Saudade e Nhá Chica: Duas cenas de gênero de José Ferraz de Almeida Júnior

Karin Philippov *

PHILIPPOV, Karin. Saudade e Nhá Chica: Duas cenas de gênero de José Ferraz de Almeida Júnior. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, abr. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_kp_aj.htm>.

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Ao se pronunciar Saudade [Figura 1] e Nhá Chica [Figura 2], títulos de duas cenas de gênero pintadas em 1899 e 1895, respectivamente, por José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899), imediatamente se forma no imenso arcabouço imaginário de cada fruidor, uma infinidade de imagens trazidas da memória. Entretanto, pode-se ter certeza de que nenhuma dessas faz justiça ao que Almeida Júnior realizou.

Dito isto, agora é chegado o momento de observar e proceder à análise das obras em questão. Na presente artigo não se pretende estabelecer uma seqüência cronológica colocando Nhá Chica primeiramente, por ter sido pintada em 1895 e Saudade, por último em 1899, ano da morte trágica do pintor. Antes se prefere definir o padrão de escolha pensando nas afinidades que as obras em questão estabelecem entre si e com outras produções européias privilegiando, sobretudo, as cenas de gênero holandesas do século XVII e as italianas, portuguesas, espanholas, húngaras e russas do século XIX revelando nestas uma constância, ou melhor, uma permanência nos temas dentro das Academias de Arte.

O óleo sobre tela Saudade pintado em 1899 traz a representação de uma mulher que chora olhando para um “cabinet portrait”. Note-se como ela está posicionada dentro de um ambiente doméstico rústico, retratado realisticamente com o mesmo grau de minúcia de uma cena de gênero do século XVII holandês, em especial, de Johannes Vermeer van Delft (1632-1675) e de Pieter de Hooch (1629-1684). Pois, para Almeida Júnior o que parece importar é a representação de uma realidade inerente ao seu viver. Assim, o pintor ituano dispõe sua figura contra uma janela, cuja parede de tijolos traz um chapéu tornado diáfano pela ação do tempo. Do lado esquerdo da figura, ao fundo da cena, há uma canastra encimada por um álbum de fotografias e por um xale branco, cumprindo, dessa forma, um comentário ao provável luto da mulher. Nota-se, além disso, como Almeida Júnior compõe a cena mediante um sagaz jogo de ortogonais presentes na janela, na parede, no chão e na canastra, as quais são contrabalançadas pelas diagonais da tramela, dos braços da mulher e da luz que invade a cena. Almeida Júnior aqui articula perfeitamente seu esquema de ortogonais à fatura cromática, ou seja, o pintor empasta a tinta justamente aonde quer que haja maior carga dramática, como por exemplo, na face de Saudade e em suas mãos.

A segunda tela dessa comunicação é Nhá Chica, executada em 1895. Nessa obra tem-se novamente a inserção da figura feminina dentro de um ambiente caseiro rústico. Porém, se em Saudade a mulher é retratada de corpo inteiro, em Nhá Chica a figura é revelada até um pouco abaixo da linha da cintura. Nota-se que aqui a figura não chora, fuma seu cachimbo enquanto olha para fora da janela e para dentro de si, concomitantemente. Já em Saudade, tem-se a figura olhando para a fotografia e não para o mundo exterior, fato corroborado por estar de costas para a janela e, por esta nada representar além de seus limites. O que há de comum em ambas as telas é que em nenhum momento o pintor permite que o observador seja percebido pelas personagens retratadas.

