Considerações sobre a relação entre João Zeferino Da Costa e a
tradição italiana: As Virtudes Marianas da Igreja de Nossa Senhora da
Candelária no Rio de Janeiro *
Reginaldo
da Rocha Leite
LEITE, Reginaldo da Rocha. Considerações sobre
a relação entre João Zeferino Da Costa e a tradição italiana: As Virtudes
Marianas da Igreja de Nossa Senhora da Candelária no Rio de Janeiro. 19&20, Rio de Janeiro, v.
XVI, n. 2, jul.-dez. 2021. https://doi.org/10.52913/19e20.xvi2.04
* * *
Diante do problema e dos indícios
motivadores da pesquisa
1. Ao nos
depararmos com as telas marianas da igreja de Nossa Senhora da Candelária no
Rio de Janeiro, uma dúvida salta à mente: por que João
Zeferino da Costa (1840-1915) ao ser contratado pela Irmandade do
Santíssimo Sacramento da Candelária, em 1879, elabora e executa suas obras em
Roma? A pergunta pode parecer ingênua. No entanto, acreditamos que tal
atitude do artista está ligada aos princípios de sua formação acadêmica.
2. Este
artigo pretende tecer breves considerações sobre a relação de Zeferino da Costa
com a Tradição Italiana, dos séculos XVI e XVII, para entender o discurso
visual das obras de cunho mariano pintadas para a igreja da Candelária. Acreditamos
que a experiência do pensionato do aluno de Pintura Histórica em Roma, seja o
pontapé inicial e que, mais tarde, com a encomenda das obras da igreja da
Candelária, a relevância da contribuição artística italiana se torne mais
evidente. Tal contribuição se dá na assimilação do Ut Pictura Poesis
e de códigos compositivos dos grandes mestres das Escolas Artísticas de
Florença, Roma e Veneza - Michelangelo (1475-1564), Rafael (1483-1520) e
Ticiano (1488-1576).
3. A
motivação para esta pesquisa advém, primordialmente, de nosso interesse pelo
estudo da formação do artista brasileiro durante o século XIX e pelo diálogo
com a pintura de temática religiosa acadêmica, duramente criticada ao longo de
décadas ou apenas citada em esparsos parágrafos como coadjuvante no âmbito da
Pintura Histórica. Trata-se de constatação que toma vulto a partir da
crítica de arte oitocentista e da historiografia da arte brasileira referente
ao mesmo período.
4. Em
trabalhos escritos no final do século XX e no início do atual, o reconhecimento
da proeminência da pintura produzida durante o século XIX é observado. Com esse
resgate, outros apontamentos são formulados seguindo caminhos distintos das
críticas positivista e evolucionista articuladas no final do
Oitocentos. Contudo, a pintura de temática religiosa, apesar de relevante
no âmbito da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) e bastante produzida
durante o século XIX, mantém-se à margem das pesquisas executadas durante a
atual revisão historiográfica. Essa verificação nos levou a mergulhar no
assunto em diferentes níveis acadêmicos - Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado -
proporcionando assim, maior segurança em relação ao tema e à construção de um
arcabouço teórico/visual.
5. Outro
ponto que nos conduz ao tema da pesquisa é a carência de estudos sobre a
produção mariana de João Zeferino da Costa. Luciano Migliaccio cita a
aproximação das telas da Candelária com obras de pintores do barroco romano.
6.
Vemos como Zeferino havia estudado a
composição das grandes obras do barroco romano, Domenichino e Lanfranco, e a
pintura mural da Roma do século XIX: os ciclos de San Paolo fuori le Mura e as
pinturas do Vaticano. Nas cenas, de uma religiosidade coral, o esmero na
documentação dos trajes une-se a um conhecimento invulgar dos recursos da
perspectiva. (MIGLIACCIO, 2002, p.148)
7. Em seu
escrito, Migliaccio refere-se aos seis painéis pintados por Zeferino e
localizados no soffitto da nave. As telas contam o processo da
construção da antiga igreja e, também, da atual como ex-voto. O pesquisador
não estuda as pinturas da iconografia mariana do templo, concentrando seu olhar
na relação das telas da nave - de contexto não religioso - com a Tradição
Italiana, ao elencar os mestres da pintura romana como referenciais.
