O jardim moderno como obra de arte: o pensamento de Roberto Burle Marx para a Praça de Casa Forte

organização de Joelmir Marques da Silva[1] e Victor Gabriel Cavalcanti de Moraes[2] 

SILVA, Joelmir Marques da; MORAES, Victor Gabriel Cavalcanti de (org.). O jardim moderno como obra de arte: o pensamento de Roberto Burle Marx para a Praça de Casa Forte. 19&20, Rio de Janeiro, v. XV, n. 1, jan.-jun. 2020. https://doi.org/10.52913/19e20.vXVi1.00009

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O Projeto do Parque da Casa Forte (1935) [Figura 1], atualmente Praça de Casa Forte, foi a primeira experiência de Roberto Burle Marx (1909-1994) em desenho de jardim público, e integrou o chamado “Plano de Aformoseamento do Recife’ juntamente com mais 12 jardins, também públicos, do paisagista, todos projetados entre dezembro de 1934 a dezembro de 1937.

Por seu legado, Burle Marx é considerado, até hoje, o grande expoente do jardim moderno brasileiro. Sigfried Giedion em Le Brésil et l’architecture contemporaine,[3] ao tratar do modernismo nos jardins de Burle Marx, destaca que o importante é que mesmo estando estritamente vinculado ao seu tempo, Burle Marx não negligenciou o passado, a história do lugar. Associada a esta questão está a valorização da vegetação autóctone atrelada a uma reflexão sobre a brasilidade, tão discutida na Semana de Arte Moderna de 1922. Assim, seus jardins foram pensados tomando por base três princípios: higiene, educação e arte.  

O jardim como obra de arte efêmera, onde o vegetal é o elemento principal, nunca é estático, está em constantes modificações porque a Natureza se impõe com sua ordem, mesmo o jardim sendo, na visão de Burle Marx “natureza organizada subordinada à leis arquitetônicas.”[4] Para mostrar o quanto o jardim é complexo, o sociólogo e crítico literário Roger Caillois o compara com outros tipos de obra de arte: “O pintor, sobre a parede ou sobre a tela, compõe à vontade da linha, superfícies e cores. O joalheiro [...] para fazer suas joias, junta, gemas e metais. O escultor e o arquiteto levam em conta a resistência do material, obedecem às leis imperturbáveis do equilíbrio e da gravidade. Uns ou outros atuam livremente. Lidam com substâncias dóceis ou rebeldes, mas sempre inertes, que eles manipulam e submetem à sua inspiração. Ao imaginar ou realizar um jardim, o jardineiro modifica a natureza, corrige-a, metamorfoseia-a. Deve calcular, com a fertilidade do humo, com o ciclo das estações, com o regime das chuvas, a data das semeaduras, os ritmos de crescimento e de floração, com as mil perfídias da ecologia. Especular sobre o aleatório.”[5]

Sendo a Praça de Casa Forte um Jardim Histórico, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) nos livros de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, Histórico, de Belas Artes (Processo nº 1.563 - T - 08), e também pela Prefeitura do Recife (Decreto nº 29.537 de 23/03/2016), se faz necessário salvaguardar todo e qualquer registro que revele sua história, como é o caso das matérias: (i) “O Jardim da Casa Forte” e (ii) “A reforma dos jardins. O monumento da Casa Forte será substituido por um mais suggestivo e mais artistico, moldado em granito,” publicadas no Diario da Manhã de 22 mai. 1935, ora aqui transcritas em sua grafia original, e que nos trazem, em detalhes, o pensamento paisagístico de Burle Marx. De tal forma, as matérias se convertem em um “documento histórico” essencial que deve ser levado em conta e cotejado com outras fontes, em qualquer ação de conservação do jardim, principalmente o restauro, por toda sua complexidade.

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O JARDIM DA CASA FORTE

Roberto Burle Marx 

O jardim é em sua essencia natureza organizada, subordinada a leis architectonicas.

O jardim em todos os tempos, entre todos os povos, surgiu nos momentos de suas respectivas civilizações.

Não houve povo que evoluindo não se congregasse em cidade. Não houve cidade que evoluindo não contivesse jardins.

