O Brasil nos arredores de Viena *

Vera Lins

LINS, Vera. O Brasil nos arredores de Viena. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 3, jul./set. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/vl_viena.htm>.

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Uma forma, uma figura, talvez sirvam para pôr problemas, nunca para trazer conclusões.

Merleau-Ponty

A uma hora de trem de Viena, na pequena cidade de Krems, na sua Kunsthalle, esteve em curso, de setembro de 2007 a fevereiro de 2008, uma exposição sobre arte brasileira. Com o título “Da Áustria ao Novo Mundo”, ela cobria o século XIX até o início do século XX; de Thomas Ender, o pintor, e o naturalista Natterer, que vieram com a Princesa Leopoldina, e outros viajantes, aos pintores brasileiros, como Rodolfo Amoedo e Belmiro de Almeida, ou europeus, que viveram no Brasil, e incluía o fotógrafo Marc Ferrez, marcando a irrupção do moderno com a nova técnica e a urbanização. Este acervo levado à Áustria é difícil de ser visto reunido no Brasil, como o material de Natterer, que está guardado em Viena, com várias caixas até hoje não abertas. Por isso o que se compôs nessas salas de Krems é um conjunto que propicia a reflexão.

O quadro Iracema (1884) [Figura 1], de José Maria de Medeiros, se via em cartazes nas ruas de Viena, anunciando a exposição. O foco era a formação do povo brasileiro, apreendida nas telas de Almeida Junior, e vários outros. Embora um crítico alemão fale na introdução do catálogo da qualidade das pinturas, me parece que a intenção aqui ultrapassava as discussões sobre academicismo ou não, o que marca a leitura habitual do oitocentos pictórico brasileiro, e se centrava numa visão mais histórica e antropológica. Uma escolha inteligente trouxe vários retratos e paisagens, cenas de interior e de rua, e uma pintura histórica - uma outra missa, pintada por Pedro Peres, diferente da que ficou emblemática, a de Vítor Meireles, de 1860. Nessa, pintada depois, em 1879, se apresenta a cruz ainda sendo plantada e a missa ao fundo [Figura 2]. A cena não tem o ordenamento da primeira: os índios se espantam, discutem, enquanto um padre, prenunciando os catequistas, põe um rosário no pescoço de um índio.

Os índios, os escravos negros, o branco bandeirante e o trabalhador rural se viam em quadros que vieram da Pinacoteca de São Paulo, do Museu Nacional de Belas Artes e da coleção Sérgio Fadel, dando uma perspectiva antropológica a quase um século de pintura. Uma série de quadros do pintor gaúcho Pedro Weingärtner trazia a imigração como um componente a mais nessa composição, com Festa do colonos alemães de Nova Hamburgo, de 1892.

Nomes menos conhecidos estavam presentes. Abigail de Andrade tem lugar com uma cena urbana de 1889 [Figura 3], em que aparece um vendedor de pão com crianças em volta, junto a um sobrado com bananeiras no jardim. Pedro Peres fala das relações sociais com um quadro instigante Fascinação (1902) [Figura 4], em que uma menina negra olha fascinada uma boneca toda enfeitada, possivelmente da filha dos brancos donos da casa e talvez ex- proprietários de seus pais. Com o quadro Favela (s/d), Gustavo Dall’ara, que conhecemos das cenas das ruas do centro do Rio, pinta um barracão do morro, com o mato a que davam o nome de favela. Nosso presente está aí antecipado.

A família nuclear, que nasce com a intenção política de criar um estado-nação moderno e faz uso da ordem médica para se estabilizar, aparece nos quadros de cenas familiares como em Almeida Junior e Modesto Brocos. Também a noção de intimidade, que vai surgir no final do XIX, possibilitando estudarem-se as emoções, está presente no quadro de Belmiro de Almeida, Más notícias, de 1895, em que a mulher olha atônita para fora da tela com uma carta amarfanhada nas mãos. Eugênio Latour e Chambelland estão presentes também com cenas de intimidade: no primeiro, um conflito em família e no segundo, um pintor pensativo nos olha do quadro. Um tríptico estranho, de Weingärtner, discute a situação da mulher.

As fotos de Marc Ferrez, que marcam a modernização com as estações de trens e as avenidas, trazem também um cotidiano que ainda está presente. Os vendedores de jornais agora estão nos sinais de trânsito, os vendedores ambulantes proliferam e as mulheres negras não carregam mais os filhos nas costas em panos, mas os trazem no colo ou enganchados na cintura, ao pedirem esmolas.

