Arte para todos: a
produção “Made in Brasil” da Osirarte
Rafael Alves
Pinto Junior
PINTO
JUNIOR, Rafael Alves.
Arte
para todos: a produção “Made in Brasil” da Osirarte. 19&20, Rio de Janeiro, v.
IX, n. 1, jan./jun. 2014. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_osirarte.htm>.
* * *
1.
Com a construção do edifício do Ministério da
Educação, iniciada em 1936 no Rio de Janeiro. O edifício foi um marco na produção
nacional e um marco na produção de diversos artistas: vários ganharam
notoriedade; outros, não tão famosos, tornaram-se conhecidos. Neste grupo
inclui-se Paulo Rossi Osir (1890-1959).
2.
Filho de imigrantes europeus, Osir era pintor, desenhista e empresário. Além disto, como
intelectual, atuou diretamente para a afirmação da arte modernista em São Paulo
e já era um homem maduro, pessoal e artisticamente, quando recebeu a encomenda
para a execução dos azulejos que revestiriam o edifício do Ministério.[1]
Dos cinco painéis executados, três seriam de sua própria autoria.
3. Sua empresa - a Osirarte (fundada em 1940) - é geralmente associada à produção dos painéis de azulejos para o edifício do Ministério da Educação e à Igreja de São Francisco na Pampulha em Belo Horizonte. Entretanto, houve uma produção que praticamente permaneceu à sombra da produção oficial das grandes obras governamentais, grandemente associadas ao nome de Cândido Portinari (1903-1962). Uma produção numerosa e difundida em São Paulo na década de 1940 que contou com a participação de artistas que viriam a se destacar no cenário das artes plásticas no Brasil. Artistas como Mario Zanini (1907-1971), Hilde Weber (1913-1994), Alfredo Volpi (1896-1988), Gerda Brentani (1908-1999), Virginia Artigas (1915-1990), Cesar Lacanna (1901-1983), Frans Krajcberg (1921), Ernesto de Fiori (1884-1945) e Ottone Zorlini (1891-1967) trabalharam durante períodos diversos durante as quase duas décadas de existência da empresa.
Arte
feita com mãos estrangeiras
4.
Paralelamente à produção governamental e ao
sucesso dela decorrente, Osir aproveitou a
oportunidade para lançar no mercado outros produtos: pequenas composições em
azulejos (geralmente 4 ou 16 peças) ou peças avulsas
destinadas à decoração residencial. Nos papéis de carta da década de 1940 da
empresa pode-se ler:
5.
A Osirarte está executando atualmente os azulejos para as
fachadas no nosso Ministério da Educação e Saúde do Rio e acha-se em condições
de executar qualquer encomenda, como painéis, decorações para banheiros,
lareiras, fontes, padrões para revestimento de fachadas a gosto dos senhores
arquitetos e particulares.[2]
6.
Além disto, Rossi Osir
pensava em exportar azulejos decorados para os Estados Unidos e Europa. O que
em parte explica a temática escolhida para os azulejos: da Osirarte
nasceriam azulejos “made in Brasil” mostrando a
cultura nacional, cenas do cotidiano, do folclore e do trabalho. Se por um lado
esta temática servia aos interesses de Osir à
exportação, por outro lado era uma temática que já fazia parte do universo e da
produção dos artistas que integravam o Grupo Santa Helena[3]
e que trabalhavam quase em peso na Osirarte.
7.
Pode-se dizer que, se havia algo a amalgamar
estes artistas - além do companheirismo, da origem social imigrante e da
ausência de formação - era o repúdio à pintura acadêmica. Declaravam
abertamente não concordar com a “narratividade” da pintura de sua época,[4]
com sua pretensão à retórica e ao formalismo.
8. Estes artistas, como seus contemporâneos do Núcleo Bernadelli no Rio de Janeiro, mesmo sem um programa teórico rigidamente estabelecido, configuravam através de suas produções - unitária em relação à temática, tratamento técnico formal e escolha de cores - uma identidade visual coerente. E é válido supor que Osir tenha percebido o quanto a temática do grupo era cara aos artistas que trabalhavam na Osirarte. Seu papel, ao pretender construir uma visualidade caracterizada como “brasileira”, parece ter sido o catalisador de uma temática que ampliou-se dos subúrbios à zona rural, da religiosidade ao folclore, do cotidiano ao pitoresco. A nacionalidade era um pólo gravitacional para a produção artística da época.