De onde se conclue que o jardim é antes uma necessidade consciente do que simplesmente uma creação accidental de luxo superfluo na nossa civilização.

Do mesmo modo, a existencia da arte se prende a uma necessidade psychologica da vida. Existiu sempre, e sempre existirá, como derivativo e sublimação de instinctos humanos sob a acção de fixações e recalques impostos pelo meio ambiente.

Acompanhando o homem atraves de todas as eras, desde a caverna prehistorica ao arranha-céu contemporaneo, soffreu uma evolução parallela ao desenvolvimento da sciencia.

Esta proporcionou-lhe apenas meio para aprimoramento de technica, pois a arte encarada em seu aspecto emocional tem soffrido profundas modificações, provenientes das divergencias de sensibilidades e recalques de ordem social, e moral de cada geração, dos varios povos, em suas differentes civilizações.

Sob a apreciação psychologica, permaneceu a arte invulneravel em seu papel immutavel de facilitar ao homem o transmittir a um determinado trabalho, por intermedio de emanações interiores, partidas de seu inconsciente, um meio de derivar e sublimar toda a sorte de fixações e recalques que seu instinto natural tenha accidentalmente adquirido no ambiente em que vive.

No jardim existiu sempre um pensamento ordenando a natureza.

O que se modificou foi apenas seu espírito.

A fórma alcança um ideal de belleza, quando preenche uma funcção da época.

Desde que o jardim consiga preenchel-a, a belleza verificar-se-á por si mesma.

Os jardins de Semiramis na Babylonia, que constituiram uma das sete maravilhas do mundo, si foram bellos é porque obedeceram a um principio de ordem e utilidade.

Esta consistia naquelle tempo no aproveitamento de plantas capazes de lhes fornecer generos de necessidade immediata, como o trigo, e uva, etc.

Nos jardins gotticos, vamos encontrar plantas productoras de especiarias, ao par de plantas medicinaes e de outras de puro effeito decorativo.

Alem disso esses jardins serviam muitas vezes de cemiterio. No próprio jardim francez as arvores com copas podadas em feitios geometricos têm uma existencia funcional, ligando a natureza á architectura.

O jardim moderno não poderia fugir a esta successão logica. E’ assim que elle comporta varios objectivos: hygiene, educação e arte. Sob o ponto de vista hygienico, o jardim moderno representa nas grandes cidades um verdadeiro pulmão collectivo.

E’ nelle que o habitante urbano vem respirar um pouco de ar puro, cansado da luta diaria nos escriptorios acanhados, nas ruas asphaltadas e nos ambientes fabris.

E’ nelle que as crianças moradoras de apartamentos empoleirados, casas de quintaes reduzidos, ou habitações collectivas, poderão encontrar um meio amplo para séus brinquedos, recebendo para suas trocas organicas, um ar desprovido de contaminação.

Nos climas tropicaes, para esse fim torna-se indispensavel o plantio de arvores capazes de fornecer grandes sombras.

Já é facto conhecido o papel que representa a arborização e o ajardinamento das cidades quanto á modificação mezologicas das mesmas.

No Brasil isso já foi verificado em Fortaleza, que depois de arborizada, soffreu um sensivel descenso em sua media thermometrica. Sob o ponto de vista educacional, o jardim moderno tem como objecto trazer para o habitante da cidade um pouco de amor pela natureza, fornecer-lhe meios para que possa distinguir sua propria flora da exotica e dar-lhe uma idéa nitida da utilidade do jardim simultaneamente a uma capacidade de distincção da verda-

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deira belleza do pieguismo baseado em concepções falsas.

Ademais, o jardim publico tem a serventia de padronar o nascimento dos jardins particulares.

Para o estrangeiro, é o jardim uma demonstração de riqueza da flora de um paiz, e da capacidade de seu povo em bem aproveital-a.

Sob o ponto de vista artístico, deve o jardim obedecer a uma idéa básica, com perspectivas logicas e subordinado a uma determinada forma de conjuncto.

Deste modo podemos obter um jardim architectonico ou um paysagista, ou ainda um tipo intermediario, comportando elementos de ambos.

