Sócrates afastando Alcebíades do vício,” de Jules Le Chevrel e Pedro Américo: uma análise formal com base nos cinco pares de conceitos de Heinrich Wölfflin

Ricardo A. B. Pereira*

PEREIRA, Ricardo A. B.. “Sócrates afastando Alcebíades do vício,” de Jules Le Chevrel e Pedro Américo: uma análise formal com base nos cinco pares de conceitos de Heinrich Wölfflin. 19&20, Rio de Janeiro, v. XIV, n. 1, jan.-jun. 2019. https://www.doi.org/10.52913/19e20.XIV1.08   

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              1.        A pintura no século XIX praticada dentro das academias de arte europeia e nos países colonizados pelos europeus pautava-se pelo respeito à tradição herdada da cultura greco-romana. Contudo, não havia uniformidade absoluta nos resultados obtidos pelos pintores formados nestas academias e nem na sua maneira de interpretar o mundo clássico, inclusive em nossa Academia Imperial de Belas Artes (AIBA). Assim, enquanto alguns pintores acadêmicos tinham como referência o classicismo do tipo praticado por Rafael ou Poussin, outros mergulhavam diretamente nas referências greco-romanas originais. Por outro lado, não se pode esquecer que a arte barroca, em seguimento ao Maneirismo, predominou na segunda metade do século XVII e em grande parte do XVIII, com sua extensão Rococó (no Brasil penetrando no século XIX), e, mesmo que o Neoclassicismo buscasse se livrar do que considerava excessos praticados por artistas daquele período, certamente algumas das soluções plásticas barrocas tiveram continuidade na obra de artistas do século XIX, fossem eles acadêmicos ou não.

              2.        Esta presença de um classicismo mais “puro” e de um com elementos barrocos pode ser vista em duas interessantes obras do acervo do Museu D. João VI pertencentes à Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). São pinturas que têm como tema Sócrates afastando Alcebíades do vício e foram realizadas pelo pintor francês Jules Le Chevrel (c.1810-1872) e por seu colega brasileiro Pedro Américo (1843-1905) como uma das provas do concurso para a Cadeira de Desenho no ano de 1865 na Academia Imperial de Belas Artes. A maneira como se deu este concurso e em que contexto histórico são tópicos que foram muito bem descritos no artigo Crítica e concepção da pintura histórica na AIBA em 1865 - Pedro Américo e Le Chevrel da pesquisadora e professora da EBA/UFRJ Dra. Ana Cavalcanti;[1] por isso, não me deterei nos aspectos relativos ao modus operandi deste concurso. Minha análise recairá sobre os aspectos formais das duas obras, principalmente sobre aqueles pontos os quais vejo como sendo definidores do tipo de linguagem clássica a que estão associadas - a do tipo puramente Neoclássico e a do tipo com influências do Barroco.

              3.        Todavia, visando trabalhar sobre uma base de argumentação reconhecida e sólida, utilizarei os cinco pares de conceitos desenvolvidos por Heinrich Wölfflin[2] como minhas referências teóricas, aplicando-os à leitura formal das duas obras supracitadas como meio para extrair delas as suas características essenciais e também para mostrar porque motivo a obra de Pedro Américo, perante a banca examinadora do concurso da AIBA, superou a de Le Chevrel. Estes pares de conceitos aplicáveis tanto à pintura quanto à arquitetura e à escultura, são os seguintes:

              4.        (1) O Linear e o Pictórico: através destes termos, Wölfflin busca diferenciar aquelas obras nas quais, no primeiro caso, prevalece a linha como principal elemento definidor da forma - obras “tectônicas” -, daquelas em que a linha deixa de ter importância ao ser substituída por soluções “pictóricas” nas quais prevalecem a mancha modelando massas dinâmicas de sombra e luz - obras “atectônicas”. Neste sentido, as pinturas de Rafael e Leonardo da Vinci, por exemplo, artistas pertencentes ao Renascimento, são lineares e tectônicas. Já Rubens e Rembrandt se encontram, segundo este pensamento, dentro do contexto do pictórico, assim como o Barroco de forma geral.[3]

              5.        (2) Plano e Profundidade: através deste par de conceitos, o autor evidencia a diferença que existe na maneira como pintores do século XVI dispunham suas figuras no espaço quando comparados aos do século XVII. Assim, Wölfflin observa que nas obras renascentistas era usual que os planos frontais fossem valorizados e que sobre eles fossem colocados os diversos elementos da composição, indo-se gradativamente do primeiro plano em direção ao fundo, resultando num efeito de afastamento cadenciado e suave. De maneira bem diferente, os pintores barrocos evitavam ao máximo a criação de tais planos frontais, preferindo criar forte movimento em direção ao fundo com a utilização de linhas compositivas em diagonal gerando movimentos muito rápidos e com muita dramaticidade.[4]

