Prostituta Grega ou Imperatriz Romana? Novas leituras sobre a Messalina de Henrique Bernardelli

Camila Dazzi

DAZZI, Camila. Prostituta Grega ou Imperatriz Romana? Novas leituras sobre a Messalina de Henrique Bernardelli. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 2, abr. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_messalina2.htm>.

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Vous êtes l'évocateur magique de l'antiquité, de cette antiquité héliogabalesque à laquelle vont les imaginations des penseurs et les pinceaux des peintres, de ces décadences et de ces fins de vieux mondes, mystérieusement perverses et macabres

Edmond de Goncourt [1]

1.     Apesar de minha atual pesquisa de Doutorado, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ, enfocar o processo de Reforma pelo qual passou a Academia nos anos de 1890[2], meu interesse pela produção artística do pintor Henrique Bernardelli, figura central da minha dissertação de Mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História do IFCH/UNICAMP em 2006[3], nunca se esgotou. De fato, ainda que em segundo plano, a pesquisa sobre a sua produção artística teve continuidade, e foi possível, nos últimos anos, encontrar alguns dados que me levaram a rever algumas hipóteses anteriormente levantadas, sobretudo no que diz respeito a tela Messalina [Figura 1], pertencente ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes/Rio de Janeiro.

2.     A primeira dessas hipóteses diz respeito à datação do quadro. Inicialmente, quando da realização da dissertação, concluímos que a tela havia sido realizada por volta de 1890, tendo como base o fato do nome da tela, Messalina, não aparecer nas crítica de arte publicadas em periódicos, nem nos documentos da Academia/Escola de Belas Artes[4] até 1892. No referido ano, a tela é citada, em um ofício datado de novembro, por Rodolpho Bernardelli, diretor da Escola Nacional de Belas Artes, ao requerer ao Governo verba para a aquisição de algumas obras, dentre elas a tela “Massalina[5]. Assim sendo, a data que é normalmente atribuída para a realização da tela, o ano de 1886, estaria errada, sendo ela, na verdade, uma realização posterior do artista.

3.     No entanto, um descoberta recente da professora Ana Maria Tavares Cavalcanti - vinculada ao PPGAV da EBA/UFRJ -, revelou um dado extremamente significativo. Pesquisando as edições de 1890 do Jornal Vida Fluminense, a historiadora da arte encontrou na edição de 8 de março, páginas 4 e 5, a reprodução de um quadro de Henrique Bernardelli que causava furor no público especialista que visitava a Exposição Geral de Belas Artes naquele ano [Figura 2].

4.     A comparação entre uma fotografia atual da tela Messalina e a reprodução da tela encontrada no Vida Fluminense revela uma inquestionável similaridade [Figura 3]. No entanto, o comentário que acompanha a reprodução não menciona o título da obra, como podemos verificar:

5.                                   Os Homens do Dia - H. Bernardelli. É o heroe da exposição da Academia de Bellas Artes que o capricho governamental ainda conserva fechada. Ele ahí está com o seu grande quadro que provoca os mais ruidosos aplausos. Hurrah! por  Bernardelli!

6.     Nós sabemos, porém, pelo Catálogo da Exposição Geral de Belas Artes de 1890, e por outros comentários sobre a exposição publicados em jornais da época, que nenhuma tela com o nome de Messalina figurou na mostra. Então que tela seria essa que, como o próprio jornal deixa entender, estava causando tantos elogios e aplausos? Tudo nos leva a crer que se trata de uma obra intitulada Dicteriade, mencionada em diversas críticas em 1890, como essa da Gazeta de Notícias:

7.                                   A exposição atual [E.G. de 1890] é talvez a mais brilhante que temos tido, e se o público ainda se não definiu a frequentá-la, é porque anda escabreado das outras, e ainda não tem fé na arte nacional. [...] E  se quer que o guiemos, se quer ter logo desde o primeiro dia uma impressão que o obrigará a voltar, ao entrar na galeria nova procure um quadro que fica ao fundo, à direita, a Dicteriade de Henrique Bernardelli; [...] diga-nos se  não é aquilo o atestado bem eloquente do quanto vale a permanência de um artista de talento em um meio verdadeiramente artístico. Aí está a verdadeira arte italiana moderna em toda a sua perfeição, e como a tela é de um artista nosso, ali está o que é preciso para termos arte nacional, se o governo e o público entenderem que vale a pena cultivar a preciosa planta, que também enriquece as nações, influindo sobre os costumes, pois nem só de café vive o homem.[6]

