O caderno de notas de Antônio Parreiras

organização de Valéria Salgueiro

SALGUEIRO, Valéria (org.). O caderno de notas de Antônio Parreiras. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 3, jul. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/ap_caderno.htm>.

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O caderno de notas de Antônio Parreiras (Niterói, 1860-1937), pertencente ao acervo do Museu Antônio Parreiras, em Niterói, é um caderno com noventa páginas manuscritas onde o autor registrou observações suas sobre a arte e sobre questões técnicas da prática artística, especialmente sobre a pintura a óleo. O mesmo foi pioneiramente publicado no ano de 2000, pela Editora da Universidade Federal Fluminense (EDUFF, Niterói), juntamente com outros textos do pintor, em obra intitulada Antônio Parreiras: notas e críticas, discursos e contos - coletânea de textos de um pintor paisagista (org. Valéria Salgueiro). Um texto crítico do caderno de notas de Antônio Parreiras intitulado “O caderno de notas do pintor Antônio Parreiras - observações sobre seu conteúdo e significado” (Valéria Salgueiro) foi apresentado no X Encontro ANPAP (Associação dos Pesquisadores em Artes Plásticas), em 1999, no SESC São Paulo e publicado nos anais do Encontro. Agora temos a oportunidade de publicar o caderno de notas de Antônio Parreiras na Revista 19&20, na íntegra e revisado. Seguindo o critério de exposição do próprio pintor de suas opiniões, na forma de itens, optamos por numerá-los de modo a facilitar a apresentação da obra, cuja grafia foi atualizada e pontuação revista, tendo sido acrescentadas ainda notas explicativas, quando necessárias. Esperamos que essa publicação possa cumprir seu objetivo, que é o de tornar o caderno de notas de Antônio Parreiras uma obra acessível a todos pesquisadores e estudiosos da arte brasileira.

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A experiência se adquire com o conhecimento das coisas, pela prática, pela observação e, muitas vezes, pelo acaso. Eis o que ela me ensinou.

1.    Nunca pintar sobre um desenho feito a lápis. Com o tempo, este desenho romperá a camada da tinta e virá à superfície.

2.    Não pintar escuro sobre um tom claro; fatalmente, em pouco tempo aparecerão rachaduras.

3.    Não fixar desenhos, quer a lápis, quer a fusain, com fixativo feito com breu. O papel ficará, mais tarde, amarelo a ponto de quase fazer desaparecer o desenho. O melhor fixativo que conheço é o que se prepara do seguinte modo: dissolver em efusão 250 gramas de resina de jatobá, ou jataty (encontrado em grande quantidade principalmente no norte do Brasil) em 1000 gramas de álcool absoluto. Filtrar 12 horas depois, tendo o cuidado de não turvar o líquido com o pó que fica depositado no fundo da garrafa.

4.    Nunca aquarelar sem primeiro umedecer o papel, para ver se está mofado.

5.    Não há verde absolutamente sólido. O melhor de todos é o verde esmeralda, e mesmo este se altera e se irradia, absorvendo os tons obtidos com outras tintas. Pode-se obter verdes de todos os tons com amarelo cádmio claro e cobalto, amarelo cádmio escuro e ultramar, amarelo ocre e azul cobalto, e amarelo ocre e azul ultramar.

6.    Evitar todos os pretos. O melhor se obtém com ultramar e carmim. O azul empregado no momento torna-se preto horas depois.

7.    Nunca usar verde algum nos segundos e últimos planos de uma paisagem, e sim compô-las como já indiquei atrás. A vantagem é obter-se tons finos e que se afastam facilmente, sobretudo se no primeiro plano se usar o verde esmeralda cuja solidez não se pode garantir.

8.    Nos esboços deve-se sempre exagerar o tom local, pois sempre perdem o vigor quando, para terminá-los, se trabalha sobre eles.

9.    Evitar todos os secativos. Eles precipitam a evaporação de modo a tirar a solidez da tinta, petrificando-a rapidamente.

10.   O melhor verniz de retocar é aquele que foi composto por Vitor Meireles:

100 gramas de óleo de linhaça purificado

30 gramas de essência de terebintina

10 gotas de Siccatif de Courtrai

Quando se pinta, pode-se usar esta “mistura”, em lugar de óleo puro, o que produz grande solidez[1]. O verniz Vibert de retocar faz estalar a pintura.

11.   Há sempre desvantagem no emprego de qualquer secativo. Precipitando a secagem, as camadas seguintes de tinta encontrarão uma superfície vítrea e petrificada, não se dando, portanto, uma sólida adaptação. O tão usado verniz a retoucher de Vibert, utilizado não só para fazer desaparecer a opacidade do tom, como também para precipitar a secagem, tem destruído centenas de boas obras. Conheço telas de valor que, pintadas há poucos anos, estão completamente perdidas, cheias de pequenas rachas que parecem teias de aranha, e não há meios de salvar uma pintura assim nesse estado. Mesmo se repintarmos tudo de novo, em pouco tempo as rachas se multiplicarão. A essência de terebintina enegrece os claros e faz rachar os escuros, quando empregada com secativo.

12.   Nenhum quadro deve ser envernizado senão depois de quarenta dias de pintado. Caso não se possa esperar esse tempo e o quadro tenha que ser exposto, se passará uma ligeira camada de verniz a retocar de Vitor Meireles.[2] Isso permitirá que o quadro seja visto em boas condições durante determinado tempo, o que não impedirá que, chegada a ocasião, receba o verniz definitivo, sendo o melhor de todos o verniz a tableaux de Vibert.

13.   A durabilidade de uma pintura depende principalmente da qualidade do óleo empregado na sua fabricação. Tanto assim, que as mesmas tintas destinadas à aquarela e ao pastel, onde não entra este ingrediente, dificilmente se alteram. Em Florença há pastéis executados há séculos que se encontram tal como foram feitos. Não há, entretanto, pintura alguma a óleo que em poucos anos não apresente grandes alterações, principalmente nos tons escuros. Evitá-los, pois, é o que deve ser feito.

