O imaginário da cristandade no Rio de Janeiro do século XIX nas pinturas
de Rugendas e Debret
Heloisa
Pires Lima e Rosana Ramalho de Castro
LIMA,
Heloisa Pires; CASTRO, Rosana Ramalho de. O imaginário da cristandade no Rio de
Janeiro do século XIX nas pinturas de Rugendas e
Debret. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 4, out. 2009.
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_cristandade.htm>.
*
* *
1.
O
tema da cristandade nas representações de dois artistas viajantes que visitaram
o Brasil no início do século XIX permite acompanharmos mais de perto a
complexidade de um trançado cultural para a imaginária que identifica o país.
Nesse contexto, a cidade do Rio de Janeiro será o alvo dos registros que
divulgam o processo de transformação ativado desde a presença da Corte.
2.
Duas
pesquisas realizadas separadamente, sobre temas similares, reafirmam a
realidade distante da colônia, escravista, cuja cultura híbrida tornou o grupo
social refém do imaginário da cristandade e do paradigma europeu. A análise das
imagens de J.-B.
Debret presentes na obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil -
que tratam do tema - é confrontada com a análise da imagem produzida por J. M. Rugendas
- Família de Fazendeiros [Figura 1]. O resultado do confronto é a afirmação de
uma pesquisa pela outra e a reafirmação das evidências dos simulacros, dos
valores simbólicos, dos códigos europeus e das interferências (sobreposição de
universos simbólicos) no imaginário social.
3.
As
imagens de Debret são contundentes no desnudamento do imaginário da cristandade
sobreposta aos habitantes negros na cidade. A construção de Rugendas
analisada é, do mesmo modo, importante, porque delata o espaço da Igreja no
seio dos lares descrevendo seu autoritarismo e poder indiscutível. Vamos a
elas!
A
CRISTANDADE E OS HABITANTES NEGROS: REPRESENTAÇÕES DEBRETIANAS, por Heloisa Pires Lima[1]
4.
A
cristandade é um dos eixos que organiza os assuntos que evidenciam os contornos
de uma imagem política do país nos três volumes da Viagem pitoresca e
histórica ao Brasil (1834-39), assinada por Jean Baptiste Debret. Exemplar
é a forma como o autor integra os habitantes negros nas solenidades cristãs.
Este é o aspecto que selecionamos para contribuir com a reflexão acerca da complexidade
da produção imaginária de início do século XIX.
Quem representa as virtudes?
5.
Pedintes
das confrarias, devotos, a primeira missa do dia... Estes são alguns dos
assuntos que traduzem o hábito da caridade cristã sugerido na obra. O
testemunho do autor credita à prática da humildade, o que impõe a obrigação da
coleta, sendo uma regra constitutiva mantida com severidade pelas paróquias do
Rio de Janeiro. Mas a peculiaridade do relato aparece numa distinção envolvendo
os personagens coletores referidos [Figura 2].
Coletores da corporação [Esquema 2a] seriam “homens salariados [...] cuja
remuneração é proporcional ao produto da coleta.” Caracterizados com sinais
negativos, tratados como “especuladores”, que treinam para “exercer certo
domínio sobre os transeuntes” e que saberiam como conseguir “acolhimento nas
casas de gente rica e generosa”, além de buscar por “irmandades opulentas.”
[134-5/v.3]
6.
O
personagem, na verdade, é pretexto para o relator desenvolver outro tema: o da
astúcia que, no “país novo, desenvolveu-se com a civilização”. Comentários que
aludem à existência de “homens perversos” que agiriam sem remorsos valendo-se
de “subterfúgios criminosos” informam o leitor sobre falsos pedintes. O
“pedinte malandro vestido como o outro e arrecadando em seu benefício as esmolas destinadas ao santo patrão que finge servir” dá
trabalho à polícia, que num só dia teria prendido mais de vinte desses falsos
pedintes no Rio de Janeiro.
7.
O
“vigarista” terá como contraponto a construção do tema sobre a “verdadeira
humildade”, que “se nem sempre predomina no exercício dos deveres de uma
confraria religiosa encontra-se, entretanto sempre fervorosa entre as pessoas
da sociedade, no cumprimento da promessa bastante comum de oferecer à igreja
uma missa paga com esmolas recolhidas nas ruas da cidade.”
