Retratos do Marquês: a construção da memória de Honório Hermeto Carneiro Leão pela iconografia

Paula Ribeiro Ferraz *

FERRAZ, Paula Ribeiro. Retratos do Marquês: a construção da memória de Honório Hermeto Carneiro Leão pela iconografia. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 2, abr./jun. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/retratos_marques.htm>.

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1. Indivíduo e sociedade através do retrato

O retrato é um gênero pictórico que tem o objetivo de representar a aparência visual de um sujeito. Segundo Enrico Castelnuovo, ele não foi produzido nem praticado em todos os tempos ou em todos os lugares, mas “constituiu durante séculos um dos gêneros artísticos mais difundidos e procurados, quer se tratasse de fazer-se representar, quer se quisesse ter a imagem de pessoas queridas ou de personagens poderosos.”[1]

Os retratos, embora produzidos anteriormente, assumiram um papel de destaque no Renascimento e eram valorados como objetos e como representação do status e do sucesso terreno. Nos séculos XVII e XVIII, em uma sociedade cada vez mais dominada por valores burgueses, os retratos adquiriram ainda maior importância. Já no século XIX, a maior liberdade formal e expressiva, além do advento da fotografia, permitiu a representação de segmentos sociais mais amplos, trazendo novos contornos aos retratos.[2]

Entretanto, é preciso compreender o retrato não apenas individualmente, como um gênero pictórico, mas pertencendo a um sistema de relações e práticas sociais, uma vez que ele revela mais do que a expressão de um artista ou a representação de um indivíduo: revela também as convenções, costumes e valores da sociedade na qual foi produzido.[3]

Para Alberto Cipiniuk, o retrato não é necessariamente uma representação verossímil de alguém, é, na realidade, uma fórmula simbólica que emoldura a individualidade. Sendo assim, o retrato não pode ser entendido apenas como uma simples cópia ou imitação de um modelo natural, mas como um instrumento capaz de prolongar pela cópia a experiência de um momento original ao infinito. A legitimidade, porém, é garantida pela similitude ao representado, pela forma como foi recepcionado por aquele que encomendou e pela institucionalização da arte que garantiu sua validade. O retrato, portanto, está sempre condicionado a discutir com sua época as suas significações. E, com isso, do ponto de vista de sua “razão de ser”, o retrato é realizado com um fim definido, quer seja para ambientes domésticos, de pouca circulação, ou para lugares públicos.[4]

No Brasil, a tradição do retrato remonta ao século XVIII e, ao lado da pintura religiosa decorativa, constitui a parte mais numerosa do patrimônio artístico brasileiro do Brasil colonial.[5] Segundo Hannah Levy, os retratos desse período podem ser divididos em três categorias. Os retratos burgueses, que são retratos de fundadores, provedores e membros das mesas administrativas das numerosas irmandades, ordens terceiras, orfanatos e instituições de legados pios; os retratos eruditos, que abrangem essencialmente personalidades da administração civil e religiosa; e, por fim, os retratos da real família portuguesa. Para a autora, “o baixo nível técnico e artístico dos pintores, as exigências dos retratados e a ambição da imagem fiel geraram um espécie de realismo moderado, como ‘clima’ característico dos retratos coloniais”[6], que se manteve até a propagação maior da pintura acadêmica no século XIX.

A vinda da corte portuguesa em 1808, a independência e o processo de consolidação do Estado Nacional modificaram as formas e multiplicaram as funções dos retratos. A estabilidade política do Segundo Reinado permitiu debates em torno da constituição de uma memória nacional, a fim de dar ao país um passado único e coerente. Assim, juntamente com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) passou a construir um repertório simbólico que definiria a nacionalidade brasileira.[7]