14.   A escolha da tela deve preocupar em extremo o pintor. Existem telas de infinita variedade. Pintar sobre uma superfície de má qualidade seja de pano, seja de madeira, é condenar a uma curta existência o trabalho sobre ela executado. Acreditar que as camadas de tinta dão, a esta superfície, solidez, é um engano. Será o mesmo que revestir um muro de barro com uma camada de cimento. Em pouco tempo o barro se destacará dos tijolos e o cimento cairá em pedaços. O tecido da tela deve ser sempre de fios cruzados, redondos e grossos. Muitas vezes, ocorre de o tecido ser bom, mas a tela não resiste a longo tempo. Isso depende do preparo que se deu sobre o tecido. Para que ele não deixe passar o preparado para o outro lado, os fabricantes costumam dar uma camada de cola sobre o tecido. Esta, como é sabido, apodrece facilmente e ataca o tecido.

15.   Quanto mais espessa for a camada de tinta sobre o tecido, mais depressa se estragará a pintura, porque geralmente esta camada de branco que se dá sobre os tecidos destinados à pintura é fabricada com as drogas mais ordinárias possíveis. As telas absorventes duram mais do que aquelas que não o são, devido à quantidade de óleo empregado para fabricar a tinta.

16.   As melhores telas são as holandesas. Se, por motivo superior, o artista não puder usar uma boa tela para fazer seus estudos, seus trabalhos de pouca importância, será melhor fazê-los sobre papel bem forte, que dure mais do que a tela. Estica-se o papel sobre o chassi, o que se faz com facilidade umedecendo os dois lados, e, colando as extremidades no chassi, deixa-se secar horizontalmente. Uma vez seco, faz-se o desenho, fixando-o, de preferência, com o fixativo de jatobá. Procede-se do mesmo modo como se estivesse pintando em tela. Em lugar, porém, de óleo de linhaça no godê, usa-se essência de petróleo ou mesmo óleo de petróleo natural. A pintura apresentará uma superfície mate. Se não convier assim, enverniza-se o trabalho com verniz a tableaux de Vibert. Tenho trabalhos executados dessa maneira que há longos anos conservo dentro de pastas, sem que sua coloração tenha sofrido a menor alteração. Mas, me dirão, há o inconveniente de se furar com facilidade o papel. Sim, mas isso também ocorre em relação à tela, que uma vez furada jamais será possível consertá-la, o que não acontece com o papel.

17.   Pode-se, em lugar de esticar o papel sobre um chassi, colá-lo sobre papelão grosso. Deve-se, porém, usar a seguinte cola: 2 colheres de sopa de farinha de trigo, 2 colheres de sopa polvilho nacional, 1 colher de café de alúmen, 15 gotas de essência de cravo. Dissolver tudo em água fria. Ferver em fogo baixo, mexendo sempre para a direita, até levantar fervura. Tirar do fogo e continuar a mexer por alguns minutos. Molhar o papel pelo verso e passar ligeiramente, depois, a cola com um pincel largo. O papel colado assim, jamais poderá ser descolado. Possuo estudos pintados sobre papel por esse processo, guardados em pastas, que se conservam tal qual foram pintados. É claro que usei papel forte e de primeira qualidade.

18.   Uma das condições para a durabilidade de uma pintura é não usar jamais “tons fabricados” pelas fábricas. Evitar sempre conseguir um tom que, além do branco, utilize mais de duas tintas. Isso se pode conseguir perfeitamente com a seguinte paleta: branco de zinco (cobre pouco, mas não ataca os materiais), branco de prata, amarelo ocre, amarelo cádmio claro, amarelo cádmio escuro, vermelho cádmio, vermelho de Veneza, terra de Siena queimada, laca de garança escura, verde esmeralda, cobalto ultramar, preto de marfim.

19.   As melhores tintas são as fabricadas por Talens Zoom, em Apeldoorn (Holanda), Fritz Behrendt Kunstmaler, Grafrath [...], em Munique (Alemanha) e Weimarfarbe Gessllschmtleschr, Haftung Weimar (Alemanha)[3]. Dos três fabricantes, o que se pode melhor confiar é o holandês. As Sertanejas”, quadro pintado há quase trinta anos, apesar dos maus tratos que tem sofrido, conserva-se até hoje inalterável, como é fácil de se verificar, vendo-o na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro.

20.   Falei há pouco na maneira de colar o papel. Tratarei agora de como se deve colar sobre uma parede ou teto uma pintura executada sobre tela. Geralmente as telas destinadas à decoração devem apresentar uma superfície fosca (mate). Para isso costuma-se usar tela absorvente. Essas telas são, em geral, preparadas a gesso para que sejam absorventes. Mas é preferível não usar o gesso, pois, em muitos casos, os tons se alteram com o tempo. Para que a tela, depois do trabalho executado, apresente uma superfície mate, necessária para que o trabalho possa ser visto em boas condições, esteja o observador onde estiver, seja qual for a iluminação do local, não há necessidade de se usar como suporte uma tela absorvente. Pode-se ainda não fazer uso de tinta preparada para as pinturas mates, utilizando-se a tinta comum, fabricada o óleo. Para que a pintura apresente uma superfície mate, basta usar, em lugar de óleo puro, o seguinte molho para dissolver a tinta: 300 gramas de óleo e 120 gramas de essência de terebintina. As decorações que fiz para o Instituto Nacional de Música do Rio Janeiro e as do Palácio e Instituto de Música de Belo Horizonte foram executadas deste modo e conservam-se perfeitamente até hoje. Tantos anos perfeitamente conservadas!

