Portinari abstrato: os painéis de azulejos no Palácio Capanema (1941-1945)

Rafael Alves Pinto Junior

PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Portinari abstrato: os painéis de azulejos no Palácio Capanema (1941-1945). 19&20, Rio de Janeiro, v. XV, n. 2, jul.-dez. 2020. https://doi.org/10.52913/19e20.xv2.03

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1.     Este artigo se dedica a analisar as alternativas da composição dos painéis em azulejos Conchas e Hipocampos [Figura 1] e Estrelas-do-Mar e Peixes [Figura 2] feitos por Candido Portinari para o edifício do Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio Capanema. Encomendados em 1941 e executados entre 1941 e 1945, estas obras tornaram-se referências na produção pictórica do artista. Além de executadas em azulejos, são composições lastreadas na abstração, o que por si as distingue no panorama geral da produção do artista. Como artista, Portinari possuía uma poética adquirida através de suas experiências, seus procedimentos, suas escolhas, sua técnica, e seu repertório cultural e pessoal. Neste sentido, conhecer a poética da produção de uma obra equivale a entender a concepção da própria obra. Permite observar as alternativas, os caminhos não trilhados, as opções descortinadas e os elementos que o artista foi selecionando e que foram responsáveis pela solução final.

2.     Dos painéis de arte pública que Portinari concebeu para a decoração do espaço arquitetônico do Palácio Capanema, os de azulejos são os que mais diferem do programa iconográfico do restante do edifício. Para as esculturas, os artistas optaram por uma vertente clássica; para os afrescos dos Ciclos Econômicos, uma vertente realista; para os azulejos, composições ancoradas na abstração. Com isto, quer seja pelo tamanho, pela relação estabelecida com a arquitetura ou pela composição escolhida, Conchas e Hipocampos e Estrelas-do-mar e Peixes, se distinguem do conjunto.   

3.     Esta distinção se deve, basicamente, a dois fatores.

4.     Primeiro, os painéis de azulejos parecem ter escapado da tutela temática de Gustavo Capanema. Como ministro e catalisador da realização do prédio do Ministério, Capanema exerceu forte influência na temática das diversas obras de arte encomendadas. Para garantir que nada fugisse dos objetivos propostos, tratou pessoalmente de conduzir muitas das obras, exercendo uma ação decisiva, notadamente sobre as encomendadas à Portinari. A correspondência do artista não deixa dúvida em relação à atuação diretiva das temáticas. O ministro indicava livros para que o artista se inspirasse;[1] citava autores de referência; mandava fotografias para subsidiar Portinari na criação das obras;[2] e referia à disposição específica dos quadros nos ambientes.[3]

5.     Com os azulejos, a tutela temática do ministro parece ter tido pouca ou nenhuma influência. Parece claro que Capanema concordou com a ideia do uso decorativo dos azulejos e apoiava o lastro do passado que isto representava, mesmo não sendo dele a sugestão de seu uso. Nesse sentido, tanto Yves Bruand (2005) quanto Roberto Segre (2013) referem-se à contribuição de Le Corbusier à equipe responsável pelo projeto do edifício. O emprego dos azulejos estabelecia uma referência com a tradição portuguesa, tão cara para Lúcio Costa; estabelecia uma maior leveza visual aos muros; criava uma imagem visualmente mais rica para a obra, superando códigos puristas europeus; e associava o edifício à paisagem através dos temas marinhos a serem empregados. Desta maneira, a posição de Corbusier legitimava a posição de Lúcio Costa ao conciliar o que parecia contraditório: o espaço moderno do século XX era internacional, mas isso não determinava a exclusão das especificidades locais que garantissem sua expressão original, cuja valorização integrava-se perfeitamente ao contexto nacionalista.

