As pinturas sobre tela da Catedral de Belém: universo visual e trajetória de restauro
Renata de Fátima da Costa Maués [1]
MAUÉS, Renata de Fátima da Costa. As pinturas sobre tela da Catedral de Belém: universo visual e trajetória de restauro. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 3, jul./set. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/pcbelem_rfcm.htm>.
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1. Histórico da construção da Catedral de Belém
Com a fundação da cidade de Belém, Castelo Branco erigiu uma capela consagrada a Nossa Senhora da Graça, uma construção feita de madeira e barro, sendo esta, segundo Lustosa (1992, p. 512) a primeira matriz do Pará. A capela, devido à precariedade dos materiais de construção, logo começou a deteriorar-se e em seu lugar foi levantada uma segunda construção, que resistiu até o final do século XVII. Cruz (1974, p.33) informa que “o Pará foi instituído bispado, onde a matriz de Nossa Senhora da Graça, foi transformada em Sé episcopal”. Diante deste fato, D. João V, em 1723 ordenou a construção de uma Catedral “a qual desejava que desse toda a Magnificência Possível”, porém a pedra fundamental foi lançada somente no dia 3 de maio de 1748, pelo segundo bispo de Belém, Dom frei Guilherme de São José. Enquanto a igreja estava em construção, a sede do bispado funcionava na Capela de São João Batista, onde o segundo bispo tomou posse.
Lustosa (1992, p. 513) narra que foi realizada grande comemoração com a presença do governador Mendonça Furtado e várias autoridades civis e militares para o lançamento da primeira pedra de construção da igreja e que sete anos depois, o corpo da Catedral já se encontrava construída até o arco da capela mor (arco do cruzeiro), sendo abençoado pelo então terceiro bispo Dom Frei Miguel de Bulhões no dia 23 de dezembro de 1755 e trasladado o Santíssimo Sacramento da capelinha de São João para a nova igreja.
A construção da capela mor levou mais de cinco anos para ser concluída, pois os trabalhos foram paralisados por alguns problemas de ajuste no projeto e pela demora de comunicação com Portugal de onde vinham às orientações para a edificação. As obras de construção da igreja foram concluídas em oito de setembro de 1771. E “foi definitivamente aberta ao público a 24 de junho de 1777”.
Coube a Dom Antonio de Macedo Costa [Figura 1] [2] a tarefa de remodelar o templo dentro de padrões que iriam inscrever a edificação como uma das mais belas igrejas do Brasil. Para tanto, empenhou vários anos nessa tarefa que só foi concluída posteriormente a sua saída e transferência em 26 de junho de 1890, para a Arquidiocese de Salvador/Bahia, nomeado em seu lugar, Dom Jerônimo Tomé da Silva.
Dom Antônio de Macedo Costa, que era também dedicado às belas artes, [grifo nosso] viu, no grande templo de belas linhas arquitetônicas, a possibilidade de uma reforma, que o havia de tornar dos mais belos do Brasil. E começou o aformoseamento da Catedral. (LUSTOSA, 1992, p.514)
O processo remodelador teve inicio com a assinatura do contrato datado de 15 de julho de 1867 entre o bispo do Pará e o arquiteto e escultor italiano Luca Carimini para a construção de um novo retábulo mor para a Sé de Belém. A Catedral possuía um altar primitivo talhado na madeira, atribuído por alguns pesquisadores, a Pedro Alexandrino.
O papa Pio IX, o imperador e o governo imperial, o governo da província do Pará, o bispado e seus diocesanos, colaboraram com recursos para a elaboração da encomenda, que após ter sido concluída e entregue a diocese de Belém, demorou cerca de dez anos para ser assentado, possivelmente por falta de recursos já que o custo com a construção do altar foi bastante elevado. No jornal Diário de Belém no. 76, do dia 6 de abril de 1881, tem-se a informação referente a benção da primeira pedra[3] do rétabulo mor:
Hontem as 10 horas da manhã teve logar a importante ceremonia da benção da primeira pedra do grande altar de mármore com que o zeloso Bispo Diocesano pretende dotar a nossa Cathedral.
S. Exe. Rvm., paramentado de pluvial branco, dirigio algumas palavras ao numeroso auditório, e depois procedeu a solemnidade de benção segundo o Rituale Romanum.