Os textos do catálogo fazem um breve relato do que produziram os viajantes, incluindo Debret e Rugendas, além de Ender. Natterer, o naturalista austríaco, ficou dezoito anos no Brasil, recolhendo plantas e espécimes animais. Alguns desses, empalhados, ficaram numa das salas, junto com o artesanato indígena que ele também recolheu. Fragmentos de seu diário foram expostos nas paredes das salas, revelando o olhar estrangeiro que estranhava o que via e tentava compreender, a partir de seus parâmetros europeus. No meio de uma das salas estavam instrumentos de ferro, usados para prender os negros - a violência é exposta. Não se ocultou a barbárie da civilização que se estava querendo transplantar para o trópico.

São três textos que compõem o catálogo, dois de curadores austríacos, e o terceiro, de Valéria Piccoli, que apresenta criticamente a produção brasileira do século XIX, desde os viajantes, encantados com a natureza, que se torna o tema principal do projeto de nacionalidade que toma forma com Manuel de Araújo Porto Alegre. Entre os viajantes, faz a diferença entre Ender e Chamberlain, que pintavam paisagens e cenas distanciadas, e Rugendas e Debret que, ao contrário, apresentavam a escravidão mais de perto e sem a ordenação neoclássica. Ressalta a idealização do índio, que deixava de fora o negro na formação do povo brasileiro e vê o mito do embranquecimento no quadro de Modesto Brocos, A redenção de Cam, de 1895 [Figura 5]. Chega a Belmiro de Almeida e Rodolfo Amoedo como experimentadores que apoiavam os pintores que divergiam do estilo bombástico da Academia.

O primeiro texto, de Christa Riedl-Dorn, conta a história da expedição austríaca, mandada pelo imperador Francisco I, com o apoio de Metternich, que incluiu os bávaros Spix e Martius e que partiu de Trieste, em 1817, em duas fragatas, acompanhando os navios portugueses que levavam a princesa. A expedição contou com vários cientistas e artistas, chefiados por Johann Christian Mikan. Além de Thomas Ender, veio o pintor de plantas Johann Buchberger. Com a enorme coleção de exemplares de plantas, minerais e animais que levaram de volta, foi fundado em 1821 um museu brasileiro, o Brasilianeum, em Viena, com 13 salas, que, no entanto, foi fechado em 1836. Essa coleção se encontra hoje no Museu de História Natural de Viena e o que levaram de artesanato indígena está no Museu do Folclore. Em 1932, um dos integrantes da expedição, Pohl publicou uma Viagem ao interior do Brasil, em dois volumes.

O segundo ensaio, de Claudia Augustat, fala dos índios e das imagens idealizadas dos artistas europeus, fascinados com a natureza. Comenta a pintura do francês François Auguste Biard, que transforma a floresta numa catedral, em que os índios adoram o sol (Índios da Amazônia em adoração ao sol, 1860), mostrando o quadro como uma visão entre sonho e realidade, pois os rituais dos índios se dão nas aldeias e não na floresta. Fala do extermínio que sofreu a população indígena e comenta o quadro de Amoedo, O último Tamoio (1883) [Figura 6], como imagem que apresenta essa destruição.

Das 128 páginas que compõem o catálogo em capa dura com a imagem de Iracema (do quadro de José Maria de Medeiros) na frente e duas fotos de Marc Ferrez, uma vista do Rio de Janeiro, a enseada de Botafogo, e outra de São Paulo, a Estação da Luz, na parte interna da capa e contra-capa, quase cem páginas são de reproduções dos trabalhos expostos. O editor é o diretor da Kunsthalle Krems, Tayfun Belgin e a curadoria da exposição foi realizada por um grupo, do qual, entre austríacos e brasileiros, fazem parte Carlos Martins, Valéria Piccoli, Mônica e Pedro Xexéo.

O interessante na exposição é este mergulho no século XIX e na virada do século, que possibilita entender o presente. A trama que se tece com a escravidão, a violência ao índio, a imigração e um projeto de estado-nação moderno, é apresentada ali onde nos marcou: nossa modernidade se abre com essas manchas e marcas que a exposição aponta.

Num sábado de setembro, à tarde, o prédio estava cheio com pessoas que se movimentavam, iam e voltavam, comentando o que viam. Nos dois andares da mostra, uma aula sobre a formação da cultura brasileira se desdobrava, possibilitando apreender a atualidade, porque se articulou a partir da experiência do presente e de um pensamento que apresentou menos o exotismo e mais os conflitos e tensões.

Brasilien

Von Österreich zur Neuen Welt

Editado por Tayfun Belgin

Kunstalle Krems, 2007


* Texto originalmente publicado na Revista Escritos, número 2 do Centro de Pesquisa da Casa de Rui Barbosa, ano 2, número 2/2008.