21.   Para adaptar essas pinturas a paredes ou a tetos, usa-se a seguinte massa fabricada na hora de ser empregada (para grandes superfícies): um litro de verniz copal; um litro de óleo de linhaça; 250 gramas de aguarrás ou terebintina comum; 2 quilos de alvaiade; 1 quilo de gesso. Uma vez feita a massa, que deve ser espessa, estende-se a massa na tela com uma espátula de betumar, não em toda a tela de uma vez, mas em pequenos espaços. Nos muros divide-se o espaço com duas linhas, uma vertical e outra horizontal, repetindo-as exatamente na tela pelo lado não pintado. Enrola-se a tela com a pintura para fora, começando pelas extremidades até encontrar o traço horizontal. Assim feito, o traço horizontal da parede será unido justamente ao traço horizontal que se marcou no verso da tela. Com uma régua previamente preparada que abranja toda a largura da tela, esta será mantida, colocando-se a régua justamente embaixo do traço. Com um prego prende-se as extremidades da régua, conservando-se a tela bem enrolada. Passa-se, então, a massa, partindo da régua para a parte superior da tela, nunca num espaço maior do que quarenta centímetros. Alisa-se, comprimindo a tela contra o muro, e com outra régua prende-se a tela até onde se tiver passado a massa. E assim repete-se a operação, até a parte superior da decoração. O mesmo processo se usará para a parte inferior da tela, até chegar ao extremo inferior da mesma. A massa seca com rapidez e, uma vez seca, a decoração jamais poderá ser retirada da parede ou do teto, razão pela qual se deva rigorosamente usar o processo indicado. Em grandes superfícies, principalmente em tetos, é conveniente prender toda a circunferência da decoração com taxas de cobre ou de zinco. O mesmo processo é utilizado para tetos. Cheguei a colar, usando este processo, uma tela de setenta e quatro metros quadrados em um teto.

22.   Seja qual for a superfície onde se tem que colocar uma decoração, deve-se prepará-la com grande esmero, como se nela se tivesse que fazer diretamente a decoração. A superfície, porém, terá forçosamente que ser preparada antes, não devendo ser completamente lisa, polida, e sim um pouco áspera. Isso é fácil de se obter: uma vez aparelhada com uma brocha, se baterá toda a superfície com uma boneca de pano de saco bem grosso, substituindo a boneca sempre que ela estiver muito embebida de tinta.

23.   Geralmente não há nos artistas o cuidado que deve haver no preparo de seus trabalhos. Estes são, muitas vezes, os culpados por encontrá-los mais tarde muito diferentes daquilo que eram quando foram executados. Às vezes, um nada é suficiente para condenar um trabalho a pouco tempo de existência. Assim, além de perder-se muitas vezes uma obra de valor, prejudica-se sua reputação, pois o quadro alterado apresentará inúmeros sinais que serão atribuídos ao artista, em prejuízo também do material adquirido, às vezes por elevada importância. E como isso provém muitas vezes de coisas insignificantes na aparência, descerei a coisas mais rudimentares. Começarei por uma anedota que se conta, atribuída a J. P. Laurens. Indo ele um dia corrigir os trabalhos dos alunos de uma academia livre, viu um deles com uma paleta literalmente coberta por espessa e irregular camada de tinta. Desde que começou a usá-la, dela jamais tirou a tinta que, depois do trabalho, ficava sobre sua superfície. A paleta pesava como se fosse feita de chumbo.

- Por que não limpa a sua paleta, moço? - perguntou o mestre.

- Porque entendo que, conservando-a assim, facilita-me a composição de novos tons.

- Já vejo que se um dia o senhor me escrever uma carta, eu não poderei lê-la.

- Por que, mestre?

- Porque o senhor a terá escrito sobre papel já servido e sujo. Quando tiver uma nova mesa limpa para eu poder compor os tons necessários à correção do seu trabalho, eu o corrigirei. E foi adiante corrigir o trabalho de um aluno cuja paleta envernizada e extremamente limpa passou ao mestre, entregando-lhe os pincéis cujos cabos pareciam de marfim, tão limpos que estavam. 

24.   A paleta deve ser sempre cuidadosamente limpa logo após ser utilizada. O tom escuro que geralmente ela possui, por ser feita de madeira apropriada, é o melhor para se ver o tom que sobre ela se prepara. 

25.   A colocação das tintas em uma paleta não deve ser a esmo. Elas representam um teclado de um pequeno piano de sons peculiares a cada uma. Existem as que são fortes, as médias, e as fracas; umas aproximam, outras afastam; umas são frias, outras são quentes. Vejamos. As que se afastam são: os azuis, as lacas, os verdes onde predomina o azul. As que se aproximam são: todas as cores terras, o preto, os vermelhos puros e os amarelos em composição binária, entrando o amarelo em maior quantidade. 

26.   Os pincéis são, muitas vezes, os condutores dos germes que atacam a pintura. Devem, portanto, ser cuidadosamente lavados logo após o trabalho, e não conservados dentro do óleo, para não endurecer. Para lavá-los, o melhor é fazer uso de querosene comum em três vasilhas. Primeiro os pincéis são limpos com um pano para tirar a maior quantidade de tinta, depois lavados na primeira vasilha, em seguida na segunda e, finalmente, na terceira, sacudindo-os bem e deixando-os secar em um vaso na posição vertical. No dia seguinte o querosene terá se evaporado de todo.  

27.   Lavar o pincel com sabão pode deixar no final do cabelo, junto ao metal, um pequeno depósito de potássio, que se misturará à tinta quando se fizer um novo uso do pincel. O resultado disso se encontra a cada passo em telas novas, onde se anuncia uma mancha amarela. O pelo dos pincéis fica amarelado se lavado com água quente, e eles perdem a desejada resistência. 

28.   Os maiores estragos que tenho verificado em telas por longo tempo esticadas devem-se às tachas de ferro utilizadas para esticá-las. Elas em pouco tempo enferrujam, estragando as margens do trabalho e impossibilitando uma nova tiragem sobre um novo chassi.  As tachas de zinco ou, melhor ainda, as de cobre, são as melhores, não oferecendo inconveniente algum e tendo sido empregadas há longo tempo. 