Em seguida o Rvdm. Cônego Secretário leu o respectivo auto, escripto em latim, que depois de assignado por S. Exe. Rvm., Revdm. Cabido, Sacerdotes e muitas das pessoas gradas que assistiram a ceremonia, foi encerrado em uma caixa de cobre, juntando-se-lhe algumas moedas de ouro, prata, nickel e cobre, do império e bem assim as armas do incansavel prelado esculpidas em bronze.
Collocou-se depois a pedra no logar competente, e uma grande girandola de foguetes troou no espaço, confundindo-se com os harmoniosos sons do sino da egreja.
Foi grande a concorrencia do povo; ali se achavam também muitas famílias, representantes da imprensa, e cidadãos de todas as classes da sociedade.
Lustosa (1992, p. 528) transcreve um documento encaminhado por Dom Macedo ao presidente da província, Sr. José Coelho da Gama Abreu, referente à liberação de uma verba aprovada na lei do orçamento provincial, destinada a colocação do altar de mármore na Catedral. A verba foi cancelada, pois a assembleia tinha a compreensão que a província do Pará já havia colaborado com um considerável montante para a efetivação da obra e que a mesma não havia iniciado.
O Bispo esclarece que o montante cedido anteriormente, foi para a confecção do altar de mármore e que o recurso solicitado era para pagar os custos de sua instalação. Apesar dos questionamentos que surgiram sobre o uso de recursos, é certo que para a conclusão das obras de reforma, houve a participação tanto do governo da província, como também do imperador na destinação de recursos para a consolidação da empreitada do Bispo do Pará.
2. Procedimentos e concepção do restauro
Pouco mais de um século se passou e novamente a Catedral deu início a um processo de reforma e restauração. O projeto foi pautado na pesquisa e levantamento arquitetônico, histórico, arqueológico e fotográfico da edificação, realizados de forma interdisciplinar com a participação de diversos profissionais como: Engenheiros, arqueólogos, arquitetos, historiadores, pesquisadores, conservadores e restauradores. Os serviços foram organizados em frentes de atuação ordenadas da seguinte forma: obras civis (demolições, construções, recomposição de pisos, reestruturação do telhado, sistema elétrico e hidráulico); restauração de bens integrados (retábulos, pinturas decorativas de forros e paredes) e restauração de bens móveis (pinturas sob tela, mobiliário, esculturas e objetos sacros).
Os trabalhos de restauração das pinturas sobre tela da Catedral de Belém foram iniciados em outubro de 2008, a partir da oficina “Iniciação as técnicas de Conservação e restauração de Pinturas de Cavalete”, ministrada para estudantes de curso de arte, de universidades públicas e particulares, pelo Sistema Integrado de Museus SIM/SECULT por meio da Coordenadoria de Conservação e Restauração que realizou o acompanhamento técnico, dando as orientações e diretrizes metodológicas para o desenvolvimento dos processos de restauração do acervo artístico da igreja.
A experiência na formação de auxiliares restauradores resultou na construção de um corpo técnico responsável pela execução das propostas restaurativas da coleção pictórica da Catedral. Os trabalhos de restauração tiveram início com uma intensa investigação e pesquisa fundamentada em fontes documentais e iconográficas, com avaliação e diagnóstico do estado de conservação do acervo, fornecendo subsídios para uma intervenção criteriosa e segura.
O procedimento de restauro permitiu a preservação das obras, trazendo à tona o conhecimento referente aos artistas e as técnicas usadas na construção das pinturas e teve como princípio, o respeito à matéria original, recuperando seus valores essenciais, restituindo os aspectos estéticos e respeitando a historicidade da coleção. Durante todo esse processo, foi possível aprofundar e conhecer o acervo da Igreja composto por peças de natureza diversa como: esculturas e pinturas que datam do século XVIII e XIX, objetos litúrgicos em metal, indumentária religiosa e uma coleção de pinturas de retratos de bispos e arcebispos, além de objetos de decoração.
A partir dessa investigação, se desvelou informações fundamentais a respeito dos artistas que contribuíram no projeto de remodelação realizado pelo bispo Antonio Macedo Costa na edificação.
3. A presença de artistas europeus na decoração da Catedral
Na Catedral da Belém, encontram-se obras de diversos artistas de nacionalidade estrangeira que elaboraram obras pictóricas e escultóricas, que juntas, representando cenas bíblicas, que comungam com a representação hagiografia de alguns santos, conduzem o espectador a um trajeto carregado de símbolos e significados[4].