6.     Em segundo lugar, as composições se distinguem por serem notadamente abstracionistas. Conforme o colocado tanto por Carlos Zílio (1997), Annateresa Fabris (1996) e Aracy Amaral (2003) entendemos como Portinari concebia o espaço pictórico modernista. Devido ao lastro realista[4] de sua formação - ou “acadêmico,” como prefere Zilio -, as composições de Portinari apresentam, geralmente, as características de um espaço “contraditório,”[5] que seria a expressão modernista mais aceita na época. O espaço dividido em planos explicita como ele conceituava o modernismo: ao invés de estruturar o espaço pictórico, os planos parecem ser empregados como recurso de ocupação dos vazios entre as figuras. Decorre daí sua  visualidade disposta num esquema como o de um quebra-cabeças, em formas prismáticas ou chapadas em áreas de cores com arestas. Assim dispostas, as figuras neste espaço parecem estar boiando ou flutuando, em um ambiente onde pode-se observar a presença discreta, mas organizadora da perspectiva. A este respeito, Zilio (1997, p. 97-99) postula que:

7.                                        A organização da superfície em planos revela uma nítida incompreensão do espaço moderno. Ao invés de possuírem uma função de construção do espaço, os planos em Portinari, são utilizados como recurso de preenchimento de vazios.

8.                                        Exatamente ao inverso do procedimento de Picasso, onde a estilização da figura humana já era compreendida numa relação com a construção do espaço, isto é, fazia-se a partir da visão global do espaço que organizava toda a superfície. O que transparece é que, enquanto em Picasso o que estava por trás da sua fase clássica era o Cubismo, na pintura de Portinari era o academismo. [...] Situada dentro dessas contradições, a obra de Portinari demonstra o conflito do artista em superar raízes acadêmicas e conquistar uma imagem moderna. Nessa adaptação de um sistema para o outro, Portinari acaba por situar sua pintura numa posição intermediária, que será a expressão modernista mais aceita na época. 

9.     Desta maneira, o lastro academico seria uma constante na produção de Portinari artista. Apenas a partir da decada de 1940, ele trilharia rumos abstratos, exatamente após beber da fonte das referências pós-cubistas. Evidentemente que os conceitos e princípios formais do abstracionismo não lhe eram estranhos: apesar de não comungar das fontes mais radicais do vanguardismo europeu como o Dadaísmo ou o Futurismo, como homem culto que era, era natural que Portinari soubesse o que se fazia na Europa de sua época. Ele conhecia e participava da produção dos artistas mais influentes de seu tempo. Entretanto, para ele, as experiências no campo da abstração parecem ter sido ser apenas isto: experiências. Como destacou Fabris (1996, p. 153-154), ao colocar que:

10.                                      O que é necessário sublinhar é que Portinari não podia, de fato, esposar as concepções de arte que se estavam impondo no Brasil porque elas contradiziam suas mais arraigadas convicções. Até o final de sua trajetória, o pintor permanece fiel a uma visão de realista da arte [...] Isso nao impede, contudo, que Portinari tente algumas experiências calcadas na abstração geométrica, mas os resultados alcançados, pouco satisfatórios formal  e expressivamente, são a clara demonstração de que não existia compatibilidade entre ele e um tipo de arte guiada por critérios geométricos e/ou antinaturalistas.

11.                                      Na realidade, a única “abstração” que Portinari consegue conceber é aquela que emana do próprio processo pictórico, feito em primeira instância de elementos formais: linhas e cores. O pintor nao consegue renunciar ao referente exterior, deixar de lado a relação empática com a realidade e os métodos de construção da tela a ela associados. A pintura enquanto pura forma, enquanto procedimento apenas interno nao é o campo de ação de Portinari, que visa sempre à representação e que, como operário conciencioso, acredita no processo técnico como fundador do ato expressivo. 

12.   Das diversas pinturas que Portinari executou para o Palácio Capanema, apenas quatro são de uma temática não-figurativa. Concebidas para decorar uma das salas de despacho do ministro, trta-se de quatro grandes telas (250 x 200 cm) representando os quatro elementos: água, terra, fogo e ar. Não cabe, neste trabalho, enveredar pelo debate que opõe duas diferentes visòes de arte - realista ou abstrata -, uma que se fundamenta na validade do tema e outra que, de uma forma geral, se orienta pelo ato do fazer artístico e que idepende de qualquer manifestação icônica na relação que se estabelece com o espectador.

13.   A partir disto, aparentemente sem a tutela de Capanema e ambicionando atender às finalidades estritamente decorativas, Portinari aborda a composição dos grandes painéis de azulejos.

A escolha cromática: o azul e branco

14.   Antes de analisarmos os estudos do artista para os painéis, faz-se necessario indagar sobre a adoção do padrão cromático escolhido: porque a adoção do padrão azul e branco, em detrimento à policromia?