29.   Parecerão exageradas as minhas observações quanto à durabilidade das pinturas, mas não o são. Uma obra de arte é uma joia, muitas vezes de inestimável valor. Além do seu valor artístico, há ainda a levar em conta o seu valor material. Conheço dezenas de quadros de pequenas dimensões que custaram centenas de contos. Ora, empregar numa obra de arte material que concorra para a sua destruição é o mesmo que fabricar uma joia de caprichoso e fino valor artístico em ouro falso ou em qualquer metal comum dourado. Mesmo os estudos não devem ser feitos com material ordinário. Muitas vezes, sem o artista pensar, executando um estudo, um croqui, ele produz uma obra de valor. Conheço estudos e, principalmente, croquis, que são melhores do que os quadros que eles executaram. Vi uns estudos de mãos, a lápis, de Vitor Meireles, para um dos seus quadros, que se podia, sem receio de inferioridade diante de boa obra de arte, colocá-lo ao lado dos melhores desenhos dos mais célebres artistas do mundo. Pois bem, essa preciosidade foi executada em um pedaço de papel ordinário de embrulho! De certo, o mestre não pensou que, ao fazê-lo, iria produzir obra de tal valor que hoje ornamenta uma das melhores galerias particulares de um amante de pintura. 

30.   Na maior parte das vezes, o melhor que os artistas produzem fica no ateliê, nas pastas e nas gavetas, executado sem outra preocupação do que a de fazer um apontamento; e, nesse intento, julgam que podem fazê-lo em pedaço de papel do mais ordinário, em madeira grosseira e até em fragmentos de vidro de vidrico, como uma bela cabeça que tenho, feita por um dos meus distintos colegas, sempre  receoso que venha a quebrar-se. Há sempre nesses trabalhos preliminares uma grande espontaneidade. Nas linhas procuradas a esmo pelo lápis, fusain ou pincel, e na repetição de linhas, imprimem um movimento que jamais se repete nas obras definitivas. Nunca pude, empregados que foram todos os esforços, dar a um trabalho meu executado com grande atenção, a espontaneidade, o movimento, a beleza da linha, a sugestiva concepção do croqui que fiz para este trabalho. O público, porém, não vê nesses trabalhos senão uma coisa inacabada, imperfeita. E, para ele, tudo quanto uma pintura pode dizer está dentro da moldura que o enquadra. Fora dela, ele não vê nada mais, e é justamente onde há mais o que se ver, sentir... se ele se identifica com o artista. A cúpula de uma árvore que não se vê, sugere um céu infinito ... um quadro nunca deve terminar entre as paralelas da moldura. Uma visão não tem limites ... 

31.    Para se fazer um croqui, nunca se deve limitar o espaço onde se vai executá-lo; deve-se sempre deixar margens. Ao limitar-se o espaço, encarcera-se a imaginação. Entretanto, é muito comum encontrar-se um moço que se encaminha para o “Natural” e que nos diz: “vou fazer um croqui”, e nos mostra um pequeno panaux, cujas dimensões foram escolhidas pelo fabricante! Mesmo que não haja a preocupação de fazer um croqui, e sim um pedaço de “natureza”, é errado pretender executá-lo já tendo as proporções da tela determinadas, sem haver, previamente, observado o pedaço escolhido. Errado é também acreditar que de uma só vez se possa fazer um pedaço de “natureza”, mesmo dos mais insignificantes. Parece, quando estamos a executá-lo, que realmente está sendo reproduzido com extrema exatidão. A razão é simples: é que se está vendo para dentro, onde se encontra nitidamente reproduzido o pedaço da natureza que se está observando. Quando, porém, se chega ao ateliê no dia seguinte, olhando o que se fez percebe-se que, do pedaço da natureza que se quis copiar, nada há no panaux senão uma vaga impressão de sua tonalidade, naquilo que ela tinha de mais violento. Então, para enganar a si mesmo e aos outros, procura-se achar no panaux uma grande largueza e espontaneidade de tons, cujas formas apenas obedecem a uma vaga intuição de se fazer o que se tinha diante dos olhos. Será possível a algum artista copiar uma obra de outro, por mais simples que seja, de uma só vez e em duas horas? Não. Como, pois, copiar, mesmo materialmente, um pedaço de natureza em duas horas e metê-lo dentro de um espaço que não foi determinado previamente pela sua observação?  

32.   O que a experiência me ensinou foi não pintar mais, mesmo um simples estudo, sem previamente ter visto o que se ia pintar. Muitas vezes um pedaço de natureza observado de manhã não impressiona, não dá pintura. Visto, porém, à tarde é cheio de encanto. 

33.   Quando me disponho a pintar paisagem não penso jamais em fazer quadros, penso em fazer os estudos para fazer uma paisagem. Um trecho de natureza, copiado tal qual ela se nos apresenta, não dá jamais “quadro”. O quadro é uma “interpretação”, e não uma cópia. Quem o produz não é a “natureza”, é o artista. Esta auxilia, inspira tão somente. A fotografia reproduz a natureza em todos os seus detalhes, já lhe dá até a cor, mas o que não lhe dará jamais é a alma; ficará sempre no limite das coisas materiais que podem ser produzidas por todo o mundo, uma vez que se pratique. Vou, pois, ao natural apenas munido do meu álbum. Se encontro o que me impressiona, desenho. Logo descubro, assim, as dimensões que deve ter a minha tela, e habituo-me à linha e à cor. 

34.   Desenhando estuda-se mais do que pintando. A pintura nada mais é do que um desenho colorido. Vejo o trabalho depois, em horas diversas, e só após bem observado começo a fazer o estudo. Com ele, e muitas vezes com outros, componho a minha paisagem, interpretando o que vi e o que me lembra o estudo que fiz, que deve ser uma cópia fiel da natureza tendo sempre como auxílio os estudos que fiz.