              6.        (3) Forma Aberta e Forma Fechada: com o conceito de forma fechada, Wölfflin refere-se às composições do Renascimento nas quais todo o tema e formas estavam plenamente contidas no espaço da pintura de maneira bem definida. Assim, a narrativa expressa nas pinturas renascentistas tem início num espaço e tempo bem definidos e fechados, ou seja, concluídos. Já para o artista barroco, ao contrário, interessava deixar em aberto tanto este espaço quanto este tempo, de maneira a passar em suas criações uma sensação de indeterminação de tempo e, além disso, de espaço ilimitado.[5]

              7.        (4) Pluralidade e Unidade: no contexto do Renascimento, os elementos temáticos dentro de uma composição, apesar de estarem subordinados a um todo coeso e harmônico, possuem certa independência visual, destacando-se por suas cores e formas particulares, o que gera uma impressão de pluralidade dentro de uma unidade. Mas durante o Barroco, buscou-se dar maior sensação de conjunto à composição, subordinando-se tudo a um elemento principal que rege toda ação. Então desapareceram as partes autônomas e passou a prevalecer um motivo principal exposto com destaque muito intenso.[6]

              8.        (5) Clareza e obscuridade: com estes dois últimos conceitos Wölfflin objetiva mostrar como a arte praticada pelos renascentistas tinha como fundamental interesse apresentar-se perfeitamente clara e compreensível em suas mensagens tanto plasticamente quanto nos seus temas. Já os artistas do Barroco, mesmo não sendo propositalmente obscuros e ambíguos como foram os maneiristas, procuravam, contudo, que suas mensagens se revelassem de forma indireta, ou seja, através de processos circulares, rebuscados e distantes da clareza absoluta.[7]

              9.        Concluído este brevíssimo resumo do teor dos cinco pares de conceitos desenvolvidos por Wölfflin, farei agora uma igualmente breve descrição do assunto tratado pelo tema sorteado pela banca para o referido concurso de 1865. Nas palavras de Ana Cavalcanti, “sabemos que Alcebíades (c. 450-404 a. C.), figura de atuação política e militar controversa na Grécia Antiga, era sobrinho de Péricles e discípulo de Sócrates,”[8] surgindo também em O Banquete e nos dois diálogos Primeiro Alcebíades e Segundo Alcebíades, obras do filósofo Platão.[9] Então, tendo Alcebíades se desviado de uma conduta virtuosa, passou a frequentar a companhia das meretrizes, atitude esta que levou Sócrates a tentar dissuadi-lo de tal vida nada louvável. Desta maneira, o assunto principal para os dois pintores concorrentes é mostrar exatamente o momento em que o velho filósofo se acerca do jovem ateniense e o aconselha a segui-lo para fora deste mundo de prazeres vãos, tomando um rumo mais elevado na vida. Todavia, fazendo uma ressalva quanto a esta ênfase na lubricidade de Alcebíades, informa-nos ainda Ana Cavalcanti: “Acredito que o enfoque na vida de luxúria do herói grego tenha sido privilegiado, incialmente, no correr do século XVIII.”[10]

            10.        Seja como for, com base nesta narrativa literária determinada pelo sorteio, foram criadas as duas pinturas que podemos observar através das Figura 1 e Figura 2.

            11.        Logo ao primeiro contato com tais pinturas (que estão hoje dispostas lado a lado no acervo do Museu D. João VI) vemos o quanto a abordagem do tema pelo veterano artista francês[11] e pelo jovem pintor brasileiro diferem fortemente uma da outra. Le Chevrel optou por colocar Alcebíades numa posição central dentro de um ambiente fechado, tendo na sua esquerda, praticamente de costas para nós, a figura de Sócrates envolvido num pesado manto, enquanto ao lado direito do jovem indeciso dispôs em pose reclinada e frontal a nudez roliça de sua cortesã. Alcebíades parece meditar nas sentenças recém-proferidas por Sócrates diante da indiferença de sua companheira de prazeres e da impassibilidade do filósofo. Com isso, ficamos com a impressão de que o tempo parou indefinidamente enquanto Alcebíades toma uma decisão apoiando pensativamente o queixo na mão.  Por seu turno, Pedro Américo, num ambiente aberto, nos apresenta Sócrates em pose frontal, caminhando firme e calmamente para fora da cena de braço dado com seu pensativo pupilo. Vão deixando para trás uma seminua meretriz cuja face divertida parece expressar dúvidas quanto à eficácia dos elevados conselhos do filósofo. Fica-nos bem viva a impressão da existência de movimento, de que assistimos ao desenrolar de uma ação sem um fim ainda determinado.

