O novo estatuário, de Manuel de Araujo Porto-Alegre
organização de
Alberto Martín Chillón[1] e Leonardo Lennertz Marcotulio[2]
CHILLÓN, Alberto Martín;
MARCOTULIO, Leonardo Lennertz (org.). O novo
estatuário, de Manuel de Araujo Porto-Alegre.
19&20,
Rio de Janeiro, v. IX, n. 2, jul./dez. 2014. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/mapa_estatuario.htm>.
*
* *
APRESENTAÇÃO
“Esculptura é propriamente a arte de esculpir, cinzelar e
entalhar, e a estatuaria é a arte que representa o homem e o diviniza.” Assim
começa um pequeno texto, de apenas quatro páginas, publicado na Illustração Brasileira, em julho de 1854, que se
dedica a refletir sobre a escultura e o escultor. O que é a escultura, o que é
um escultor e quais são suas funções, qual é a diferença entre o escultor e o
estatuário são algumas das perguntas que o texto trata de responder.
Manuel de
Araújo Porto-Alegre dedica seu texto à reflexão
sobre a arte escultórica, definindo o conceito de escultura, escultor e estatuário.
Mais precisamente este último era peça chave na ideologia de Porto-Alegre, porque o fim do escultor era inevitavelmente
a estatuária, já que a escultura era uma vida secundária e o artista que vivia
dela “arrastrava uma existencia penivel,
que o condemnava á mais triste e completa
obscuridade.” Assim, por uma parte, para ele, o estatuário tem a mesma função
do historiador, é o responsável por materializar a virtude, e, ao mesmo tempo,
ele próprio é o reflexo do nível moral do povo. O estatuário “é o traductor da gratidão nacional, o ostentor
da gloria, o que perpetua a memoria do homem, e o que o immortalisa.”
Nesse sentido, inevitavelmente o monumento público é o fim mais desejado e
adequado, é a perpetuação na praça pública dos maiores exponentes da
civilização, que se constituem como exemplos e modelos a seguir; não a toa, Porto-Alegre desejava que o artista se tornasse útil à sociedade.[3]
A arte se constitui como um elemento civilizador, “como o legitimo vehiculo dos progressos da industria
de um paiz,” e ainda que os espíritos vulgares
considerassem a arte um luxo, Porto-Alegre a entende
como uma necessidade para a civilização, porque “é uma revelação do pensamento,
e a escripta universal da linguagem das fórmas.”[4]
Em
seu texto, dando preferência a estes monumentos, o autor traça uma pequena
história das tentativas de construção de monumentos públicos, como a de uma
estátua equestre do Imperador. A primeira tentativa se deu no tempo da independência;
a segunda, com Porto-Alegre na comissão como
secretário, igualmente não obteve sucesso; e a terceira, liderada por José
Clemente Pereira, que também não deu frutos, pelo insuficiente desenvolvimento
moral da sociedade e não por obstáculos materiais. Segundo Porto-Alegre,
seria a monarquia pura a mais propícia para estas realizações, “porque nesta o
poder que pensa, realisa immediatamente o seu pensar.”
O
texto em vários aspetos pretende ser um texto fundador, uma gênese. Por uma
parte, o nascimento do primeiro estatuário brasileiro, Honorato Manoel de Lima, que apesar de ser, em teoria, o
protagonista do texto, aparece só nas linhas finais ocupando um espaço
reduzido. Como ponto chave neste processo encontramos a presença de Ferdinand Pettrich, escultor
dinamarquês, porque sua chegada trouxe “o sceptro da
estatuaria” ao Brasil. Responsável por esse processo foi José Clemente Pereira
que, uma vez que a arquitetura tinha se manifestado com as construções do
Hospital da Praia Vermelha e da Santa Casa da Misericórdia, precisou esperar
que a escultura se desenvolvesse para perpetuar a memória dos criadores dessas
instituições, José de Anchieta e o Imperador D. Pedro II, porque “eles não
devem morrer aos olhos do povo.”
Para Porto-Alegre, até esse momento a escultura no Brasil
contava com apenas algumas obras permanentes, "medíocres imagens de
madeira de depravado gosto" que ornavam as igrejas; as obras em mármore,
material, junto ao bronze, próprios do estatuário, eram enviadas desde Portugal
ou encarregadas na Itália, como as imagens de São Pedro de Alcântara da Capela
Imperial, obra de Tadolini, ou a estátua de Pedro I,
na Biblioteca Nacional.
