
a comissão do júri foi acusada de “preconceito de cor”, o que teria
influenciado no resultado do Prêmio de Viagem daquele ano, no qual venceu
Eduardo Bevilacqua. Bueno Amador se ocupou da questão no Jornal do Brasil
entre 21 de setembro e 8 de outubro. Cfr.: http://www.dezenovevinte.net/egba/index.php?title=1906_-_Jornal_do_Brasil
[6] Essa passagem é um
exemplo de confusão com as datas. As obras citadas não foram de fato exibidas
na mesmo Exposição. Listamos a seguir as obras, indicando entre parênteses o
ano correto em que foram exibidas: Escolha difícil, de E. Latour (1902);
Morte de Anchieta, de E. Nunes (1902); Uma noite de espetáculos,
de R. Chambelland (1904); Claro-escuro social, de F. Manna (1906); Livre
de preconceitos e Retrato de Lucio, de A. Timotheo (1906); e Infância
de Orfeu, de E. Bevilacqua (1906). Cfr.: LEVY, Carlos Roberto Maciel. Exposições
Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Período
Republicano Catálogo de artistas e obras entre 1890 e 1933. Rio de Janeiro:
Publicação ArteData, 2003.
[7] Aqui há outro engano com
as datas. O Projeto Eliseu Visconti guarda uma fotografia da mesma reunião de
“rapins,” onde Visconti aparece entre os alunos. Ocorre que Visconti só chegou
ao Brasil, vindo de Paris, em março de 1908 e atuou como professor de pintura
da ENBA até junho de 1913, quando retornou à capital francesa. Logo, a imagem
não pode ser de 1906 como afirma a legenda. Cfr.: SERAPHIM, Miriam Nogueira. A
catalogação das pinturas a óleo de Eliseu d’Angelo Visconti: o estado da
questão. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas,
Programa de Pós-Graduação em História, 2010, p. 98-99. A fotografia citada pode
ser vista em: https://eliseuvisconti.com.br/cronologia/
[8] Sobre a questão dos
alunos de livre frequência na ENBA, cfr.: VALLE, op. cit., p. 54; BRANCATO,
João Victor Rossetti. Crítica de arte e modernidade no Rio de Janeiro:
intertextualidade na imprensa carioca dos anos 20 a partir de Adalberto Mattos
(1888-1966). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Juiz
de Fora, Programa de Pós-Graduação em História, 2018, p. 36.
[9] É possível que Mattos
se referisse ao 5º Congresso Científico Latino-Americano, realizado no Rio de
Janeiro em 1905. Cfr.: ALMEIDA, Marta de. Circuito aberto: idéias e
intercâmbios médico-científicos na América Latina nos primórdios do século XX. História,
Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 733-757, set.
2006. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702006000300010&lng=en&nrm=iso Acesso em: 25 mar. 2020.
[10] Outro engano com as
datas. Confira a nota 7.