35.   Não há na “natureza” nada que seja uma obra de arte quando copiado materialmente com máxima precisão. Não se pode enquadrá-la nas mesquinhas dimensões de uma tela. Dela, quando muito, se poderá fazer um insignificante detalhe, e um detalhe pode ser um bom estudo. Jamais um quadro, ou melhor, uma obra de arte. Esta, cria o artista. Em geral, o que se vê nas exposições, qualificados como “quadros”, nada mais são do que “estudos”, fragmentos, mutilações, “pedaços de pintura, bons ou maus” - disse-me um dia Roll. Estes estudos só podem possuir uma boa feitura, uma boa cor, uma extrema fidelidade aceitável nos quadros de natureza morta, onde a verdade é o principal predicado e a única preocupação. Os quadros desse gênero estão condenados a não produzir nenhuma impressão que vá além da admiração pela semelhança dos objetos que lhes constituem o motivo. Realmente, o que pode inspirar a reprodução, embora completa, de objetos materiais? Estes devem ser “estudados”, para mais tarde entrarem como acessórios nas composições de uma obra de arte, jamais para constituírem o único objetivo. Vi as melhores naturezas mortas que se tem pintado. Em geral, o que elas avivaram em mim ante a sua flagrante realidade foi vontade de comer, quando se tratavam de frutos, legumes, lebres e camarões .... Os quadros onde os elementos se constituíam de outros objetos nada me deixava na alma, a não ser um respeito imposto pela probidade e a paciência do artista[4] operário que os executou, porque eu não considero artista o pintor de natureza morta. Este é apenas um bom copista, um operário hábil. Entretanto, é preciso confessar, os trabalhos desse gênero são os preferidos pelo público. A razão é simples: eles estão ao alcance de qualquer inteligência pelo hábito de ver os objetos nele copiados a qualquer momento, desde que abramos os olhos. O mesmo sucede com os “estudos” de paisagens feitos mecanicamente do natural por um bom pintor, mas deficiente artista. Se eles reproduzem lugares conhecidos, então, o êxito monetário é completo, a admiração é sem limite! É natural. Não se aceita, não se admira senão o que se compreende, e a “natureza morta” é compreendida por todos que têm dois olhos na cara e o cérebro em trevas. [5]

36.   Muitas vezes há urgência em se possuir um elemento do natural. Esse elemento, porém, encontra-se em lugar pouco acessível, ou onde não se pode voltar, ou quando se é surpreendido em momento excepcional, cujo efeito não se repetirá pela singularidade da luz que então o ilumina. Então, certo de que não se irá produzir pintura acabada e durável, lança-se mão dos meios de facilitar a execução, não de um “estudo”, mas de uma mancha.[6] É o caso de se usar o verniz de retocar de Vibert. Com ele, dilui-se a tinta a ponto de liquefazê-la como as das aquarelas. Em poucos minutos estas camadas de tinta tão delgadas e transparentes estarão secas. Os tons apresentarão um vigor extraordinário e uma transparência inigualável. Trabalhar, então, sobre este chassi, usando-se, em lugar de verniz de retocar, puro verniz de retocar e óleo essencial de petróleo em partes iguais. A secagem, embora rápida, será mais lenta. Para levar mais adiante o trabalho, se este estiver limpo, retoca-se o mesmo com a tinta já diluída em óleo puro. Observo, porém, que o trabalho assim executado em pouco tempo estará completamente perdido, o que não trará prejuízo porque, destinado a servir como um elemento e já tendo sido aproveitado para a reputação do artista, seu desaparecimento será uma felicidade.

37.   Acharão, talvez, que há um excesso de preocupação em tudo que venho dizendo em relação à solidez do material de uma obra de arte. Não é o caso, entretanto. Não há artista que, ao começar um trabalho, possa, com segurança, determinar seu valor artístico. Este depende de tantas e tantas coisas. Ora, se naufraga o artista na execução de uma produção, o que acontece inúmeras vezes, independentemente de sua vontade, pouco prejuízo se tem nesse trabalho se não foram tomadas todas as precauções para sua durabilidade. Mas, se ao contrário, ele produziu uma verdadeira obra de arte? Esta, pela falta de precaução, não resistirá por longo tempo e, moral e materialmente, o prejuízo será grande e irreparável. Moral, porque ficará a arte privada de uma produção de valor; e material, pelo prejuízo monetário a quem, muitas vezes, não vacilou em pagar grande quantia para possuí-la. Possuo um quadro nessas condições, executado sem precaução para resistir à ação do tempo. É um nu soberbo. Tenho feito de tudo para salvá-lo, mas inúteis têm sido meus esforços. Aos poucos vai se desfazendo a preciosa pintura, pulverizando-se, enegrecendo-se.

38.   Nem todas as precauções a que me refiro dependem dos recursos monetários de que possa dispor o artista. Que não se tome as que estão sujeitas a estes recursos, já que não é possível de outro modo. Mas, pelo menos, para atenuar, tome-se aquelas que dependam apenas de um pouco de cuidado e consciência.

39.   A conservação de uma pintura depende, é claro, da qualidade das tintas. Estas eram muito superiores quando preparadas pelos próprios artistas, que as moíam em seus próprios ateliês, as reduziam a massas usando apenas o óleo de cravo, o âmbar e o óleo de noz. Era um trabalho destinado aos discípulos, que, assim, iam aprendendo a preparar suas tintas. Não eram, depois de preparadas, conservadas em latas, como hoje. Com um pedaço de tripa, previamente umedecida, formava-se uma espécie de saco pequeno que se fechava completamente depois de cheio de tinta. Esses saquinhos eram conservados dentro de um recipiente cheio de água. Quando o artista fazia sua paleta, com um estilete fazia um pequeno orifício no saquinho e espremia a tinta sobre a paleta, tornando a depositar o saquinho dentro d’água, a fim de impedir que o resto da tinta secasse.

40.   Os tons eram muito reduzidos, e nisso havia a vantagem de não se abusar fazendo uso de muitas tintas para se obter o tom. Raramente um tom deixava de ser binário, não incluindo o branco, que era fabricado com chumbo e que hoje se denomina branco de zinco ou de prata. Procurou-se dar maior facilidade à execução de um quadro e ampliou-se o número de tons, estes geralmente obtidos com a mistura de diversas tintas. Ora, mesmo assim, mesmo tal como eram, não podiam ser aplicados, sendo necessário misturar esta mistura com outra. Resultado: a mistura de tintas nocivas umas às outras.