15.   A resposta a essa pergunta está associada à presença de Paulo Rossi Osir[6] e a Osirarte, criada em 1940, em São Paulo para atender à encomenda que lhe foi feita pelo Ministério da Educação e Saúde. A atuação da Osirarte se estenderia por diversas obras, por quase duas décadas. A participação de Osir seria decisiva não somente na escolha do padrão cromático, mas certamente na escolha da técnica adotada na execução dos azulejos.

16.   Inexistem provas documentais por parte de Portinari com relação à decisão do padrão cromático adotado; entretanto, uma análise das correspondências de Portinari e Paulo Rossi Osir fornece pistas importantes. Numa carta para Carlos Leão, membro da equipe de arquitetos do Ministério, em 17 de abril de 1936,[7] Osir se refere a um contato com Gregori Warchavchik, onde soube que Lúcio Costa desejava ver trabalhos seus, para um serviço para o Ministério da Educação.

17.   Conforme esta correspondência nos mostra, Osir estava envolvido com experiências com os azulejos antes mesmo da definição final de Portinari: os estudos de Portinari datam de 1941 e Osir estava claramente experimentando com as tonalidades de azul já em 1939. Escrevendo à Portinari em 1 de junho de 1939, Osir conta que:

18.                                      Não me fiz mais vivo desde a minha subida do Rio pois andei sempre ocupadíssimo fazendo experiências com azulejos - (tintas, temperaturas, etc, ...). Comecei a cozinhar em forno contínuo a 850º. Agora estou cozinhando em forno para verniz - a 1200º. Sábado vou ver os resultados. Espero segunda feira mandar-te umas amostras de azulejos para teres uma idéia do que se pode fazer - naturalmente estas amostras são para uso interno (para você) pois eu continuarei minhas experiências e poderei fazer esmaltes melhores de modo que quando mandares o desenho estarei em condições de fazer uma execução de primeira ordem. Começas-te os desenhos? Tudo isto interessa-me muito e peço-te o favor de escrever breve.[8] 

19.   Em seguida, ele escreve ao pintor comentando os preços dos materiais (óxido de cobalto - azul) e dos serviços de queima: 

20.                                      Mudando de assunto com os azulejos tive surpresas: o azul de cobalto (óxido de cobalto) que está escasso - subiu de 200#000 Réis o Kg e como para a execução dos azulejos preciso de 88 kg - seja 2 gramas em média para cada azulejo pintado, um por outro - 44000 azulejos x 2 g = 88 kg x 200#000 = 17.600#000. Os azulejos calibrados da 1ª aumentaram de 5#000 o m2 - mais 5:000#000, mais e os fornos pediram mais 6#000 por m2 6:000#000 e poderá ter mais surpresas. Vou verificar melhor estes aumentos e se assim for escreverei logo aos arquitetos que minha proposta de 29 de Agosto deve ser modificada por arriscar de perder dinheiro.[9] 

21.   Em depoimento dado ao crítico Paulo Mendes de Almeida em 1940, Osir conta que, durante quatro meses, misturou cores suscetíveis de resistirem a temperaturas acima de 1200º. C, tentando obter aquele determinado tom de azul. Não conseguiu. Suas pesquisas permitiram-no, no entanto, encontrar um azul intenso, transparente e atraente, que satisfez em parte as exigências (MORAIS, 1988, p. 31). O que não fica claro, dada a lacuna documental, é quem fez a exigência do determinado tom de azul: Capanema? Lúcio Costa? Portinari? Qual era o tom de azul exato? Infelizmente, as incógnitas prevalecem sobre os dados.

22.   Escrevendo a Portinari em 1 de agosto de 1939, Osir se mostra satisfeito com a notícia de que os azulejos agradaram ao pintor e aos arquitetos do Ministério:

23.                                      Caro Portinari 

24.                                      Recebi domingo tua carta onde me comunicas que os azulejos agradaram você e os arquitetos. Estou muito satisfeito com a noticia. Espero carta dos arquitetos e o desenho para começar a trabalhar.[10]

25.   Em 17 de outubro de 1939, Osir pergunta a Portinari se ele já havia terminado os cartões para os azulejos. Pede que o artista procure saber se ele ainda pode esperar pelo contrato do Ministério da Educação para a execução dos azulejos.[11]

