Memória de um monumento impossível

Rafael Alves Pinto Junior

PINTO JUNIOR , Rafael Alves. Memória de um monumento impossível. 19&20, Rio de Janeiro, v. IX, n. 2, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/rapj_monumento.htm>.

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1.       Este texto objetiva discutir as variáveis envolvidas no projeto do Monumento ao Homem Brasileiro, pensado para ser colocado no edifício do Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio Capanema, no Rio de Janeiro. Este episódio envolve uma série de questões que foram centrais tanto para as artes plásticas quanto para a arquitetura das primeiras décadas do século XX no Brasil. A proposta do monumento foi um momento de síntese dos embates em relação à criação de uma identidade nacional, presente nas obras de diversos artistas e arquitetos da época: a construção e afirmação de uma obra de arte pública, instrumento de propaganda e retórica política da Era Vargas.

2.       Antes, uma justificativa necessária: falarei de um monumento que não se realizou. Se falar de uma obra de arte existente já envolve certo grau de dificuldade, falar de uma que ficou restrita à concepção certamente é um desafio maior. Tratarei de uma ausência, portanto.

3.       Neste recorte, lembrarei fatos conhecidos por muitos e também resultados de pesquisas relevantes feitas por estudiosos do célebre edifício.[1] No meu recorte, procurarei me ater ao monumento, deixando a arquitetura em plano secundário. Com isso, tenho a ambição de verificar que o entrelaçamento entre arte e política que está por trás das pretensões do monumento permite ver que ainda há algo a ser dito sobre a realização que o Ministério representou. O próprio edifício já foi concebido como um monumento e protótipo, como observado com propriedade tanto por Comas (1987, 2000) quanto por Segre (2013). Sua existência era um lembrete e advertência, ponto de referência à ação e à reflexão.[2]

4.       Se por um lado as pretensões de se conseguir com que o edifício do Ministério - atual Palácio Capanema - se transformasse em um monumento lograram êxito, por outro lado o Monumento ao Homem Brasileiro não teve a mesma sorte. Modernidade e tradição, continuidade e ruptura se entrelaçaram, como veremos, na concepção da obra.

O espaço arquitetônico sintetizador das artes maiores.

5.       A inserção das obras de arte como elementos compositivos da decoração dos espaços internos e externos do Palácio Capanema parece ter sido produto da ação de diversos membros da equipe que trabalhou no projeto. Tanto Lúcio Costa quanto Oscar Niemeyer e Carlos Leão estavam imersos no ambiente cultural da vanguarda artística da década de 1930, favorável à ideia da arquitetura como elemento aglutinador e integrador das artes plásticas.[3] Colocava-se à ótica do modernismo das primeiras décadas do século XX o papel da arquitetura como síntese das artes.[4] Era uma ideia tão fecunda quanto ambiciosa: o espaço moderno haveria de transformar a sociedade e a arte seria um instrumento para mudar - e moldar - o homem do século XX.[5]

6.       Há que reconhecer que estudar a política iconográfica do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) ultrapassa os limites deste trabalho. Importa-nos reconhecer que, imerso nesta conjuntura e mediado por Gustavo Capanema (1900-1985), a criação do Ministério constituiu-se num marco simbólico considerável. Além disto, pela realização arquitetônica podemos identificar os mesmos questionamentos nacionalistas presentes também no espaço artístico da produção de diversos artistas da época - entre o artístico e ideológico - e aqueles referentes à afirmação de uma identidade nacional, desencadeada pelo pensamento de agentes como Gilberto Freyre, Caio Prado Junior e Sérgio Buarque de Holanda.

7.       A criação do edifício do Ministério representou bem mais que um feito de arquitetura, pretendendo constituir-se em um marco da política na formação de novas mentalidades.[6] Foi uma afirmação de identidade que teve um ponto de inflexão - ou encontrou outras tendências internacionais, com as quais seria necessário compor - na colaboração de Le Corbusier no projeto do edifício. A influência de Le Corbusier foi marcante e sua rápida estadia no Brasil - de julho a agosto de 1936 - foi decisiva no tocante a fazer com que os princípios que ele defendia não permanecessem no terreno da abstração. Homem sintonizado com a produção arquitetônica internacional de sua época, Le Corbusier, além de arquiteto, era pintor e escultor. Também acreditava na arquitetura como elemento integrador das demais artes, ou melhor, no papel simbólico que as obras de arte podiam acrescentar aos espaços arquitetônicos.

8.       Enquanto rumava para o Brasil, Le Corbusier escrevia L’architecture et les Arts Majeurs, obra onde desenvolveu suas opiniões sobre a relação que via possível e necessária entre as três artes “maiores”: a pintura, a escultura e a arquitetura.[7] Fazia então a sua própria reflexão a respeito das proposições que Walter Gropius havia colocado dezessete anos antes na Bauhaus, quando disse que “juntos concebemos e criamos o novo edifício do futuro, que reunirá arquitetura, escultura e pintura numa única unidade” (GROPIUS, 1919).

9.       A presença de Le Corbusier, em detrimento de Gropius,[8] se justificou não somente pelo “afrancesamento” da cultura brasileira da época, mas pelo fato de que Lúcio Costa via no pensamento do francês uma ligação entre os problemas sociais, técnicos e estéticos de sua época, enquanto não via nada disso na Bauhaus. Este argumento parece decorrer, no pensamento de Lúcio Costa, da associação que fazia entre espontaneidade e razão lógica.[9]

10.    Le Corbusier retomou no Brasil o tema da síntese das artes. Como afirmou Célia Gonsales (2012), isso significou que, somado à abordagem da essência única da arte moderna, havia a ideia de que obras de arte devem estar presentes no espaço da arquitetura e da cidade em uma relação de mútua interferência (SEGRE, 2013, p.380). Visto desta maneira, o edifício do Ministério aparecia como a expressão de uma Gesamtkunstwerke,[10] antigo objetivo de muitas edificações setecentistas europeias em assegurar uma unidade entre a arquitetura e demais elementos decorativos, na qual os efeitos de conjunto tem função primordial.

11.    No caso da arquitetura modernista brasileira da década de 1930 e 40, a pretensão da síntese das artes[11] se aproximava de um recurso puramente retórico, como elemento fundamental da persuasão (ARGAN, 2004) da imagem modernista identitária que buscava uma afirmação.  Desta maneira e devido à precedência dos valores visuais que o espaço arquitetônico modernista construiu ao se afirmar, o emprego da retórica dispensa a priori o reconhecimento de que teses ela queira demonstrar. O que importa é o reconhecimento de que ela pretende simplesmente persuadir - e não a isto ou aquilo. O espaço arquitetônico modernista se configurava então, como apto a discorrer, fornecendo ao mesmo tempo o argumento e a prova.[12] É neste contexto que vemos a inserção do Monumento ao Homem Brasileiro.