Na capela-mor destaca-se, encimando o retábulo, em formato semicircular, imponente tela a óleo descrevendo a cena da natividade atribuída ao pintor Lotini (CRUZ, 1974, p.35); assentada no frontão do coroamento do altar, outra tela, de porte menor também completa a decoração do retábulo, representando a figura do Pai Eterno, conferida a Silvério Capparoni. Segundo Leal (1979, p. 52), ambos os painéis foram encomendados na Itália no ano de 1881, após a chegada do altar esculpido em mármore pelo arquiteto Luca Carimini[5].
Ao centro do retábulo mor, em grande destaque, está a tela representando Nossa Senhora de Belém com menino Jesus no colo, ladeada por dois anjos ajoelhados de autoria de Melchior Paul Von Deschwanden[6], enquanto que na cátedra[7] do templo, visualiza-se a representação da pintura do Bonnus Pastor[8].
Na nave do templo, encontram-se atualmente nove telas. Do lado evangelho, estão dispostas as telas que representam: Sagrada Família, Nossa Senhora do Rosário com São Domingos, Maria Madalena e São Jerônimo. Do lado da epístola, localizam-se as pinturas São Miguel, Santo Antônio, Santa Bárbara, São Domingos e São Sebastião.
As pinturas São Jerônimo, Maria Madalena e São Sebastião possuem assinatura do pintor italiano Domenico De Angelis, executadas em Roma e datadas de 1891; as pinturas Nossa Senhora do Rosário, Sagrada Família e Santo Antônio são de autoria do pintor suíço Melchior Paul Von Deschwanden. A tela São Domingos é assinada pelo pintor Joaquim Manoel da Rocha[9], a representação de Santa Bárbara é de autoria desconhecida. A tela de São Miguel foi encomendada pelo Bispo D. Macedo Costa a um copista desconhecido e chega da Itália no ano de 1869. Trata-se de excelente cópia do proeminente pintor do Barroco italiano, Guido Reni[10], cujo original pode ser visto na igreja Santa Maria da Conceição dos padres capuchinhos em Roma (LEAL, 1979, p. 74).
Para Mello Junior (1974, p. 37), a reforma da igreja teve seu inicio com a substituição de uma pintura já existente na nave, por essa cópia vinda de Roma. A notícia de sua colocação em um dos retábulos da nave é descrita por ele, pautada em informações retiradas da publicação feita no jornal Estrela do Norte de 1869. A notícia já esboça um gosto de época onde descreve as telas que existiam naquele período, como pinturas que possuíam um “colorido assanhado e desarmônico”, estimulando a necessidade de substituí-las por outras de maior beleza.
Outra referência a Guido Reni é a pintura da Imaculada Conceição que compõe a decoração do salão dos Pontificados. Ela não configura uma cópia tal qual se observa na pintura de São Miguel Arcanjo, com a estrutura composicional idêntica a obra original. A pintura de Nossa Senhora da Conceição, ladeada por anjos, é uma pintura inspirada nas representações das madonas do Guido Reni.
Na área do batistério pode-se observar uma das mais antigas pinturas da Catedral de Belém, que representa o Batismo de Cristo de autoria do pintor português Joaquim Marques, datada de 1784.
A reforma implementada por Dom Macedo Costa no final do século XIX, substitui algumas pinturas da nave por obras pintor Melchior Paul von Deschwanden datadas de 1873 e de Domenico De Angelis executadas em Roma no ano de 1891. Apesar das encomendas de novas pinturas, percebe-se atualmente, que ainda permanecem telas de épocas anteriores como a pintura o Batismo de Cristo (datada de 1784) e as pinturas de São Domingos e Santa Bárbara (sem datação), com características do século XVIII.
O conjunto dessas obras, associadas às pinturas parietais e aos ornatos existentes, confere a edificação uma nova leitura visual que instiga e que surpreende a cada observação.
3.1. Melchior Paul Von Deschwanden e a propagação de um estilo na reprodução de pinturas
D. Antonio de Macedo Costa (1830-1891) no seu empreendimento de remodelação do espaço religioso encomendou dez telas a Paul Deschwanden, para decorar os altares da Catedral. Melo Junior (1973, p. 39), cita que ao pesquisar os arquivos da Biblioteca Nacional encontrou no jornal A Boa Nova na seção Crônica Urbana datada de 16 de abril de 1783 (no. 30 p.4), uma informação sobre a chegada de dois painéis para a catedral,
[...] um representando o calvário, com Jesus morto, tendo ao lado direito, Maria Santíssima e, à esquerda S. João; o outro representando Maria Santíssima com menino Jesus que desce de seus braços para abraçar Santo Antônio de Pádua.