Em um momento caracterizado duplamente pelo uso da História, como via de legitimação dos Estados Nacionais e a como disciplina científica, o século XIX assistiu também a ampliação do debate a cerca da relação entre história e biografia.[8] E nesse sentido, no que se refere à arte, além dos grandes quadros de pintura de história, a produção de retratos também adquiriu a didática função de contar a história do jovem país a partir de seus ilustres personagens. Com essa finalidade, foram produzidos inúmeros retratos da família imperial[9] (de caráter oficial ou de suposta intimidade familiar) e também de muitos nomes que se destacavam na política. Como afirmou Ana Maria Mauad, a imagem do Império tinha como modelo a própria imagem da família imperial.[10]

É importante ressaltar que, durante o Império, o retrato ganhou ainda outras funções sociais. A encomenda de retratos foi hábito entre a nobreza cafeeira. A classe senhorial construiu sua auto-imagem à semelhança da imagem do Império.[11] Era comum encontrar retratos de membros da família nas áreas sociais das residências, funcionando como uma espécie de continuidade simbólica, capaz de produzir um mito sobre a família, além de dar significado ao poder aquisitivo, posição social e fonte de prazer estético.[12]

O surgimento e a divulgação da fotografia no século XIX também ajudaram na elaboração de memórias e identidades familiares e de grupos. O mais comum eram os carte-de-visite, em que o retrato fotográfico era enviado como lembrança e utilizado para compor álbuns a serem expostos nas mesas das salas de estar.[13]

Como foi destacado, “no Brasil, tanto nobreza quanto o Império tiveram sua imagem construída, dentre várias estratégias, pelas mãos de diversos artistas e fotógrafos.”[14] Sendo assim, o presente trabalho analisará três retratos de Honório Hermeto Carneiro Leão (1801-1856), marquês de Paraná, importante membro da elite e destacado estadista do Império. O objetivo é discutir a construção da memória de um indivíduo e sua correspondência com a própria memória do Estado Nacional.

2. Forjando memórias: o retratado e os retratistas

No dia cinco de setembro de 1856 José de Alencar publicou no jornal Diário do Rio de Janeiro um esboço biográfico de Honório Hermeto Carneiro Leão, marquês de Paraná, quando completava apenas dois dias da morte do marquês. Já no dia 13 de setembro foi a vez do Jornal do Commercio publicar um necrológico, provavelmente de autoria de Justiniano José da Rocha.[15] Desde então, “o ato de contar e recontar a trajetória e a morte do marquês de Paraná acabou forjando a vultuosa memória de um homem ligado visceralmente às mais altas questões da política imperial.”[16]

Honório Hermeto Carneiro Leão foi um dos mais importantes estadistas do período monárquico brasileiro. Nascido em Minas Gerais e formado em Direito pela Universidade de Coimbra, foi agraciado visconde e marquês de Paraná em 1852 e 1854, respectivamente. Ainda na década de 1830 iniciou sua carreira política, que se estenderia até o ano de sua morte, quando ocupava o cargo de presidente do conselho de ministros. Foi ainda presidente de diversas províncias, senador e conselheiro de Estado. [17]

A formação do Regresso conservador, as revoltas liberais de 1842 e 1848, os conflitos na região do Rio da Prata e o Gabinete da Conciliação foram alguns dos momentos políticos do Império nos quais Paraná esteve estreitamente envolvido; por isso, é ainda hoje considerado pela historiografia, ao lado do Visconde do Rio Branco, o maior estadista do Segundo Reinado. Entretanto, desde sua morte, e ao longo do século XX, muitos autores acabaram por condicionar a produção de um mito que ligava indivíduo e Estado.

Apesar da relativa abundancia de obras biográficas e históricas sobre o marquês, faltam, contudo, estudos a respeito de sua representação pictórica. A partir de um breve levantamento, pudemos constatar que não foram poucas as imagens produzidas do marquês de Paraná.[18] Entre elas destacaremos três retratos, que, embora com autorias e técnicas artísticas diferentes, foram produzidas no mesmo contexto.