26.   Portinari foi rápido. Com a encomenda concretizada, o artista em 1941 desenvolveu as composições. Em 1939 ele já havia aprovado - juntamente com os arquitetos - o teste de execução, queima e cor que Osir havia feito.[12] A execução também foi rápida: tão logo recebeu as composições, Osir concluiu a encomenda. Em carta a Portinari, em 14 de março de 1942, Osir comenta estar finalizando os azulejos.[13]

27.   Quer tenha sido comunicado, influenciado por Osir ou concluído sozinho, o fato é que Portinari não investiu na policromia. As próprias telas abstratas que já havia concebido à época - os referidos quatro elementos - são praticamente monocromáticas. Tanto a escolha temática - mar/ azul - para a composição, quanto o lastro referencial cultural que a azulejaria representava, apontavam para a composição em azul e branco. Ainda que, conforme as datas das correspondências evidenciam, as experiências com a execução dos azulejos tenham se iniciado antes da definição formal ou tonal de Portinari, o padrão azul e branco parecia solução que atendia aos interesses de todos os envolvidos no processo da criação daqueles espaços.

Os estudos: caminhos e alternativas.

28.   Tanto para Conchas e Hipocampos e Estrelas-do-mar e Peixes, Portinari subverteu a ordem do padrão ortogonal perpendicular formado pela malha dos azulejos com outra, na diagonal. Criou, assim, um padrão que escapa ao óbvio suporte da ortogonalidade das placas cerâmicas. Esse princípio aparece nos estudos mais iniciais e foi basicamente mantido como diretriz. Além disto, podemos observar a presença de uma longa linha sinuosa destacada envolvendo a composição, sugerindo um amebóide, de maneira a fechar e aglutinar o conjunto. Isto se constituiria numa presença constante nos demais painéis de azulejos de Portinari, como por exemplo, os na Pampulha.

29.   Esta linha sinuosa sugere uma raiz na rocaille[14] e no decorativismo de inspiração Rococó. A linha sinuosa contínua, que foi introduzida primeiramente no desenho do mobiliário, acabaria por se transformar em um leitmotiv ornamental da arte do período tardo-barroco, como colocado por pesquisadores como Oliveira (2003, p. 28).[15]

30.   Ao estruturar a composição, estabelecer uma linha de referência visual e estabelecer um limite às figuras modulares do conjunto, a presença desta linha sinuosa desempenha, na composição dos painéis de Portinari, a mesma função que a rocaille tardo-barroca. Naturalmente que este raciocínio conduz inevitavelmente à dedução dos valores do Rococó que, ultrapassando o campo das artes decorativas, se constituiu numa espécie de denominador comum da cultura e das artes do século XVIII. Era a solução perfeita que fechava a equação temática e a referência ao lastro cultural que a azulejaria representava para a realização do edifício.

31.   Como podemos ver nas imagens da Figura 3, a linha sinuosa destacada aparece desde os estudos iniciais. Em estudos a lápis, de pequeno formato, podemos ver a preocupação do artista em garantir algo que “fechasse” o conjunto. Surgem composições com figuras fluidas, orgânicas e manchas em tonalidades. Podemos identificar figuras como algas, espirais e curvas, formas semelhante à biomorfos, protozoários e partes vegetais [Figura 4 e Figura 5]. Sem perder a malha diagonal, surge a ideia de algo como o contorno de um lago ou uma enseada. Coincidindo com a rocaille, as linhas aglutinam grupos de figuras, dinâmicas em ações subordinadas a um contorno.

32.   Como alternativa a estas composições abstratas, o artista considerou compor uma obra com figuras. Como tema, escolheu as crianças e as brincadeiras infantis [Figura 6, Figura 7, Figura 8 e Figura 9] - uma solução que parecia óbvia, para um edifício voltado à criação de uma política inteiramente voltada ao ensino. A função do edifício seria, assim, explicitada nas fachadas em composições decorativas. De uma maneira ou de outra, o artista achou que o tema não seria o mais adequado à encomenda. Em 1944, Portinari retomaria o tema numa grande composição no Salão de Espera do andar do Ministro [Figura 10].