9. Neste contexto, falar de um conceito como “nacionalidade”, expresso na arte correspondea abordar uma temática constante no cenário cultural nacional na primeira metade do século XX e que diz respeito aos problemas de conceituação de uma cultura brasileira (BELLUZZO, 1990). Como ponto de partida, entendemos que as práticas artísticas modernistas - principalmente as relacionadas à arquitetura, como a azulejaria - se revestiram de propriedades capazes de esclarecer práticas sociais e ideológicas inauguradoras de uma forma de ordenar, ou ao menos de propor, uma unidade cultural, sobretudo no que apresenta de imagético.
10.
Ao entenderem identidade como
sinônimo de definição, ou o estabelecimento de um estilo como a
afirmação de determinados elementos temáticos e formais, a ambição dos
modernistas parece não ser outra que a tradução plástica do universo simbólico
nacional. A afirmação de suas obras correspondeu à construção de um discurso e
se processou através de duas maneiras: num plano conceitual mais amplo, diz
respeito a como os artistas se defrontam com as teorias internacionais advindas
das vanguardas; numa outra esfera, se refere a como a subjetividade de cada
artista brasileiro produziu nas condições específicas da sociedade brasileira
da época. Historicamente, estas duas maneiras correspondem a dois momentos. Um
a partir da Semana de 1922 que objetiva o estabelecimento de uma linguagem que
fosse, ao mesmo tempo, moderna e brasileira. Outro, em 1930, quando o movimento
modernista foi em direção a uma temática de preocupação social, conforme
afirmou Zílio (1997, p.18).
11.
No período entre 1917 e 1922, a preocupação
capital dos artistas brasileiros foi afirmarem-se como modernos.
Algo como uma demarcação territorial e grito inaugural. A partir de 1922 - uma
vez alcançado este objetivo -, esta preocupação seria marcada pelas cores nacionalistas.[5] Apesar de não ser de maneira nenhuma
inédita - a “realidade” nacional já vinha inspirando artistas nativos,
imigrantes e visitantes desde o Romantismo - este parece ser o denominador
comum à vanguarda brasileira. Isto naturalmente se traduziu no plano formal à
subordinação da obra de arte ao assunto e colocou conceitualmente os
modernistas em planos opostos. Desde Édouard Manet
(1832-1883), os artistas modernos europeus abominariam a primazia do tema e a
sujeição a um assunto. Do lado de cá do Atlântico, antes de se projetar a
imagem de um Brasil, fazia-se necessário configurar-lhe uma expressão,
conceituar uma brasilidade. Importava dar um “rosto” ao Brasil. Esse foi um
fator comum em toda a América Latina, na qual os temas sociais na pintura e a
representação das camadas mais pobres da população foram uma constante (FABRIS, 1994). Os países atravessavam uma modernização onde
as contradições tornaram-se mais visíveis. Igualmente visíveis foram os
“redescobrimentos” das próprias raízes, como a herança dos povos indígenas e
africanos, tão decantada pelos artistas e intelectuais modernistas.
12.
Neste ambiente, Rossi Osir
ambicionava não só a produção de uma azulejaria nacional. Ambicionava que seus
produtos fossem comercializados não somente pelas grandes obras governamentais.
Queria que uma produção de qualidade estivesse disponível a quem se dispusesse
a ter um azulejo em sua casa, em seu pequeno comércio. Queria que a arte
estivesse ao alcance de todos num momento de revalorização do uso parietal do
revestimento dos azulejos no Brasil.
13.
Para divulgar sua produção, a Osirarte realizou uma exposição em setembro de 1941. Com
apresentação do pintor, poeta, ensaísta e crítico de arte Sérgio
Milliet (1898-1966), a exposição mostrava composições de diversos tamanhos e
peças avulsas de azulejos em baixo esmalte,[6] abordando temas como cenas de feira,
verdureiros, peixeiros, lavadeiras, domingo na roça, namorados, o casamento,
imigrantes, pescadores, garimpeiros, colheitas, o Saci-Pererê, Caipora, dança e
orquestra caipira, festa do Divino, chafarizes, favelas, parque de diversões,
dentre outros.