O primeiro retrato é um óleo sobre tela de Emil Bauch (1823-1890), de 1856 [Figura 1]. O segundo, uma aquarela de autor desconhecido, trata-se de um retrato mortuário datado também de 1856 [Figura 2]. O terceiro retrato é uma litografia de Sebastien Auguste Sisson (1824-1898), produzida entre 1859 e 1861 [Figura 3]. Buscaremos analisar primeiramente as especificidades de cada obra, por quem foram produzidas e encomendadas, quais suas funções sociais e em que lugares circularam. Posteriormente, tentaremos pontuar os elementos de ligação entre essas obras e de que forma forjaram uma memória comum de Honório Hermeto Carneiro Leão.

2.1 Retrato I

Em 1866, o arquiteto alemão Carl Friedrich Gustav Waehneld (1830-1873) convidou seu compatriota Emil Bauch para trabalhar na decoração do palácio de Nova Friburgo. A residência pertencia a um dos homens mais ricos do Império, o Barão de Nova Friburgo. Dentre os diversos objetos decorativos, o barão mandou Bauch pintar um retrato seu e de sua esposa para ser colocado na recepção do palácio.[19]

A obra O barão e a baronesa de Nova Friburgo [Figura 4], embora produzida 10 anos depois, nos ajuda a compreender o quadro Marquês de Paraná, de Bauch [Figura 1]. O diálogo entre as obras é possível, primeiro, por serem de mesma autoria; segundo, porque muito provavelmente foram encomendadas e produzidas para cumprir funções sociais semelhantes.

Nascido em Hamburgo, o artista Emil Bauch chegou ao Recife em 1849, onde encontrou uma cidade efervescente sob o governo de Francisco do Rego Barros e que seria o tema das cromolitografias intituladas Souvenirs de Pernambuco, publicadas em 1851 na Alemanha.[20] Possivelmente, Bauch mudou-se para o Rio de Janeiro em 1852, em busca de uma maior clientela para sua produção. Inserido na corte e também nos círculos aristocráticos, o final da década de 1850 foi marcante para artista, quando conquistou uma medalha de prata (1859) e uma de ouro (1860) na Exposição Geral da Academia Imperial de Belas Artes.[21]

Com a riqueza proporcionada pelo café, o Rio de Janeiro se tornou um “centro elegante e sua população aristocrática se preocupava com a importação dos itens de bom gosto e de luxo, do vestuário ao mobiliário, das iguarias à música.”[22] E, como destacado anteriormente, a classe senhorial desenvolveu também estratégias de construção de uma memória. Os objetos dessa “memória”

revelam valores, sentimentalidades e comportamentos que possibilitam recuperar não só um habitus de grupo, mas também as formas de representação social que atuaram como elemento de coesão interna - no âmbito da família e da parentela - e externa - no seio da classe senhorial.[23]

É nesse contexto, e a partir dessa preocupação, que se insere Marquês de Paraná. O quadro, na realidade, é uma composição conjunta com a obra Marquesa do Paraná [Figura 5], ou seja, se constitui como um retrato duplo e familiar.[24] Provavelmente, foram encomendados pelo próprio marquês, meses antes de sua morte. Embora pelos limites da pesquisa não tenhamos como comprovar tal afirmativa, alguns elementos nos levam a defender esta hipótese.

Acreditamos, portanto, que o quadro Marquês de Paraná foi concebido para ficar em uma área social da residência do retratado, com a finalidade de demarcar e reforçar a memória do indivíduo, da família e do próprio grupo social do qual Paraná era um membro destacado.

No quadro, o marquês exibe suas várias distinções de Grande do Império, a faixa vermelha de seda e a roupa de gala de estadista. No peito, as comendas da Grã-Cruz das Imperiais Ordens de N. S. de Vila Viçosa de Portugal, de Cristo do Brasil, da Águia Branca da Rússia e da Imperial Ordem do Cruzeiro.[25] Seu olhar é direto ao observador fora do quadro, o que dá o ar de um indivíduo astuto e consciente da pose, reforçando a impressão de maturidade, firmeza e segurança, correspondente às insígnias que carrega no traje e ao cargo que ocupava na época da composição, qual seja, o de presidente do Conselho de Ministros.