O primeiro painel, o calvário citado por Mello Junior, não foi encontrado na coleção de pinturas da Igreja, já a pintura de Nossa Senhora com Santo Antônio pode ser apreciada decorando um dos altares da Nave. O autor destaca outra nota encontrada no referido jornal datado de 7 de junho do mesmo ano, informando que o pintor em carta comunica já ter enviado para Belém, três pinturas “de composição original” sendo um deles a representação da Sagrada Família [Figura 2], e que os restantes estavam em processo de feitura. Finalmente no número 76 do jornal A Boa Nova, conforme Mello Junior (1973, p. 40), vem à notícia que o Bispo Dom Macedo Costa recebera as pinturas enviadas por Deschwanden.
Um representava Nossa Senhora da graça, com o Menino Jesus no colo, enquanto dois anjos ajoelhados aos pés da Virgem estão em adoração. O outro apresenta a Sacra Família ao entrar no Templo, quando o Menino Jesus tinha doze anos. O último estampava Nossa Senhora com o menino Jesus entregando o rosário a S. Domingos (N. S. do Rosário).
É certo por estas informações que as telas começam a chegar no ano de 1873 e que das telas citadas, somente a representação do Calvário não foi encontrada na catedral[11].
A autoria das demais telas de Paul Deschwanden foi confirmada após o processo de restauro com a identificação da assinatura do artista nas obras que representam: Nossa Senhora de Belém [Figura 3], situada no altar-mor; Nossa Senhora com menino Jesus e Santo Antônio, Sagrada família entrando no templo e Nossa Senhora com menino Jesus entregando o rosário a São Domingos, localizadas na nave da igreja.
Não se tem informação da conclusão da encomenda. Acredita-se que em função da idade avançada do pintor, que faleceu no ano de 1881, a encomenda não tenha sido concluída, pois, existem na igreja apenas quatro obras desse artista.
Autor de inúmeras pinturas espalhadas por vários países da Europa, é importante dar destaque para a produção de obras feitas por Deschwanden. O artista frequentou a academia de Munique e, posteriormente, a academia de Florença. Entrou em contato com obras de Fra Angelico[12], o que lhe causou forte impressão e o influenciou no desenvolvimento de sua produção artística. Conheceu, também, o alemão Friedrich Overbeck[13], da Escola Nazarena, cujos membros buscavam restaurar a necessidade e a importância da fé para as artes, que teve papel determinante na vida de Deschwanden e que o fez seu grande mestre e inspirador.
As características da pintura da Escola Nazarena marcaram as obras de Deschwanden que dedicou sua vida à produção de pinturas com temas religiosos de composição simples. A técnica de Deschwanden expõe um desenho rigoroso com um colorido sóbrio de inspiração religiosa.
Existem pinturas de Deschwanden em vários países. Vale destacar as obras localizadas na Igreja de St. Gongolf em Kluftern, Alemanha [Figura 4] e na paróquia de St. Ferdinand, em Indiana, Estados Unidos [Figura 5]. Nessas duas igrejas, encontram-se pinturas de Maria com o menino Jesus, semelhante a da Catedral de Belém [Figura 3].
Trabalhando com representações religiosas, o pintor recebeu inúmeras encomendas, o que o levou a conceber as estruturas composicionais dentro de um padrão, talvez já pré-estabelecido, alterando detalhes e modificando a representação de uma obra para a outra, repetindo e reproduzindo temas.
Isso pode ser percebido se compararmos as pinturas Nossa Senhora de Belém, na igreja da Sé, a pintura Nossa Senhora que se encontra na igreja no sul da Alemanha e a pintura Mary with the Christchild, localizada no Estado de Indiana, Estados Unidos.
As três pinturas têm o mesmo desenho central: Maria com menino Jesus no colo. Fazendo a comparação entre as telas, percebe-se a alteração feita pelo pintor em alguns detalhes, especificamente na base e no entorno da figura de Maria. Em duas pinturas, percebem-se nuvens contornando a base da imagem e na outra um chão com dois anjos ao lado da figura.