8. Verificamos,
ainda, que há publicações que se detém no olhar patrimonial sobre nossos casos
de estudo. Arnaldo Machado (2017) e José Victorino de Souza (1998)
descrevem a história da igreja de Nossa Senhora da Candelária, apresentam a
arquitetura do edifício - valorizando o interior neoclássico em detrimento à
fachada pombalina - e citam a relevância dos trabalhos de Zeferino da Costa.
Porém, não equacionam o embate com as obras.
Indicadores
da relação entre João Zeferino da Costa e a Tradição Italiana em sua formação
acadêmica
9. João
Zeferino da Costa, aluno do curso de Pintura Histórica da AIBA, busca
aperfeiçoamento em Roma após ser premiado, em 1868, com o Prêmio de Viagem à
Europa e desembarca em solo estrangeiro no ano seguinte.[1]
Em Roma, matricula-se na Academia de São Lucas e tem como orientador o pintor
Cesare Marianni (1826-1901), bastante significativo durante o período de
estudos do brasileiro na Itália ao cobrar dele, não só maior dedicação ao
desenho, mas o apego aos clássicos.
10.
3ª Secção. Legação do Brazil nos Estados
Pontifícios, Roma, 12 de outubro de 1869.
11.
Ilmo. Exmo. Snr.
12.
Tenho a honra de levar ao conhecimento de
V. Exa. a carta inclusa, que me dirigiu o Snr. Marianni, professor da Academia
de S. Lucas e mestre do Snr. João Zeferino da Costa, pensionista do Estado, em
que faz ver que conquanto seja o referido Costa dotado de talento e
mostrando grande fervor pela sua arte, se faz, todavia, preciso que ele ainda
se aplique por alguns mezes, isto é, até abril do anno próximo futuro ao
desenho, aos modelos vivos e aos clássicos para aperfeiçoar seus estudos a
fim de poder, então, fazer os trabalhos que tem de enviar ao Brazil. Com
efeito, aquelle Pensionista, segundo o Art.5º das Instruções, é obrigado a
remeter à Academia, no primeiro anno que termina em abril vindouro, os
seguintes estudos, a saber: 8 academias, 1 cópia de painel que lhe for
designado pela mesma Academia e 1 cabeça de expressão.
13.
Reconhecendo ele ser-lhe indispensável
aperfeiçoar-se nesses estudos, declarou-me que não teria dúvida de fazer no
segundo anno os trabalhos também do primeiro, em cumprimento das suas
instruções. Não achando-me autorizado a anuir as observações do
mencionado professor, respondi-lhe que ia transmiti-las a V. Exa. e solicitar
as suas ordens a respeito.
14.
Deus Guarde a V. Exa.
15.
Ao Exmo. Snr. Conselheiro Paulino José
Soares de Souza
16.
José Bernardo de Figueiredo. (Arquivo do
Museu D. João VI/EBA/UFRJ, grifo nosso)
17. É fato
que Roma configura-se como principal alvo na especialização dos pensionistas da
antiga Academia, devido a importância do seu acervo artístico e acesso aos
mestres das Escolas Artísticas Italianas. Nas palavras de Félix
Èmile-Taunay (1795-1881), proferida em uma Sessão Pública da Academia em
1842,
19. As
palavras do então diretor da AIBA explicitam um arcabouço da produção artística
italiana por três mestres, que ulteriormente têm suas bases criativas
assimiladas e externadas por outras regiões ou Escolas. A expressão de
Michelangelo, o desenho harmonioso de Rafael e a sábia mistura das cores por
Ticiano são, ainda, considerados por Taunay, reflexos do temperamento de cada
artista, caracterizando dessa forma, o princípio básico para a classificação
das Escolas Florentina, Romana e Veneziana, os elementos não só plásticos como
afetivos. A Escola Florentina assumiria a altivez de Michelangelo; a
Romana teria como alicerce a docilidade e a primazia do belo de Rafael; já a
Veneziana seria identificada pelo vigor cromático de Ticiano.