8.     Ou ainda essa, do Jornal do Commercio, destacando a atitude/pose da figura feminina representada:

9.                                   Mas o seu quadro mais notável pelo menos nesta exposição [da E.G. de 1890] é Dicteriade. Nunca vimos escorço mais ousado nem realizado com tanta felicidade. [...] deitada; sente-se-lhe a molleza e flexibilidade do corpo. Tem no rosto uma expressão indiferente [...] os vestidos, as sandálias, tudo alli respira a profissional da luxuria, moça na idade, velha no vício, encantadora e terrível, [...] o typo completo da abjeção humana.[7]

10.   Esse último comentário, sobretudo, corresponde a reprodução encontrada no Vida Fluminense. Dada a similaridade, podemos afirmar que Messalina é a Dicteriade? Ou seria Messalina uma segunda versão de Dicteriade? Devemos lembrar que o nome Messalina só surge em 1892: com esse nome a tela que hoje se encontra no MNBA foi adquirida pela ENBA, e com esse mesmo nome a tela figurou na importante Exposição Universal de Chicago, realizada em 1893 [Figura 4]. Após 1892, o nome Dicteriade perde qualquer vínculo com a tela - se é que um dia foi a ela aplicado.

11.   A segunda possibilidade não é nada improvável: segundas versões de telas aclamadas eram frequentemente realizadas no século XIX, com ou sem mudança de nome. Mas pensemos, por hora, na primeira possibilidade, segundo a qual as duas obras seriam, na realidade, uma só.

12.   Tal hipótese justificaria o fato do nome de Messalina não constar nas críticas e documentos referentes a Exposição de 1886[8], que Henrique Bernardelli realiza no Rio de Janeiro com a ajuda do irmão Rodolpho, uma vez que sabemos que em 1886 uma tela de Henrique intitulada Dicteriade foi exposta no Salon de Paris, como nos deixa saber o guia da mostra Explication des ouvrages de peinture, sculpture, architecture, gravure et lithographie des artistes vivants exposés au Palais des Champs-Élysées[9]. A presença de Dicteriade no Salon também nós é confirmada em uma carta escrita a Henrique por Rodolpho Amoêdo, que se encontrava em Paris naqueles anos, como pensionista da Academia Imperial de Belas Artes:

13.                                 Vi os seus dois quadros no Salon e se estão no alto, tiveste em compensação a felicidade de seres collocado no salão de entrada que é um dos maiores.  Muito me agrada sua Dicteriade a qual parece-me pintada com bastante largueza e descrição, e se o quadro é poderoso de luz, está harmonizado com doçuras. Da Graziella gostei menos, não sei porque, não me parece tão interessante, ainda que em ambas noto grandes progressos sobretudo em desenho e modelado.[10]

14.   Se Messalina for, de fato, a Dicteriade, ela estaria exposta em Paris, e não no Rio, para onde foram enviadas tantas outras telas do artista que hoje fazem parte do acervo do MNBA, como Tarantella e a Mater, sempre mencionadas nas críticas de arte referentes à já mencionada Exposição de 1886.

15.   Não seria a primeira vez na história da arte que um quadro  recebe um segundo nome pelos seus contemporâneos, e nós poderíamos apontar alguns exemplos dentre as obras mais famosas produzidas no oitocentos:  uma delas é a tela de Gustave Courbet La Rencontre (1854) [Figura 5], também conhecida pelo seu segundo título Bonjour Monsieur Courbet [11].

16.   A pintura causou de admiração à hilaridade quando exposta em 1855, e foi instantaneamente apelidada de “Bonjour Monsieur Courbet”, ou ainda, por um comentarista, de “Fortuna diante do Gênio”, devido ao fato de só Courbet ser banhado pelo sol, como revela a sombra dele[12]. E como esse, haveriam outros exemplos. Um segundo, ou ainda um terceiro título, são dados pelos contemporâneos e um não invalida o outro. Por isso, mesmo os catálogos oficiais e sites especializados sempre citam os dois nomes da tela[13].