Nesse aspecto, há uma enorme separação entre os retratos do marquês e de sua esposa, os olhares são radicalmente distintos. Ao contrário do olhar dele, o dela é longínquo, perdido, e se situa num infinito fora do quadro, não retribuindo o olhar do observador. Emil Bauch retrata a marquesa

em cores escuras de maneira a destacar-lhe o pescoço e os ombros. A luz que entra por detrás da cortina é difusa e só faz destacar o vestido escuro de renda. A mesma função podemos ver nas penas de avestruz no penteado: emolduram o rosto, impedem que o penteado desapareça na sombra e refletem a luz por trás da modelo.[26]

O fundo de ambos os quadros aparece como um cenário que não é possível identificar como sendo um interior ou um lugar mais ou menos externo. Os modelos poderiam estar numa varanda, numa sala entreaberta ou mesmo em um estúdio. A coluna de mármore, por sua vez, pode ser uma presença simbólica do universo neoclássico. Já a cortina verde, uma aberta a direita outra a esquerda, sugere uma composição espelhada. Destarte, o fundo, idêntico e espelhado, é dos elementos que une os retratos do casal; assim como o fato de ambos terem sido retratados numa vista de 3/4 acima do quadril.[27]

O quadro do marquês isoladamente já é capaz de transmitir inúmeros símbolos. Porém, o fato de ser uma composição conjunta reforça ainda mais certos valores que nos são comunicados quando observamos o duplo retrato. Marido e mulher, casados há 30 anos, pertencem claramente a aristocracia oitocentista e foram representados com diversos elementos que estruturam seus papéis na família e na sociedade. Ele: patriarca, nobre e estadista. Ela: mulher, esposa e mãe.[28]

2.2 Retrato II

A obra Marquês de Paraná na câmara ardente [Figura 2] retrata o velório do marquês de Paraná. Segundo Maurílio Gouvêa,

as crônicas da época assinalam os funerais do eminente estadista como tendo sido dos mais concorridos, só os havendo superado os de José Clemente. Povo e governo se irmanaram no pranto à perda irreparável por que vinha de sofrer o Brasil. Fecharam suas portas todas as repartições públicas e os funcionários do Tesouro, querendo expressar mais nitidamente a sua tristeza, tomaram luto por oito dias. Para as 17 horas do dia seguinte foi organizado o cortejo que obedeceu a ordem que bem fazia lembrar a disciplina que o falecido sempre imprimira aos atos de sua vida. Até para caminhar em direção ao túmulo, dir-se-á que Paraná impunha, severamente, da postura silenciosa e rija do seu corpo, aquela ordem e aquela disciplina.[29]

Na obra, que mostra parte do ritual fúnebre, o semblante do estadista parece muito mais jovem, como se a morte recuperasse as forças do político que sofria com problemas de saúde já havia alguns anos.[30] O traje de estadista e a posição recostada de seu corpo dão a impressão de que Paraná apenas dorme. Entretanto, o tecido negro no qual o marquês está colocado, as velas e a cruz captam o pesado ambiente. A cruz é um dos mais velhos e universais de todos os símbolos, por agregar o emblema da expiação, da salvação e da redenção no Cristianismo.[31]

O retrato mortuário é uma aquarela de autor desconhecido, feita segundo litografia[32] de Clémente Bernard Louis Thérier. Porém, segundo Fernando Gouvêa, a litografia de Thérier foi baseada em uma fotografia feita por Revert Henrique Klumb (183?-1886).[33]

No século XIX, quando um membro da família falecia, era comum levar seu corpo para uma sessão fotográfica, antes de colocá-lo no caixão. “Com poses ‘naturais’ (isolado ou em companhia de parentes), estas fotografias eram uma solução para a perda e futuro esquecimento do ente querido.”[34] Como podemos ver, o próprio imperador D. Pedro II foi fotografado por Félix Nadar em seu leito de morte [Figura 6].