14.
A exposição foi um enorme sucesso de venda e de
público visitante. Destacou-se o grande número de mulheres que visitaram e
compraram peças assinadas por Volpi, Zanini, Hilde Weber, Gerda Bretani e Krajberg. Izabel Rocha
lembra que o cronista Rubem Braga (1913-1990) comentando a exposição disse que:
15.
As pessoas que
podem, encomendam composições de 4, 6, 9 e 12, até 63 azulejos para quadro,
mesa ou painéis. As outras compram quadros de 1 só
azulejo, de 20 a 130 mil réis. O pitoresco livro vendas acusa um belo
movimento. O fato de serem numerosas as mulheres compradoras parece
significativo. Essas mulheres são de vários tipos e mentalidades. Muitas dentre
elas seriam completamente incapazes de comprar um quadro de pintor moderno para
pendurar em sua sala. Entretanto, compram azulejos - azulejos de pintores
modernos. Compram naturalmente, como se comprassem qualquer outro elemento de
enfeite para suas residências.
16.
E assim, sob a
capa tênue e brilhante do esmalte, o veneno invade os lares. Muitos desses
azulejos irão ficar perto de quadrarrões detestáveis
de péssimos pintores acadêmicos, com uvas que só faltam falar. E serão ali
elementos de quinta-coluna a serviço da ordem nova ou desordem nova das artes
plásticas. O inocente azulejo leva no seu bojo uma composição de Volpi; bem ou
mal, é Volpi que se instala dentro de salas onde Volpis
nunca foram sonhados. Comprar um quadro de Zanini
seria sintoma de loucura nessas famílias; mas lá está um Zanini
esmaltado e cozido, e ele trabalhará silenciosamente para que breve entrem Zaninis soltos e livres, crus e nus se alastrando paredes a dentro. (2007, p. 73)
17.
O depoimento do famoso cronista nos coloca
diante de um paradoxo: se as famílias paulistas eram tão avessas à arte moderna
porque comprariam azulejos pintados por artistas como Volpi e Zanini? A explicação de que compravam como meros enfeites
parece não dar conta do consumo de uma numerosa produção que se estendeu por
quase duas décadas.
18.
Parece que este consumo numeroso -
principalmente o de peças avulsas - estava alicerçado em dois motivos.
Primeiro, o fato do uso da decoração em azulejos estar arraigado no gosto dos
brasileiros desde o século XVII - e não somente nas residências abastadas. Os
azulejos sempre estiveram presentes nas casas no Brasil e seu emprego
significava evidentemente uma ancestralidade.[7]
Em segundo lugar, havia a temática dominante da produção da Osirarte:
ao falar das cenas da roça, das coisas do campo, da vida do interior, Osir evocava o passado de um público que ainda era recente
na cidade. Ligou-se a um público que estava ou esteve estreitamente ligado ao
mundo rural considerando que à época, apenas 36% da população morava nas cidades:[8] ou seja, grande parte da população das
grandes cidades não era dela mesma. Como imigrantes, acreditavam que a
verdadeira alegria estava no campo. Lá, tudo era sossego: a vida, natural, mais
saudável e mais livre que a que se levava nos amontoados de pedras nomeados de
cidades. Deslocados nos espaços urbanos, muitos suspiravam de saudades pela
vida no campo.
Imagens do interior
19.
O auge da produção da Osirarte
coincidiu com o apogeu de diversas expressões culturais voltadas para o mundo
rural, principalmente a música caipira. Rapidamente difundida,[9]
este tipo de música deixava claro o quanto os elementos do sertão continuavam a
ser inspiração para diversos artistas.[10] Levas de duplas, especialmente do
interior paulista, tiveram espaço destacado nas gravadoras e emissoras de
rádio, veículos midiáticos que significaram uma ampliação das formas de
entretenimento urbano principalmente ligados à difusão da música popular
consolidada desde a década de 1930 com a ampliação das indústrias fonográfica e
radiofônica.
20.
Neste ambiente, a obra de Cornélio Pires
(1884-1958)[11] foi decisiva para que a nascente música
sertaneja se libertasse da música caipira, ganhasse vida própria,
diversificasse seus estilos e firmasse seus sucessos no mercado fonográfico.