17.   O segundo título de Dicteriade, se realmente as duas telas forem uma só, também teria sido dado pelos seus contemporâneos, entre 1890, ano em que participa da Exposição Geral de Belas Artes, e 1892, ano em que é comprada pela Escola Nacional de Belas Artes com o nome de Messalina. Uma diferença, se tivermos como comparação o exemplo da tela La Rencontre, é que o título Dicteriade em menos de dois anos foi totalmente dissociado da tela à qual dava nome. Passa a vigorar a partir de 1892 o nome Messalina, e o título original da obra é totalmente esquecido - se é que, de fato, a troca de nomes ocorreu.

18.   Mas, além disso, o segundo título modifica completamente o tema representado, algo que não ocorre em La Rencontre: Courbet e Bruyas continuam sendo quem são, independente do nome que o quadro receba. No caso de Dicteriade, não. Uma prostituta da antiga Grécia, uma Dicteriade, passa a ser a representação de uma imperatriz romana.

19.   E é exatamente nesse ponto, aquele que reflete sobre o fato de que a mudança de nomes ressignifica a personagem representada na tela, que nós devemos retomar a nossa segunda hipótese, a de que a tela Messalina é, na realidade, um segunda versão de Dicteriade, o que explicaria o fato da tela que hoje se encontra no MNBA, adquirida pela ENBA em 1892, nunca ter sido mencionada pelos dois nomes. O sucesso de Dicteriade em 1890 e a sua possível compra por um colecionador particular, podem ter levado Henrique a fazer uma nova versão da tela, seja visando a sua venda para outro colecionador, seja para a ENBA - venda certa já que o Diretor da instituição era o seu irmão -, seja com o propósito de participar com a tela da Exposição Universal de 1893, realizada em Chicago, uma vez que os preparativos para a seleção das obras que seriam expostas tem início no Brasil já em 1891.[14]

20.   Bastante plausível essa hipótese. No entanto, o “ponto nodal” é o seguinte: porque foi atribuído à segunda versão da tela um nome que mudava totalmente a personagem que estava sendo representada? Porque não intitular a obra com um nome que remetesse o expectador à sua primeira versão, uma tela aclamada, exposta em Paris, um verdadeiro sucesso no Brasil? Não certamente o fato das Dicteriades serem totalmente desconhecidas do público oitocentista, pois apesar de nos soar bastante fora do comum, livros publicados no século XIX que versavam sobre a prostituição, via de regra citavam essa classe de prostitutas gregas, as Dicteriades. É o caso do interessante History of Prostitution: It`s extent, Causes and efectes Throughout The World, de Willian W. Sanger, publicado em 1859:

21.                                 The lowest class of prostitutes were the Dicteriades, already mentioned. They were originally bound to reside at the Piraeus, the sea-port of Athens, some four miles from the city, and were forbidden to walk out by day, or to offend the eyes of the public by open indecency.[...] The Dicteria were under the control of the municipal police. At the curtain sat an old woman who received the money before admitting visitors. The curtain passed, he was in full view of the Dicteriades, standing, sitting, or lying about the room; some in conversation, some anointing themselves with perfumery.

22.   Ou o não menos fascinante L'amour dans l'humanité: essai d'une ethnologie de l'amour, de 1886:

23.                                 Les Dictériades prirent le nom de la femmede Minos, roi de Crète (Dictoe), Pasiphaô, qui se cacha dans le ventre d'une vache de bronze pour recevoir les caresses d'un vrai taureau. Elles habitaient le Dictérion, maison officielle de la prostitution, et devaient satisfaire les besoins erotiques du bas peuple.[15]

24.   E existem outros tantos exemplos. As Dicteriades podiam ser menos nobres que Messalina, mas certamente não menos conhecidas dos interessados pelos excessos sexuais e 'vícios da noite'.