O fotógrafo alemão Revert Henrique Klumb trabalhou no Rio de Janeiro durante a década de 1850, e, em 1859, se mudou para Petrópolis. Preferido da imperatriz Tereza Cristina, ele foi professor de fotografia da princesa Isabel. Em 1860, foi condecorado com uma menção honrosa na Exposição Geral de Belas Artes, e, em 1861, recebeu título de Fotógrafo da Casa Imperial.[35] É possível que tenha fotografado o marquês de Paraná morto, já que era uma dos mais importantes fotógrafos do período, participando dos círculos da aristocracia.

Entretanto, provavelmente a fotografia ganhou maior divulgação a partir da litografia feita por Thérier. Como destacou Paulo Roberto Menezes, já na década de 1850 a litografia e a fotografia seriam técnicas aliadas, pois as imagens produzidas pelo daguerreótipo podiam ser copiadas pelo processo litográfico, propiciando assim, a reprodução ampliada e a maior visibilidade do produto fotográfico.[36]

O litógrafo francês Clémente Bernard Louis Thérier, especialista em cromolitografias, chegou ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1853, contratado por Paula Brito para trabalhar n’A Marmota Fluminense. Em junho1856, Thérier fundou, junto com Alfred Martinet, um novo estabelecimento litográfico, que durou apenas até 1857. Na década de 1860, continuou a fazer litografias em diversos endereços.[37]

É complexo analisar a aquarela Marquês de Paraná na câmara ardente, pois há uma “sobreposição” de autorias. Na realidade, não se trata de algo completamente original, mas de “cópias” subsequentes; já que, ao que parece, foi uma fotografia que virou litografia e, por fim, se tornou uma aquarela, de autoria desconhecida. Por esse motivo também, é difícil precisar onde a obra circulou. Muito provavelmente foi divulgada, enquanto litografia, em algum periódico da época, uma vez que a morte do marquês de Paraná foi muito noticiada nos jornais. [38]

Para além dessas questões, a aquarela é capaz de revelar alguns traços culturais daquela sociedade diante da morte, pois é transmissora de significados peculiares, refletindo a cultura emocional do período, o gosto dominante e a ideologia do grupo social de que procede.[39] O retrato mortuário ajudou a construir também a imagem do marquês de Paraná. Mesmo na hora da morte, ele foi retratado com elementos que rememoram sua posição de estadista e membro da elite.

2.3 Retrato III

Enquanto as outras duas obras analisadas datam de 1856, a litografia Marquês de Paraná [Figura 3], de Sisson, foi produzida entre 1859 e 1861, para integrar a coletânea Galeria dos Brasileiros Ilustres.

O famoso litógrafo-retratista Sebastien Auguste Sisson chegou ao Rio de Janeiro em meados de 1852. Passou com sua oficina por diversos endereços da cidade, até estabelecer seu ateliê, especializado em retratos, na Rua do Senado em 1855. Publicou duas coleções famosas: o Álbum do Rio de Janeiro, com doze cromolitografias, e a sua obra prima, a Galeria dos Brasileiros Ilustres.[40]

Esta última obra foi publicada em dois volumes, entre 1859 e 1861[41], e pode ser entendida como uma “manifestação do uso da biografia na qualidade de discurso fundador e difusor da memória e da identidade da nação brasileira.”[42] O livro reuniu 89 biografias de

personagens cujas vidas individuais vieram a ser somadas como referências para a escrita de uma história da nação, em tempos de vigências do princípio monárquico de governo, e de busca pela implementação e manutenção do projeto centralizador e unitarista na consolidação do Estado e da nação.[43]

Juntamente com as narrativas, foram produzidos retratos desses personagens, entre eles o do marquês de Paraná. Honório Hermeto Carneiro Leão, que morrera três anos antes da publicação, figurou na galeria como o primeiro dos oitenta e nove homenageados.