            12.        Feita esta apresentação inicial do tema e de suas representações plásticas, posso passar a análise de ambas segundo os conceitos de Wölfflin já resumidos, apontando em cada uma das pinturas o quanto tais conceitos são aplicáveis e o que, segundo os mesmos, aproxima ou distancia uma pintura da outra.

            13.        (1) O Linear e o Pictórico - É característico da pintura neoclássica dar um papel primordial ao desenho, e é exatamente isto que vemos acontecer na pintura de Le Chevrel, o qual é bastante preciso na delimitação de suas figuras, sejam elas personagens humanos, elementos arquitetônicos ou detalhes cenográficos. Desta forma, tudo é determinado com grande clareza. Pedro Américo, do mesmo modo, aplica com muita pertinência a linguagem linear do desenho, sendo neste ponto sua pintura próxima da realizada por seu concorrente. Com isso, pode-se ver as duas obras como exemplos incontestáveis da linguagem acadêmica do século XIX. Entretanto, na obra de Pedro Américo este desenho flui mais facilmente, tornando suas figuras mais naturais e humanas, como no desenho da cabeça de Sócrates, a qual o artista apresenta como a de um idealizado sábio absorvido em pensamentos elevados [Figura 3]. O mesmo já não acontece com a cabeça de Sócrates desenhada por Le Chevrel, que é vista de perfil e com pouquíssima expressividade, o que faz com que o filósofo se mostre aí como pouco mais do que um ator secundário em cena apesar de seu grande peso visual na composição e importância fundamental para a narrativa [Figura 4].

            14.        Outro bom exemplo de como o desenho de Le Chevrel é mais “duro” quando comparado com o de Pedro Américo está visível nas representações de ambos para a cabeça de Alcebíades. O primeiro artista a realiza como se fosse uma máscara, tentando lhe propiciar alguma expressão de dúvida ao apoiar-lhe o queixo em sua mão fechada, mas o resultado alcançado é pouco convincente devido, principalmente, ao desenho do polegar que “rouba a cena” por ser, no nosso entender, muito canhestro [Figura 5]. A mesma cabeça na versão de Pedro Américo é capaz de expressar com muito mais eficiência a dúvida de Alcebíades: seu desenho representa mais convincentemente os sentimentos do jovem político, enquanto o mesmo recurso “da mão no queixo” foi realizado com muito mais naturalidade e domínio anatômico [Figura 6].

            15.        A companhia feminina de Alcebíades também se mostra representada com mais ou menos expressão segundo a interpretação de um ou de outro pintor. Em Le Chevrel [Figura 7 e Figura 8], ela torna-se um personagem extraído de um relevo grego, desenhada numa clássica pose lateralmente inclinada sobre o divã, mas com um aspecto frio, distante e indiferente ao que se passa diante dela entre seu amante e o filósofo.

            16.        Enquanto isso, Pedro Américo nos apresenta esta mesma personagem desenhada em leve escorço frontal [Figura 9 e Figura 10], criando forte ligação entre ela e os dois homens que se afastam através do que seu rosto expressa com muita propriedade dentro do contexto da narrativa: divertida ironia. No entanto, o “ar clássico” e distanciado também aqui se apresenta, porém exposto pelas outras duas mulheres em cena, colocadas um pouco mais atrás, as quais cumprem papel de figuras coadjuvantes [Figura 11].

            17.        De resto, nos detalhes que compõem o cenário, o desenho de Le Chevrel e Pedro Américo se equivalem em qualidade, sendo o número de objetos expostos maior na pintura do primeiro em relação a do segundo pintor. Neste sentido, ambos demonstram pleno conhecimento das características visuais do período histórico abordado pelo tema, a Grécia Clássica, sendo Le Chevrel mais “prolixo” [Figura 12, Figura 13, Figura 14, Figura 15 e Figura 16] na sua realização do que seu concorrente brasileiro [Figura 17, Figura 18 e Figura 19].