Idealizando a felicidade do caipira, o autor revelou uma maneira de ver o
mundo, colocando em primeiro plano a imagem da “simplicidade” da vida no campo,
em contraste com a “complexidade” da cidade: uma relação de oposição entre o
natural e o construído que tem uma longa tradição de crítica à civilização
industrial.
21.
Essa mesma “simplicidade” também pode ser
identificada na obra de autores paulistas como, por exemplo, Eugênia Sereno.[12] Vencedora da categoria Revelação do Prêmio Jabuti em 1966,
seu livro O Pássaro da Escuridão aparecia como a tradução do que poderia
haver de mais nacional: o Brasil profundo do interior, legítimo, autêntico em
sua oposição ao Brasil das capitais e do litoral. Em contraste com o “caipira
desfigurado” que se apresentava com uma “humildade revoltante” descrito por
Euclides da Cunha (1806-1909) e a população interiorana, débil, “faquiriana” e medíocre retratada por Monteiro
Lobato, o modo de vida no interior pintado por Sereno é bastante diferente.
Ainda que marcado pela superstição e pela ignorância, a cidade interiorana era
a tradução poética do chão nativo e sinônimo de brasilidade:
22.
Onde vive um
povo que não muda de vida, cuja felicidade melancólica deriva entre a Missa, o
arroz-doce, entre a igreja, o cemitério, o chafariz e as dores de um sino. Onde
cresce capim nas ruelas como se tudo ali ainda estivesse por terminar, mas,
onde é tão bom haver um frouxo fulgor de vagalume em
cada esquina, em cada canto escuro, ataviando a treva, enquanto lamparinas,
brilhando poucamente, fumegam no fundo das casas do morro (SERENO, 1968, p. 47).
23.
Era uma valorização de uma vida “simples” e
benéfica por estar ligada ao mundo natural que tem uma longa tradição na
cultura ocidental. Conforme colocado por Wiliams
(1989, p. 388), pelo menos desde a Renascença europeia,
associaram-se ao universo rural atributos de paz,
inocência, virtude, abundância e harmonia. O espaço urbano situava-se no polo oposto, sendo a tradução da civilização, da
modernidade, local privilegiado do conhecimento e da oportunidade, ao mesmo
tempo em que se tornava a expressão do vício, do tumulto e do conflito.
Keith Thomas (1989, p. 298) também observa que, pelo menos desde a preferência
dos citadinos na Itália renascentista pela “villeggiatura”
- o elegante retiro campestre de verão - o apelo ao campo se firmou pela
negação do espaço urbano e das atribulações que representava. Para ele, esta
contradição é mais profunda, sendo uma das quais assenta a civilização moderna
(THOMAS, 1989, p. 358).
24.
Certamente esta valorização nacionalista não foi
nem criação, nem exclusividade da década de 1950. Ao contrário, Tânia Regina de
Luca observa que desde os anos de 1910 já era possível falar de uma tradição
ficcional brasileira apegada à região rural (1999, p. 263), uma
valorização que escapou aos limites da literatura, manifestando-se também no
cinema e no teatro. Assim, a temática da Osirarte não
procurava criar uma obra de exceção, e sim tornar-se partícipe ao que estava
acontecendo à sua volta.
25.
Além disto, as imagens nos azulejos eram de
excelente qualidade. Pintados cuidadosamente à mão com pinceladas precisas - muitas
vezes sem desenho prévio - não podiam ser categorizados como coisas banais. O
público encontrou imagens cheias de encanto e talento técnico. Como não gostar
das composições de Zanini, tão fluidas que mais
pareciam aquarelas? Como não gostar das cores das imagens de Hilde Weber? Como não se deliciar com o talento de Volpi em
pinceladas improvisadas, sem traços preliminares? Imagens de puro talento
criativo que caíram no gosto dos paulistanos da década de 1940. Devagar, a arte
moderna ia lançando raízes.
Obras de arte em placas de barro
26.