Uma equação de variáveis irreconciliáveis

12.    A produção arquitetônica ocidental está repleta de obras de arte nela inseridas como elementos decorativos. Prática comum desde a antiguidade, sobretudo em edifícios de destinação pública, que foram destacados com esculturas monumentais para reforçar tanto seus significados quanto a perpetuar a memória de quem os construiu.

13.    No Brasil, uma das primeiras esculturas públicas foi a estátua equestre de Pedro I. Como observou Paulo Knauss (2010), a promoção dessa imagem estabeleceu um novo lugar para a escultura na sociedade, integrando o Brasil no contexto de uma prática do mundo ocidental do liberalismo, consagrando a afirmação da escultura pública no Brasil, ao mesmo tempo que instalou uma tradição que perdura ainda hoje.

14.    Como verificou Roberto Segre (2013, p. 391), na década de 1930, apesar de esculturas não-figurativas como as de Umberto Boccioni (1882-1916), Alexander Calder (1898-1976), Constantin Brancusi (1876-1957) e Ossip Zadkine (1890-1697) já serem conhecidas no meio artístico brasileiro, a principal referência escultórica ainda era figurativa. Destaca-se a principalmente a produção de artistas como Charles Despiau (1874-1946), Antoine Bourdelle (1861-1929), Aristide Maillol (1861-1944), Camille Claudel (1864-1943) [Figura 1a, Figura 1b e Figura 1c] e, principalmente, Auguste Rodin (1840-1917).

15.    No prédio do Ministério da Educação, o ministro Capanema vigiava de perto a concepção de todas as obras de arte a serem colocadas, tanto em relação ao tema, quanto aos locais para cada uma se destinaria. Tutelava os temas, as dimensões e os locais onde cada uma deveria ser colocada.[13] Os azulejos que Candido Portinari executou com temáticas abstratas parecem ter sido as únicas obras de arte que escaparam da ação diretiva do ministro.[14]

16.    Em relação às esculturas, Capanema concebeu um programa fundamentado em uma retórica monumental de raízes classicistas - diferente da das pinturas, cuja temática era fundamentalmente agrária - e alinhada com a política simbólica dos anos 1930, no geral, e com a do governo de Franklin Delano Roosevelt (1933-1945), em particular. Para Fabris, na década de 1930, todo país que desejasse afirmar a própria identidade nacional e justificar o próprio regime político lançaria mão do espírito clássico enquanto ideia universal e atemporal, por enfeixar valores comuns a todo o Ocidente desde a Antiguidade (2000, p. 172).

17.    Com este objetivo, parece ter sido de Capanema a ideia de se fazer um monumento que representasse o brasileiro - um colosso de 11 metros de altura - e colocá-lo à entrada do edifício. Dentre as várias estátuas que seriam concebidas como elementos decorativos e simbólicos somados ao espaço arquitetônico, o ministro destacou a do Homem Brasileiro como a principal - a que ocuparia não somente o local mais importante, mas a que também deveria ser mais significativa, a imagem que deveria transmitir uma mensagem indelével de modernidade. Com este objetivo, em 17 de julho de 1937, Capanema escreveu a Vargas

18.                                         A principal delas será a estátua do homem, do homem brasileiro. Porque este símbolo? Justamente porque o Ministério da Educação e Saúde se destina a preparar,a compor, a aperfeiçoar o homem do Brasil. Ele é verdadeiramente o ‘ ministério do homem’. [...] o homem estará sentado num soco. Será nu, como o Penseur de Rodin [Figura 2]. Mas o seu aspecto será o da calma, do domínio, da afirmação. A estátua terá cerca de 11 metros de altura, dos quais apenas 3 ou 4 decímetros serão reservados ao pedestal. Isto quer dizer que quase todo o bloco de granito será a figura do homem, cujas plantas quase tocarão o chão. Há na obra planejada, qualquer coisa de parecido com os colossos de Menon, em Tebas, ou com as estátuas do templo de Amom, em Karnak [Figura 3]. (Apud LISSOVSKY e SÁ, 1996, p. 224-225)

19.    Notável é o fato de que a equipe do projeto de arquitetura não questionou frontalmente a intenção, a forma ou as dimensões do monumento. Antes da vinda de Le Corbusier, ele já aparecia nos estudos da equipe brasileira [Figura 4]. Le Corbusier abraçou a ideia da estátua a reforçar o sentido simbólico do edifício, como demonstram seus estudos [Figura 5]. Para ele (1998, p. 55), “o urbanismo dispõe, a arquitetura constrói e a escultura e a pintura dirão as palavras seletas que são a sua razão de ser.” Cláudia Cabral (2010) é da opinião de que a ideia do homem sentado servia à perfeição para demonstrar a nova relação entre interior e exterior, entre natureza e edifício, que se desejava alcançar em sua arquitetura: “homem sentado lá fora é sempre parte integrante do cenário dos homens sentados aqui dentro” [Figura 6a e Figura 6b].

20.    Nos estudos para o terreno da praia de Santa Luzia, podemos ver o monumento tal qual Capanema ambicionava: localizado na esplanada da entrada principal do edifício a sugerir que a figura desempenharia um papel de referência visual à praça de acesso, além de se constituir num óbvio elemento de afirmação de implantação na circulação externa. Uma imagem que seria visível tanto do exterior quanto do interior do edifício. O desenho de Le Corbusier do interior dos escritórios é inequívoco. Com a mudança do terreno, a ideia da estátua não foi abandonada. Nos estudos de Corbusier para o terreno no centro da cidade do Rio de Janeiro, o homem “coletivo e cósmico[15] posicionava-se com a mesma importância [Figura 7a, Figura 7b, Figura 7c e Figura 7d].

21.    Com o passar do tempo, polidamente, o monumento foi sendo deslocado. Conforme analisado por Barki, a significação do monumento foi sendo diminuída gradativamente, sem haver enfrentamentos com Capanema:

22.                                         Uma vez elaborada a solução final, com a intervenção de Oscar Niemeyer, a escultura nunca ficou posicionada diante da entrada principal - conforme a sugestão de Capanema -, e sim deslocada em diversas posições na parte posterior do MES, orientada para a rua Pedro Lessa, via que desapareceria junto com a escultura. Também foram esquecidas as relações matemáticas entre a escultura e edifício, estudadas por Le Corbusier. (BARKI, 2006)

23.    O encargo do monumento caiu no colo do artista brasileiro Celso Antônio (1896-1984). A partir daí, instaurou-se uma crise em si reveladora, por esclarecer o descompasso dos objetivos ideológicos do contratante e do contratado. A escolha do artista parecia óbvia: Le Corbusier admirava o escultor e aprovou seu nome para a execução do monumento.[16] A obra de Celso Antônio tendia ao monumental, plena de traços expressionistas, e nela podia-se observar uma influência da distante produção estatuária egípcia, identificável em obras posteriores como Mulher com as mãos no cabelo e Mulher Reclinada [Figura 8a, Figura 8b e Figura 8c]. O artista chegou a fazer um modelo para o monumento [Figura 9], que se desfez durante a execução, para a decepção de Capanema. Um modelo que em nada correspondia ao idealizado: de acordo com Fabris (2000, p. 171), um homem barrigudo, de traços sertanejos e nada atlético.