Precisamente
o domínio deste material nobre é o que faz tão importante a aparição de
Honorato Manuel de Lima, quem alcançou “uma superioridade de execução na nova materia, que estava longe de toda a espectativa,
apezar da habilidade porque é conhecido! O mármore de
Lima respira e a arte triumpha.” Numa carta de 10 de
abril de 1844, Porto-Alegre, perante a obra de
Ferdinand Pettrich, afirma, insistindo sobre a
importância do material: “Daqui a ano e meio, verão os brasileiros a primeira
estátua de mármore feita no seu país, e começarão a habituar-se a um espetáculo
novo para eles, e uma vez convencidos de sua necessidade hão de ir
continuando.”[5]
Por
outra parte, o texto assinala o nascimento de uma nova época para as artes,
possível graças aos esforços do Imperador, já que ele era o responsável, de
maneira individual, pela chegada de obras em mármore, fato inédito até o
momento, e que inaugura uma nova fase para a escultura e a arte.
Por
isso, o Imperador estava favorecendo, assentando-se entre os homens de letras,
poetas, e a custa do seu bolso, a proteção das artes, “fazendo elle só mais do que todos os millionarios
no Brasil; porque a arte não está no retrato, que pertence ao egoismo, ou á vaidade.” O Imperador é apresentado como o
rei patriótico, de coração brasileiro e amor pátrio, amigo do progresso e homem
do futuro, unindo a incipiente nacionalidade com o desejado progresso. Ao mesmo tempo que faz propaganda imperial, o autor clama
pela proteção privada das artes e as encomendas particulares, pois uma vez
conseguido um estatuário pátrio, ainda que à custa de esforços próprios, o
autor se pergunta: “O que falta agora para que o novo Estatuario
seja a expressão do pensamento nacional? Uma encommenda,
pois o estatuário está em pé, com o masso na mão
direita e o escopro na esquerda: só espera a vossa palavra.” O novo estatuário,
o novo artista que devia surgir das reformas implementadas por Porto-Alegre, devia ser, ao mesmo tempo, a expressão do
pensamento e da arte nacional.
A
relação de Araújo com Honorato de Lima era anterior, já que este último, quando
aluno, foi excluído por mal comportamento;[6]
em 1855, um ano depois do texto, Porto-Alegre pediu a
sua nomeação para a cadeira recém-criada de Escultura de ornatos na Academia
das Belas Artes, julgando o estatuário como “um dos mais hábeis filhos da
Academia e muito conhecido nesta cidade como escultor em mármore e em tôdas as obras plásticas do domínio de sua cadeira.”[7]
O
texto se constitui como um documento fundamental, tanto pela importância do seu
autor, como por ser uma das poucas reflexões sobre a escultura e suas funções
no Brasil, ao mesmo tempo em que é um manifesto sobre o nacional e o progresso,
num momento chave para a construção do primeiro e de grande importância do
segundo. No fundo, aborda as funções da arte adaptadas, na visão de Araújo Porto-Alegre, às necessidades brasileiras.
SOBRE A EDIÇÃO
Segundo
Cambraia, “um texto sofre modificações ao longo do processo de sua
transmissão.”[8] Assim, o principal objetivo da filologia,
aqui tomada como crítica textual, seria a “restituição da forma genuína
dos textos,” de modo a viabilizar a “recuperação
do patrimônio cultural escrito de uma dada
cultura.”[9] Após
chegarmos ao formato original do texto, poderemos transmitir e preservá-lo, tornando-o acessível ao
público leitor e às
gerações futuras, já que como afirma Chartier,[10] “é preciso lembrar que dar a ler
um texto em uma forma que não é a sua
fonte primária é mutilar gravemente a compreensão que o leitor pode dele ter.”
É
interessante observar a importância da crítica textual quanto à fixação
de um texto, livre de deturpações e censuras, de modo a resgatar a memória de uma sociedade, o que contribui para a formação e preservação
do patrimônio cultural que temos.
Ao
editar um texto, deve-se ter sempre em mente que cada tipo de edição atende a uma finalidade específica. Pode-se dizer, portanto, que a escolha da
edição depende do leitor ao qual o texto será oferecido. Dentre os tipos de edição existentes, Spina[11]
define a edição diplomática,
que realizamos aqui, como uma “reprodução
tipográfica do original [...] como se fosse
completa e perfeita cópia do mesmo na grafia,
nas abreviações, nas ligaduras, em todos
os seus sinais e lacunas, inclusive nos erros e nas passagens estropiadas.”