Na litografia, Paraná aparece do quadril para cima, trajando uma casaca, utilizada em cerimônias noturnas mais formais. No peito há a comenda da Grã-Cruz das Imperiais Ordens de N. S. de Vila Viçosa de Portugal. Em comparação com o óleo Marquês de Paraná, de Emil Bauch, a litografia de Sisson retrata o marquês com uma aparência mais civil e menos oficial. O olhar é seguro e sereno. Já o fundo é claro e vazio, o que dá ainda maior destaque ao personagem retratado e pode sugerir também uma “universalidade atemporal”.[44]

Segundo Leandro Martins Junior, na obra “ganha destaque a figura do ‘herói’, um indivíduo que, por seus bons feitos, perfeitamente adequados aos valores e código sociais, é tomado como o exemplo a ser seguindo tanto por seus contemporâneos, quanto pela posteridade.”[45] Assim, a história nacional, construída a partir da ação de seus personagens ilustres, era entendida como uma diligente narrativa, eficaz na elaboração de estandarte de patriotismo, reforçando a perspectiva pedagógica através da qual esse saber devia ser produzido. Nas palavras de Sisson: “as biografias dos homens notáveis e eminentes de um país são páginas soltas do grande livro da história dele.”[46]

Desta maneira, o retrato do marquês produzido por Sisson deve ser compreendido a partir de sua inserção na obra Galeria dos Brasileiros Ilustres. As condições e razões de sua produção estão diretamente ligadas à ideia de “panteonização” e “imortalização” promovida por esta galeria de grandes homens. Com isso, mais uma vez a imagem do marquês (construída pela narrativa e pela litografia), assim como a dos demais personagens, foi diretamente associada à história do país. Estado e indivíduo se ligaram através da defesa do regime monárquico, da centralização político-administrativa e da integridade nacional.[47]

3. Conclusão

Ao nos colocarmos diante de uma imagem produzida no passado, afastada do nosso tempo, nos posicionamos numa distância que não pode ser absolutamente superada. Não devemos, portanto, tentar explicar tal imagem, mas sim levantar observações e conjecturas à medida que outras fontes nos acrescentam dados sobre ela. Geralmente, não é possível reconstruir com precisão a série de atos e pensamentos do artista, as condicionantes da encomenda e os modos de composição do quadro. Entretanto, como fato, temos a materialidade da obra, capaz de revelar novos dados sobre a realidade na qual foi encomendada, produzida e divulgada.

Particularmente, enquanto gênero pictórico, o retrato é rico em elementos a cerca de seu contexto de produção. Ele trás informações não apenas do artista, mas também do retratado, e, principalmente, da memória que seu buscou forjar através dele. Pelo retrato,

o indivíduo permanece na memória não somente de seus contemporâneos, inscrito em um tempo e num espaço concreto. Mecanismo de afirmação pela imagem, através do retratado o indivíduo se posiciona no mundo simbólico de seu meio social.[48]

Os três retratos analisados do marquês de Paraná não são encontrados com facilidade em livros didáticos ou de acesso do grande público. Entretanto, na internet e em livros mais específicos, as imagens são facilmente localizadas. Essas obras, cada uma com sua especificidade, revelam traços comuns que ao longo dos anos construíram e reforçaram a memória do marquês de Paraná.

Na retratística que representou Honório Hermeto Carneiro Leão, assim como na historiografia, prevaleceu o ideal do indivíduo heroico e defensor inabalável da unidade imperial. O próprio século XIX forjou essa imagem, que acabou sendo reforçada com o passar do tempo. Nos escritos biográficos, Paraná é sempre caracterizado por sua personalidade forte, pela defesa dos princípios monárquicos e pela sua capacidade de agregação política.