20. Os
procedimentos metodológicos, como o aprimoramento do desenho e o exímio uso das
cores efetuados pelos artistas citados, constituem a fundamentação visual para
o ensino da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. Segundo
Taunay, a aprendizagem fundamentada na observação, estudo e cópia das obras dos
grandes mestres, conduziria o aluno à familiaridade com as Escolas Artísticas
Italianas, intensificaria o gosto pelas belas formas e ajudaria na resolução de
problemas compositivos. Aos olhos do professor francês, a imitação dos
europeus seria a única ferramenta condutora dos brasileiros a um lugar no mundo
civilizado:
22. Assim
como Taunay, Manuel de Araújo Porto-alegre (1806-1879), outro diretor da
Academia Imperial, também propaga o aprendizado acadêmico a partir das Escolas
Artísticas Europeias. É flagrante a dileção do diretor em relação aos
coloristas - pintores que constituem a Escola Veneziana -, como é verificado em
seu discurso proferido em 6 de dezembro de 1855:
24. É sob
esse cenário, de profunda admiração pela Tradição Italiana, que o aluno de
Pintura Histórica João Zeferino da Costa obtém sua formação artística e
desenvolve suas carreiras como docente e artista acadêmico. Entretanto,
em seu caso, o contato com a Tradição Italiana não se limita ao período de
aluno pensionista em Roma. Já como artista e professor da Academia Imperial,
esse contato mostra-se primordial, pois o pintor equaciona suas pesquisas, visual
e literária, em Roma após receber a encomenda das telas marianas da igreja da
Candelária.
25. Em 29
de setembro de 1878, o procurador da Irmandade do Santíssimo Sacramento da
Candelária, Francisco da Silva Castro, sugere à Mesa Administrativa o nome de
Zeferino da Costa para criação e execução das pinturas da cúpula interna do
zimbório. Em 16 de novembro, uma comissão nomeada para estudar a questão
apresenta o seu parecer: solicita que seja aberta aos artistas uma seleção
pública para apresentação de projetos de telas para a igreja como um todo, e
não de forma fragmentada. Assim, são recebidas seis propostas
orçamentárias de pintores atuantes no Rio de Janeiro, sendo escolhida a de João
Zeferino da Costa, pela quantia de 60:000$. A Mesa Administrativa aprova o
parecer da comissão e autoriza o contrato de pintura da cúpula, capela-mor e
coro, confeccionando a escritura em 10 de maio de 1879.
Breves
considerações sobre o Ut Pictura Poesis e o “sintoma”
26. Por
ser um edifício cristão de culto mariano, a igreja de Nossa Senhora da
Candelária apresenta sua semântica didática cunhada aos moldes antigos. Durante
a vigência do Gótico, é comum encontrarmos em naves de catedrais marianas
alegorias que representam personificações dos Vícios e das Virtudes. De
perfil didático no auxílio da doutrina cristã, retábulos, vitrais, relevos e
esculturas agem como interlocutores entre sacerdote e fiéis. Tais imagens
têm em seu alicerce a teoria horaciana Ut Pictura Poesis - “na pintura
como na poesia” -, pensamento originado na Roma Antiga pelo poeta romano
Horácio (65 a.C.-8 a.C.).