Este tipo de edição pode ser justificado
pela necessidade de tornar o documento acessível
a um maior número de interessados e evitar
maiores danos à fonte, além de tornar o
texto de fácil leitura.
Apresentamos,
a seguir, as normas de edição que que foram, por nós,
seguidas: 1. A transcrição realizada é de natureza conservadora; 2. Respeitamos a grafia original do documento, ainda que
manifestasse idiossincrasias ortográficas do autor; 3.
Não estabelecemos fronteira de palavras que vinham escritas juntas ou de
palavras que seguiam imediatamente sinais de pontuação; 5.
A pontuação original foi mantida como no original; 6.
A acentuação original foi mantida como no original; 7.
Os sinais de separação de sílaba ou de linha foram mantidos como no original; 8. Respeitamos o emprego de maiúsculas e minúsculas como no
original; 9. Os destaques realizados com itálico no
original foram mantidos; 10. A divisão das linhas do documento original foi
preservada, ao longo do texto, na edição, pela marca de uma barra vertical
entre as linhas. As mudanças de parágrafo foram mantidas. A mudança de página e
coluna (col.) foi sinalizada entre colchetes. Quando no meio de parágrafos, os
colchetes foram acompanhados, em ambos os lados, por duas barras verticais.
*
Título do texto: O novo estatuário
Autor: Manuel de Araujo
Porto-Alegre
Data: julho de 1854
Fonte: Periódico Illustração
Brasileira. Disponível na plataforma da Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional Brasileira, da Fundação Biblioteca Nacional: <http://hemerotecadigital.bn.br>
*
O NOVO ESTATUARIO.
[p.
138 – col. 1] A Esculptura é propriamente a arte de | esculpir, cinzelar e entalhar, e a es- | tatuaria é a arte que representa o homem e o divinisa.
E´esculptor aquelle
artista que modela, | e levanta toda a especie de esculptura que | está debaixo do dominio da architectura;
| em quanto que o estatuario
permanece em toda a | sua individualidade, porque a sua
obra domina o | pedestal em que repousa,
exorna o nicho em que | está collocada,
realça o fastigio em que se eleva, | ennobrece os typanos
que anima, e sagra os alta- ||
[p. 138 – col. 2] ||
res em que colloca as suas magestosas represen- | tações.
O esculptor
trabalha em todas as materias, e o | estatuario, rigorosamente fallando,
é o homem do | marmore e do bronze: é o artista, que como Phi- | dias via um Deus na pedra bruta, e
transformava o bronze na deosa protectora
de Athenas; é o tra- | ductor da gratidão nacional, o ostensor
da gloria, | o que perpetua a memoria do homem, e
o que o | immortalisa.
As nações só possuem estatuarios nas épocas or- | ganicas, ou quando a razão publica se levanta aci- ||
[p. 139 – col. 1] ||
ma de todos os preconceitos da inveja,
e triumpha | das
recriminações da mediocridade buliçosa, ou | nos dias em que se revelão como grandes entida- | des, como membros desse grande corpo da
huma- | nidade, que caminha para a
perfectibilidade da ci- | vilisação evangelica.
O estatuario
é quem demonstra ao mundo in- | telligente o estado moral do povo para quem elle | trabalha: se opera para immortalisar o heroismo, | ou outra virtude social, a sua obra magnifíca
o paiz | em que elle
está, exorna o solo em que se mostra, | e ensina na praça publica o culto de todos os dotes | da moral eterna; mas se elle em vez de figurar
o | héroe, de poetisar o benemerito e materialisar a | virtude, trabalha para divinisar o estrião, o funam- | bulo, o palhaço, ou o homem carregado de crimes, | as suas producções demonstrão
que todos os laços | sociaes estão rotos, e que no coração dos
homens | não ha mais incentivo para o bello e o sublime.
As estatuas dos validos, das
meretrizes e dos | monstros humanos, só apparecerão nas vesperas da | queda de Athenas, de Roma, e do imperio Bizan- | tino; a sua apparição,
verdadeira profanação do | culto da virtude, marca
sensivelmente o contraste | das épocas, e a infinita distancia
que ha no pensa- | mento do homem das sublimes
verdades, que é a | mesma que vai da divindade ao homem degene- | rado.