41.   Há dois azuis que, sendo legítimos, são de grande resistência: o cobalto e o ultramar. Acharam que havia necessidade de um mais forte, então se fabricou o azul da Prússia. Esta tinta de grande beleza foi o elemento mais destruidor que se tem podido dar à pintura, pior do que o betume tão usado antigamente. O azul da Prússia enegrece completamente, torna-se um preto opaco e negroso. O exemplo disso está no belo quadro de Almeida Júnior - os caipiras negaceando - cujo fundo está completamente preto. E eu o vi em um verde belíssimo, aquele que se obtém com o azul da Prússia e amarelo cádmio claro ou escuro. Nas paisagens de Grimm este azul enegreceu tudo, mesmo empregado com parcimônia para atenuar a vibração do terrível verde Veronese, o verde mais belo que existe. Vê-se, então, que não é sem razão que insisto no extremo cuidado e preocupação no material empregado e na maneira de empregá-lo. A arte brasileira perdeu, por falta de cuidado, o melhor trabalho de Almeida Júnior só porque se fez o uso de uma tinta imprópria e ordinária, razão pela qual é de custo inferior. Com um tubo de azul da Prússia faz-se o que não se faz com três de ultramar, e isso tem influído na sua predileção por certos artistas. É preciso partir de um princípio: as tintas sólidas são poucas e, entre elas, a maior parte são as cores terras. Os quadros de Millet conservam-se até hoje tal como foram pintados; e ele preferia os terras...

42.   Acontece muitas vezes, sob a ação inesperada da inspiração, se querer transportar para a tela o que se está sentindo. Nesses momentos, que não são frequentes, infelizmente, é preciso não perder de vista que, passada a visão, ela não voltará jamais. Tem-se que lançar mão de meios mais rápidos para passar para a tela o que se está vendo com os olhos da alma. É o caso de se lançar mão de tudo que permita encher o branco da tela o mais rápido possível; encher de modo que a secagem seja a mais rápida possível, de modo que se possa ir até o fim sem ser impedido pela tinta úmida, embora sacrificando a durabilidade do croqui. Acontece que, por mais hábil que seja o pintor, entre uma pincelada e outra fica aparecendo a tela. Não se deve deixar para depois o trabalho de tapar estas pequenas falhas. Logo que se tenha segura a visão já transportada para tela, com extremo cuidado e com um pincel pequeno bem embebido em óleo vai-se fazendo-as desaparecer, tendo o cuidado de não passar de um tom para outro sem antes limpar o pincel, molhando-o primeiro em qualquer essência que o livre da tinta. Se esse trabalho é deixado para depois, isso jamais será feito sem modificar, ainda que sem o propósito, a tonalidade. Deve-se fazer desaparecer as rachas, porque os tons que estão na tela não obedeceram a uma composição determinada, mas sim ao sentimento do artista, num momento fugaz da inspiração.

43.   Há muita gente que acredita que ser um bom paisagista é mais fácil do que ser um regular pintor de figura. É errada essa suposição. Há centenas de pintores célebres de figuras. Paisagistas, no mundo inteiro, não há mais de uma centena. Não me refiro ao pintor fotógrafo da paisagem; estes existem em quantidade. Refiro-me ao intrépido, àquele que, numa síntese perfeita, cria uma nova natureza que vagamente lembra a real, mas que tem alma, que exprime todos os sentimentos humanos. A árvore deixa de ser um conjunto de troncos, de galhos, de folhas, para, por si só, conter tudo o que constitui o ambiente em que ela está. Esta denuncia o país onde nasceu, o momento sob cujo aspecto foi vista pelo artista, a estação, a sua idade, a sua origem, até a atmosfera que a envolve. A árvore tem o seu esqueleto, seus músculos, a sua anatomia perfeitamente determinada. Com uma árvore pode-se exprimir a alegria, a dor, a velhice, a mocidade, a florescência, a decadência, a saudade, a nostalgia. Vi uma árvore brasileira numa estufa na Inglaterra. Ela era triste, anêmica a cor de suas folhas, enfraquecidos os seus galhos; parecia-me que ela tinha saudade do Brasil. Atribuir, porém, esses sentimentos a uma árvore, ou mesmo a uma floresta, é uma dificuldade quase invencível. Já não acontece o mesmo com a figura; nela a expressão é determinada pelo movimento. Além disso, o desenho da figura humana é sempre o mesmo. Um nariz, um braço, uma mão, um pé, são sempre um nariz, um braço, uma mão, um pé, com insignificantes diferenças. Na paisagem não há duas árvores iguais; o desenho de uma é completamente diferente do da outra. É sempre novo para o artista. Num quadro de paisagem há sempre dois quadros, o que está no plano horizontal e o que está no plano vertical. E o mais difícil de obter, aquilo do qual depende a expressão, é justamente o que se modifica na natureza de momento a momento - o céu. Na figura tudo se repete, na paisagem jamais.[7] A luz varia de um momento para o outro, e com ela, o efeito. A linha geral de um contorno externo não será amanhã o que é hoje. O ambiente sofre da mesma variação. O desenho de uma árvore determinando seu caráter é mais difícil do que o do corpo humano, cujas proporções estão determinadas desde que se pegou um lápis para desenhar; e do rigor das proporções depende a correção. Para se desenhar bem uma árvore, é preciso resolver sua construção... A base dessa construção é o esqueleto da árvore, formado por seu tronco e galhos. Se esse esqueleto é mal construído, acontecerá o que é frequente em quem não é um atento observador. Se o troco e os galhos não correspondem ao volume e ao peso da folhagem, se produzirá uma coisa impossível.

44.   O que se obtém por acaso em uma obra de arte não tem valor algum. Muitas vezes o pintor sacrifica o artista e, nesse caso, o que produz, quando muito, pode ser um bom pedaço de pintura, jamais uma obra de arte. A feitura de uma pintura não constitui uma originalidade; esta não se encontra na execução, e sim no sentimento. Ao procurar, por imitação, uma feitura, ou deturpá-la, infalivelmente prejudicará a expressão.

45.   A feitura empregada para se obter a pele na sua infinidade de nuances não pode ser a mesma quando se pinta uma pedra. A folhagem de uma árvore não pode ter a mesma feitura do tronco; é preciso que cada objeto tenha o seu caráter. Subordinando tudo a uma só feitura, este caráter não será obtido.