27. A
expressão Ut Pictura Poesis é extraída de um tratado de estética de
Horácio e discutida por teóricos e historiadores da arte ao longo dos séculos,
assim como assimilada e interpretada por artistas em suas obras de cunho
narrativo. O significado da expressão possui grau comparativo entre as
duas linguagens artísticas - poesia e pintura. Da Antiguidade ao
Renascimento, a relação entre pintura e poesia é vista não só sob a ótica
comparativa, mas qualitativa. No entanto, na Escola Veneziana o tema ganha
outro tratamento, sob o viés da analogia, ou seja, pelos pontos nos quais as
duas linguagens artísticas se assemelham. Essa abordagem se difunde pela
Itália, ao conquistar espaço vultoso com o Barroco. É nesse âmbito que situamos
a postura de Zeferino da Costa, por se apropriar do caráter estabelecido na
retórica visual de Ticiano, que chama a atenção para o discurso de suas
alegorias poéticas.[2]
28. É
preciso lembrar que, durante os séculos, filósofos e poetas esmeram-se na
técnica do discurso, oral ou escrito, por meio da retórica. Entendendo tal
conceito como a arte de bem falar ou escrever, com o propósito de convencer ou
persuadir, a retórica também é um recurso largamente utilizado na
pintura. Lembrando que a arte pictórica da tradição ocidental prima pela
narrativa dos grandes temas, os artistas precisam recorrer a uma linguagem que
contribua para o entendimento da cena pelo observador. Esse auxílio
empregado, de forma visualmente narrativa, é a retórica visual, amplamente
estudada por Giulio Carlo Argan. Na visão do historiador da arte
italiano, a pintura não só ascende socialmente com a ênfase dada à retórica,
como também absorve os elementos gramaticais da poesia, capazes de sublimar
sentimentalmente a relação pintura-observador, por meio da qual, resgata-se o Ut
Pictura Poesis.
29. Após
essa digressão, é relevante iluminar dois pontos: entendemos que as telas de
cunho mariano da Candelária se aproximam da retórica visual - de caráter
didático – estabelecida ainda no medievo, como também, da postura de Ticiano ao
valorizar não só o cromatismo, mas a ideia de poesia pintada.
30. É
necessário esclarecer que a entidade contratante, a Irmandade do Santíssimo
Sacramento da Candelária, fragmenta a oficialização da encomenda em dois
contratos distintos. O primeiro documento, datado de 10 de maio de 1879,
estabelece que o artista deverá produzir quatorze telas sob temática mariana;
sendo oito pinturas para a cúpula do transepto, quatro para a capela-mor e,
finalmente, duas para o coro. O segundo documento, assinado pelas partes
em 01 de junho de 1889, estipula que o pintor entregará seis painéis para a
nave que narrem, por meio de representação, a história da construção da igreja.
Zeferino da Costa é encarregado, ainda no segundo contrato, do projeto de
concepção dos vitrais para que os mesmos sejam confeccionados na
Alemanha. O projeto dos vitrais é assinado por Zoão Zeferino da Costa em
1897 e eles são fabricados pelo Real Estabelecimento de Vidraçarias Artísticas,
de F. X. Zettler na Baviera, Alemanha.
31. No
documento de 1879, o qual nos interessa aqui, todas as obras encomendadas são
de temática mariana. No entanto, há uma diferenciação quanto a especificidade
da iconografia a ser abordada. Para a cúpula do transepto seriam pintadas
oito telas com foco nas Virtudes da Virgem Maria, ponto nodal deste
trabalho. As demais, coro e capela-mor, encenariam episódios da vida de
Maria.
32. As
oito telas do transepto em marouflage - técnica francesa difundida
durante o século XIX, que consiste em pintar em óleo sobre tela e aplicar a
obra sobre a superfície do pé direito, plafond ou parede - são: três
Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade); quatro Virtudes Cardeais
(Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança); e ainda, a oitava pintura, a
imagem de Maria [Figura 1].