Entre nós, sociedade de trinta e dous annos de | luctas intestinas, a arte ainda não levantou a sua | voz poderosa para demonstrar na praça publica o | reconhecimento nacional. Todas as tentativas de | uma cathegoria elevada e permanente tem cadu- | cado, e como que se diluido
no meio do turbilhão | desencontrado do egoismo
e da sua politica de re- | criminações.
A primeira tentativa, a da época da indepen- | dencia, a de levantar-se uma estatua
equestre ao | fundador do imperio,
esmoreceu com a queda da | Constituinte, com a impopularidade
deste acto, | que apenas nos
cabe mencionar a impressão geral, | e com o movimento desastroso de todas essas os-
| cillações que produzirão o acto de 7 de abril | de 1831.
A segunda tentativa, a de 1838,
presidida pelo | marquez de Paranaguá, e composta dos Srs. conse- | lheiros Cornelio
de Sousa França, Maciel Mon- | teiro, visconde de Macahé,
Antonio José Lisboa, | Paulo José de Mello, visconde de Abrantes, e o se- | cretario Manoel de Araujo Porto-Alegre, tambem | cahio pela deslocação do pessoal, pela deslealdade || [p. 139 – col. 2] || do ministro do imperio, pela sua natureza ana- | chronica na época de transacções
pessoaes, e pela | approximação e consummação
da maioridade. Esta | commissão trabalhou muito, e estava na melhor
| boa fé possivel.
A terceira e ultima tentativa que
houve foi in- | tentada por José Clemente Pereira. Cahio como | todas as outras: ainda não era
tempo: o alicerce | moral para a fundação destes
monumentos deve | preceder o material, principalmente
nos paízes | onde a forma do governo se afasta da monarchia | pura; porque
nesta o poder que pensa, realisa | immediatamente o seu pensar.
O estatuario
em toda esta época de transição | não podia apparecer,
não podia fallar: vivia da es-
| culptura, vivia uma vida secundaria,
arrastrava | uma existencia
penivel, que o condemnava á
mais | triste e completa obscuridade.
E porque tudo isto assim se passava
em uma | época em que se reformou a scena dramatica, e na | qual o jornalismo subio para o terreno do idealis- | mo, e a imprensa começou a dar á luz
algumas producções litterarias?
Porque a architectura
estava morta, porque a | arte fundamental do progresso de
todas as bellas | artes era olhada com indifferença
e porque os nos- | sos idealistas politicos
mais curavão de si do que | da patria; porque o culto havia esmorecido, a edu- | cação abandonada, e o estudo, e
todas as forças su- | periores do homem estavão á
margem: nas épocas | de perturbação vale mais a audacia do que o | genio.
Depois da maioridade, já quando a architectura | tinha fallado
á nação pelos dous hospitaes
de Santa | Luzia e da Praia Vermelha, José
Clemente Pe- | reira chamou o estatuario
e disse-lhe: O impe- | rador fez este hospicio
para amparar a desgraça, | assim como Anchieta creou a Santa Casa da Mi- | sericordia; estes dous homens
não devem morrer | aos olhos do povo, nem tão pouco os
que estão | nesta lista de nomes que vos
entrego.
E o artista, o historiador do
passante, do pe- | regrino e do povo, respondeu a esse homem em- | prehendedor com as estatuas e bustos desses va- | rões caridosos, que começarão desde então
essa | nova e longa vida, essa gloria, essa
existencia | marmorea que tem sempre dous pedestaes: um | de granito, e outro em todos os corações reco- | nhecidos.
Começarão então as primeiras
negociações en- | tre Carara e
o Brasil, entre a arte americana e a || [p. 140 – col. 1] || Italia; principiou esse commercio
de marmores, | que na estatistica das nações civilisadas demons- | tra o grau de perfeição da esculptura
e da indus- | tria, e que
hoje denota um seguro estado de ci- | vilisação.
O sceptro
da estatuaria até á chegada do Sr. | Fernando Pettrich não estava no Brasil: todas
| as obras feitas nos tempos coloniaes,
nos do rei- | nado, e nos do primeiro imperato, vierão de fóra; | a plastica,
e a cerannica apenas havião
feito o | que existe, e a esculptura
algumas obras de mais | permanencia, porém mui poucas. Mediocres ima- | gens de
madeira ornão os altares das nossas igre- | jas, e estas, por uma depravação do
gosto, são | douradas e pintadas de tal sorte,
que mais se pa- | recem com vasos da China do que com obras | d´arte proprias para inspirar devoção.