De todos os artistas que trabalharam na Osirarte, Hilde Weber era, sem
dúvida, a dona da palheta mais cálida. Aluna de Bruno Giorgi
e esposa de Cláudio Abramo, Hilde
foi uma das personalidades que mais tempo ficou na empresa, até 1950. Era de
suas mãos que saiam as composições mais delicadas. Com formação em artes
gráficas em Hamburgo, seus azulejos mostram as preocupações de uma
miniaturista: enquadramento cuidadoso, zelo com relação aos detalhes e
centralidade composicional. Ao menos é isso que podemos ver em peças com a
temática de circo [Figura 1a e Figura 1b]
e de casario [Figura 2a e Figura 2b].
27.
Uma peça que merece destaque é a obra Brasil [Figura 3],
uma composição de 16 azulejos representando o mapa do Brasil. O traço parece
ter sido de Osir, mas indubitavelmente Hilde o preencheu com sua imaginação. As sereias nos mares,
pássaros coloridos nas matas, as chaminés em São Paulo, araras em revoada,
beija-flores, tamanduás perambulando pelas matas, tucanos, abutres carregando
cobras, árvores gigantescas, palmeiras, aldeia de índios, o imaginário curso do
Rio Amazonas, as casas dos caboclos, as bateias de ouro... Um retrato
imaginário de como seu olhar - que estava no país a menos de uma década - via o
Brasil. Pintava o que sabia e o que havia ouvido dizer, filtrando em sua
palheta de azulejos. o retrato de um pais imaginário.
28.
Curiosamente, Hilde
reproduz à sua maneira uma cartografia imaginária, como o
famoso Terra Brasilis (1519),
atribuído a Lopo Homem- Reinéis,
que mostrou a costa brasileira desde o Prata até o Maranhão e onde podemos ver
o território com os índios dedicados às suas atividades, as aves nas floresta e
os sertões habitados por dragões. Não nos é possível dizer se Hilde conhecia a cartografia colonial da América do Sul. Se
ela conhecia fez uma citação inequívoca ao mapa; se não conhecia, repetiu o
procedimento de preencher o espaço pictórico com a narratividade de sua
imaginação.
29.
Se por um lado os azulejos de Hilde Weber parecem ter sido os mais acurados, sua produção
não foi muito numerosa. A dupla Volpi e Zanini
detinham esse “posto”. Zanini foi não somente o
primeiro artista a se juntar a Osir como o último a
sair, com o fechamento da empresa na segunda metade da década de 1950. Foi
também o único que produziu initerruptamente ao longo
de quase duas décadas. Volpi não era assíduo. Somente aparecia para trabalhar
na Osirarte quando estava sem recursos ou não havia
encontrado nenhuma ocupação que lhe despertasse o interesse. Talvez achasse que
a pintura de azulejos não fosse algo devidamente artístico ou talvez o
característico modo repetitivo e interminável dos azulejos o entediasse. Mas,
se por um lado Volpi cultivava essa posição de distanciamento em relação aos
azulejos, por outro lado sua obra mostra o contrário. São peças delicadas, com
pinceladas feitas quase como se fossem esboços, mas extremamente precisas.
Peças avulsas como Futebol [Figura 4] e
O Palhaço [Figura 5]
ilustram isso com perfeição. As indubitáveis criações de Volpi são as
mais livres, as mais dotadas de liberdade, com pinceladas mais diluídas.
30.
Como lembrou Sônia Salzstein
(2000, p. 38), desde a segunda metade da década de 1940 Volpi vinha lidando com
a cor como elemento autônomo, estrutural, com suas Marinhas, abrindo o
caminho que marcaria sua produção na década de 1950. Esta observação nos força
a ver sua produção na Osirarte com atenção. Parece
válido afirmar que as experiências formais da cor como elemento autônomo já
podiam ser observadas em seus azulejos, sobretudo os que
produzia sozinho, sem os ditames diretos de Osir
ou a parceria de Zanini. Exemplos disso são Índia
na rede [Figura 6]
e as obras intituladas Músicos [Figura 7a e Figura 7b].
A pura dimensionalidade mostra sua face incipiente: praticamente não existe
risco prévio, as pinceladas são fluidas e incrivelmente precisas.
31.
Das mãos de Zanini
parecem ter saído as composições maiores como Vilarejo com Igreja ao Fundo [Figura 8] e
Congada [Figura 9].