            18.        Enfim, em relação aos conceitos Linear e Pictórico é possível afirmar certa equivalência de aplicação entre as duas obras, apontando-se uma maior desenvoltura e sutileza na linha desenhada por Pedro Américo.

            19.        (2) Plano e profundidade – Quanto à maneira como os personagens são distribuídos na composição, a diferença entre as abordagens dos dois pintores é bem maior. Le Chevrel trabalha segundo à forma do Renascimento, encaixando suas figuras em planos frontais paralelos ao plano da superfície do quadro. Assim, o degrau na parte inferior da composição marca claramente o primeiro plano no qual Sócrates se encontra [Figura 20]. Imediatamente após está o grupo de Alcebíades e sua amante, ambos dispostos de maneira bem frontal no seu próprio plano [Figura 21]. Mais atrás, num terceiro plano, aparecem na sombra duas serviçais à esquerda de Sócrates e um grupo escultórico sobre um pedestal alto, acompanhado por um vaso num pedestal mais baixo à direita da cortesã [Figura 22]. Por fim, a parede do fundo coberta por uma cortina verde fecha esta caixa cênica, trazendo-nos de volta ao primeiro plano [Figura 23]. Para promover profundidade, o artista criou em perspectiva uma cortina verde transparente no lado direito da cena, atrás da qual são percebidos alguns personagens escondidos [Figura 13]. Paralelamente, do lado esquerdo vemos em perspectiva uma das paredes amarelas do aposento decorada com barras horizontais laranjas e verticais azuis. Neste tipo de disposição frontal há pouca ou nenhuma sensação de movimento em cena, o que a torna praticamente estática.

            20.        Pedro Américo, por seu turno, utilizou um recurso que relaciona sua obra às pinturas do período Barroco, cujos pintores evitavam associar suas figuras a planos frontais determinados[Figura 24]. Sendo assim, o pintor brasileiro dispôs seus dois personagens principais, acompanhados por um animado cachorro [Figura 19], numa linha oblíqua que parte da amante e vai em direção ao lado esquerdo da composição, indicando claramente que estão prestes a sair de cena. Mesmo a irônica cortesã, ainda que sentada frontalmente em seu lugar, está reclinada levemente para trás e com a cabeça tombada também para o lado esquerdo enquanto suas pernas apontam para a direita, desta forma criando outro sentido de direção (para a direita) e não se encaixando num plano frontal como sua “colega” na versão de Le Chevrel. Para acentuar ainda mais esta impressão de profundidade, Pedro Américo montou a cena num local aberto, espécie de varanda em cujo fundo se descortina a vista de um templo e um trecho do céu ao entardecer [Figura 17]. A grande coluna logo atrás de Alcebíades marca um plano frontal correspondente à parede de fundo criada por Le Chevrel em sua pintura, mas ao se contrapor ao templo e ao azul profundo do céu tem o efeito contrário de não limitar o espaço cênico e sim de indicar que ele se expande muito além do que a pintura pode mostrar. Desta disposição movimentada surge a impressão bem viva de que o desfecho da narrativa ainda não se deu e que terá desdobramentos que ficarão ao encargo da nossa imaginação.

            21.        Portanto, enquanto Le Chevrel circunscreveu sua narrativa num tempo e espaços finitos, Pedro Américo buscou apresentar a mesma situação dentro de um tempo e espaço abertos, infinitos, bem ao gosto da época que precedera sua época, o Barroco.

            22.        (3) Forma Aberta e Forma Fechada - Nos comentários precedentes está exposto muito do que pode ser dito em relação aos conceitos de Forma Aberta e Forma Fechada aplicados a estas duas pinturas. Em seu trabalho, Le Chevrel nos apresenta os personagens circunscritos a uma sala fechada a que temos acesso pelo plano frontal, como se a estivéssemos olhando de uma plateia ou bisbilhotando de uma janela colocada em frente à Alcebíades. Assistimos ao momento em que o herói considera as palavras de Sócrates enquanto o filósofo aguarda por sua resposta. Tudo o mais - a meretriz recostada ao lado de Alcebíades, os objetos espalhados no primeiro plano à esquerda e à direita, as criadas logo atrás, o grupo escultórico no alto de um pedestal, cortinas, etc. -, são apenas adereços que ajudam a compor a narrativa central e a ela estão subordinados. Logo, deparamo-nos com uma situação muito voltada para dentro, em que a figura de Sócrates com seu olhar direcionado ao jovem e de perfil para nós torna-se bastante responsável por esta impressão. Portanto, tudo começa aí e se algum desfecho tiver, dependendo da visível incapacidade de Alcebíades de se decidir, vai se dar aí mesmo, neste quarto de bordel.