 

24.    Uma observação do modelo em gesso feito por Celso Antonio demonstra o quanto ele se ateve aos ditames do ministro, procurando fundir numa mesma imagem o Colosso de Memmon e o Penseur de Rodin. Estava sentado, olhando à frente; marcava o presente e contemplava o futuro, como a encomenda requeria. A proposta não deu certo, porém. A imagem não transmitia dinamismo, confiança, nem, principalmente, beleza. Assentado sobre um bloco monolítico, o Homem Brasileiro parecia fundido à sua base, inerte. Havia que separar a representação da “calma” da representação da “inércia”.

25.    Por meio de Mario de Andrade, Capanema procurou Vitor Brecheret (1894-1955) para que assumisse a obra, sugerindo que fizesse algo sem estilizações ou decorações (CAVALCANTI, 2006, p. 52). O artista estava imerso com a execução de outro monumento de vulto, o Monumento às Bandeiras, concebido em 1920, e não se dispôs a executar outra obra de grandes proporções. Chegou a fazer um modelo em escala reduzida, que também não correspondeu às ambições do ministro. Por fim, Capanema recorreu ao pintor e escultor Ernesto de Fiori (1884-1945), que havia há pouco chegado ao Brasil e cuja temática principal era o corpo humano, sugerindo movimento ou em repouso, executada com um modelado áspero a traduzir tensão psicológica.

26.    Ao recorrer tanto a Brecheret quanto a De Fiori, Capanema sugeriu como referência a produção de Aristide Maillol e Charles Despiau, que considerava grandes escultores de sua época. Com isto queria dizer o óbvio: que o monumento deveria ser de cunho classicista. Fabris (2000, p. 171) esclarece que o fato do ministro indicar como modelo escultores classicistas não era casual, pois

27.                                         Integra um movimento mais vasto, de âmbito internacional, interessado em determinar a configuração do “homem novo” a partir de duas matrizes fundamentais: a regeneração da raça, expressa por uma figura atemporal, atlética e nua, própria de países como a Alemanha e a Itália; o agigantamento do trabalhador, típico dos Estados Unidos e da União Soviética, entre outros. O mito do “homem novo” pontua toda a década de 30: a ele são dedicadas as capas das principais revistas.

28.    De Fiori produziu uma série de imagens, algumas que ficaram apenas como estudos em gesso e outras que foram fundidas em bronze. Imagens como Guerreiro [Figura 10], Homem Andando [Figura 11a e Figura11b], Jovem Sentado [Figura 12] e O Brasileiro [Figura 13] são exemplos de tentativas de se atender a encomenda ministerial. Nenhuma atingiu o objetivo. De uma maneira ou de outra, a tarefa mostrava-se irrealizável, quando na realidade a questão era mais conceitual do que seria o monumento e menos de qual artista seria capaz de fazer este ou aquele protótipo.     

A imagem da “raça” ou a “raça” da imagem

29.    A concepção do monumento baseava-se na concepção não da recordação de um fato ou de um personagem do passado, mas de um futuro. Um herói não do que foi, mas do que haveria de ser. Um marco a simbolizar não os feitos heroicos já feitos, mas o que estava sendo feito e do que isso resultaria daí em diante. Lembremos da carta de Capanema a Getúlio onde diz que o aspecto da imagem seria o da afirmação, do domínio: e quem afirma ou domina, o faz do presente em diante. Assim, observa-se que a iniciativa gestava a construção de uma memória social projetada, o controle de uma afirmação e expectativa que articulariam simbolicamente a afirmação do Estado a partir da materialização de uma imagem fundadora. Era a ação de demarcar um novo período político legitimado, tendo um personagem que representasse todo o país adiante da história.

30.    A própria definição de monumento remonta à deusa grega da memória, Mnemosine, tornada concreta em imagem durável. No caso, diferente dos tradicionais monumentos que destacavam o indivíduo, a proposta de Capanema tentava inscrever a coletividade na pretensão de identificá-lo com as estruturas sociais que estavam em construção na época e que abarcariam a coletividade. Para ele, estava-se diante de outro tipo de feito heroico, ainda mais hercúleo que qualquer esforço individual - a definição do destino político do país. O Monumento ao Homem Brasileiro seria o emblema da história e da nação ao afirmar o Estado e o novo tempo que se construía.

31.    A imagem de um homem sentado, característica de vários croquis, olhando à frente, poderia simbolizar o que? Estabilidade? Confiança? Solidez? Calma e domínio? Ou o contrário? Apatia? Conformismo? Impassibilidade? Não se pode identificar nos croquis uma estrutura narrativa que equacionasse as variáveis de tempo, espaço, sujeito da história e nação. Inexiste um enunciado que nos permita associá-la a um modo de encarar a história.

32.    Como o monumento deveria completar simbolicamente o edifício, Capanema, em 30 de agosto de 1937 consultou quatro referências no meio acadêmico (Froes da Fonseca, Roquette Pinto, Rocha Vaz e Oliveira Vianna) que poderiam auxiliá-lo na configuração do perfil do homem brasileiro. Ressaltava que havia no propósito da obra, além do evidente aspecto estético monumental característico, um propósito científico em se procurar em fixar em uma imagem o que de brasileiro havia ou deveria haver no homem que habitava essas paragens.