A estrutura formal da representação do elemento principal é feita sem modificação. O que leva a determinar a existência de um modelo pré-estabelecido pelo artista na representação de Maria Santíssima. O pintor parte de um modelo, um “risco” ou uma forma para configurar as demais representações que cruzaram o oceano embalado por um discurso religioso, dentro de uma estética classicizante.
3.2. Domenico De Angelis: Aspectos simbólicos na pintura
O pintor Domenico De Angelis nascido em Roma em meados do século XIX realizou estudos na Academia San Luca. Pelo primor de seus trabalhos e reconhecimento no campo artístico, foi convidado por Dom Macedo Costa, bispo do Pará, a vir ao Brasil para trabalhar na reforma da Catedral de Belém.
Justamente pela mestria no trabalho com temas sacros é que De Angelis foi convidado para vir ao Brasil pela primeira vez. Dom Antonio de Macedo Costa, Bispo do Pará, planejava um remodelamento para a Catedral de Belém e, com o apoio direto do imperador brasileiro e do Vaticano, conseguiu trazer o ateliê De Angelis/Capranesi para a execução dos trabalhos. (PÁSCOA, Márcio. Biblioteca Virtual do Amazonas)
De Angelis realizou obras no Estado do Amazonas onde lhe é atribuído a pintura do foyer do Teatro, o pano de boca, assim como a tela Salvação de Cecy por Pery. Em Belém, o artista também foi responsável pela pintura do teto do Salão de Espetáculos do Teatro da Paz e pela pintura do foyer (Salão Nobre) que foi destruído e substituído por uma pintura do pintor pernambucano Armando Baloni. No Museu de Arte de Belém, encontra-se a tela pintada por De Angelis e Giovanni Capranesi representando a morte de Carlos Gomes. Os dois artistas constituíram um ateliê de artes decorativas, responsáveis por importantes trabalhos na Itália e no Brasil.
Para a decoração da Catedral, foi celebrado um acordo entre o Bispo do Pará e Domenico De Angelis no dia 15 de dezembro de 1886. Lustosa transcreve em seu livro (1992, p.534-536) o contrato constituído de várias cláusulas que definem o preço dos serviços, as áreas onde deveriam ser executadas as pinturas, e os tipos de materiais que seriam utilizados.
O documento estabelece que os serviços fossem realizados conforme os planos apresentados, e no mesmo estilo que já foi efetuado na capela mor. Isso leva a crer que De Angelis já havia realizado um serviço anterior nesse local. O contrato define claramente que as pinturas deveriam ser executadas nas abóbodas da capela mor, da nave principal, nas duas capelas do arco cruzeiro, na cimalha geral do edifício, nas paredes interiores incluindo a pintura atrás do órgão com a representação de Santa Cecília e o rRi Davi. O pintor italiano estava compromissado a pintar também, o forro, a cimalha do coro e suas colunas, os caixilhos e ombreiras de todas as portas e janelas de acesso ao corpo da igreja e capelas laterais.
O contrato ainda define que as pinturas deveriam ser feitas a cal e cola e também a óleo, determinando o local onde estes deveriam ser empregados. O tempo estabelecido para a execução da obra era de dez meses, e caso o prazo não fosse cumprido, seria estabelecido multa por mês excedente.
A decoração da abóbada da capela-mor da Catedral de Belém, portanto, foi realizado pelo pintor Domenico De Angelis, apesar de não possuir assinatura. Também de sua autoria é o teto da nave da igreja, com painel central assinado pelo artista e as telas São Sebastião, Maria Madalena [Figura 6] e São Jerônimo, localizadas nos altares laterais da nave. Essas três telas, não estão especificadas no contrato, possivelmente sendo encomendadas posteriormente.
As pinturas executadas por De Angelis demonstram uma técnica apurada com uma paleta vigorosa que intercala áreas lisas e áreas de empastes, onde nota-se uma elaborada pesquisa no uso da temática religiosa e amplo conhecimento sobre os elementos simbólicos atribuídos a cada representação.
4. Considerações finais
O universo das pinturas religiosas, muitas vezes é visto com certa indiferença, e pouco interesse. Um dos fatores que contribuem para isso, talvez esteja relacionado com a própria temática da obra e a sua função devocional e de culto que sobrepuja os outros aspectos a serem observados, fazendo com que o processo de percepção aconteça dissociado dos processos de fruição estética, relevante para estabelecer as interfaces dentro do campo da história da arte.