Estes eram os que Osir mais se interessava em
produzir: por serem composições com 9, 20 ou até 88 azulejos, podiam ser
colocadas em restaurantes, cantinas e estabelecimentos comerciais que
proliferavam em São Paulo. Eram os mais caros e os mais chamativos, composições
que dificilmente estariam em uma residência, como decoração, mas que se
adaptariam muito bem a um ambiente com grande fluxo de pessoas. Ao mesmo tempo
em que se dedicava a estas composições maiores dedicadas à “crônica de
costumes”, produzia peças avulsas, bem mais leves, com pinceladas mais livres.
Eram experiências refletidas em suas obras na décadas
de 1950-60 em quadros como Paisagem, Vista de Parati e Marinha, resultado da tensão entre uma pintura
emocional e a aspiração a uma formalização, como observou Alice Brill (1984). São imagens ancoradas em Cézanne[13]:
mais distante da emotividade e do “expressionismo” de De
Fiori, a referência a Cézanne significava uma composição mais intelectualizada
em sua estruturação formal. Ao menos é isso que podemos ver em Pescadores [Figura 10a e Figura 10b]
e Mulheres de pescadores [Figura 11],
por exemplo.
32.
Outro artista que, como Hilde,
não foi muito prolífico, foi Ernesto de Fiori. Apenas a 4
anos no Brasil, foi conduzido por Volpi a integrar o grupo dos artistas da Osirarte. Sua influência na produção artística paulistana
foi considerável: em imagens como São Jorge [Figura 12],
por exemplo, podemos observar a fusão da forma e da cor com sobreposições de
cores executadas gestualmente. Formas se entrecruzam
com outras cores, criando novas formas e definindo a composição, em pinceladas
rápidas que apenas “sugerem” as figuras, como observou Laudanna
(1997, p. 26) em seu estudo sobre o artista.
33.
Mas, dentre este conjunto de personalidades
agrupadas às asas da Osirarte, o que mais se afastou
dos tradicionais padrões decorativistas associados à azulejaria foi Frans Krajcberg. Se a obra de Hilde
Weber pode ser inscrita num polo de graça e
delicadeza, a obra de Krajcberg pode ser inscrita no polo oposto. O artista havia chegado ao Brasil em 1948 e
ficou pouco tempo na Osirarte. Neste contexto a
produção da empresa rumava ao ocaso, mas a produção de Krajcberg
não. O artista até produziu peças avulsas na temática nacionalista, com cenas
do interior, como Tocando a boiada (1948) [Figura 13] e
Violeiros (1948) [Figura 14].
Talvez resultado de seu contato com Volpi e Zanini, o
artista produziu, assim, algumas peças dentro da temática dominante da empresa.
Entretanto, sua personalidade falou mais alto. É surpreendente encontrar dentro
da produção decorativista “made
in Brasil” da Osirarte, peças como Cabeça de Boi
(1948) [Figura
15] e Sem título (1948) [Figura 16].
Nota-se aí o estreitar do vínculo com as coisas da natureza, que para o artista
se converteria em algo mais que um projeto estético e afirmaria uma ética. De
acordo com Frederico Morais (2000):
34.
É a invenção
de um destino através da reinvenção da natureza. Ao fazer de sua obra uma
espécie de memória da natureza, que ele faz irromper no seio da cultura, quer
anular uma outra memória: seu próprio passado. Moldou
seu destino conforme as exigências de um relacionamento com a natureza que
adquire um caráter messiânico. Uma luta titânica que vem travando no interior
mesmo da natureza, no coração vulcânico da matéria natural, em nome de uma
revolta individual que tinha muito a ver com sua solidão mas
que adquiriu, com o tempo, uma dimensão universal e planetária, quando encarada
no plano mais ambicioso de uma política e ética ecológicas.
35. As cores são mais escuras, os temas mais sombrios. Mesmo imerso na fábrica Osirarte, Krajcberg não seria outro senão ele mesmo. Pinceladas carregadas, tintas mais espessas onde predominavam os tons de azul escuro, cinza e marrom. Uma produção que realmente destoa tanto da “crônica de costumes” do Brasil do interior - que o artista não conhecia - quanto dos temas mais leves, como os circenses, por exemplo.
36.
Krajcberg ficou pouco
tempo na empresa. Em 1951, participou da I Bienal Internacional de São Paulo.