33.    Com esta consulta aos acadêmicos, o ministro reconhecia que pisava em hipóteses acerca de um futuro ideal. Como observou Paulo Knauss (2000, p. 184), com a consulta aos eminentes professores, o ministro terminou abrindo a polêmica em torno da imagem a ser representada a partir da condição hipotética do objeto. Abrira a Caixa de Pandora, libertando um monstro que iria consumi-lo: o que seria brasileiro? Quais traços poderiam caracterizá-lo? Como unificar um país multifacetado em uma imagem identitária? Como traduzir em uma mesma imagem um pais multirracial, produto da somatória do caipira paulista, o caboclo do Norte, o sertanejo da caatinga e o vaqueiro do Sul? Seria possível uma imagem que sintetizasse séculos de mestiçagem entre portugueses, escravos e indígenas que contituía o próprio cerne de nossa própria herança colonial, como compreendia Lúcio Costa (1995, p. 382) ? [17]

34.    Capanema atingiu em cheio o problema. Mas as impossibilidades de uma resposta única, somadas aos fracassos dos modelos dos artistas, sepultaram definitivamente o monumento. Diante de um monumento, a leitura pode ficar em aberto devido ou a uma ambiguidade rica e complexa que permita sempre novas conexões ou devido a se ter um suporte inconsistente que pode permitir qualquer tipo de leitura, das mais rasas às mais delirantes.

35.    Imaginando a obra de arte como um texto não compreensível por parte do espectador ou como um sistema alegórico hermético limitado exclusivamente ao vocabulário do artista que a concebeu, a ideia do monumento permanecia muda para o observador comum. Certamente, far-se-ia necessário a colocação de placas explicativas sobre ao que o monumento fazia alusão, o que reforçaria a posição do observador inscrito no lugar da incapacidade de ler a representação.

36.    Há que lembrar que essa questão da identidade social havia entrado há não muito tempo no epicentro do debate intelectual e artístico nacional. Um dos primeiros a levantar a questão nesta época foi o militante político, crítico de arte e literatura Mário Pedrosa (1900-1981), em 1933: a arte não podia ser entendida longe do povo, restrita às academias ou às suas preocupações puramente formais. Para Pedrosa, a arte deveria levar em consideração o proletariado que era o principal motor de um dos aspectos fundamentais da modernização no Brasil. Neste mesmo ano, tanto Mário de Andrade como Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976) advogam a necessidade de uma produção artística a serviço da coletividade e de uma arte identitária.[18]

37.    Neste sentido, falar de um conceito de brasilidade expresso na arte corresponde a abordar uma temática constante no cenário cultural nacional[19] e que diz respeito aos problemas de conceituação de uma cultura brasileira. No caso da arte, podemos identificar práticas ideológicas inauguradoras de uma maneira de ordenar, ou ao menos de propor, uma unidade cultural, ainda que imagética.[20]

38.    Ao entenderem identidade como sinônimo de definição ou o estabelecimento de um estilo como a afirmação de determinados elementos temáticos e formais, os modernistas pareciam ambicionar não outra coisa que a tradução plástica do universo simbólico nacional. Visto desta maneira, os embates em torno de uma conceituação de identidade cultural no Brasil não podem ser entendidos como um conceito fechado, mas antes como um continuum de resultados transitórios, dado basicamente às suas causas múltiplas e mutáveis. Desta forma, tornando-se um ponto de referência essencial no processo de formação da arte brasileira, o modernismo se afirmou no Brasil através de um processo historicamente inconcluso, dinâmico e contraditório em sua essência e, portanto, problemático e aberto, ainda que em sua primeira fase até os anos 1930 esta antinomia não seja consciente. Somente a partir da II Guerra Mundial é que esta antinomia seria assumida - principalmente por Mário de Andrade - como uma estrutura inquieta e como um problema em aberto, o que certamente acentua a dramaticidade e a incompletude da modernidade na cultura brasileira.

39.    (Re)ver a preocupação nacionalista de Capanema significa compreender a sua inserção na Era Vargas. Primeiramente, importa reconhecer que isto ocorreu em toda a América Latina, onde os temas sociais e a preocupação com as camadas mais pobres da população eram uma constante. Os países latino-americanos atravessavam uma modernização e as contradições tornaram-se mais visíveis. Em segundo lugar, ocorreu um “redescobrimento” das próprias raízes, da identidade nacional, da herança dos povos indígenas e africanos, tão  decantada pelos artistas e intelectuais modernistas: do produto entre o artista, a exteriorização dos problemas sociais e as investigações sobre a ancestralidade cultural, nasceriam as linguagens locais que caracterizaram a arte modernista brasileira na década de 1930.

40.    O modernismo brasileiro, apesar de proclamar conteúdos sociais, foi notadamente um movimento de elites, haja vista a liderança de Paulo Prado na Semana de Arte Moderna 1922. Os artistas receberam apoio da oligarquia cafeeira paulista, detentores do poder na República Velha e representantes do “Ancién Regime.”

41.    Apesar de se preocupar em manter uma fachada de democracia, a criação do Estado Novo converter-se-ia numa ditadura que perduraria até 1945. No entanto, Vargas nunca perdeu o apoio dos intelectuais progressistas,[21] inclusive daqueles que seguiam correntes políticas da esquerda. Por quê? Dentre várias razões, talvez porque Vargas nunca impôs “cabrestos” aos artistas, pretendendo dirigir as artes plásticas a serviço do Estado. De certa maneira, foi permitida uma “livre expressão” sutilmente vigiada e a coexistência de tendências dissimiles, tanto as acadêmicas como as da vanguarda, numa espécie de acordo tacitamente aceito por todos. A ideologia se difundiu mais pelo rádio, pelo esporte e pela música - a organização dos imensos “cantos orfeônicos” - do que através de uma imagética formalmente construída nos espaços públicos.[22]

42.    Se colocando neste cenário nacionalista, entre uma liberdade artística e uma circunstância de posicionamento ideológico, a proposta do Monumento ao Homem Brasileiro cairia como uma luva no projeto intelectual de Mário de Andrade, que ambicionava a criação de uma identidade nacional coletiva,[23] o que se mostrava inalcançável.

43.    Além de todas as dificuldades conceituais e operacionais que observamos em torno do monumento pairava outra sombra: a questão espinhosa da identidade racial. Arraigada a ela estavam os pseudoestudos da fisiognomonia, ao associar os traços corporais a determinadas disposições morais. A fisiognomonia foi uma pseudociência que atingiu seu auge no positivismo do século XIX, sobretudo com os estudos da antropologia criminal do médico, psiquiatra, antropólogo e político Cesare Lombroso (1835-1909). Se sua assertiva fosse válida por um lado, ao postular que os traços de uma mente criminosa estavam sempre associados a anomalias somáticas, deveriam ser também válidas por outro, segundo o qual a ausência destas anomalias deveria demonstrar o bem. Apesar de seus equívocos, Lombroso era um estudioso convicto e erudito. Não chegou à simplificação de afirmar que quem era feio era delinquente, mas estava aberto o caminho para o preconceito que identificava quem fosse feio como mau por natureza. Como observou Eco (2007, p. 261):

44.                                         Isso sem falar no passo subsequente, com o qual se tornam feios e maus, também na literatura popular, todos os excluídos que a sociedade não consegue integrar e controlar ou não tem a intenção de redimir - como já obervava Nietzsche a respeito de Sócrates. E estes marginalizados serão os pobres, como mostra o retrato do subproletário Franti, feito por De Amicis, os homossexuais (ver Foucalt), os dementes e, marcadas inexoravelmente por seu vício, as prostitutas (ver Rosenkranz) e as ladras (ver Mastriani).