25.   Seja Messalina uma segunda versão de Dicteriade, sejam as duas obras uma só, o mesmo questionamento se faz presente: como foi possível uma mudança de nome que ressignificava a personagem que estava sendo representada? Para as duas hipóteses, temos a mesma resposta: acreditamos que a mudança só foi possível porque o quadro representa, de fato,  um arquétipo, um tipo.

26.   A mulher representada na tela não porta consigo nenhum símbolo que a identifique como um personagem específico. Vejamos a obra em relação ao nome Dicteriade. Os atributos que a mulher representada deveria possuir para a identificarmos como uma Dicteriade não aparecem na tela. No Catálogo da Exposição Geral de 1890, encontramos um texto que explicava o sujeito do quadro:

27.                                 Dicieriades erão genericamente chamadas na Grécia duas diversas classes de profissionais da luxuria - as encantadoras e terríveis flautistas, muito jovens, que offérecião espetaculos de dança e musica, no fim dos banquetes das casas opulentas; e os mais completos typos da abjecção humana, vagabundas das minas, das grutas, dos recantos sombrios de suburbios e de todos os lugares suspeitos.

28.   Mas não há flautas aqui, a nossa personagem não dança. Nem o que vemos é uma suja mina ou uma gruta. Assim, a pintura e o texto que tinha como função explicá-la se distanciam.

29.   O mesmo se aplica ao pensarmos na tela em relação ao nome Messalina. A Imperatriz romana Valéria Messalina era conhecida no século XIX justamente como um arquétipo da femme fatale e creio que seria impossível, ao menos após a mudança de títulos, olhar para a figura feminina representada e não estabelecer um relação com o nome da tela, Messalina, associando-a diretamente a personagem histórica. Mas tal associação se daria unicamente devido ao fato da tela portar o nome Messalina, pois a última coisa que poderíamos falar desse quadro é que ele se trata de um Quadro de História.

30.   Na tela de Henrique não encontramos representada nenhuma das conhecidas passagens da vida da famosa Imperatriz, como deveria estar evidenciado caso a intenção do artista fosse retratar a Imperatriz romana enquanto augusta meretrix. Basta compararmos visualmente a Messalina de Henrique com a A Morte Messalina (1850) do pintor francês Victor Biennoury [Figura 6] para compreendermos a diferença.

31.   A tela de Henrique apresenta ao público oitocentista o tipo “moderno de mulher fatal”, tão em voga no momento, só que transvestida em personagem da antiguidade clássica. Não se trata de uma postura incomum por parte de Henrique Bernardelli. Como bem colocou Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado na sua dissertação de mestrado A vida vertiginosa dos signos: recepção do idioleto decadista na belle époque tropical:

32.                                 Ao volver a máquina do tempo em ação retrógrada, chegam os decadentistas a Roma, cenário de Marius The Epicurean, obra de Walter Pater cultuada entre os estetas ingleses do fim de século. Digna de menção também é flânerie  arqueológica proposta pelas crônicas do português Justino de Montalvão, em que descreve visitas a ruínas romanas. [...] O decadentismo propõe-se, assim, a oferecer “uma imagem expressiva na evocação de épocas históricas estigmatizadas pela decadência (de Bizâncio, de Roma etc) e na sua identificação com aqueles que de forma mais bizarra ou degenerada viveram essas épocas.[16]

33.   De fato, na tela encontramos evidências que vinculam a mulher representada inquestionavelmente a um período histórico e geográfico mais ou menos delimitado. Trata-se dos elementos na tela que nos remetem a antiguidade greco-romana: o chão feito com mosaicos, as sandálias trançadas e a estrutura marmórea sobre a qual repousa a mulher. Neste último item merece especial atenção o relevo, parcialmente oculto pelas pernas da mulher. Inicialmente identificado por nós como sendo uma representação de Hermes, por tratar-se uma figura masculina nua, segurando um bastão e se fazendo acompanhar por um cão - atributos reconhecidos desse Deus -, o que o relevo de fato representa é um sátiro. O reconhecimento se deu recentemente, ao localizamos, no Museu Arqueológico de Nápoles, um relevo representando o cortejo de Baco, ou Dionísio para os gregos, proveniente das ruínas de Stabia e datado como pertencente ao período augusteo-tiberiano [Figura 7].