33. Segundo
Pastoureau e Duchet-Suchaux (1988), as Virtudes Teologais são referentes à
relação com Deus e as Virtudes Cardeais norteiam a conduta na vida. Essa
definição vai ao encontro do propósito ou função da encomenda, já que a
contratante especifica em documento quais Virtudes serão
pintadas. Contudo, a qual função ou propósito nos
referimos? Simplesmente, ao que Giulio Carlo Argan classifica como
retórica visual – o discurso da imagem. No entanto, para entender tal
discurso é necessário executar a leitura visual, não do visível, mas do que
está além do identificável numa interpretação iconográfica. Falamos aqui
do “sintoma,” o indício visual desprezado por identificações de personagens e
seus atributos, conceito trazido por Georges Didi-Huberman.[3]
34. Didi-Huberman
explicita o caráter binário do método de análise iconográfica proposto por
Erwin Panofsky, alicerçado pela dualidade excludente. Segundo o francês,
ao “ler” uma imagem, Panofsky se atém ao significado dos atributos para identificar
as personagens da composição. Essa postura “sintética” - do “isto é” ou
“isto não é” - é vista como limitadora por Didi-Huberman.
35. Entretanto,
Panofsky sinaliza em suas análises, a verificação de elementos constantes que
configuram ou determinam as possibilidades de concepção da imagem, interferindo
diretamente em sua interpretação iconográfica. Com isso, ao examinar a
presença dos “tipos” ideais à representação consolidados pela Tradição,
semelhanças e apropriações de bases criativas são destacadas. Esse é um
ponto conflitante na crítica de Didi-Huberman, pois a visão analítica de
Panofsky não busca somente classificar personagens, mas traçar as tipologias do
documento visual. Nesse caso, os dois historiadores são convergentes, pois
Didi-Huberman parte da ideia que estudar os antigos faz-se necessário em
qualquer período histórico, porque a imagem é “sobrevivente.” Segundo ele,
os objetos visuais transcendem ao seu tempo e carregam consigo a fotografia da
sua época. Assim como o historiador da arte alemão observa os “tipos,” o
estudioso francês dialoga com os “sintomas” e “fantasmas”.
36. Estar
diante da imagem é um exercício desbravador e desafiante. Segundo
Didi-Huberman, o historiador da arte é envolvido pelo “não saber” sobre o
objeto artístico. Um possível “decifra-me ou te devoro.” É esse
estado inquietante, provocante e perseguidor, que conduz o profissional a
produzir um “certo saber” e o seduz a trabalhar numa nova investigação.
Esse encontro entre documento visual e historiador da arte faz emergir os
“sintomas” - e estes desencadeiam as sinapses, para que o profissional da
imagem vá além da identificação de personagens e atributos, e alcance a
atmosfera da retórica visual.
37. No
ambiente acadêmico do Rio de Janeiro, o ensino da arte e a produção visual
oitocentista apresentam o mesmo eixo condutor: a assimilação e apropriação dos
antigos, seja pelas teorias elaboradas e/ou das tipologias visuais
configuradas. A Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro,
detentora do controle oficial da formação e produção artísticas durante o
século XIX, prima por metodologias rígidas alicerçadas na observação e cópia
das obras antigas: moldagens das esculturas da Antiguidade pertencentes aos
museus europeus, modelos planos de referência como gravuras e desenhos, e
estudo das pinturas dos mestres europeus. Com isso, verificamos o
alinhamento entre o pensamento de Didi-Huberman e o escopo artístico do século
XIX no tocante ao estudo dos antigos, porque em ambos a imagem mostra-se
sobrevivente e ultrapassa os limites do seu tempo histórico.
38. Nessa
mesma linha de raciocínio, Gerd Bornheim (1980) entende
que a imitação dos antigos é altamente relevante, pois são
inimitáveis. Aos olhos de Bornheim, a imitação visa não uma reprodução
ingênua das obras, mas um processo que leva o artista acadêmico a entender o
pensamento e a postura dos antigos.