Essa temática, que tem como um dos objetivos o estudo de pinturas sacras, mais precisamente as pinturas que decoram o interior da Catedral de Belém, pautou-se exatamente na necessidade de recuperar e construir informações referentes a essas questões, pondo à luz, dentro de uma perspectiva estética e cultural, as pinturas do interior da Catedral de Belém.
A restauração do acervo pictórico envolveu inicialmente a coleção de retratos e posteriormente as pinturas sobre tela existente na capela mor e nave da igreja, incluindo o batistério e o salão dos pontificados.
O processo de restauração foi estruturado na pesquisa, no estudo iconográfico e iconológico e no levantamento do estado de conservação e tecnologia de construção das obras, de modo a possibilitar ao restaurador informações para a execução de uma intervenção segura, garantindo a integridade das pinturas e respeitando assim, “a complexa historicidade que compete à obra” (BRANDI, p. 61).
A maioria das pinturas possuía grande acúmulo de sujidades impregnadas, com oxidação do verniz de proteção que não permitia a visualização da gama cromática existente e da riqueza da representação simbólica. Algumas telas apresentavam rasgos e desprendimento da camada pictórica ocasionado por vários fatores: alta umidade, impacto mecânico, iluminação inadequada o que levou a decomposição das fibras do tecido e perdas da pintura e do suporte. Diante dos problemas diagnosticados, foi realizada a proposta de tratamento levando em consideração a análise individual de cada peça.
A restauração das pinturas possibilitou a formação, o aprendizado e a ampliação dos conhecimentos sobre a história da Catedral de Belém, do Bispado do Pará e das técnicas utilizadas pelos pintores responsáveis pela decoração de uma das mais belas igrejas do Brasil e que possui uma das mais significativas coleções de arte sacra do Estado do Pará.
O trabalho ainda se constitui em um arcabouço que necessita ser mais bem configurado, com o aprofundamento sobre os artistas que colaboraram com a decoração do interior do templo. É preciso avançar no assunto e esclarecer pontos fundamentais que nortearam a produção artística no século XIX, para contribuir na relação desse universo visual com o contexto de época e a presença marcante de Dom Antônio de Macedo Costa, durante sua atuação como bispo do Pará.
A dinâmica estabelecida na metodologia seguiu a dinâmica instituída durante os processos restaurativos, tendo o objeto como fonte primária de informação. A pesquisa partiu de uma esfera mais especifica e de maior familiaridade, que era o estudo das pinturas em si, para posteriormente estender os campos de possibilidade, alargando o universo de investigação.
Por fim, a pesquisa ainda está sendo construída e tem-se claro que este talvez seja um passo essencial, que dará continuidade a outros estudos relacionados à arte sacra no Pará, resgatando a produção artística de outros períodos da história da arte no Brasil.
Referências bibliográficas
BRANDI , Cesare. Teoria da restauração. Atelier. 2005.
CRUZ, Ernesto. Igrejas de Belém. Prefeitura Municipal de Belém, Belém/Pará, 1974.
DIARIO de Belem. Orgao especial de Comunicaçao, Redactor - Bacharel A.F Pinheiro. Belém, Quarta - Feira 6 de Abril de 1881 nº 76.
DIARIO de Belem. Orgao especial de Comunicaçao, Redactor - Bacharel A.F Pinheiro. Belém, sexta feira 8 de Abril de 1881 nº 78.
LEAL, Monsenhor Américo. A igreja da Sé. Belém: Falangola, 1979.
LUSTOSA, Dom Antônio de Almeida. Dom Macedo Costa (Bispo do Pará). Belém: Secretária de Estado da Cultura, 1992 (Lendo o Pará)
MELLO JUNIOR, Donato. Antonio José Landi-Arquiteto de Belém: Precursor da arquitetura neoclássica no Brasil. Belém: Governo do Estado do Pará, 1974.
RAMOS, Dom Alberto Gaudêncio. Cronologia eclesiástica do Pará. Belém: Falangola, 1985.
Documentos eletrônicos
BIBLIOTECA Virtual do Amazonas. Domenico de Angelis. Disponível em: <http://www.bv.am.gov.br/portal/conteudo/serie_memoria/16_domenico.php>. Acesso em: 09 nov. 2009.
DICTIONNAIRE Historique de la Suisse. Disponível em: <http://www.hls-dhs-dss.ch/textes/f/F22002.php>. Acesso em: 23 set. 2009.