            23.        De maneira contrária, Pedro Américo nos apresenta o jovem, ainda que não de todo convencido, sendo efetivamente afastado pelo filósofo para longe de sua amante. Nesta ação, dirigem-se para fora do quadro, ou seja, para fora da cena ambientada num espaço aberto. Estamos, pois, presenciando um contexto de Forma Aberta de onde parte um movimento que a expande ainda mais no espaço e no tempo.

            24.        (4) Pluralidade e Unidade - neste contexto percebe-se que a pintura de Le Chevrel se inscreve mais dentro do primeiro conceito do que no segundo. Isto acontece tanto em relação a maneira como ele utilizou a cor quanto como criou vários pontos de interesse dentro da cena que tendem a distrair nossa atenção do assunto principal. Como exemplo destes elementos dispersivos posso citar os ramos e flores caídos sobre o degrau no primeiro plano, a volumosa cítara branca à direita, o pesado vaso grego aos pés da cama e, ao seu lado, a exótica natureza-morta que inclui até uma melancia. Como se não bastasse, do lado esquerdo vemos uma plaqueta de mármore com inscrições apoiada numa elevada peça de ferro que sustenta um pequeno vaso; com a plaqueta temos ainda um conjunto de rolos de papel. Mais atrás surge uma espécie de incensário e, mais para o fundo, as duas criadas que parecem se interessar pelo que se passa entre sua patroa, o jovem amante e o filósofo. Os tecidos pesados espalhados no ambiente, o casal de amantes de mármore no alto de um pedestal e os indiscretos escondidos atrás da cortina verde são outros tantos pontos que demonstram o gosto de Le Chevrel pela multiplicidade com o fim, logicamente, de dar autenticidade e coerência ao tema. No caso da aplicação das cores, o pintor francês as utiliza de uma forma que dá forte independência às diversas superfícies por elas coloridas, ainda que buscando equilibrá-las ao longo da composição. É por isso que os ladrilhos do piso ganham tanto destaque, assim como as cartelas laranjas na parede da esquerda e do fundo, as cortinas verdes e vermelhas, o manto ocre de Sócrates, o manto vermelho que encobre o quadril de Alcebíades, além de dar exagerada presença ao tecido que escorre como lava ao lado da melancia acumulando-se sobre o degrau. Enfim, trata-se de muita informação visual dentro de um espaço relativamente pequeno, e que não acrescenta muito para a compreensão do tema abordado pela pintura. Vamos encontrar este tipo de excesso informativo na pintura da primeira fase do Renascimento Italiano e principalmente nas obras dos pintores flamengos do século XV e XVI.

            25.        Unidade, por outro lado, é o que se sente quando observamos a pintura de Pedro Américo, que não deixou de lançar mão de elementos cenográficos para marcar a época e o ambiente em que estão colocados os personagens, mas o fez de maneira bem mais contida. Suas cores também apresentam alguns momentos bastante vivos como na capa de Alcebíades, no manto de Sócrates, no azul do tecido que forra o encosto da cadeira em que está sentada a amante e o escabelo em que apoia seus delicados pés, sendo esta cor estendida para também encobrir a nudez da mulher logo atrás dela. Todavia, este cromatismo está subordinado a uma relação de tons escuros e um tanto quentes que circundam os personagens, propiciando sustentação e unidade às áreas de maior colorido descritas. As sombras, por sua vez, valorizam pelo contraste o trecho do céu que se abre ao fundo, assim como os corpos dos personagens principais iluminados por uma luz que desce obliquamente do canto superior esquerdo da composição (recurso também aplicado por Le Chevrel para destacar os personagens). Esta subordinação das cores a um contexto unificador e uma iluminação enfática em determinados pontos da composição foram procedimentos bastante aplicados durante o Barroco, os quais Pedro Américo utiliza eficazmente para a realizar a sua própria narrativa plástica.