33.   Em outra direção, Portinari considerou composições com outros tipos de figuras humanas. Mulheres, mulheres com crianças, figuras masculinas se alternam em composições em blocos, deslocadas. A artista alterna e chega a estudar figuras isoladas, referenciando-as em escala. Desenvolve cerca de nove estudos com figuras humanas [Figura 11, Figura 12, Figura 13, Figura 14 e Figura 15], mas logo conclui que uma composição abstrata parece ser a solução. Elabora então composições em azul e branco com manchas, no caminho que seguirá [Figura 16]: nestas, podemos ver o uso de elementos formais modulares agrupados em manchas tonais. O desenho Abstrato, a guache sobre papel, com 155 x 218 cm [Figura 17a], aponta para a composição final [Figura 17b], que ficará mais simples e com menos elementos. Como podemos ver, o cartão não foi mais alterado: contorno ameboide - ou rocaille - toma proporções expressivas, assemelhando ao perfil ou contorno da Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro [Figura 18]. Com isso, a composição faz uma explícita referência ao contexto urbano onde o edifício se insere.

34.   Para o painel Estrelas-do-Mar e Peixes, o artista aparentemente nem chegou a considerar a presença de figuras humanas na composição. Parece válido supor que Conchas e Hipocampos consumiu mais tempo e levou o artista a considerar mais possibilidades. Não que a composição de Estrelas-do-Mar e Peixes seja mais simples, ao contrário: apenas a quantidade de alternativas levadas em consideração para os painéis não é equivalente. Isso sugere que, uma vez encontrada a solução formal, o artista investiu naquela opção. Os estudos deixam claro os limites impostos pela própria arquitetura. A presença do acesso existente no canto esquerdo não podia ser desconsiderada. Com estes limites, o artista explora composições mais ou menos geométricas, com partes angulosas, ligações formais, cortes e recortes, em composições que vão sendo complementares [Figura 19 e Figura 20]. A linha sinuosa é semelhante nos dois painéis e possui a mesma função: mantêm o foco visual, aglutina as manchas e “fecha” o conjunto.

35.   Com as composições, Portinari conseguiu satisfazer a encomenda. Atendeu aos arquitetos e conseguiu se diferenciar do que já havia feito nas obras anteriores no edifício. Conforme as análises de Carlos Eduardo Comas (2005), Roberto Conduru (2004) e Segre (2013), como espaço de transição, o ambiente dos pilotis se caracteriza por uma praça visualmente aberta, mas limitada pelo perfil do prisma vertical. Neste ambiente, os azulejos desempenham o papel para o qual foram concebidos. O ambiente formado pela praça, reinterpreta, em termos contemporâneos, as ideias tradicionais de rua, quarteirão, praça e a oposição entre espaço aberto e fechado. Neste contexto, a azulejaria procura obviamente evocar o oceano aos transeuntes dos pilotis, se constituindo num elemento de referência visual no contexto formal do edifício; ao mesmo tempo, se constitui m um contraste de material, cor e textura às colunas de aproximadamente dez metros de altura.

36.   Os painéis foram tão satisfatórios, que, respondendo à polêmica levantada por Max Bill (1908-1994),[16] importante arquiteto suíço em visita ao Brasil em 1953, Lúcio Costa explicou claramente a relação que a azulejaria desempenha no edifício:

37.                                      [Max Bill] Acha também inúteis e prejudiciais os azulejos. Ora, o revestimento de azulejos no pavimento térreo e o sentido fluido adotado na composição dos grandes painéis tem a função muito clara de amortecer a densidade das paredes a fim de tirar-lhes qualquer impressão de suporte, pois o bloco superior não se apóia nelas, mas nas colunas. Sendo o azulejo um dos elementos tradicionais da arquitetura portuguesa, que era a nossa, pareceu-nos oportuno renovar-lhe a aplicação. (COSTA apud XAVIER, 2003, p. 183)[17]

38.   Na moldura que a arquitetura proporcionava, Portinari criou a imagem refletida de um espelho d´água vertical: na cidade, tumulto e confusão; naquele ponto, tranquilidade e paz no reflexo das águas [Figura 21]. De acordo com Gaston Bachelard (1997, p. 23), como motivo para um imaginário aberto, a função do espelho das águas era representar a naturalização da própria imagem, devolvendo um pouco de inocência e naturalidade ao orgulho da própria contemplação íntima. Como frescor substanciado ou olho tranquilo, o mundo refletido representa a conquista da calma: soberba criação que requer apenas a inação, apenas a atitude sonhadora, na qual se via o mundo desenhar-se com tanto mais precisão quanto maior fosse o tempo em que se sonhasse (BACHELARD, 1997, p. 27).