45.    As ideias de identificação social produziriam resultados tão nefastos quanto inesquecíveis nos regimes fascistas na Europa. E, como já vimos, os esforços de Capanema demonstram que ele podia transigir em muita coisa, mas não em deixar que o Monumento ao Homem Brasileiro correspondesse a uma imagem que não traduzisse suas ambições de futuro.[24] Certamente, não queria que fosse uma imagem de indolência ou fragilidade, do mesmo modo que não queria que fosse associado a algo sofrido, doente ou infeliz. Um herói haveria de ser belo (ECO, 2007, p. 205) e viril. O covarde, o pusilânime, o frouxo, o impotente e o sodomita eram mais do que nunca objetos de desprezo (CORBIN, 2013, p. 7). Neste sentido suas pretensões estavam mais próximas das representações do homem feitas pela cineasta Leni Riefenstahl (1902-2003) e pelo arquiteto e artista plástico Arno Brecker (1900-1991) [Figura 14a e Figura14b] do que de Macunaíma. Ainda que não fosse possível identificar o homem nacional com os do Terceiro Reich em suas pretensões de revitalizar a mitologia helênica numa versão de ação do corpo guerreiro, transpirando vitalidade bélica, com a exaltação da beleza nacionalista numa recomposição do militarismo do corpo dos guerreiros espartanos e atenienses, parece certo inscrever a concepção do Monumento ao Homem Brasileiro nesta esfera. As decepções do ministro apenas reforçam este ponto de vista.

46.    A esse respeito vale lembrar que a distância entre Capanema e o Fascismo não era abissal. Em 1935, enquanto se instalava a comissão para a Cidade Universitária no Rio de Janeiro, ele tratou de levar adiante a ideia da colaboração do arquiteto italiano Marcello Piacentini (1881-1960), autor da Cidade Universitária de Roma e joia do regime fascista.[25]

47.    Diante de uma equação com esta quantidade de variáveis, Capanema capitulou. O Monumento ao Homem Brasileiro não saiu do plano das intenções. Entretanto, a vontade do ministro não era um caniço que se dobrava com facilidade. O edifício havia sido concebido para transmitir uma ideia de leveza ao apoiar-se sobre pilotis; apenas o teatro possuía um volume maciço sobre o solo. Para atenuar sua superfície, a equipe do projeto sugeriu a colocação de uma obra de arte que fosse um relevo sobre o plano (ZANINI, 1980), um elemento dirigido à dinâmica urbana da Rua Araujo Porto Alegre. A sugestão temática de Capanema foi, como havia sido, imodesta: a Vitória - algo como a Vitória de Samotrácia, a lembrar perpetuamente a realização da obra. Como a realização da obra era uma vitória política e governamental, nada melhor que mostrar uma imagem de Vitória aos transeuntes.

48.    Novamente, foram convidados Victor Brecheret e Celso Antônio, além de  Bruno Giorgi. Novamente, outro fracasso.[26] Nenhuma proposta agradou ao ministro.[27] A obra foi postergada até 1942, com a contribuição de Jacques Liptchitz (18891-1973) e não seria a Vitória, mas outro tema clássico de resistência: Prometeu e o abutre [Figura 15a e Figura 15b].[28] Mais um fracasso. A estátua foi realizada, mas os adjetivos relacionados a ela foram pouco lisonjeiros: Barki, Kós e Vilas Boas observaram que, depois de colocada, a obra de Liptchitz desencadeou uma polêmica na imprensa, culminando com um protesto formal da Sociedade Brasileira de Belas Artes, recebendo “poucos artigos favoráveis - de Quirino Campofiorito e Agostinho Olavo - e uma multiplicidade contra, definida como ‘monstro antediluviano,’ ‘urubu,’ ‘pesadelo,’ ‘escultura teratológica.’”[29]

49.    Se, devido a toda a problemática já levantada, o Monumento ao Homem Brasileiro desencadeou uma crise que resultou no esvaziamento do modelo escultórico e na própria definição de monumento na primeira metade do século XX no Brasil, faltava um capítulo. Capanema aspirava criar uma aurora e precipitou um ocaso: o Monumento à Juventude Brasileira.

50.    Os fatos são conhecidos. Em outubro de 1943, o Sindicato dos Educadores, em conjunto com o movimento da Juventude Brasileira, se mobilizou para arrecadar fundos para a construção de um monumento destinado ao futuro glorioso que, acreditava-se, aguardava os jovens brasileiros.[30] Esboços para esse novo monumento feitos com o papel timbrado do gabinete do ministro indicam a participação direta desse último [Figura 16].[31] Frustrado com a não realização do Monumento ao Homem Brasileiro, conhecedor da recepção do Prometeu estrangulando o abutre, ele havia encontrado uma saída: o Monumento à Juventude seria o Monumento ao Homem Brasileiro possível, como brilhantemente observou Paulo Knauss (1999).

51.    Como o Colosso da intenção inicial, o jovem casal destinava-se ao futuro, posicionando numa composição bem mais dinâmica que os estudos feitos para o Homem Brasileiro. Bem menor que as intenções iniciais - dos 11 metros da proposta de Capanema para 4,45 metros do produto final - o monumento possível está lá, com seus altivos olhares à frente antevendo o futuro que os espera [Figura 17]. Não apresenta um homem maduro, como na concepção inicial, na posse de todas suas faculdades físicas e intelectuais, mas um casal de jovens, um processo, ainda em formação. Imortalizados em granito, completam o edifício do Ministério ao aguardar um futuro ainda visto como dourado.

Referências bibliográficas

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[1] Sobretudo as reflexões de Roberto Segre (2013), certamente as mais aprofundadas no assunto até agora.

[2] Para Comas  (2000), “essencialmente solidário e integrado com o sítio ao qual se implanta, [o ministério] tem, além disso, o potencial de reprodução do protótipo. Giedion dizia que era ‘um passo certo em direção à monumentalidade contemporânea.’ Uma praça semi-edificada cercada por quarteirões fechados não se vincula à cidade da carta de Atenas. Mais parece protótipo de edifício institucional que reinterpreta, em termos contemporâneos, as ideias tradicionais de rua, quarteirão, praça e a oposição entre tecido e monumento.”