            26.        (5) Clareza e obscuridade - Clareza na mensagem, e não obscuridade, foi o que tanto Le Chevrel quanto Pedro Américo tentaram alcançar em suas pinturas, pois era de se esperar que os membros da banca avaliadora do concurso pudessem nelas “ler” com facilidade a exposição do tema. Le Chevrel, como vimos, optou por criar um espaço fechado no qual pudesse construir sua narrativa tanto através dos personagens centrais como pela demonstração dos seus conhecimentos “arqueológicos” sobre a cultura grega, adicionando à composição um grande número de objetos e referências à Antiguidade. Com este procedimento tentou tornar crível sua dramatização da história. Contudo, penso que não foi feliz no seu intento, pois além de não resolver bem a dinâmica da relação entre os personagens mais importantes, desviou a atenção do espectador do assunto principal para os acessórios que colocou em cena. Isto, ainda que não tenha tornado obscuro o seu trabalho, retirou dele o poder de persuasão que seria necessário que possuísse enquanto pintura histórica.

            27.        Demonstrando o mesmo nível de conhecimento do ambiente Antigo, além de um melhor domínio das sutilezas da linguagem formal, Pedro Américo construiu uma pintura bem mais direta do ponto de vista narrativo e, além disso, com maior profundidade poética do que a de Le Chevrel. Isto, com certeza, determinou perante a banca a sua vitória no concurso.

            28.        Mais do que uma conclusão, cabe neste ponto uma reflexão com base nestas duas pinturas de Le Chevrel e Pedro Américo, comentadas à luz das proposições de Wölfflin, sobre a continuidade e o reaparecimento de determinadas formas estilísticas e maneiras de ver o mundo proporcionadas pela pintura. Vimos como Le Chevrel, baseado no espírito neoclássico, aplicou em suas obras certos métodos comuns ao Alto Renascimento e tentou recriar a Antiguidade apoiando-se no que se sabia no século XIX sobre a Cultura Clássica. Assim, seu trabalho nos remete a obra de outros pintores acadêmicos franceses e de outras nacionalidades do séc. XIX como, por exemplo, Mengs [Figura 25], David [Figura 26] e Ingres [Figura 27].

            29.        Por sua vez, tendo formação similar à do seu colega francês, Pedro Américo mesclou em sua pintura elementos da linguagem neoclássica com métodos de compor pertencentes ao período Barroco. Então, podemos ver neste procedimento uma liberdade de ação que utiliza processos criativos diferentes, de épocas diferentes, em prol de um objetivo final: narrar uma história sem que se fique preso a este ou aquele método de, por exemplo, utilizar o desenho ou aplicar a cor segundo ideologias estéticas rígidas. Neste ponto, o artista brasileiro se mostrou mais à vontade na elaboração de sua obra e, consequentemente, logrou um resultado realmente superior ao do seu concorrente seja na narração do episódio, seja nas soluções plásticas que sustentam esta narrativa. Isto parece apontar, portanto, para uma maior liberdade por parte dos artistas formados na AIBA em relação aos formados no neoclassicismo em território francês, dos quais Le Chevrel era um representante, demonstrando como eram variados os procedimentos utilizados por nossos pintores acadêmicos segundo os objetivos que pretendiam alcançar.

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* Professor Assistente do Departamento BAB – EBA/UFRJ. Pintor, Ceramista, Xilogravador. Mestre em Artes Visuais – PPGAV/EBA/UFRJ. Email: ricardopereira@eba.ufrj.br

[1] CAVALCANTI, Ana. Crítica e concepção da pintura histórica na AIBA em 1865 – Pedro Américo e Le Chevrel.  Disponível em: https://www.academia.edu/6058488/Critica_e_concepcao_da_pintura_historica_na_AIBA_em_1865_-_Pedro_Americo_e_Le_Chevrel Acesso em: 29/09/2014.

[2] Estes cinco pares de conceitos foram desenvolvidos na obra Conceitos fundamentais da História da Arte, de Heinrich Wölfflin, considerada como um dos melhores textos escritos no século XX sobre a compreensão, segundo um ponto de vista principalmente formal, da pintura, escultura e arquitetura realizadas do Renascimento ao Barroco.