Visitando o parque de Dois Irmãos, foi que me veio a idéa de criar entre nós um jardim dagua.

Não é de hoje que se emprega a agua como elemento na architectura de jardim. Os hespanhoes, nos seus jardins nunca deixaram de aproveitar esse elemento, como se vê no Alcazar, no Alhambra e no Escorial.

Francezes, Allemães e Italianos também o fizeram, como nos atestam Versalhes, Schoenbrun, Numphenburg, Frascatti e Vila d’Este.

Foi Le Notre quem lançou a idéa do aproveitamento da agua para a formação de grandes superfícies, substituindo os Parterre de broderie pelos parterre-d’eau, com o fito de estabelecer uma zona de calma, de crear perspectivas e maior contraste.

Até então a agua era usada apenas como elemento capaz de reflectir o jardim circumdante, ou para efeitos de repucnos.

Modernamente é que vamos encontrar a agua como meio capaz de permittir a cultura de uma infindavel variedade de plantas.

Basta citar a enorme familia das nympheaceas que actualmente são cultivadas de um modo intenso, já se tendo conseguido as mais interessantes hybridizações.

Entre ellas se encontra como expoente de grandeza uma variedade brasileira, a Victoria Régia, planta originaria da amazonia cujas folhas alcançam até dois metros de diametro.

E’ uma variedade de grande belleza, tendo uma floração abundante. Foi attendendo a estas considerações que estudamos um jardim dagua para o largo da Casa Forte, onde figura a Victoria Regia como motivo central.

O jardim será composto de tres lagos, obedecendo ás formas geométricas de maior simplicidade.

Como funcção educativa cada um delles representará um grupo isolado, pela proveniencia geographica dos seus elementos, subordinados entretanto a idéa de conjuncto.

No lago central, circular, será o recipiente da flora aquatica amazonica.

No centro desse lago, será colocada uma estatua de Celso Antonio, representando uma india a se banhar.

Circumdando o lago haverá uma fileira de Páos-Mulato, arvore interessante pelo seu feitio definido de troncos em columnata e copas symetricas, de grande effeito decorativo, para jardins architectonicos

Ao lado das entradas para o passeio que envolve o lago, serão vistos canteiros de tinhorões, que darão a nota colorida ao local.

Nos quatro angulos existirão blocos de palmeiras amazonicas, taes como: scheellias, assahys, mumbacas, bacabas, urucurys, jouarys, etc

Quanto aos dois lagos rectangulares, um será dedicado á flora americana, e outro á flora exotica.

No primeiro achar-se-á toda a grande variedade de plantas aquaticas dos nossos rios e açudes.

Ao redor do lago de plantas marginaes como as aningas, da familia das araceas os celebres Tajás do Amazonas com suas folhas de coloridos os mais diversos, alguns representantes das familias das gramineas, etc., fornecerão um aspecto de exuberancia tropical.

Caminhando de dentro para fóra, encontraremos um gramado e um passeio. Finalmente duas carreiras de arvores, taes como: Canna fistula, Ipê, Jatahyrana, Mulungu’, Munguba, etc.

O lago exotico conterá a flora aquatica das regiões tropicaes dos outros continentes.

Nelle serão vistos os lotus, planta aquatica oriunda do Nilo que transportada para a India ahi teve um grande cultivo.

Serão vistos tambem os Cyperus, Papyrus, genero igualmente egypcio das Cyperaceas Lympheas Zamzibarienses, etc

Entre as plantas marginaes encontraremos especimens de grande belleza como: a Canna Indica, a Salla Aethiopica, o Crinum Powell, a Strelitzia e algumas Musaceas decorativas.

Entre as Zingiberaceas de grande porte, plantaremos o Bastão do Imperador.