Nas três imagens, o marquês de Paraná aparece com comendas. Essas condecorações ligaram sua figura automaticamente a dois aspectos: primeiro, reforçaram seu pertencimento a classe senhorial; segundo, e mais importante, o uniram ao imperador e ao Estado Imperial.

Nesse sentido, se construiu a memória de um indivíduo a partir de sua ligação com as questões da política. E, inversamente, escreveu-se a própria trajetória do país a partir de um dos seus “ilustres personagens”, bem ao gosto do século XIX.

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* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora e bolsista CAPES.

[1] CASTELNUOVO, Enrico. Retrato e sociedade na arte italiana: ensaios de história social da arte. Tradução: Franklin de Mattos; Coordenação: Sergio Miceli. São Paulo: Cia das Letras, 2006, p.7.

[2] PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Um retrato (quase) íntimo da nobreza brasileira: Emil Bauch e a Marquesa do Paraná. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 3, jul. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/ebauch_rapj.htm>.

[3] CIPINIUK, Alberto. A face pintada em pano de linho: moldura simbólica da identidade brasileira. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003, p.14.

[4] Idem.

[5] LEVY, Hannah. Retratos Coloniais. In: LEVY, Hannah & JARDIM, Luiz. Pintura e Escultura I. São Paulo: USP/IPHAN, 1978, p.147.

[6] Idem, p.167.

[7] CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. A pintura de história no Brasil do século XIX: panorama introdutório. ARBOR Ciencia, Pensamiento e Cultura, 2009, p.1153.

[8] MARTINS JUNIOR, Leandro Augusto. Galeria dos Brasileiros Ilustres: escrita biográfica e imaginário nacional na consolidação do Império do Brasil. XIII Encontro de História Anpuh-Rio.

[9] BASTOS, Mônica Rugai. Retratos do poder imperial no Brasil. FACOM-FAAP, nº9, 2003.

[10] MAUAD, Ana Maria. Imagem e auto-imagem do Segundo Reinado. In: NOVAIS, Fernando A. História da Vida Privada no Brasil: Império (Org. do vol. Luiz Felipe de Alencastro). São Paulo: Cia das Letras, 1997, vol.2, p.185.

[11] Idem, p.184.

[12] CIPINIUK, Alberto.Op. cit., p.25.

[13] MAUAD, Ana Maria. Op. cit. MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira. O Império do Retrato: família, riqueza e representação social no Brasil oitocentista. Tese de doutorado. Niterói: UFF, 2006.

[14] PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Op. cit.

[15] Essas informações podem ser obtidas na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. RIHGB, jul./set. 1957.

[16] ESTEFANES, Bruno Fabris. Conciliar o Império: Honório Hermeto Carneiro Leão, os partidos e a política de Conciliação no Brasil monárquico (1842-1856). São Paulo, SP: Dissertação de Mestrado em História, USP, 2010.

[17] Para informações sobre a vida e a carreira do marquês de Paraná ver: ESTEFANES, Bruno Fabris. Op. cit. JAVARI, Barão de. Organizações e Programas Ministeriais: Regime Parlamentar no Império. Rio de janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1962. GOUVEIA, Maurílio de. Marquês do Paraná: um varão do Império. Rio de Janeiro, s/d. 2ª edição. JANOTTI, Aldo. O marquês do Paraná: inícios de uma carreira política num momento crítico da história da nacionalidade. Belo Horizonte: Itatiaia, 1990. GOUVÊA, Fernando da Cruz. O Marquês de Paraná: o traço todo do conciliador. Recife: Ed. UFPE, 2009. MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.

[18] Podemos encontrar muitas dessas imagens principalmente em duas obras: GOUVÊA, Fernando da Cruz. O Marquês de Paraná: o traço todo do conciliador. Recife: Ed. UFPE, 2009. Coleção Grandes Personagens da Nossa História, v.2. São Paulo: Abril, 1972.

[19] PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Op. cit.; CIPINIUK, Alberto. Op. cit.

[20] BELLUZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Metalivros; Salvador: Fundação Emilio Odebrecht, 1994, v.3.