34.   É inegável, comparando as duas imagens, que Henrique Bernardelli se apropriou do último personagem que compõe o cortejo dionisíaco, e que se trata, segundo as recentes leituras sobre o relevo, de um sátiro, portando o tirso, uma espécie de bastão, e se fazendo acompanhar por uma pantera, animal relacionado ao mito de Baco. É muito provável, que, de fato, o artista tenha entrado em contato direto com esse relevo, já que sabemos que ele estava constantemente em Nápoles, podendo ter visitado o próprio Museu Arqueológico, ou mesmo as ruínas de Stabia, de onde a peça provêm.

35.   A presença do sátiro - representante dos excessos e aos prazeres carnais - na tela de Henrique reforça a ideia de que se trata de uma mulher desfrutável, porém, igualmente reforça a conexão temporal da personagem com o mundo clássico, Grécia ou Roma.

36.   De fato, a mulher representada na tela de Henrique poderia ser qualquer personagem, anônima ou não, de uma Antiguidade evocada pelo decadentismo de fins do século XIX, sofredor de um compulsivo desejo “de migração rumo a regimes desaparecidos, a universos perdidos na noite dos tempos”[17]. Hétaïres, Dicteriades,  Messalina, Áspasia, a sua identidade é o que menos importava. E justamente por isso é perfeitamente compreensível que a tela tenha recebido um segundo nome.

37.   A operação mental que Henrique Bernardelli parece desejar é de que se reconheça na tela um tipo humano que detêm todos os vícios e delitos do tipo da mulher fatal que atormentou o imaginário masculino do século XIX, e figurou, nas suas mais diversas vestes, em inúmeras obras literárias e pictóricas, da Nana (1880) de Émile Zola à Salomé (1900) de Lovis Corinth [Figura 8].

38.   Nós não podemos negar, no entanto, que a leitura que fazemos de uma obra será sempre influenciada pelo nome que ela porta consigo. Nesse momento retornamos ao ponto de partida: o porque da mudança do nome de Dicteriade para Messalina? Sejam as duas a mesma obra, seja Messalina uma segunda versão de Dicteriade. Por que especificamente Messalina? A associação foi pensada pelo próprio Henrique Bernardelli? Surgiu entre amigos durante a exposição de Dicteriade em 1890? Ou, como no caso de Courbet, foi sugerida pelos críticos? Por hora nós não sabemos. Só podemos, portanto, formular hipóteses.... especulações...

39.   Para concluir, vou lançar uma hipótese que julgo interessante (ainda que bastante arriscada). Se o título da tela influência na leitura que dela fazemos,  não podemos pensar que chamá-la de Messalina, famosa Imperatriz,  em um momento em que a deposição da Dinastia Imperial e da Instituição da República no Brasil era bastante recente, seja uma escolha inocente.

40.   Existem, de fato, alguns teóricos (historiadores da arte ou não) que defendem que as  representações da Roma Imperial realizadas no século XIX eram muitas vezes vistas pelo publico, especialista ou não, como uma crítica a um Regime político decadente.

41.   Os comentários que o Albert Boime, faz em seu livro Art in an age of counterrevolution [18] sobre a recepção da  tela Les Romans de la decadence (1847) de Thomas Couture [Figura 9] são bastante elucidativos nesse sentido. Uma dessas recepções é a de Theodore Thoré, que, na sua introdução ao Salão de 1847, condenava o materialismo da monarquia, o seu amor à luxuria e a desconsideração pelas classe menos favorecidas. Ou ainda a de Augusto Luchet, escrevendo sobre o salão para o radical jornal republicano La Réforme, também nos anos de 1840, caracterizando Les Romans de la decadence como um comentário sobre o declínio da sociedade francesa contemporânea.