Entre as arvores que ladeiam este lado, figuram: o Páo-teka, os Flamboyants de floração rubra e amarella, Acacias diversas, etc. Obteremos assim um conjuncto que muito nos dirá da riqueza vegetal dos tropicos, com arvores de grande porte, de folhagens exuberantes e de florações intensas, onde serão encontradas em associação, a sombra que nos é tão necessaria e um meio educativo subordinados a uma idéa geral de esthetica

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Imagens

Tres aspectos do jardim da Casa Forte [Imagem 1, Imagem 2 e Imagem 3]

 

 

A REFORMA DOS JARDINS

O monumento da Casa Forte será substituido por um mais suggestivo e mais artistico, moldado em granito

Têm surgido, ultimamente, na imprensa, varias criticas sobre as reformas que estão sendo emprehendidas nos jardins do Recife. Taes censuras visam, preferencialmente, a praça da Casa Forte onde existe um monumento historico que, por inexpressivo e vulgarissimo, será, brevemente, substituido.

Explicando esse assumpto recebemos, hontem, do sr. Roberto Burle Marx, a carta abaixo que bem mostra a orientação seguida em todas as reformas. Segundo se deprehende desse documento podem os recifenses ficar tranquillos de que os seus jardins irão apresentar, dentro de breve tempo, um aspecto mais suggestivo e agradavel. Tambem não serão arrazados, os monumentos historicos. O technico contractado para a reforma dos jardins recifenses, pernambucano como é, tem, bem vivo, o seu amor á terra e comprehende, perfeitamente bem, o valor dos monumentos commemorativos. E’ preciso porem que á inexpressividade de certos marcos historicos se dê um sentido artistico que melhor possa falar aos nossos sentimentos patrioticos.

E é isto, sem tirar nem por, que se fará em Recife, seguindo a nova e moderna orientação que se está imprimindo ás reformas de nossos logradouros publicos.

Eis a carta do sr. Roberto Burle Marx:

 “Sr. Director do DIARIO DA MANHà -  Recife.  -  Acham-se completamente mal informados certos collaboradores de jornaes sobre as reformas projectadas para o jardim da Casa Forte.

Estas reformas não pretendem, de modo algum, offender á memoria dos nossos heroes na guerra hollandeza, e muito menos realizar em tão exiguo espaço uma floresta amazonica, como repetidamente insistem em affirmar os alludidos collaboradores.

Trata-se, apenas, da destruição de inexpressivo bloco de alvenaria com pretensões a monumento em homenagem aos heroes da Casa Forte merecedores, sem duvida, de uma mais digna consagração pois esse pseudo-monumento sem nenhum valor artistico, não poderá figurar por hypothese alguma em um jardim cuidadosamente estudado.

Não ha razão, porem, para tanto alarme, pois no jardim onde figura tão discutido “monumento”  pretendemos collocar um simples monolitho cortado em bôa pedra graniticia, obedecendo a uma forma bem justa e definida, onde serão collocados além de inscripção commemorativa do grande feito, os nomes de seus heroes tão ardorosamente defendidos pelos amadores da Historia de Pernambuco.

Quanto á floresta amazonica nunca tivemos pretensão de creal-a como será facil observar a quem se dér ao trabalho de exaimar o projetcto do referido jardim, mas apenas de um jardim d’agua, onde se procurou lançar mão de elementos colhidos na flora riquissima daquella região.

E que fique tranquillo o povo pernambucano, com a consciencia de que jamais será desrepeitada a memoria de seus heroes e de suas gloriosas campanhas. Roberto Burle Marx”.

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[1] Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Pesquisador do Laboratório da Paisagem. Membro do International Scientific Committee on Cultural Landscapes (ISCCL - ICOMOS-IFLA) e do International Council of Monuments and Sites (ICOMOS-BRASIL). E-mail: joelmir_marques@hotmail.com

[2] Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Aluno do Departamento de Arquitetura e Urbanismo. E-mail: gabrielcavalcanti2909@gmail.com

[3] GIEDION, Sigfried. Le Brésil et l’architecture contemporaine. L'Architec-ture d'Aujourd'hui, ano.23, n. 42/43, 1952, p. 3.

[4] O Jardim da Casa Forte. Diario da Manhã. 22 mai. 1935, p. 1 e 12.

[5] CAILLOIS, Roger. Jardins possíveis. In: LEENHARDT, Jacques (org.). Nos jardins de Burle Marx. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2006.