39. Vistas
no contexto da definição de gênero, as pinturas da cúpula do transepto não são,
ao contrário de citações historiográficas, simplesmente personificações de
conceitos abstratos. As Virtudes de Maria são alegorias. Pois uma obra
alegórica se caracteriza por apresentar a personificação acompanhada de
personagem verídico e/ou idealizado. Já para ser considerada uma
personificação, o conceito materializado deve vir não só como protagonista da
obra, mas ser o único elemento dotado de forma humana na composição.
40. As
oito telas em marouflage possuem as mesmas dimensões. Zeferino da
Costa, para adequar as telas ao formato sinuoso da cúpula, recorta cada
composição de maneira diferenciada em suas partes. Cada obra possui as
seguintes larguras: três metros de base, dois metros no centro e um metro na
extremidade superior. Assim, o conjunto iconográfico assume a forma da
cúpula sob perspectiva, facilitando que seu ápice encontre a claraboia de
acesso ao zimbório.
41. Podemos
entender, então, que cada tela em separado tem um perfil de extrema
verticalidade, por conta dos nove metros de comprimento, mas a ideia do artista
é que as oito obras sejam vistas em conjunto circular. Tal efeito é fundamental
para capturar o olhar do fiel/observador, pois o programa compositivo assume a
forma de mandala, dividida em oito ‘gomos’ equivalentes que guiam a absorção da
retórica visual por parte do espectador, facilitando assim, o entendimento do conteúdo
semântico - a mensagem, o caráter poético da imagem, porque pintura é análoga à
poesia. Afinal, não podemos esquecer que tais pinturas têm dupla função
e/ou discurso, o da arte e o da Igreja, pois são concebidas para espaço de
culto mariano e encontram-se lá até hoje.
42. Ao nos
depararmos com as obras, dois pontos se destacam: o tratamento dado à escala da
figura humana e o uso da cor como recurso facilitador da retórica visual. Este
segundo ponto manifesta-se como um dos principais “sintomas” da pesquisa.
43. Zeferino
da Costa se apropria de um método corriqueiro entre pintores europeus de cúpula
e plafond de igrejas em linguagens renascentista, barroca e rococó,
assim como, nas pinturas de forro do período colonial brasileiro, a perspectiva
ilusionista. Não só diversos ângulos de visão do observador são estudados,
como as dimensões dos elementos inseridos na composição. É preciso levar
em consideração a distância matemática entre o olhar do fiel e a
obra. Para resolver esse desafio, Zeferino da Costa aposta na ampliação da
escala das figuras em cerca de duas vezes e meia o tamanho natural e na
distorção da elaboração dos corpos, efeitos criadores de uma aparente clareza
ou uma ilusória noção de realidade para as cenas. Tal postura nos remete
ao processo de construção da figura humana proposto por Michelangelo.
44. Mas o
“sintoma” que nos provoca, desde o início da pesquisa, é o fato de Zeferino da
Costa privilegiar a cor delegando ao desenho e aos atributos iconográficos das
personagens papel secundário. O “sintoma” aqui não é trazido pela
representação, mas mora no simples tecido que envolve cada personagem, como um
manto, e que é o ponto nodal de cada composição.
45. O
pintor agrupa as telas em pares ditados pelo cromatismo: Virtudes vermelhas
(Fortaleza e Justiça), Virtudes Amarelas (Prudência e Temperança) e Virtudes
Verdes (Caridade e Esperança). No entanto, a sétima Virtude (Fé) não é
esquecida, ao contrário, ganha status de protagonista ao fazer par com
Maria.
46. Outro
ponto que nos chama a atenção é o apego às cores complementares como eixo de
relação. O artista liga uma Virtude vermelha “Justiça” a uma verde
“Caridade”, entendendo que vermelho e verde são cores complementares. O
mesmo ocorre entre “Esperança”, verde, e “Fortaleza”, vermelha. As duas
retas se interceptam e formam uma cruz. As Virtudes amarelas “Prudência” e
“Temperança” se cruzam com outra reta, constituída por “Maria” e a “Fé”,
fomentando o surgimento de outra cruz. Virtudes amarelas são complementares ao
arroxeado do manto da “Fé”, ligado aos azul e vermelho de Maria, que somados
alcançam o grau tônico arroxeado.