42.   O decadentismo fin de siécle manteve a associação do Império Romano com a ideia de decadência. Como colocou Yves Bonnefoy, em Roman and European Mythologies,  em finais do século XIX, o 'Mito da Decadência Latina', ou, simplesmente, o 'Mito da Decadência' fazia parte do imaginário de poetas e artistas:

43.                                 Since for quite some time Edward Gibbon, Montesquieu, and others had applied the word "decadence" to the degradation of the Roman Empire [...] When the Sâr Péladan (Joséphin Péladan, 1859-1918) entitled his vast epic novel, his "éthopée," Latin Decadence, he meant to represent and condemn modern customs that had been corrupted by materialism. We all know Verlaine's famous statement, so characteristic - considering its date (1883) - of a general state of mind:

44.   Je suis L'Empire à la fin de la Décadence / Qui regarde passer les grands Barbares blancs / En composant des acrostiches indolents/ D'un style d'or la langueur du solei danse.

45.                                 [...] Baudelaire, in his study of the painter Constantin Guys, had already spoken of "decadences” i.e., troubled, transitional times "when democracy is not yet all-powerful, when the aristocracy is only partially tottering on the edge and degraded." The decadence he lived was of just such a kind, and he recognized himself just as easily in the Apulean era, the second century A.D.

46.   Voltando para o Brasil, o fato da história de Valéria Messalina ser bastante conhecida no oitocentos, não somente como arquétipo de femme fatale, mas, também, como representante máxima de um império decadente e degenerado, pode ter sido o motivo, quem sabe, do quadro ter recebido o seu segundo nome. Juntando-se a isso, não podemos ignorar o fato de que o público das exposições de arte oitocentistas gostava de ver retratadas nas telas personagens que pudessem facilmente vincular à uma narrativa... Generalizando, podemos dizer que os artistas sabiam desse gosto e procuravam, sem servilismo, saciar a ânsia novelística do seu público. Tal recurso será criticado com mais intensidade, no Brasil, somente nos primeiros anos do século XX. Bom exemplo é o comentário de Gonzaga Duque à tela Madalena,de Carlos Oswald, publicada na revista Kósmos em 1906, na qual o título da tela, que vinculava a personagem representada a uma narrativa bíblica, é criticado, sendo colocado como desnecessário:

47.                                 A própria Magdalena, a que me referi, se tivesse por título - estudo, academia, nu - ou outro qualquer que o não determinasse, que o não fizesse um tipo, seria ótimo trabalho. Magdalena! porque?... Em que esta figura indica a pecadora arrependida que acompanhou Jesus de Nazaré?... Será pelo acabrunhamento em que permanece?... Será simplesmente um nome de acaso, como seria o de Sívia, Marta, Joana?... Que nos importa a nós que uma mulher nua, sobre um divan, sem outros atributos que inculquem a sua origem, a sua raça, os seus costumes, se chame Joaquina ou Rachel?... [19]

48.   O fato de Messalina possuir uma história e Dicteriade ser simplesmente uma classe de prostitutas gregas pode ter influenciado na troca. Os dois fatores, - a associação entre Império e decadência vinculados à Messalina e a narrativa que envolvia tal personagem - , podem ter contribuído, juntos, para que a tela que hoje se encontra no MNBA tenha recebido o nome de Messalina.

49.   Como dito anteriormente, trata-se de uma conjectura, que somente um estudo muito mais aprofundado de como os dois regimes políticos, Império e República, foram representados no século XIX, sobretudo no Brasil, seria capaz de comprovar. Estudo aprofundado também se faz necessário para afirmarmos que Messalina e Dicteriade são um só tela.

50.   As recentes e intensivas pesquisas com base em documentos e periódicos que vem sendo realizadas sobre a arte do século XIX ainda demonstrarão que muitas de nossas certezas sobre obras consagradas não são mais que meros enganos. Como bem coloca Mirian Seraphin em seu artigo publicado no presente número de 19&20 [cf. link], “Qual é o momento ideal para se publicar uma pesquisa? Oito anos ininterruptos de estudos sobre uma mesma pintura são suficientes?” ... Creio que nem uma vida inteira de pesquisas sobre uma obra poderia evitar de fazermos algumas “descoberta desconcertantes”. Cabe á nós não engavetarmos as descobertas, com receio de contradizermos as nossas próprias afirmações.

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[1] Apud: PRAZ, Mario. La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica. Firenze: Sansoni Editore, 1948.p. 281.