46.   A execução de uma pintura, de uma escultura, deve ser espontânea, e não procurada.

47.   A luz não se obtém pela violência do contraste, e sim pelo rigor nos tons luminosos e nas transparências das sombras. Essa transparência é produzida pelos reflexos. Quanto menos sombra contém uma pintura, maior é a sua luminosidade. Conseguir, porém, o vigor nos tons luminosos, sem contrastes [...] com a sombra, é dificílimo. A harmonização[8] entre tons antagônicos não produz luz, e sim dureza. Essa dureza produz fatalmente a positivação do contorno externo, e este não existe. Os objetos destacam-se uns dos outros, não pela linha, mas pelo tom. A linha desaparece, recebendo, o objeto, o tom do ambiente. Seja qual for o objeto, se este for brilhante, liso ou polido, nele dominará sempre mais o tom do ambiente do que o tom local. Nada mais difícil do que fazer escuro com cor.

48.   Tantas são as vantagens de uma viagem à Europa, quantos são enormes os prejuízos que ela pode acarretar ao artista. Essas viagens devem ter exclusivamente duas preocupações: a de conhecer as evoluções pelas quais tem passado a arte universal, e a de encontrar os elementos materiais de que lá se pode dispor. É claro que me refiro ao artista que vai para lá depois de ter recebido aqui os ensinamentos necessários para caminhar sozinho. É um erro chegar aos grandes centros de arte e sacrificar a individualidade para seguir as pegadas de um artista ou de uma escola que goza de um sucesso momentâneo. Direi mais, é um aviltamento. É confessar que os anos que passou a se preparar obedeceram a uma orientação errada, e que, seguindo-a durante tanto tempo, classifica-se a si mesmo de um imbecil. Só há um meio de ser um artista. É ser sincero, e pronto.

49.   Quem mente não consegue convencer, e quem pinta pelos olhos de outro está mentindo. Permaneci vinte anos nos centros de artes os mais desenvolvidos, convivendo muitas vezes com verdadeiras celebridades. Assim fiz, porém jamais para alcançar sucesso igual ao deles. Não os imitei em coisa alguma; sempre me deixei guiar por mim mesmo. Nunca consenti que artista algum empunhasse os meus pincéis para corrigir-me, e tal foi a maneira pela qual procedi que não passei pelo desgosto de repelir tal afronta. Jamais me deixei acusar sem repelir imediatamente, porque sempre depositei em mim a mais absoluta confiança. Quando, o que se dá frequentemente na vida dos artistas, errava, corrigia a mim mesmo. E para não me sentir humilhado, ia aos museus ver os erros dos maiores mestres, e nunca deixei de encontrá-los, alguns até inadmissíveis em um artista feito. Se erravam, como eu poderia aceitá-los como mestres? Dou às minhas produções tudo quanto posso. E mais elas não poderão ter por insinuações alheias.

50.   Um dia, um mestre francês começou a me dar conselhos sem eu os ter pedido. Tive que aceitá-los. Ele estava no meu ateliê... Dias depois, em uma mostra de quadros vi um trabalho do tal mestre e, na presença de todos, pus-me a analisar o trabalho e acabei classificando-o de................... Nunca mais me deu conselhos. Outro, e este era mesmo um grande mestre, vendo os meus quadros no meu ateliê, só tinha esta frase: “Pas mal, pas mal. Perdi as estribeiras, amolado com o tal “pas mal, pas mal, e gritei-lhe, quase a tocar-lhe o nariz com o meu: “Pas mal, pas mal, não! Você não faz melhor do que está vendo!” Tantas vezes estivemos juntos! Jamais disse, vendo um trabalho meu, “pas mal, e sim “trés bien.” E assim procedendo, pude conservar o que mais prezo - a minha individualidade - e poder sempre repetir a célebre frase: “É mau, mas é meu ... e há muita gente que só produz bem, mas que não pode dizer o mesmo”. Um dia, perguntou-me um colega, vendo um quadro meu no Salão:

- Quem foi seu mestre?

- Fui eu mesmo.

- Em que academia aprendeu?

- Na natureza do meu país.

- E fez-se assim artista?

- Naturalmente, pois se eu nasci artista.[9] Fizeram ou me fiz. Se me julga um artista, é porque eu nasci artista.

51.   A aquarela, o guache, seja qual for o elemento empregado para colorir, nenhuma dificuldade apresenta a quem pinta a óleo. Pelo contrário. De todas as pinturas, esta é a mais difícil e que menos vantagem apresenta para a execução. É um engano acreditar que a pintura a óleo se mantém inalterável por mais tempo do que as outras. A pintura a pastel dura séculos. Eu as vi no mais perfeito estado, o que nunca vi com a pintura a óleo.

52.   O trabalho constante e o tempo me ensinaram a não forçar jamais uma pintura a óleo a secar rapidamente, empregando para isso seja qual for o secativo. Todos os secativos são nocivos, mesmo os de Vibert, tão empregados e cujo autor aconselha o seu constante emprego. Misturados com a tinta, eles liquefazem o óleo, tornando a pintura rapidamente petrificada, condenando-a a estalar-se hoje ou amanhã. O verniz empregado para retirar o rechupado da pintura, geralmente conhecido como verniz para retocar, tem o grande inconveniente de separar as camadas sobrepostas da pintura, aplicadas separadamente e em diversos momentos. Sem inconveniente, obtém-se o desaparecimento do rechupado com um pouco de óleo de linhaça dissolvido em uma terça parte de essência de terebintina (purificada e rigorosamente pura).

53.   Jamais passei pelo desgosto de verificar um trabalho meu alterado ou rachado, ou com a pintura solta da base aplicada à tela. Se alguma vez isso se deu, foi devido à base dada na tela que se deslocou do tecido. Uma das causas mais frequentes, originando a perda de um trabalho, é a má lavagem dos pincéis, que geralmente se faz rapidamente com sabão comum. Na alma do pincel, por mais lavado que seja, ficam sempre resíduos da potassa do sabão. Para evitar isto bastará, depois de limpos os pincéis, lavá-los de novo em querosene enxugando-os bem depois com um pano limpo. Além de evitar o inconveniente acima indicado, isso concorrerá para a conservação dos pincéis.