Novamente, ao se pensar na estruturação da imagem, pode-se perceber que em Nhá Chica existe a forte presença das ortogonais na janela correspondentes ao grau de saturação das pinceladas. Dessa forma, tanto em Saudade quanto em Nhá Chica percebe-se o jogo estabelecido pelas ortogonais e vetores internos e externos às figuras, os quais desempenham papel sinalético nas narrativas. Na primeira obra, tem-se a forte verticalidade da janela complementada pelas horizontais da canastra e do chão. Como ponto de equilíbrio da cena, a diagonal do chapéu de palha e a tramela que apontam para a figura, além da estrutura interna dos braços – o direito apontando até os olhos lacrimejantes enquanto o esquerdo, meio na penumbra, traz a fotografia. Já na segunda obra, as verticais dos batentes da janela são contrabalançadas pela horizontal em perspectiva do peitoril. Além disso, note-se como o bule repete o formato do corpo da figura. Aqui, novamente percebe-se como Almeida Júnior posiciona os braços, tendo o direito a função de quase revelar o mundo exterior, enquanto o braço esquerdo faz um triângulo com o longo pito e o corpo de Nhá Chica.

Biograficamente, sabe-se que o pintor ituano foi agraciado pelo Imperador D. Pedro II, com uma bolsa de estudos em Paris, entre os anos de 1876 a 1882. Pois bem, durante sua estada na referida cidade, Almeida Júnior além de ser discípulo de Alexandre Cabanel, entra em contato com o que existe de mais contemporâneo artisticamente falando, uma vez que as academias de arte européias estão em profundo diálogo com a tradição européia. Assim, ao se considerar a produção realizada dentro destas academias, deve-se destacar a convergência de tendências marcadamente realistas, tanto de denúncia social, quanto de descrição minuciosa do cotidiano. Almeida Júnior, portanto, se posiciona nesta última, conforme a observação de Saudade e Nhá Chica atesta.

Mas, qual é a origem de seus diálogos? Como localizar sua produção? Por que Almeida Júnior opta por esse caminho? Quem são os artistas com os quais dialoga? Primeiramente, é necessário que o olhar do observador seja cuidadosamente guiado até o século XVII holandês, auge do esplendor das cenas de gênero produzidas na Holanda, através de dois de seus maiores expoentes, Johannes Vermeer van Delft [Figura 3] e Pieter de Hooch [Figura 4].

Do mesmo modo como Vermeer e Pieter de Hooch descrevem minuciosamente suas cenas, embora com pequenos formatos, Almeida Júnior também o faz, inserindo suas personagens dentro de espaços caseiros rústicos, desempenhando ações banais e sem qualquer traço de idealização. Entretanto, percebe-se que na produção do ituano não há qualquer sentido moralizante, de pureza, de vânitas ou de memento mori. A intenção de Almeida Júnior reside muito mais na descrição do mundo visível inerente a si, do que em qualquer forma de ensinamento moral, pois na arte e na sociedade laica do século XIX não faz mais sentido tratar de assuntos moralizantes. Deve-se ressaltar dentro das academias um forte clima de época, o qual atinge tanto a práxis quanto a teoria, pois através do resgate da tradição holandesa do século XVII, artistas como Vermeer e de Hooch são recuperados e estudados em suas técnicas e produções. Por exemplo, segundo Maria Cecília França Lourenço, o pintor Eugène Fromentin publica em 1876 seu célebre livro Les Maîtres d’Autrefois (LOURENÇO, 2007: 170).

Além disso, é preciso ressaltar a importância das pinturas narrativas de Almeida Júnior dentro Salões tanto parisienses quanto brasileiros, uma vez que a temática caipira, considerada pitoresca pelo público dos salões, faz parte do imaginário realista do pintor. Entretanto, a representação de temas banais, cotidianos em espaços domésticos, não constitui marca exclusiva. Há outros pintores contemporâneos à Almeida Júnior que exploram o mesmo tipo de representação, como por exemplo, seu amigo Belmiro de Almeida (1858-1935), pintor de A Tagarela, 1893 [Figura 5]. Porém, aqui existe uma diferença fundamental na fatura da obra, diferença esta revelada na pose sorridente que a figura faz ao se lançar em direção ao fruidor como se quisesse conversar ou contar algo, muito embora seja uma humilde empregada doméstica, conforme a vassoura e o uniforme revelam. Almeida Júnior traz figuras simples e humildes, mas não as coloca posando francamente para o fruidor. Suas atitudes são sempre ensimesmadas, as figuras agem sem se darem conta de que estão sendo observadas.