[2] DAZZI, Camila. As lutas artísticas no Rio de Janeiro da década de 1890: os debates em torno da Reforma da Academia de Belas Artes e sua posterior implementação. Tese de Doutoramento em andamento pelo PPGAV/EBA/UFRJ. Orientador: Sonia Gomes Pereira.

[3] DAZZI, Camila. As Relações Brasil-Itália na Arte do Segundo Oitocentos: estudo sobre a obra de Henrique Bernardelli (1880 a 1900). Campinas: IFCH/UNICAMP, 2006. Orientador: Luciano Migliaccio.

[4] Hoje pertencentes ao Museu D. João VI/EBA/UFRJ. Durante vários meses pesquisamos a documentações do Museu Dom João VI da EBA/UFRJ, referente aos anos de 1886 e 1887, (Livros das Atas da Congregação, Livros de Correspondências Enviadas, Livros de Correspondências recebidas, Documentos avulsos), e em nenhum momento o nome do quadro aparece em qualquer documento, ao contrario de outras obras que figuraram na Exposição de 1886.

[5] Livro de Correspondências Enviadas, da ENBA, p. 95, oficio datado de 17 de novembro de 1892.

[6] Gazeta de Noticias, março de 1890. Autor: anônimo.

[7] Jornal do Commercio. 1/4/1890. Col. Bellas Artes - “Exposição de 1890”.

[8] Ver Catálogo dos Quadros de Henrique Bernardelli - Exposição de 1886. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/catalogos/catalogo_hb1886.htm>.

[9] Explication des ouvrages de peinture, sculpture, architecture, gravure et lithographie des artistes vivants exposés au Palais des Champs-Élysées. Le 1. Mai 1886. Paris: Paul Dupot, 1886. p. 16. “BERNARDELLI (Henri), né à Rio-de-Janeiro. A Rome, Vicolo S. Nicolo da Tolentino, 13. 183 - Dicteriade / 184 - Graziella.”

[10] Arquivo do Museu Nacional de Belas Artes. APO 57. Carta datada de Paris, 1 de junho de 1886.

[11] Gustave COURBET: La rencontre, 1854. Huile sur toile, 1,32 x1,50 m. S.D.b.g. : 54. G. Courbet. Inv. 868.1.23. Montpellier, Musée Fabre, don Bruyas 1868.

[12] STURGIS, Alexander. Rebels and martyrs: the image of the artist in the Nineteenth Century. RupeLondon : National Gallery, 2006. p. 96.

[13] Um bom exemplo é o site do Museu Fabre, que abriga em sua coleção a tela La Rencontre de Courbet: <http://museefabre.montpellier-agglo.com>

[14] É preciso compreender que a Exposição de Chicago era de extrema importância para o recente Governo republicano brasileiro. Tratava-se de uma oportunidade de apresentar os avanços ocorridos com a implantação do novo regime político, inclusive na área das belas artes. Já no final de 1891, ou seja, mais de um ano antes da mostra de Chicago, o Governo entra em contato com Rodolpho Bernardelli pedindo para que este, junto com outros membros da ENBA, desce início a escolha das obras que deveriam figurar na Exposição.

[15] MANTEGAZZA, Paolo. L'amour dans l'humanité: essai d'une ethnologie de l'amour . F. Fetscherin et Chuit (Paris), 1886.

[16]  SALGADO, Marcus Rogério Tavares Sampaio. A vida vertiginosa dos signos:  recepção do idioleto decadista na belle époque tropical. Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras/ UFRJ, 2006. (Dissertação de Mestrado).

[17] “Il n'y avait en lui aucun désir de migration vers les régimes disparus, vers les univers égarés dans la nuit des temps. In: HUYSMANS, Joris-Karl. À rebours: avec une préface de l'auteur écrite vingt ans après le roman. Sans-Pareil (Paris) - 1924. p.179

[18] BOIME, Albert. A Social History of Modern Art - Art in an age of counterrevolution, 1815-1848. Chicago and London: University of Chicago Press, 2004. Vol. V. p. 409.

[19] DUQUE, Gonzaga. O Salão de 1906. Kósmos, Rio de Janeiro, out. 1906, n/p. [ver link].