Depois retirou-se para um exílio auto imposto e segue
uma trajetória fiel a uma concepção de arte relacionada diretamente à pesquisa
e utilização de elementos da natureza.
37.
Ao fim e ao cabo, o que podemos ver na produção
destes diversos artistas agrupados à égide da Osirarte
é uma notável produção plural, diversificada. Essa produção estava sujeita às
convicções de cada um e era fortemente identitária,
ainda que inscrita numa tematização relativamente dirigida, em que pese nisso o
respeito de Osir em preservar as nuances próprias de
cada artista.
38. Este olhar à produção da Osirarte que destacamos - distante dos imensos painéis que a tornariam mundialmente famosa - permite ver uma produção que foi colocada à margem pela historiografia da arquitetura. Conforme o entendimento de modernistas como Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, a retomada do uso parietal de azulejos coincide com a “renovação” da arquitetura brasileira. Após o “declínio” do neocolonial, o modernismo manteve a azulejaria como recurso formal à composição de diversos edifícios, públicos ou particulares. Neste contexto, a azulejaria como recurso decorativo não conheceu ocaso. A produção avulsa, como a da Osirarte não teve o mesmo destino: a produção foi caindo gradualmente, os artistas foram se dispersando até a empresa fechar suas portas.
39.
Naturalmente, cumpre observar que o modelo de
historiografia de arquitetura brasileira é produto do modelo de análise
elaborado por Lúcio Costa e sobrevive praticamente intacto até hoje. A história
da arquitetura moderna brasileira resulta um tanto acrítica, cristalizando-a
numa produção inquestionável como unidade, impermeável à crítica isenta que
reavalia suas posições, permitindo continuidade e superação. Ainda que pesem os
méritos indiscutíveis de parte expressiva da produção realizada - obras
exemplares que constituíram importantes axiomas precedentes para uma prática
mais ampla - o patrimônio modernista parece ter originado uma escala de valores
notavelmente subjetiva.
40.
Se, a este entendimento, Brasília seria a
coroação de um processo iniciado na década de 1930 - uma coroa que tinha os
edifícios de Niemeyer como gemas fulgurantes - a obra em azulejaria de Cândido
Portinari também representa o auge desta produção. As coisas, entretanto, não
são bem assim. Atribuir juízo de valor é uma operação totalmente destituída de
sentido na historiografia. Além disto, o tamanho da obra não é, em absoluto,
critério de distinção. Uma composição de azulejos de Volpi e Zanini, um casario de Hilde Weber
ou o São Jorge de De Fiori foram pensados com
tanto capricho e talento quanto Conchas e Hipocampos ou São Francisco
de Portinari e executados com o mesmo zelo. Apenas se destinam a espaços
distintos: uns às fachadas, como propaganda de uma obra de arte pública; outros
aos espaços da intimidade, revestidos de carinho e ungidos pelo laço afetivo de
seus proprietários. Não existe um processo que determine uma obra “final” ou
“máxima”. Os azulejos avulsos, muitas vezes feitos à 4
ou 6 mãos, muitos sem identificação ou assinatura, são obras de arte.
Testemunho de uma época onde os sonhos eram feitos à mão.
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cidade: na História e na Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
ZANINI, Walter. A Arte no Brasil nas décadas de 1930-40. O grupo Santa
Helena. São Paulo: Nobel e EDUSP, 1991.
ZILIO, Carlos. A Querela do Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
2ª. Ed. 1997.
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[1] O convite foi feito em 1936, mas os painéis somente
seriam executados entre 1940 e 1945.
[2] MORAIS, 1988, p. 34.
[3] Elza Ajzenberg observa que o Grupo Santa Helena surgiu em meio às transformações
sociopolíticas da Revolução de 1930. Os decênios de 1930 e 1940 pontuaram a
trajetória histórico-artística dos artistas desse grupo. Nesse período, São
Paulo cresceu e modernizou-se com a expansão cafeeira e, depois, com a
industrialização e o desenvolvimento do setor bancário e financeiro. Trens,
bondes, luz elétrica, automóvel, calçamento, praças, viadutos, parques e os
primeiros arranha-céus, transformaram sua fisionomia. A partir de 1934, em
diferentes momentos, foram os artistas chegando ao Palacete
Santa Helena, na antiga Praça da Sé, n. 43 (posteriormente, n. 247),
convivendo, até o final da década, em salas transformadas em ateliês. Não
existia nenhuma intenção que os movesse no sentido de organizar um movimento.