[3] Como observou Barki, Kós e Vilas Boas, Lucio Costa nunca deixou de desenhar as paisagens relacionadas com suas obras em viagens de estudos. Oscar Niemeyer manteve uma constante produção literária, gráfica, escultórica e de desenho de mobiliário. Carlos Leão foi o mais próximo das atividades artísticas, dedicand0-se no final de sua vida à pintura e ao desenho. Outros arquitetos alcançaram certo prestígio através de suas obras artísticas: Alcides da Rocha Miranda, Géza Héller e Eugênio de Proença Sigaud. Esse vínculo perdurou nos anos 1940, ao reprimir-se na ENBA as manifestações vanguardistas. Os estudantes montaram em 1942 e 1943 a Exposição dos Dissidentes no recém-inaugurado edifício da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), apoiados pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e alguns de seus membros, como Maurício Roberto, Francisco Bolonha, Eduardo Corona, Alcides da Rocha Miranda, Oscar Niemeyer e Firmino Saldanha. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.069/376>.

[4] A esse respeito ver ROSA, 2005.

[5] Como os demais modernistas de sua época, Lúcio Costa estava convicto disto. Em carta a Capanema ele colocou que: “Neste oásis circundado de pesados casarões de aspecto uniforme e enfadonho, viceja agora, irreal na sua limpidez cristalina, tão linda e pura flor - flor do espírito, prenúncio certo de que o mundo para o qual caminhamos inelutavelmente, poderá vir a ser, apesar das previsões agourentas do saudosismo reacionário, não somente mais humano e socialmente mais justo, senão, também, mais belo.” Carta de Lúcio Costa a Capanema, outubro de 1945. GC/Costa, Lúcio, doc. 1, série b. Carta de Lúcio Costa a Capanema, outubro de 1945. GC/Costa, Lúcio. doc. 1 série b. Citado em: <http://www.schwartzman.org.br/simon/capanema/capit3.htm>. 

[6] A esse respeito Schwartzman (2000, P. 97) afirmou que “se a tarefa educativa visava, mais do que à transmissão de conhecimentos, à formação de mentalidades, era natural que as atividades do ministério se ramificassem por muitas outras esferas, além da simples reforma do sistema escolar. Era necessário desenvolver a alta cultura do país, sua arte, sua música, suas letras; era necessário ter uma ação sobre os jovens e sobre as mulheres que garantisse o compromisso dos primeiros com os valores da nação que se construía, e o lugar das segundas na preservação de suas instituições básicas; era preciso, finalmente, impedir que a nacionalidade, ainda em fase tão incipiente de construção, fosse ameaçada por agentes abertos ou ocultos de outras culturas, outras ideologias e nações. Como sempre, estas ações do Ministério da Educação não se dariam no vazio, mas encontrariam outros setores, movimentos e tendências com as quais seria necessário compor, transigir, ou enfrentar.

[7] LE CORBUSIER. A arquitetura e as Belas-Artes - As tendências da arquitetura racionalista relativamente à colaboração da pintura e da escultura. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: Iphan, n. 19, 1984, p. 53-69.

[8] Em relação à produção artística, Gropius orbitava em torno da abstração, o que o distanciava ainda mais de Le Corbusier. Grandes monumentos realizados antes de 1935 - como o Monumento aos Mortos da Primeira Guerra (Gropius, 1920), a Tumba de Lenin (Schussev, 1930) e o Monumento a Rosa de Luxemburgo (Mies van der Rohe, 1926) - não eram figurativos.

[9] Talvez, em parte devido a isto, a produção de Lúcio Costa não caminharia para um “vértice”. Metodologicamente, não equivalia a um “processo” cumulativo. Antes, partia de um léxico determinado que, mediante um rigoroso raciocínio crítico, frutifica várias soluções possíveis

[10] Literalmente traduzido como “obra de arte total”.

[11] Anos mais tarde, este tema de “síntese das artes” teve um outro momento de reflexão no Congresso Internacional Extraordinário dos Críticos de Arte, ocorrido em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, de 17 a 25 de setembro de 1959. Um ano antes da inauguração da nova capital federal. O tema do Congresso, sugerido por Pedrosa, dificilmente poderia ser superado em ambição: Brasília, cidade-síntese das artes. Curiosamente, as únicas vozes dissonantes foram as de Pedrosa e Lúcio Costa. O urbanista se mostrou perplexo com a arquitetura contemporânea e o papel das novas técnicas que alteravam, a seu ver, o papel da arte, sobretudo no tocante ao seu ensino. Lúcio Costa discordou até mesmo da expressão que unia o Congresso.

[12] Sem ser alegórico, o espaço modernista - ao menos o explicitado em obras como o Ministério da Educação e Saúde - se construiria através desta retórica, entendida como a arte de persuadir, a arte de estabelecer um discurso político - ainda que distante do conceito aristotélico de se falar no Areópago. A retórica como um instrumento persuasivo não está necessariamente ligada a um texto literário e seu emprego na arte é inconteste.

[13] A correspondência de Portinari, por exemplo, não deixa dúvida em relação à atuação diretiva da temática. O ministro indica livros para que o artista se inspire, cita autores de referência e manda até fotografias para subsidiá-lo. Escrevendo ao artista em 7 de dezembro de 1942, Capanema colocou que: “Sobre as pinturas para o edifício do Ministério da Educação penso que não mudarei de ideia quanto aos temas. No salão de audiências, haverá os doze quadros dos ciclos econômicos, ou melhor, dos aspectos fundamentais de nossa evolução econômica. Falta fazer o último - a carnaúba -, mudar de lugar o da borracha, e fazer de novo um que se destruiu. Na sala de espera, o assunto será o que já disse - a energia nacional representada por expressões da nossa vida popular. No grande painel, deverão figurar o gaúcho, o sertanejo e o jangadeiro. Você deve ler o III Capítulo da segunda parte de Os Sertões de Euclides da Cunha. Ali estão traçados de maneira mais viva os tipos do gaúcho e do sertanejo.

Não sei que autor terá descrito o tipo do jangadeiro. Pergunte ao Manoel Bandeira. No gabinete do Ministro, a ideia que me ocorreu anteontem aí na sua casa parece a melhor: pintar Salomão no julgamento da disputa entre as duas mulheres. Você leia a história no terceiro livro de Reis, Capitulo III, versículos 16-28. No salão de conferências, a melhor ideia ainda é a primeira: pintar num painel a primeira aula do Brasil (o jesuíta com os índios) e noutro, uma aula de hoje (uma aula de canto). No salão de exposições, na grande parede do fundo, deverão ser pintadas cenas da vida infantil. Peço-lhe que faça os necessários estudos e perdoe desde já as minhas impertinências.

Creia no grande apreço e afetuosa estima do seu amigo.