Referências

AMARAL, Aracy A. Arte para quê? São Paulo: Studio Nobel, 2003.

AMARAL, Aracy A. (org). Dos Murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981.

BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2005.

COMAS, Carlos Eduardo. A máquina para recordar: Ministério da Educação no Rio de Janeiro, 1936/45. Arquitextos, 005.01, ano 01, out. 2000. Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.005/967 Acesso em 15 ago. 2019.

COMAS, Carlos Eduardo. Lucio Costa e a revolução na arquitetura brasileira 30/39. De lenda(s e) Le Corbusier. Arquitextos, 022.01, ano 2, mar. 2002. Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.022/798 Acesso em 15 ago. 2019.

CONDURU, Roberto. Um modo de ser moderno. Lúcio Costa e a Crítica Contemporânea. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

FABRIS, Annateresa. Cândido Portinari. São Paulo: Edusp, 1996.

OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro. O Rococó Religioso no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

SEGRE, Roberto. Ministério da Educação e Saúde. Ícone da Modernidade Brasileira. São Paulo: Romano Guerra Editora, 2013.

XAVIER, Alberto (org.). Depoimento de uma geração. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

ZILIO, Carlos. A Querela do Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2ª. Ed. 1997.

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[1] Capanema escreve a Portinari em 7 de dezembro de 1942: “Guardo na retina a forte impressão do seu quadro - ‘o último baluarte’ - que considero uma obra da maior beleza. | Sobre as pinturas para o edifício do Ministério da Educação penso que não mudarei de ideia quanto aos temas. No salão de audiências, haverá os doze quadros dos ciclos econômicos, ou melhor, dos aspectos fundamentais de nossa evolução econômica. Falta fazer o último - a carnaúba -, mudar de lugar o da borracha, e fazer de novo um que se destruiu. | Na sala de espera, o assunto será o que já disse - a energia nacional representada por expressões da nossa vida popular. No grande painel, deverão figurar o gaúcho, o sertanejo e o jangadeiro. Você deve ler o III Capítulo da segunda parte de Os Sertões de Euclides da Cunha. Ali estão traçados de maneira mais viva os tipos do gaúcho e do sertanejo. Não sei que autor terá descrito o tipo do jangadeiro. Pergunte ao Manoel Bandeira. | No gabinete do Ministro, a ideia que me ocorreu anteontem aí na sua casa parece a melhor: pintar Salomão no julgamento da disputa entre as duas mulheres. Você leia a história no terceiro livro de Reis, Capitulo III, versículos 16-28. | Creia no grande apreço e afetuosa estima do seu amigo.” Capanema, Gustavo; Ministério da Educação e Saúde. [Carta] 1942 dez. 07, Rio de Janeiro, RJ [para] Candido Portinari, Rio de Janeiro, RJ.

[2] “Caro Portinari, | Mando-lhe duas revistas: uma contém fotografia de uma jangada, outra, fotografia do vaqueiro. Admiráveis fotografias. Qualquer dia desses, irei aí. Precisamos conversar sobre o ensino de pintura. Guardo ainda a forte recordação das “mães” - o último baluarte. | Cordialmente seu amigo.” Capanema, Gustavo; Ministério da Educação e Saúde. [Carta] 1942 dez. 22, Rio de Janeiro, RJ [para] Candido Portinari, Rio de Janeiro, RJ.

[3] “Quanto aos quadros para pregar nas paredes, poderemos fixar o seu número em cinco. Quatro deverão versar sobre os temas de que outro dia lhe falei: água, fogo, terra e ar (os quatro elementos). O outro será um retrato do Padre Anchieta. | Combinaremos depois as dimensões. | Receba as expressões do meu maior apreço, estima e consideração.” Capanema, Gustavo; Ministério da Educação e Saúde. [Carta] 1944 jul. 31, Rio de Janeiro, RJ [para] Candido Portinari, Rio de Janeiro, RJ.