[3] “Quando pretendemos exprimir de forma mais generalizada a diferença entre a arte de Dürer e a arte de Rembrandt, dizemos que Dürer é linear e Rembrandt, pictórico. Através disso fica caracterizada uma diferença de épocas que extrapola as peculiaridades pessoais. A pintura ocidental, que foi linear no século XVI, desenvolveu-se, no séc. XVII, particularmente no sentido de uma arte pictórica. [...] A arte pictórica é posterior, e sem a primeira não seria nem mesmo concebível; isto não significa, porém, que ela seja superior. O estilo linear desenvolveu valores que o estilo pictórico não mais possui e não mais quer possuir. São duas visões de mundo orientadas de forma diversa quanto ao gosto e interesse pelo mundo; não obstante, cada uma delas é capaz de oferecer uma imagem perfeita do visível. Embora no fenômeno do estilo linear a linha signifique apenas uma parte do objeto, e embora não se possa separar o contorno do objeto que envolve, podemos utilizar, em princípio, a seguinte definição popular: o estilo linear vê em linhas, o pictórico em massas. Ver de forma linear significa, então, procurar o sentido e a beleza do objeto primeiramente no contorno - também as formas internas possuem seu contorno; significa, ainda, que os olhos são conduzidos ao longo dos limites das formas e induzidos a tatear as margens. A visão em massa ocorre quando a atenção deixa de se concentrar nas margens, quando os contornos tornam-se mais ou menos indiferentes aos olhos enquanto caminhos a serem percorridos e os objetos, vistos como manchas, constituem o primeiro elemento da impressão. Nesse caso é irrelevante o fato de tais manchas significarem cores, ou apenas claridades e obscuridades.” WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p.21-22.

[4] “Nada há de especial em afirmar-se que houve uma evolução da representação plana para a representação em profundidade, pois é evidente que os meios utilizados para a expressão do volume dos corpos e da profundidade espacial se desenvolveram gradualmente. Não é nesse sentido apenas que vamos abordar os dois conceitos. O fenômeno que temos em mente é outro: de um lado, a constatação de que o séc. XVI - aquele período da arte que dominou perfeitamente os recursos da representação plástica do espaço - reconheceu como norma fundamental a combinação das formas no plano; de outro, o fato de este princípio da composição no plano ter sido abandonado pelo séc. XVII em favor de uma composição notadamente voltada para os efeitos da profundidade. No primeiro caso verifica-se um empenho pela representação no plano, que articula a imagem em camadas dispostas paralelamente à boca da cena; no segundo, a tendência a subtrair os planos dos olhos, a desvalorizá-los e torna-los insignificantes, na medida em que são enfatizadas as relações entre os elementos que se dispõem à frente e os que se encontram atrás, e o observador se vê obrigado a penetrar até o fundo do quadro.” Ibid., p.79.

[5] “Por forma fechada entendemos aquele tipo de representação que, valendo-se de recursos mais ou menos tectônicos, representa a imagem como uma realidade limitada a si mesma, que, em todos os pontos, se volta para si mesma. O estilo de forma aberta, ao contrário, extrapola a si mesmo em todos os sentidos e pretende parecer ilimitado, ainda que subsista uma limitação velada, assegurando justamente o seu caráter fechado, no sentido estético. [...] O que caracteriza todos os quadros do séc. XVI é o fato de a vertical e a horizontal não se restringirem apenas a definir direções, mas assumirem, além disso um papel decisivo no conjunto da obra. O séc. XVII procura evitar que esses contrastes elementares se manifestem de modo evidente: eles perdem a sua força tectônica, mesmo aqueles casos em que ainda estão efetivamente presentes. [...] No século XVII, o conteúdo emancipa-se dos limites do quadro. O artista procura evitar a todo custo que a composição pareça concebida para um plano determinado. [...] A diagonal, que para o Barroco constitui a direção principal, já representa um abalo para o aspecto tectônico do quadro na medida em que nega, ou pelo menos dissimula, tudo que diz respeito aos ângulos retos da cena. Mas a intenção do artista que busca o ilimitado, o fortuito, tem outra consequência: ela acaba por abandonar até mesmo os assim chamados aspectos “puros” da frontalidade e do perfil. A arte clássica apreciou muito a força elementar desses aspectos, cultivando-os como formas de contrastes. A arte barroca impede que os objetos se consolidem nesses aspectos primitivos. [...] Em última análise, porém, a tendência principal está em não permitir que o quadro resulte num fragmento do mundo que exista apenas por si e para si, mas num espetáculo passageiro, do qual o observador tem a sorte de participar somente por alguns instantes. O problema não está na representação na horizontal ou na vertical, de frente ou de perfil, no aspecto tectônico ou atectônico, mas em saber se a figura, o conjunto do quadro, se apresenta como uma realidade visível intencional ou não. Na concepção dos quadros do séc. XVII, a busca do instante passageiro também significa um aspecto da ‘forma aberta’.” Ibid, p.135-137.