[21] Sobre as participações e prêmios de Bauch nas Exposições Gerais da AIBA ver: PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Op. cit; LEVY, Carlos Roberto Maciel. Exposições Gerais da Academia Imperial de Belas Artes: período monárquico: catálogo de artistas e obras entre 1840 e 1884. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke. 1990.

[22] PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Op. cit.

[23] MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira.Op. cit., p.226.

[24] Conceitos utilizados por PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Op. cit.

[25] As comendas do marquês foram descritas por PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Op. cit. Elas podem ser confirmadas também nas obras biográficas já citadas sobre o marquês.

[26] PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Op. cit.

[27] Idem.

[28] Sobre os valores femininos do século XIX que são transmitidos pelo retrato da marquesa, ver a análise que Rafael Pinto Junior faz a partir do camafeu da retratada. In: PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Op. cit.

[29] GOUVEIA, Maurílio de. Marquês do Paraná: um varão do Império. Rio de Janeiro, s/d. 2ª edição, p.276.

[30] ESTEFANES, Bruno Fabris.Op. cit., p.194.

[31] BORGES, Maria Elizia. A estatuária funerária no Brasil: representação iconográfica da morte burguesa. São Luís. VII Abanne: G´t Antropologia da Emoção, Edições do GREM, 8, 2004, CD-Room. Disponível em: <http://www.artefunerariabrasil.com.br/admin/upload/artigos/texto%20do%20CD.pdf>

[32] Sobre a técnica da litografia e seu uso no Brasil ver: FERREIRA, Orlando da Costa. Imagem e Letra: Introdução à bibliologia brasileira: a imagem gravada. 2ª ed. São Paulo: Ed. USP, 1994.

[33] A informação de que é uma aquarela, feita segundo litografia de Thérier, consta em: Coleção Grandes Personagens da Nossa História, v.2. São Paulo: Abril, 1972. Enquanto a informação de que se trata de uma litografia de Thérie, feita segundo uma fotografia de Klumb, consta em: GOUVÊA, Fernando da Cruz. O Marquês de Paraná: o traço todo do conciliador. Recife: Ed. UFPE, 2009.

[34] RAMOS, Aguinaldo. Corpos críticos: a fotografia do morto. Disponível em: <http://afotohistoricanobrasil.blogspot.com/2011/06/corpos-criticos-fotografia-do-morto.html>

[35] Informações biográficas de Klumb ver: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=3137&lst_palavras=&cd_idioma=28555&cd_item=1>

[36] MENEZES, Paulo Roberto de Jesus. Sociedade, imagem e biografia na litografia de Sebastião Sisson. Anais das Jornadas de 2007. Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, p.6.

[37] FERREIRA, Orlando da Costa. Op. cit.

[38] “A litografia era considerada um dos meios mais eficientes de comunicação impressa na época de sua invenção, e, desta forma, contribuindo decisivamente na divulgação e popularização de imagens. Ela foi utilizada comercialmente na impressão de estampas, rótulos, anúncios de jornais, revistas, cartazes e coisas mais comuns como etiquetas, panfletos e posters.” In: MENEZES, Paulo Roberto de Jesus. Op. cit., p.4.

[39] BORGES, Maria Elizia Borges. Op. cit.

[40] FERREIRA, Orlando da Costa. Op. cit.

[41] Alguns autores trazem informações de que, já em 1857, a obra começou a ser editada em fascículos.

[42] MARTINS JUNIOR, Leandro Augusto. Op. cit.

[43] Idem.

[44] CIPINIUK, Alberto.

[45] MARTINS JUNIOR, Leandro Augusto. Op. cit.

[46] SISSON, Sebastião A. Galeria dos Brasileiros Ilustres. Brasília: Senado Federal, 1999. 2vols, p.15.

[47] MARTINS JUNIOR, Leandro Augusto. Op. cit.

[48] PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Op. cit., p.5.