As obras de marmore
feitas nos tempos colo- | niaes e reaes vierão de Portugal; e o S. Pedro | de Alcantara, que está na capella
imperial, assim | como a estatua do Sr. D. Pedro
1.º que está na | bibliotheca
publica, vierão da Italia, sendo a pri- | meira feita por Tadolini discipulo de Canova. | Estas duas obras são a expressão de votos indivi-
| duaes, e não a de uma manifestação nacional; | forão objectos
importados e não feitos no paiz: pertencem á margem opposta dessa bella espon- | taneidade com que sóem
as nações manifestar-se | quando tem consciencia
de sua propria dignida- | de, e fallão por suas obras a lingoagem da mais | alta civilisação.
Ao apparecimento
da estatua do Sr. D. Pedro | 2.º e das outras estatuas e bustos
feitos pelo Sr. | Pettrich, seguio-se
o phenomeno singular de se | achar este esculptor com encommendas
de traba- | lhos
d´arte pela somma de sessenta contos de réis.
Seria uma fabula o que agora
relatamos aos | olhos da geração passada, e talvez
inda o pareça | ás vistas da que declina e entrega involuntaria- | mente o futuro
da patria a seus filhos; porque | estes homens parecerão até agora considerar só- | mente com direitos á riqueza e ao descanço na | velhice o homem que viveu no mundo do posi- | tivo concreto.
Ao filho das Musas, ao representante
de uma | grande força civilisadora,
desconhecida entre os | sectarios
do fanqueirismo social, não era permit-
| tido o ingresso no templo da felicidade, nem al- | çar os olhos para o posto onde se
repotreava | uma obesa ignorancia,
ataviada com a gravidade | composta de um mau actor, ou com o ouropel || [p. 140 – col. 2] || de uma dignidade imposta pelo poder, ou ali- | mentada pela adulação. Ao homem de genio, | áquelle que adorna o que o vê e dá vida ao que | narra, estavão
fechadas todas as avenidas que o | poderião
fazer brilhar; e taes erão
as prevenções, | que aquelles
mesmos a quem a natureza havia | favorecido, tratavão
de escurecer o seu talento | maior para poderem entrar no mundo adminis- | trativo, no grande mundo social: havia uma | quebra da grandeza humana em proveito da | maioria, e como que uma renuncia de altos pode- | res a favor dos prejuizos de uma raça
decadente, | bem digna de compaixão.
O actual
Imperador, o filho da Independencia, | vai pouco a pouco esmigalhando essa cadeia de | ferro do passado, e na sua marcha triumphante | desfazendo no terreno esse circulo
de Popilio, | que para o
artista era uma muralha cyclopeana, | mas que para Elle é como o sulco de um
marisco | sobre as praias do mar.
As portas do futuro estão
escancaradas, o Im- | perador se assenta entre os homens de letras, en- | tre os poetas, e á custa do seu bolcinho protege | directamente as artes, fazendo elle
só mais do que | todos os millionarios
no Brasil; porque a arte | não está no retrato, que pertence
ao egoismo, | ou á vaidade.
Cada anno
do reinado d´este Brazileiro é mar- | cado por um progresso saliente, por um melho- | ramento assignalado,
por uma reforma intellec- | tual, por uma conquista e por uma victoria que o | deificão.
Coração brazileiro,
de um amor patrio sem liga, | cabeça pensante, amigo do progresso, homem do | futuro e organisado para a meditação
profunda, | conhece actualmente
os elementos que o circulão | e dos que precisa para a consummação de sua | magnifica missão, d´essa prodigiosa epopéa
que | começa no Amazonas e se estende até
o Uruguay.
Perante um tal
principe, creador d´este hori- | zonte lisongeiro
para as artes, o paiz não podia | ficar estacionario, nem o pensamento recluso
e | encantoado nas modestas habitações do pobre,
no | fundo das escolas, sem se derramar sobre a
massa | geral da população.
Nunca, perante as camaras, nenhum ministro | fallou a lingoagem
do artista; nunca se vio o poder | executivo identificar-se com a arte, e ennunciar-se
| com tanta clareza e precisão como o fez este anno | o Exm.º Sr. Pedreira no seu relatorio,
porque | nunca o poder havia encarado a
arte como um || [p.
141 – col. 1] || elemento civilisador,
e olhado para ella como o | legitimo vehiculo dos progressos da industria de | um paiz.