47. Contudo,
a dúvida gerada pelo “sintoma” nos persegue: por que escolher a “Fé” como a Virtude
mais relevante para configurar o eixo com “Maria”? Talvez a explicação
esteja no âmbito da retórica visual. Tratamos de um templo de culto
mariano, onde a fé cristã em Maria é o ponto focal. Mas não só isso para o
fiel é fundamental tomar as Virtudes como orientações referenciais para a
vida. Daí, alimentar a fé em Maria é importante, mas fundamental é
compreender tamanho ardor da fé que Ela nutre pelo Criador. Segundo a doutrina
da Igreja, Maria é a Bem-aventurada – não pela maternidade, mas pela fé em
Deus: “Bem-aventurada aquela que acreditou” (LUCAS 1:45). Portanto, Ela é
modelo da fé incondicional. Dessa forma, a narrativa da composição é
desenhada tendo como ponto de partida a fé de Maria em Deus e a fé do cristão
em Maria.
48. Tudo
nos leva a crer que, além das assimilações do Ut Pictura Poesis e das
Escolas Artísticas Italianas, a retórica das telas em questão fundamenta-se
como referencial de comportamento no âmbito da doutrina cristã, seguindo a
concepção de Virtude aristotélica. Segundo o pensamento de Aristóteles, as
Virtudes não devem apenas ser elencadas, mas assimiladas como modelo na
construção do homem enquanto cidadão social. Portanto, traçar as Virtudes
de Maria num contexto além do devocional, isto é, no âmbito pedagógico/doutrinário,
parece-nos bastante claro. As Virtudes pintadas encarnam o espelho ao fiel
católico: observe as telas, espelhe-se nelas e seja um bom cristão, para que na
morte da carne possa vislumbrar o Paraíso.
49. Com
isso, compreendemos que as Virtudes pintadas por João Zeferino da Costa não têm
o perfil da comoção. Entretanto, assim como a poesia, a pintura deve persuadir,
convencer e expressar um discurso narrativo que pode não ser apenas o do seu
tempo histórico, mas “sintoma” de uma retórica estruturada por tipologias
consolidadas pela Tradição, que fazem da imagem algo sempre sobrevivente.
Referências
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relevância das retóricas visuais na formação artística brasileira. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out. 2007. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/ea_ret_reg.htm
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da Imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. São Paulo:
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Companhia das Letras, 2003.
______________________________
* Esta publicação faz
parte da pesquisa de Pós-Doutorado intitulada “Ut Pictura Poesis: a
relação da Tradição Italiana (dos séculos XVI e XVII) com as Virtudes Marianas
de João Zeferino da Costa para a igreja de Nossa Senhora da Candelária no Rio
de Janeiro”, supervisionada pela Profa. Dra. Maria Berbara, desenvolvida no
Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). E também, uma das frentes de trabalho do grupo de
pesquisa “Studiolo: Estudos em História da Arte da Antiguidade à
Primeira Época Moderna,” coordenado pela docente e vinculado ao Diretório dos
Grupos de Pesquisa do CNPq.
[1] Zeferino da Costa foi
premiado ao pintar uma tela de temática religiosa - Moisés recebendo as
tábuas da Lei - em 1868 (Acervo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ).
[2] “O conceito de analogia
entre pintura e poesia tem raízes remotas, precisamente na arte veneziana do
século XVI: sabe-se que Ticiano chamava seus quadros com tema
mitológico-erótico de 'poesias'.” ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e Persuasão.. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.34.
[3] Historiador da arte
francês, nascido em Saint-Étienne, professor e pesquisador desde 1990 da École
des Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris. Por conta das suas
pesquisas, escreveu 53 obras publicadas na França, algumas traduzidas para o
português e lançadas no Brasil.