Capanema”

Capanema, Gustavo; Ministério da Educação e Saúde. [Carta] 1942 dez. 07, Rio de Janeiro, RJ [para] Candido Portinari, [Rio de Janeiro, RJ].

[14] Conforme já tive oportunidade de observar em Os azulejos de Portinari na arquitetura modernista no Brasil (2014).

[15] No original em francês: “son homme instintif, individuel, collectif et cosmique, lá Il s´est exprimé dans le grand débat homme et nature, homme et destin” (LUCAN, 1997, p. 267).

[16] Em carta a Capanema, em 30 de dezembro de 1937, ele diz: “Estou feliz também por saber que o grande escultor Celso Antônio estuda a figura monumental que será colocada diante do edifício [...]” (apud LISSOVSKY, 1996, p. 140).

[17] À sua maneira, Cândido Portinari já havia enfrentado esta questão espinhosa em sua obra pictórica desta época. Para ele, o verdadeiro brasileiro não era nem sulista, nem nordestino ou sertanejo, era trabalhador. Fosse camponês ou operário, a figura do homem trabalhador, duro, embrutecido, calejado, resistente, reunia todas as outras coisas que limitavam-se ao reino das aparências. É nesse sentido que obras como Mestiço (1934), Café (1935) e Lavrador de Café (1934) podem ser entendidos como produto destas reflexões na mente do artista, como produto de seu modo de ver o nacionalismo, a referência formal expressionista e a temática social. As mais influentes obras de Portinari das décadas de 1930-40 relacionam-se, em maior ou menor grau, com estas variáveis.

[18] Dois anos depois, a capital brasileira passou por dias de efervescência política com o regresso de Prestes e o apoio do P.C.B. à Aliança Nacional Libertadora (ANL). O Clube de Cultura Moderna lançou a revista Movimento, claramente se colocando ao lado da ANL. Neste mesmo ano, a revista organizou a primeira Exposição de arte Social tendo a frente o intelectual Aníbal Machado. Estiveram presentes na exposição os trabalhos de Carlos Leão, J. Barbosa, Toledo, Teruz, Alcides Rocha Miranda, Guignard, Ismael Nery, Paulo Werneck, Waldemar da Costa, Hugo Adami, Santa Rosa, Di Cavalcanti, Goeldi e, claro, Portinari. Ao que parece, a imagem de Portinari saiu enormemente fortalecida da exposição, através da divulgação de Aníbal Machado. Desconsiderando o papel da produção de Di Cavalcanti e Tarsila no movimento modernista, ele colocou textualmente em relação ao evento: “É preciso, porém, ter a coragem de afirmar que antes de Cândido Portinari, os nossos grandes pintores fugiram à realidade brasileira.Com exceção de Almeida Júnior, limitaram-se, como Pedro Américo e Victor Meirelles, aos quadros alegóricos, comemorativos e às academias luxuosas” (In: AMARAL, 2003, p.50).

[19] No período entre 1917 e 1922, a preocupação capital dos artistas brasileiros seria a afirmação de uma arte moderna. A partir de 1922 - uma vez alcançado este objetivo - esta preocupação seria marcada pelo cunho do nacionalismo. A tão decantada preocupação nacionalista na origem da arte modernista já não era de modo alguma inédita. A realidade nacional já vinha, de longe, inspirando os artistas nativos, imigrantes ou visitantes, desde o Romantismo. Apesar disto, a busca pela caracterização de uma identidade nacional parece ser o elemento comum à vanguarda brasileira. Isto naturalmente se traduzia no plano formal à subordinação da obra de arte ao assunto e colocava conceitualmente os modernistas em planos opostos. Desde Manet (1832-1883), muitos artistas modernos europeus abominariam a primazia do tema e a sujeição a um assunto. Do lado de cá do Atlântico, antes de se projetar a imagem de um Brasil, fazia-se necessário configurar-lhe uma expressão, conceituar uma brasilidade.

[20] Como já é conhecido, a afirmação do modernismo na arte brasileira correspondeu à construção de um discurso e se processou através de duas maneiras: num plano conceitual mais amplo, dizia respeito a como os artistas se defrontam com as teorias internacionais advindas das vanguardas europeias; numa outra esfera, se refere a como a subjetividade de cada artista brasileiro lidaria e como produziria a partir deste enfrentamento, nas condições de produção específicas da sociedade brasileira da época. Historicamente, estas duas maneiras correspondem a dois momentos: um a partir da Semana de 1922, que objetiva o estabelecimento de uma linguagem que fosse, ao mesmo tempo, moderna e brasileira, enraizando meios para a continuação de seus valores; e outro, a partir de 1930, quando o movimento modernista vai em direção a uma temática de preocupação social, conforme afirmou Zílio (1997, p.18).

[21] De qualquer forma, a atitude de Vargas em relação à cultura foi ambígua e sua ideologia pragmática, não impedindo que ele reprimisse fortemente os partidos de esquerda e os de direita quando se opuseram a ele. O conceito ideológico de nacionalismo da Era Vargas apresenta-se assim abstrato, devido à sua ausência de conteúdo social, resultando na prática uma definitiva consolidação do poder estatal.

[22] Para Lafetá (2000), já na metade da década de 1930, o modernismo se transformaria de um projeto estético em um projeto ideológico.

[23] Esta questão de identidade estava sendo enfrentada à época por Portinari na execução do grande mural do Ciclo Econômico. Sua primeira grande obra pública, os painéis do Ciclo da Vida Econômica do Brasil, do Ministério (Cana de açúcar, Tabaco, Algodão, Pau-Brasil, Erva-mate, Borracha, Café, Cacau, Ferro, Gado Bovino, Ouro e Carnaúba) são exemplos de como o pintor via o Brasil. A esse respeito ver: FABRIS, 1996.

[24] Como observou Schwartzman ao colocar que: “Era um projeto revolucionário em seus objetivos. Mas o modernismo, do qual Mário de Andrade foi um dos principais representantes, era suficientemente amplo e ambíguo para permitir interpretações bastante variadas e não se colocar em contradição frontal com o programa político e ideológico do Ministério da Educação. Em algumas versões, o modernismo se aproximaria perigosamente do irracionalismo nacionalista e autoritário europeu, e não é por acaso que o próprio Plínio Salgado seja identificado com uma das vertentes deste movimento. O que preponderou no autoritarismo brasileiro, no entanto, não foi a busca das raízes mais populares e vitais do povo, que caracterizava a preocupação de Mário de Andrade, e sim a tentativa de fazer do catolicismo tradicional e do culto dos símbolos e lideres da pátria a base mítica do Estado forte que se tratava de constituir. Capanema estava, seguramente, muito mais identificado com esta vertente do que com a representada pelo autor de Macunaíma, que não temia entrar em contato com ‘a sensualidade, o gosto pelas bobagens um certo sentimentalismo melado, heroísmo, coragem e covardia misturados, uma propensão política e pro discurso’ que faziam parte da visão andradiana do caráter brasileiro.