54.   Se devemos ser honestos e cautelosos quanto à execução dos nossos trabalhos, devemos sê-lo mais ainda, a rigor, quanto à concepção. Todo cuidado é pouco, pois, em pintura, nada mais fácil do que plagiar sem querer. Nunca se deve, em caso algum, inspirar-se em obra alheia, mesmo que seja de um gênio. De nada servirá uma desonesta inspiração se calcada em obra de outro. Pelo contrário, faltará nela o principal, a individualidade, quer na concepção, quer na execução. Dentro de uma obra de arte só devemos encontrar exclusivamente o seu autor, liberto completamente de preceitos de arte, de imposições de escolas, da ânsia de originalidade. Esta só existe quando representa o sentir individual do artista. Munido dos indispensáveis meios de execução é preciso caminhar livremente, alienado completamente do que fazem os outros. Não deve haver, jamais, a preocupação desta ou daquela maneira de execução. Deve-se deixar que o que se está executando seja espontâneo. Com isso, se obterá a simplicidade, a clareza, e se será compreendido facilmente.

55.    Há artistas e artistas. Uns são criadores, outros máquinas, boas ou más, mas sempre máquinas. Destes estão repletos os grandes museus da Europa, onde passam a vida a copiar mecanicamente, embora com uma perfeição às vezes tão pasmosa que não se distingue a cópia do original. No fim de uma longa existência de trabalho apurado, desaparecem sem deixar vestígios. A par destes que ainda são honestos, pois não ocultam a origem dos seus trabalhos, há os que produzem aproveitando sabiamente o que outros produziram. Tiram de um, um pouco, de outro, outro pouco, e apresentam como coisa sua. E como no que fazem não há unidade, não há perfeição, não há expressão, não há sinceridade, classificam suas produções como filiadas a uma orientação moderna, as quais primam pela falta de correção devido à deficiência do autor que desenhou mal porque copiou o que não viu, posto que quem viu foi o outro. Em geral essas produções são confusas. É preciso um longo trabalho para saber o que elas querem dizer, pois constituem um conjunto formado por diversas outras produções.[10]

56.    Muitas vezes se é traído pela reminiscência, por uma vaga lembrança do que se viu, quando ou onde não se sabe ao certo. Naturalmente, estando entregue ao trabalho de uma composição, involuntariamente, sem perceber, embora vagamente, se aproxima do que se viu um dia. Desprevenido pela honestidade intransigente, individual, não se percebe esse plágio involuntário. Mais tarde, se é acusado de tê-lo propositadamente feito e verifica-se, então, que não é sem razão, embora sem culpa. Comigo se deram dois fatos, embora, a rigor, não igual ao que cito acima. A guerra de 1914 estava no auge. Quis sobre ela fazer qualquer coisa onde ficasse a minha afeição pela França. Havia no ateliê uma grande tela em branco sobre o cavalete, e era propício o momento. Rapidamente compus um episódio a fusain. Tratava-se de uma trincheira juncada de cadáveres. Um único soldado, impávido, estrugia as últimas munições. Debruçado sobre a borda da trincheira, disparava sua arma sem parar. Depois de horas o trabalho de marcar a fusain estava feito, mas não me agradava em absoluto. Saí à procura dos costumes e dos modelos que, no dia seguinte, me eram indispensáveis para um croqui definitivo. Passando por um vendedor de jornais vi a ilustração do dia. Comprei-a. Exatamente o que eu tinha feito a fusain encontrei na página central da ilustração. Ao chegar em casa, confrontei-a com o meu trabalho. Não podiam ser mais semelhantes. “Cheguei tarde”, disse comigo, enquanto, sem vacilação, com um espanador destruía integralmente meu croqui. O mesmo deu-se com uma paisagem. Não seria coisa idêntica o que se deu com Gaspar Puga Garcia que, esmagado pelas acusações feitas por um leviano jornalista, só achou remédio enforcando-se? O meio mais eficaz para não plagiar, voluntariamente ou involuntariamente, é fazer o que se sente e nunca procurar ver como os outros fizeram ou viram ...


[1] No original segue-se o seguinte trecho, riscado com um traço contínuo: “e durabilidade, e impede o rechupado. Pode servir isto”.

[2] No original, segue-se o seguinte trecho, riscado com um traço contínuo: “mistura com um pouco de óleo de petróleo do mesmo [...]”.

[3] Seguimos aqui a grafia das palavras estrangeiras empregadas pelo autor para designar as marcas que utilizava.

[4] A palavra “artista” encontra-se riscada no original.

[5] No original, segue-se o seguinte trecho, riscado com lápis: Um dia, em meu ateliê em Paris, encontrava-se um “estudo” de “natureza morta”. Representava umas belíssimas berinjelas. A milionária, que era proprietária do ateliê, vendo o estudo ficou fascinada. “Ai, dá vontade de comer”, disse ela. “Pois, minha senhora, nada mais fácil. Aqui ao lado há um quitandeiro, onde as encontra em grande quantidade e maduras”. “Vou comprar algumas; vai ser meu prato do dia”. E aquela criatura não viu dezenas de telas que estavam encostadas sobre a parede. Só viu as berinjelas.

[6] Antônio Parreiras escreve aqui uma observação, abrindo parênteses para o termo “mancha”, como sendo o trabalho onde predomina quase que unicamente a cor; há apenas a preocupação da cor, a par da ausência completa de detalhes. O trecho “predomina quase que unicamente a cor” encontra-se riscado no original.

[7] Esta é a ideia transmitida por Antônio Parreiras aqui, embora o texto nesta parte do original encontre-se confuso e com partes riscadas com traços.

[8] Antônio Parreiras utiliza, no original, a palavra raporte, cujo significado pretendido supomos ser harmonização, combinação harmoniosa.

[9] Esta frase encontra-se riscada com um traço, no original.

[10] Segue-se, no original, trecho de nove linhas, manuscritas e riscadas pelo autor: “Imaginemos um indivíduo a fazer uma preleção sobre qualquer assunto, empregando, para exprimir-se, não o que ele sente, mas o que sentiram os outros e, recebendo as diversas opiniões, quer ser compreendido. Ninguém o compreenderá.”.