Aproximaram-se espontaneamente uns do outros, identificados pela origem social,
por vivências artísticas ou artesanais. AJZENBERG,
Elza. Grupo Santa Helena. 19&20,
Rio de Janeiro, v. III, n. 4, out. 2008.
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/artistas_gsh.htm>. Acesso
em: 12 mar. 2014 20:33..
[4] ZANINI, Walter. A Arte no Brasil nas décadas de 1930-40. O grupo Santa Helena. São
Paulo: Nobel e EDUSP, 1991.
[5] Cumpre observar que a expressão “nacionalista” aqui
adotada refere-se ao sentido construído pelos modernistas, ou seja, a
valorização e o destaque das coisas da terra, ausente de ufanismos.
[6] A Osirarte produzia
azulejos pela técnica do baixo-esmalte. O azulejo era trabalhado antes da
queima da placa de barro denominada “biscoito”. Morais observa que, de acordo
com os depoimentos de Hilde Weber e Gerda Bretani, primeiramente
desenhava-se sobre um papel de seda, depois o desenho era perfurado com
alfinetes e transferido à carvão para o biscoito. Os
pigmentos preparados com cola e água eram então empregados com pincel de
aquarela o que exigia muita rapidez na execução, dado a natureza absorvente da
placa de barro (MORAIS, 1988, p. 128).
[7] O contato dos brasileiros com os azulejos data do
século XVII usados pela primeira vez na decoração do Convento de Santo Amaro de
Água-Fria, em Engenho Fragoso em Olinda, segundo seus moldes lusitanos. Sylvia
Cavalcanti (2002, p. 34) identificou os anos de 1830 como sendo os anos
iniciais para o uso parietal dos azulejos em São Luis no Maranhão - a única
cidade brasileira a não nascer lusitana. Para os franceses, São Luís era “la
petit ville aux palais de porcelaine”,
numa influência que não se restringiu à área de São Luís, mas estendeu-se à
Olinda e Recife, caindo notadamente no gosto popular dos brasileiros.
[8] IBGE. População Residente, por situação do domicílio
e por sexo - 1940-1996. Dados Históricos dos censos. Estatísticas do Século XX.
[9] Além do alcance do rádio e dos programas de
televisão, os artistas ligados à música sertaneja ganharam espaço na década de
1950 com publicações como a Revista Sertaneja: a Revista do Rádio e
disco Sertanejo. Inteiramente voltada à divulgação de letras de músicas,
biografia de artistas, instrumentos musicais e selos fonográficos, a revista
contava com uma equipe de poetas e compositores como Ado
Benatti, Attilio Giaconelli e Ariovaldo Pires.
[10] Como podemos
identificar tanto na obra cinematográfica de Amácio Mazzaropi (1912-1981), como em Candinho, Chico
fumaça, Jeca Tatu, produzidos entre 1953 e 1959, e Casinha
Pequenina, em 1962, quanto na literatura de Ruth Guimarães (1920) - Água
Funda e Os Filhos do Medo, publicados em 1946 e 1949
respectivamente, revelando aspectos do cotidiano, do imaginário valeparaibano, valorizando a vida singela de uma habitação
na fazenda ou numa cidade pequena.
[11] De seus 22
livros publicados sobre o universo caipira, destacamos Conversas ao Pé do
Fogo, Sambas e Cateretês e Tá no
Bocó, publicados entre 1921 e 1934. Cornélio Pires também idealizou dois
documentários sobre o tema: Brasil Pitoresco, em 1923, e Vamos
Passear, em 1934.
[12] Pseudônimo
de Benedita de Resende Graciotti (1913-1972), nascida
em São Bento do Sapucaí, no Vale do Paraíba.
[13] De acordo
com Alice Brill: “Como Cezanne,
Zanini procura conciliar a harmonia das cores com uma
elaboreação plástica do espaço, a emotividade como construtividade”. (Mário
Zanini e seu tempo: do Grupo Santa
Helena às bienais. São Paulo: Perspectiva, 1984, p.33).