[6] “O princípio da forma fechada já pressupõe que a obra seja concebida como uma unidade. Somente quando a totalidade das formas for percebida como um todo é que se poderá compreendê-la como uma composição subordinada a determinadas regras, não importando tratar-se de uma obra do estilo tectônico ou de uma outra de ordenação mais livre. [...] A mesma diferença impõe-se entre uma composição do séc. XV e uma do séc. XVI [Wölfflin havia feito comparações entre cabeças (retratos) da primeira fase do Renascimento com as do Alto Renascimento]. Na primeira predomina a dispersão, na segunda, a concentração dos elementos; naquela, ora presenciamos a pobreza de um objeto isolado, ora a confusão estabelecida pelo número excessivo de objetos; nesta, o que se observa é um todo articulado, onde cada componente, claramente identificável, fala por si, podendo, não obstante, ser imediatamente reconhecido como parte integrante de um conjunto, vinculado a um todo formal. Somente na medida em que formos apontando as características que evidenciam a diferença entre a época clássica e a anterior, é que obteremos os fundamentos para o nosso tema propriamente dito. Mas é exatamente nesse ponto que se faz sentir de modo mais flagrante a falta de vocábulos diferenciais: ao mesmo tempo que mencionamos a unidade da composição como uma característica básica da arte do Cinquecento, somos forçados a admitir que precisamente a época de Rafael foi uma época voltada para a pluralidade, em oposição à arte posterior, que apresentou uma tendência no sentido da unidade.[...] Os artistas do Seicento atêm-se a um motivo principal, ao qual subordinam tudo mais. O efeito produzido pela imagem já não depende da maneira pela qual os elementos isolados se condicionam e equilibram reciprocamente; pelo contrário, do todo transformado em um fluxo único emergem formas isoladas de caráter absolutamente dominante, mas de maneira tal que, mesmo preservando a sua função diretriz, essas formas não significam para os olhos algo que possa ser considerado à parte ou destacado do todo. [...] Basicamente, o Barroco já não conta com uma pluralidade de partes autônomas que se ajustam harmonicamente, e sim com uma unidade absoluta, em meio à qual cada uma das partes deixou de ser independente. Daí a razão pela qual o motivo principal se destaca com uma força até então desconhecida.” Ibid., p.169-171.

[7] “Toda época exige de sua arte que ela seja clara, e dizer de uma obra que ela é obscura significou uma maneira de criticá-la. Mas a palavra clareza tece no século XVI um significado diferente daquele de épocas anteriores. Para a arte clássica, não existe beleza se a forma não se manifesta em sua totalidade; no Barroco, a clareza absoluta torna-se obscura até mesmo naqueles casos em que o artista pretende reproduzir com perfeição a realidade. A imagem não coincide com o grau máximo de nitidez objetiva, mas pelo contrário, evita-o. [...] O desenho clássico sempre buscou um tipo de representação que fosse capaz de esgotar totalmente o problema da nitidez formal. Todas as formas são obrigadas a mostrar o que possuem de mais característico. Os diversos motivos são desenvolvidos em contrastes expressivos. É possível medi-los com rigor em toda sua extensão. [...] O Barroco rejeita esse grau máximo de nitidez. Sua intenção não é a de dizer tudo, quando há detalhes que podem ser adivinhados. Mais ainda: a beleza já não reside na clareza perfeitamente tangível, mas passa a existir nas formas que, em si, possuem algo de intangível e parecem escapar sempre ao observador. O interesse pela forma claramente moldada cede lugar ao interesse pela imagem ilimitada e dinâmica. Por essa razão, desaparecem também os ângulos de visão elementares, ou seja, a pura frontalidade e o perfil exato; o artista busca o caráter expressivo na imagem fortuita.” Ibid., p.217-219.

[8] CAVALCANTI, op. cit., p. 270.

[9] Ibid., p. 270.

[10] Ibid., p. 270.

[11] Sabemos, por exemplo, que Pedro Américo e Le Chevrel, os concorrentes ao lugar de professor de Desenho na Academia, se encontravam em etapas bem diversas em seus percursos artísticos. Pedro Américo, aos 22 anos, voltava ao Brasil após um período de estudos na Europa, onde vivera custeado pelo “bolsinho do Imperador,” auxílio dado por Pedro II para o pintor se aperfeiçoar em Paris. Em 1865, além de prestar concurso para magistério, o jovem recebera, pela primeira vez, uma medalha de ouro na Exposição Geral da Academia, por sua tela A Carioca. Le Chevrel, por seu lado, já era um homem de meia idade em 1865. Pintor francês, chegara ao Brasil na década de 1840 e participara com assiduidade das Exposições Gerais. Além disso, desde maio de 1864, era professor interino de Desenho Figurado na Academia. Ibid. p. 264,265.