Um outro fator a ser destacado nesta comunicação se refere à passagem de Almeida Júnior pela Itália, sobretudo, por Roma, durante sua primeira viagem. Embora não haja documentos que provem seu contato com os artistas, pode-se propor que o artista se alia à produção italiana, no que tange a representação de cenas banais. Assim, pode-se tentar estabelecer um diálogo entre o ituano e Francesco Paolo Michetti, em Pastorella, 1887 [Figura 6], muito embora este último ressalte o lado melancólico dos camponeses e possua um teor adocicado de tendência romântica em sua obra. Em contrapartida, em Almeida Júnior não há qualquer exploração sentimentalista ou idealizada da figura, conforme a análise e observação de Saudade e Nhá Chica revelam. Apesar da figura feminina de Saudade chorar, não se percebe qualquer traço de melancolia adocicada nem de explosão. Tampouco Nhá Chica apresenta qualquer sentimentalismo bucólico, como Michetti representa em sua obra. Ou seja, Almeida Júnior se aproxima muito mais de um realismo de cunho naturalista, do que de qualquer forma de romantismo.

Ao se estabelecer um cotejo entre Almeida Júnior e o pintor português José Vital Branco Malhoa (1855-1933) [Figura 7], deve-se destacar as condições político-sociais tanto brasileiras quanto portuguesas, pois o Brasil ainda mantém relações com Portugal no final do II Reinado e início de República relações estas que influenciam os costumes e tradições locais de ambos. Além disso, deve-se salientar a situação decadente das Monarquias brasileira e portuguesa, as quais vinculadas ainda às Academias, as enfraquecem favorecendo a busca de novos temas centrados na população camponesa, gênero antes considerado baixo e que assume crescente importância nas representações. A busca de temas camponeses, caipiras, ciganos se torna mecanismo de estudo da condição humana, nesse momento. Aqui cabe mais uma vez lembrar a forte presença de estudos vinculados ao passado holandês, propondo que os artistas da Academia, em face à falência da Monarquia, devem e precisam encontrar temas que retratem a realidade falida da sociedade. Desse modo, alguns denunciam as duras condições de trabalho, outros optam por descrever o que vêem como Almeida Júnior, além daqueles que ironizam, questionam e interrogam como Malhoa, conforme Luciano Migliaccio, que também afirma que “o realismo de Almeida Júnior parece ter afinidades com os quadros de tema camponês pintados pelo português Malhoa ...” (MIGLIACCIO, 2000:143). As observações das obras de Malhoa e de Almeida Júnior ajudam a esclarecer.

Pensando ainda na produção realizada no universo ibérico, deve-se destacar um outro artista que também esteve na Itália e que traz para suas representações, o mesmo imaginário camponês e humilde, cujo grau de realismo se aproxima do de Almeida Júnior, embora não tenha a mesma força narrativa e nem a mesma estruturação compositiva do ituano. Trata-se do pintor espanhol José Villegas Cordero (1844-1921). A observação da aquarela Camponesa Italiana, 1874 [Figura 8], permite perceber no modo de representação do artista, a descrição pitoresca durante sua viagem à Itália, porém, com um toque macchiaoli em sua anotação colhida en plein air. Já em Almeida Júnior, embora não execute suas Saudade e Nhá Chica empregando o recurso adotado pelo espanhol, propõe uma simulação de uma cena colhida ao acaso, como se fossem instantâneos fotográficos, conforme a observação das obras em questão revela.

Segundo Lourenço, um outro pintor que produz uma arte semelhante à de Almeida Júnior, no que concerne ao realismo adotado em suas representações, é o artista húngaro Mihály Munkácsy (1844-1900). E aqui eu cito as palavras de Lourenço (LOURENÇO, 2007:174).