As camaras
não só tolerão hoje esta lingoagem,
| como que demonstrão
a sua adhesão aos progres- | sos das artes, pelo effeito
de uma convicção, que | só chega ao coração do poder quando
o paiz inteiro | entra nas vias da grande civilisação.
A’s estatuas
de marmore de que acabamos de | fallar, tinhão
precedido muitos trabalhos plasticos, | que havião figurado nas festas nacionaes, porém | estes fructos de uma pompa transitoria
não havião | deixado nada
de permanente, nem fixado sobre o | solo um
pensamento nobre e duravel como os tra- | balhos da actualidade.
E bastaria para um paiz | que se desenvolve, como o nosso, a mão de um mestre sómente,
e unicamente as suas creações ar- | tisticas? Não.
O paiz já
pede mais, o paiz reclama factos, e | os resultados de uma época intelligente. E
porque | até agora ainda ninguem
havia invadido o penivel | sanctuario da estatuaria? Porque o paiz nunca o | havia pedido: o artista é uma apparição que só se | manifesta quando é pedida ao futuro, quando se | abrem os templos, os palacios e as galerias,
ou | quando a autoridade quer convenientemente.
O vice-rei Vasconcellos precisou de esculptores | e fundidores e obteve-os na propria colonia em que | se achava; e todas as vezes que o governo tem | querido solemnisar épocas e acontecimentos memo- ||
[p. 141 – col. 2] ||
raveis, tem achado o que quer, e acima do mediocre: | os arte factos que se tem feito
assim o provarão.
Porém o leitor ao perpassar as suas
vistas be- | nevolas
sobre estas linhas, mais de uma vez nos | terá perguntado pelo novo estatuario, como
que | cançado
de tantos preludios artísticos, e de factos | que não pertencem ao novo homem?
Vamos ao caso. O novo estatuario é o mestre | Honorato Manoel de Lima, esculptor muito co- | nhecido n´esta cidade, que acaba de
executar em | marmore
um busto, maior que o natural, de seu | mestre Marcos Ferrez, segundo professor de es- | culptura na Academia das Bellas-Artes,
e fallecido | no anno de 1850.
Não seria concentaneo
com a dignidade da Il- | lustração Brazileira o publicar este facto se o | artista, pela primeira vez, e á custa de esforços | proprios, não tivesse alcançado uma
superioridade | de execução na nova materia, que estava longe de | toda a espectativa, apezar
da habilidade porque é conhecido!
O marmore
debaixo d´este novo cinzel respira, e | a arte triumpha! O que falta agora para que o novo | Estatuario seja a expressão do pensamento nacio- | nal? Uma encommenda.
Todos os temores da | duvida desapparecem
á vista de um facto tão lu- | minoso. Eia, Brazileiros,
Honorato Manoel de | Lima está em pé, com o masso na mão direita e | o escopro na esquerda: só espera a vossa palavra.
M. de Araujo Porto Alegre.
_________________________
[1] Doutorando em Artes (História e Crítica de Arte) pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Trabalho realizado com o apoio do
Programa Nacional de Apoio à Pesquisa. FBN-MinC.
[2] Professor Adjunto de Língua Portuguesa da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
[3] GALVÃO,
Alfredo. Manuel de Araújo Porto-alegre: Sua Influência na Academia
Imperial das Belas Artes e no Meio
Artístico do Rio de Janeiro. Revista do PHAN, n.14, 1959, p. 20.
[4] FERRARI, Paula
(org.). Manoel de Araujo Porto-Alegre:
Discurso pronunciado na Academia das Belas Artes em 1855, por ocasião do
estabelecimento das aulas de matemáticas, estéticas, etc.. 19&20,
Rio de Janeiro, v. III, n. 4, out. 2008. Disponível
em: <http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/mapa_1855_discurso.htm>.
[5] Arquivo da Casa Imperial (Museu Imperial,
Petrópolis), maço 107, documento 5188.
http://www.artedata.com/crml/crml3001.asp?ArtID=18
[6] GALVÃO,
op. cit., p. 21.
[7] Ibidem, p. 22.
[8] CAMBRAIA, César
Nardelli. Introdução
à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 1.
[9] Ibidem, p. 19.
[10] CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história
entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2002, p. 248.
[11] SPINA,
Segismundo. Introdução à edótica. São Paulo: Cultrix,
1977.