[4] Embora utilizado em um sentido mais geral para designar formas de representação objetiva da realidade, o realismo como doutrina estética específica se impõe a partir de 1850 na França, triunfando com Flaubert na literatura e Gustave Courbet (1819-1877) na pintura. Expressões realistas podem ser percebidas em quase todo grupo ou movimento artístico a partir de Courbet. Na produção pictórica brasileira, não encontramos feições realistas como a de Courbet ou Millet. O realismo, entre nós, encontra-se traduzido em paisagistas como Georg Grimm (1846-1887), Modesto Brocos (1852-1936), Benedito Calixto (1853-1927), Castagneto (1851-1900), Clóvis Graciano (1907-1988), José Pancetti (1902-1958), entre outros.

[5] ZILIO, 1997, p.99.

[6] Osir nasceu em São Paulo em 1890 e educou-se na Europa, retornando ao Brasil em 1927 e foi um dos fundadores da Família Artística Paulista que congregava praticamente todos os integrantes do grupo Santa Helena e outros que romperam com o grupo fundador do Salão de Maio, liderado por Flávio de Carvalho. Pela Osirarte passaram diversos artistas; além de Mario Zanini e Volpi, trabalharam na Osirarte Hilde Weber, Giuliana Giorgi, Gerda Brentani, Maria Wrochnik, César Lacanna, Virgínia Artigas, Etore Moretti, Ottone Zorlini, Krajcberg e Ernesto de Fiori.

[7] Osir, Paulo Rossi. [Carta] 1936 abr. 17, São Paulo, SP [para] Carlos Leão, Rio de Janeiro, RJ. 2 p. Fonte: http://www.portinari.org.br/

[8] Osir, Paulo Rossi. [Carta] 1939 jun. 1, São Paulo, SP [para] Candido Portinari, Rio de Janeiro, RJ. 2 p. Fonte: http://www.portinari.org.br/

[9] Osir, Paulo Rossi. [Carta] 1939 set. 15, São Paulo, SP [para] Candido Portinari, Rio de Janeiro, RJ. Disponível em: http://www.portinari.org.br/

[10] Osir, Paulo Rossi. [Carta] 1939 ago. 1, São Paulo, SP [para] Candido Portinari, Rio de Janeiro, RJ. Fonte: http://www.portinari.org.br/

[11] Osir, Paulo Rossi. [Carta] 1939 out. 17, São Paulo, SP [para] Candido Portinari, Rio de Janeiro, RJ. 2 p. Fonte: http://www.portinari.org.br/

[12] Osir, Paulo Rossi. [Carta] 1939 ago. 1, São Paulo, SP [para] Candido Portinari, Rio de Janeiro, RJ. Fonte: http://www.portinari.org.br/

[13] Osir, Paulo Rossi. [Carta] 1942 mar. 14, São Paulo, SP [para] Candido Portinari, Brodowski, SP. Fonte: http://www.portinari.org.br/

[14] “Definida por Germain Bazin como ‘uma espécie de concha abaulada ou recurvada, com silhueta de contorno irregular e recortado,’ a rocalha presta-se a infinitas combinações de formas, alternando perfis curvos e sinuosos, concavidades e convexidades, vazados e cheios. Associados às rocalhas, os traçados curvilíneos em C ou S atuam frequentemente como elementos de contenção à expansão desordenada de suas formas” (OLIVEIRA, 2003, p. 29)

[15] A pesquisadora coloca que já em meados do século XVIII a linha sinuosa era conceituada como ‘linha da beleza” - “the line of beauty”- por Willian Hogarth, em seu conhecido texto crítico The Analysis of Beauty, publicado em Londres, em 1753 (OLIVEIRA, 2003, p. 228)

[16] O arquiteto suíço proferiu uma palestra em 09 de junho 1953 no recinto da FAU- USP, onde atacou duramente o edifício do Ministério da Educação. Falando sobre o partido do edifício, Max Bill coloca que: “nasceram de um espírito desprovido de qualquer decência e de qualquer responsabilidade com as necessidades humanas. É o espírito decorativo, algo diametralmente oposto ao espírito que anima a arquitetura, que é a arte da construção, arte social por excelência” (BILL apud  XAVIER, 2003, p. 159)

[17] A resposta de Lúcio Costa foi publicada no número 60 da Revista Manchete, em 13 de junho de 1953.