Munkácsy realiza uma tela notável, denominada Mulher Carregando Fardo (1873) [Figura 9], trazendo uma jovem sentada no chão e sendo tomada bem de perto; tem as mãos entre as pernas, os olhos baixos, como se fizesse uma prece ou uma pausa. Carrega um fardo nas costas, amarrado com panos e a tela integralmente reflete os tons terrosos, à exceção do lenço vermelho mantido na cabeça. Particulariza os traços com riqueza de minúcias, conforme também ocorre em cenas assemelhadas de Almeida Júnior, em que conduz o olhar do fruidor para o conteúdo enxuto e direto.

Ao estabelecer o cotejo entre Almeida Júnior e Munkácsy, pode-se propor que ambos retratam suas cenas com luz e paletas semelhantes, embora o artista húngaro ultrapasse os limites da descrição, rumando em direção à denúncia social das explorações do trabalho camponês, justamente o contrário do que Almeida Júnior realiza em Saudade e Nhá Chica.

Por fim, o último artista a ser analisado na presente comunicação é Andrei Popov (1832-1896), por produzir uma arte que dialoga com Almeida Júnior, embora haja enormes distâncias geográficas entre russos e brasileiros. Entretanto, Popov estudou na Alemanha, na França e na Itália, além de expor nestes mesmos países na época em que Almeida Júnior esteve na Europa. Popov, autor de Um Pequeno Quintal, 1870 [Figura 10], se caracteriza por cenas de gênero como esta que representa uma camponesa russa correndo atrás de seus cachorros, os quais, por sua vez, caçam um galo. Aqui também se nota um caráter jocoso e anedótico na cena, muito embora seja esta a grande diferença entre o russo Popov e Almeida Júnior, pois tanto em Saudade quanto em Nhá Chica, não é possível encontrar esse sentido.

Portanto, as cenas de gênero de José Ferraz de Almeida Júnior não são resultantes de uma produção isolada, mas sim de uma produção perfeitamente conectada aos ensinamentos da academia, bem como são frutos de um programa pedagógico estabelecido durante a crise do regime monárquico, crise esta que rege e reflete os gostos da burguesia tanto no Brasil quanto na Europa. Assim, a presente comunicação é concluída através da proposição de um olhar renovado para a produção realista naturalista do final do século XIX, a qual foi bastante relegada ao segundo plano pelo modernismo brasileiro, com a utilização da alcunha pejorativa acadêmico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COLI, Jorge. Almeida Júnior: o caipira e a violência. In: Como Estudar A ArteBrasileira do Século XIX?. SP: Senac, 2005, pp.101-114.

DASHKINA, Raisa et allii. 100 Unknown Pictures from the Depositories of The State Russian Museum. Saint Petersburg: Palace Editions, 1998.

ESTRADA, Luís Gonzaga Duque. A arte Brasileira (introdução e notas de Tadeu Chiarelli). Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995.

GUSYEV, Vladimir et allii. The Russian Museum from the Icon to Modernism. Saint Petersburg: Palace Editions, 2005.

LOURENÇO, Maria Cecília França & NASCIMENTO, Ana Paula. Almeida Júnior: um criador de imaginários. Catálogo da Exposição realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo de 25 de janeiro a 15 de abril de 2007. SP: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2007.

MIGLIACCIO, Luciano. O Século XIX. In: Catálogo da Mostra do Redescobrimento. SP: Fundação Bienal de São Paulo – Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000.

PHILIPPOV, Karin. Saudade. Monografia de Conclusão de Pós-Graduação em História da Arte, realizada na Fundação Armando Álvares Penteado, sob orientação da Profa. Dra. Elaine Dias. SP: FAAP, 2006, 104 páginas.


* Mestranda pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas IFCH - Unicamp. Bolsista do CNPq, mas não pelo tema apresentado aqui.