Era, sem dúvida, no envolvimento dos modernistas com o folclore, as artes, e particularmente com a poesia e as artes plásticas, que residia o ponto de contato entre eles e o ministério. Para o ministro, importavam os valores estéticos e a proximidade com a cultura; para os intelectuais, o Ministério da Educação abria a possibilidade de um espaço para o desenvolvimento de seu trabalho, a partir do qual supunham que poderia ser contrabandeado, por assim dizer, o conteúdo revolucionário mais amplo que acreditavam que suas obras poderiam trazer.” Disponível em: <http://www.schwartzman.org.br/simon/capanema/capit3.htm>. Acesso em: Acesso em: 22 ago 2013, 12:45.

[25] Como também observou Schwartzman: “em telegramas à embaixada brasileira em Roma, de maio e junho de 1935, Capanema pedia que se contratasse o arquiteto para ‘vir ao Brasil realizar idêntico serviço informando preço e tempo provável.’ Uma longa carta do ministro de Relações Exteriores, J. C. Macedo Soares, instruindo a embaixada em Roma sobre o assunto, informava que a cidade deveria ser construída na Praia Vermelha e para realizá-la era necessário um arquiteto ‘que seja não somente uma notabilidade de fama universal na matéria, como que disponha ainda de um corpo de técnicos profissionais que, pela sua organização e capacidade, possa dar, de antemão, a garantia de fiel e completa execução da obra.’ A carta previa que talvez fosse necessário convencer o governo italiano sobre a importância do trabalho e, para isto, sugeria que a embaixada argumentasse mostrando ‘o alto e expressivo significado que terá para o nome da Itália e do regime fascista, em particular, a obra de vulto brasileira a ser executada pelo arquiteto italiano. A boa propaganda da cultura italiana no Brasil deverá impressionar a geração atual dos nossos universitários e dos que virão.’” Disponível em: <http://www.schwartzman.org.br/simon/capanema/capit3.htm>. Acesso em 28 abr 2014.

[26] Numa entrevista concedida em 12 de Dezembro de 1968 a Alberto Xavier, Capanema se referiu à colocação precisa de determinadas obras e aos imodestos objetivos ambicionados: “Aí foram lançados nomes como os de Portinari, Celso Antonio, para quem o Congresso Nacional acaba de votar uma pensão, porque ele está na miséria, inclusive passando necessidades. Colaborou também o Lipchitz, em uma escultura na parede curva do auditório. Aquela parede devia ter uma escultura e uma [escultura] ali era uma coisa muito difícil. Tentamos com o Celso Antonio, com o Bruno Giorgi, com o Brecheret, enfim, com muitos escultores brasileiros. Nenhum dava certo. O Celso Antonio fez uma escultura muito bonita para lá, uma beleza de escultura. Fez a maquete e eu e Lúcio Costa fomos vê-la. Então, Lúcio Costa me disse: ‘Dá idéia de uma borboleta pregada na parede.’ Então, eu lhe disse: ‘Olha, Lúcio, você liquidou com o projeto inicial, eu já não faço mais.’ A nossa ideia a respeito do projeto e de que fosse ou representasse uma vitória, uma coisa como a Vitória de Samotrácia. A vitória de Samotrácia era o que estava na minha cabeça, embora eu não a conhecesse ainda. Ela nunca esteve no Brasil. Só muito tempo depois é que pude vê-la em Paris. A vitória de Samotrácia me entusiasmava muito. Eu queria uma coisa como aquilo, uma coisa daquele gênero, com aquele sentido. Foi então que Oscar Niemeyer sugeriu-me que indagasse o Lipchitz, que estava em Nova York, poderia vir fazer a escultura.” (CAPANEMA, Gustavo. Depoimento sobre o edifício do Ministério da Educação. In: XAVIER, Alberto, 2003).

[27] CAPANEMA, G. Depoimento sobre o edifício do Ministério da Educação. In: Módulo, nº 85, Rio de Janeiro: maio 1985, p. 28-32. Reproduzido em XAVIER, Alberto (Org.). Arquitetura moderna brasileira. Depoimento de uma geração. São Paulo, ABEA/FVA/PINI, 1987, p. 113-126.

[28] A obra foi içada em 1945, e conforme colocou José Barki: “devido a sua complexidade, em 1944 foi enviado um modelo com 1/3 das proporções previstas. Devido à dificuldades técnicas, além da intuição acerca do fim do governo Vargas, Capanema decidiu colocar a figura em bronze com o mesmo tamanho do modelo. Isto causou irritação em Lipchitz, que negou a autoria nas publicações de sua obra. Cabe reconhecer que estava certo: a escultura se perde na amplitude do muro e na escala urbana fica pouco legível. No entanto, é a obra esteticamente mais avançada entre as esculturas no ministério. Nela, a simplicidade das ‘decomposições’ cubistas dos arlequins se transformou em um ‘paroxismo barroco’ expressionista. Prometeu e o abutre estão fundidos com um ritmo que é definido pela variação da luz ao longo do dia. O drama é percebido, não somente pelo escuro do bronze, mas também pela tensão que transcende o acontecimento, exteriorizado pela deformação do corpo do Prometeu no gesto de estrangular o abutre. Uma vez colocada, desencadeou uma polêmica na imprensa, com poucos artigos favoráveis - de Quirino Campofiorito e Agostinho Olavo - e uma multiplicidade contra.” (BARKI et all, op. cit. 2006).

[29] Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.069/376>.

[30] Pelo rádio, a locutora Lúcia Magalhães informou aos ouvintes que o monumento seria uma expressão de confiança no futuro da raça. Em suas palavras: “eu muitas vezes disse, através deste microfone, que a atual geração da Juventude Brasileira era predestinada. Confirmando esta intuição, é preciso ver mais um signo de predestinação nesse momento que perpetuando no bronze toda a Juventude da nossa terra, a que amanhã surgirá para tomar das mãos dos seus maiores o facho da civilização [...]. É esse sentimento, fator precioso e unificador da Pátria, que o Monumento da Juventude Brasileira quer perpetuar. [...] entrego aos meus ouvintes da Hora da Juventude a missão honrosa de propagar a fé no futuro de seus próprios destinos.” (In: KNAUSS, op. Cit. P. 185).

[31] Observa-se que são feitas diferentes alternativas de apoio para o grupo escultórico, mas não formas diferentes. A ideia do jovem casal já estava definida e parecia ser inegociável.