MELCHIOR Paul von Deschwanden. Disponível em: <http://www.answers.com/topic/deschwanden-melchior-paul-von-1>. Acesso em: 15 abril de 2011.
PASCOA, Luciane Viena Barros. O panorama das artes plásticas em Manaus. Revista Eletrônica Aboré Publicação da Escola Superior de Artes e Turismo - Edição 03/2007. Disponível em:<http://www.revistas.uea.edu.br/old/abore/artigos/artigos_3/Luciane%20Viana%20Barros%20Pascoa.pdf>. Acesso em: 10 de jaeiro de 2010.
SPRINGER, Annemarie. Nineteenth Century German-American Church Artists. Indiana, June 2001. Disponível em: <http://maxkade.iupui.edu/springer/index.html>. Acesso em: 14 de Nov. de 2009.
[1] Mestranda em Artes pela Universidade Federal do Pará. Graduação em Belas Artes com habilitação em gravura e Especialização em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis pela Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG. Atualmente é professora da Universidade da Amazônia - UNAMA e Diretora do Sistema Integrado de Museus - Secretaria de Estado de Cultura- SECULT.
[2] Dom Antônio de Macedo Costa, 10º bispo do Pará, nasceu em Maragogipe em 7 de agosto de 1830 e faleceu em Barbacena em 20 de março de 1891. Atuou no período de 1860 a 1890 e foi responsável pela grande reforma realizada na Catedral de Belém.
[3] No jornal Diario de Belém nº 78. Datado do dia 8 de Abril de 1881, encontra-se o auto de assentamento em latim da primeira pedra do altar de mármore da Catedral de Belém realizado no dia 5 de abril de 1881.
[4] O que se observa no conjunto de pinturas com temática religiosa da Catedral de Belém é a inspiração pautada nos escritos bíblicos e na narrativa relacionadas à vida dos santos. Algumas representações seguem quase rigorosamente o que a coleção de escritos antigos apresenta. É o caso da pintura A Natividade e a pintura Pai Eterno.
[5]O retábulo, esculpido em mármore foi o resultado de uma promessa feita por Dom Macedo em homenagem a Nossa Senhora, padroeira da diocese. Chegou à cidade de Belém no ano de 1871, trazido pelo navio francês Luis& Anne. Lustosa (1992, p. 515) informa que ele foi encomendado ao artista, pelo bispo do Pará, durante sua estadia em Roma “por ocasião da solene Festividade do Centenário dos Benaventurados Apóstolos São Pedro e São Paulo”
[6] Pintor suíço, especialista em pintura histórica e religiosa, nasceu em Stans a 19 de janeiro 1811 e faleceu em Roma em 25 de fevereiro de 1881.
[7] Mobiliário executado em madeira onde está a cadeira pontifícia destinada aos representantes da igreja (bispo e papa)
[8] A pintura representa a figura de Jesus, num fundo dourado, segurando um cajado na mão direita e carregando no ombro esquerdo um cordeiro fazendo a referencia de Jesus como um “pastor de homens”.
[9] Apesar das informações insuficientes, acredita-se que se trata do pintor português Joaquim Manuel da Rocha (1727-1786), que se dedicou á pintura de temas religiosos, naturezas mortas, marinhas e retratos.
[10] Pintor italiano, nascido em Bolonha em 4 de novembro de 1575 e falecido em 08 de agosto de 1642. Notabilizando-se na representação de pinturas religiosas e mitológicas.
[11] Vale registrar que no salão dos pontificais foi descoberto resquícios da existência de bordas de uma tela encoberta por uma moldura dourada com tamanho similar as telas encontradas na nave da igreja. Pelos fragmentos de tecido, supõe-se que a pintura tenha sido removida com um instrumento cortante tendo o contorno interno da moldura como limite. Atualmente, ao centro desta moldura, está disposta uma pintura de Nossa Senhora da Conceição em tamanho menor, o que denota sua colocação nesse local em um momento posterior. Talvez este lugar tenha sido destinado à pintura do calvário, que hoje não se sabe se foi destruído pelo tempo ou se foi removido para um local desconhecido.
[12] Fra Angelico (1387-1455), pintor italiano da época do gótico tardio ao inicio do Renascimento
[13] Johann Friedrich Overbeck nasceu em Luübeck em 1789 e faleceu em Roma em 1869. Pintor alemão, que viveu na Itália e pertenceu ao grupo dos pintores Nazarenos.