[136/v.3]
8.
A
sociedade que vai surgindo na redação é dividida em classes sociais. Assim, a
mulher da “classe abastada” e a moça da “classe indigente” serão as
representantes da verdadeira caridade [Esquema
2b]. Na opinião do autor, esta última classe não é menos caridosa no
Brasil e “compõe-se em sua maioria de negros livres e pobres vivendo de seu
trabalho mas sempre dispostos a auxiliar seus parentes
menos afortunados ainda.”
9.
Acompanhemos
agora o tratamento visual dado ao tema. A “litografia mostra no grupo do
primeiro plano uma pedinte descalça, cujo traje revela tratar-se de pessoa
remediada”. A moça, na história narrada pela estampa, fica frente a frente com
o açougueiro, dito “comerciante em geral pouco estimado”, para mostrar o seu
grau de sacrifício, ou quanto tem que se humilhar na função de pedinte.
10.
Mas
o autor coloca num segundo plano do quadro uma mulher negra, com “uma menina de
cor”, nos seus termos. A indigência destas duas obrigou-as a solicitar à
vizinha, também caridosa, a toalha e a bandeja de estanho, necessárias para a
coleta. Na conclusão do tema, ambas as classes, apesar de “bem
distintas”, cumprem a mesma promessa, ou seja, a de serem caridosas. [137/v. 3]
11.
Observemos,
ainda, que a “pessoa remediada” que se impõe “a mortificação de sair descalça”
está acompanhada por um moço negro, elegantemente vestido e bem calçado.
O negro elegante é um tipo que circula por entre as estampas. Sempre pertence a
uma família rica, o que indica que a abastança das famílias é extensiva a alguns
escravos. Nesse caso, o jovem negro, bem apresentado, realça mais ainda a
condição de pedinte da moça. [136/ v. 3]
12.
O
escravo bem tratado e impregnado de qualidades morais é um dos elementos
recorrentes para passar a ideia de uma escravidão cristã, enquanto argumento, fundamental nessa autoria. O fato de a moça ter
um escravo não enfraquece seus atributos morais. Esta moral cristã não exclui
ou recrimina a escravidão. A mensagem parece evidente: a população negra, mesmo
idosa e pobre, pode ser protagonista da prática cristã da caridade. A outra
personagem caridosa, embora pobre, é trabalhadora e tem a disposição de
auxiliar os mais necessitados, enquanto a menina reforça a ideia da educação
moral ser ministrada desde cedo.
13.
Voltando
ao “pedinte assalariado” [Esquema
2a], aquele que lucra com tal prática cristã, em novo trecho, Debret o
define da seguinte maneira: “conhecido na cidade pelas suas facécias e que
neste momento dá provas de presença de espírito, estendendo o guarda-chuva
entreaberto para receber uma esmola jogada por uma senhora, da janela do
sobrado”. Eis o não tão verdadeiro caridoso, revelado na prancha de nº 4 do
terceiro volume, que concentra a fase final da linha de evolução iniciada no
primeiro.
14.
Portanto,
é por intermédio da população negra que o autor estampa a moralidade cristã
existente no país.
Igrejas e mais igrejas
15.
As
igrejas, nas tintas de Debret, são partes integrantes das vistas que procuram demonstrar
como o brasileiro é “submetido desde a infância às práticas religiosas.” A
devoção aparece disseminada, da mesma forma, por entre as classes sociais que
acabam qualificadas pelo autor. Porém, quando associada ao rico, é pouco
exemplar, pois “[...] o ato de humildade e de gratidão para com o Criador
adquire no homem rico, um caráter de ostentação.” [ 132/
v3] Os pobres, que acreditam agradar mais a Deus quando a oferta é entregue por
uma criança, são ironizados pelo autor, que tece comentários sobre a prática de
pagar aos santos. O personagem que dá título à prancha Primeira saída de um
velho convalescente [Figura 3, Esquema 3], embora apareça de pés descalços compondo o
centro da cena visual, não será o representante do caráter exemplar: a
“verdadeira compreensão da caridade cristã observa-se diariamente na classe
indigente.” [139-140/ v3]
16.
No
texto explicativo, é a figura desenhada “embaixo de uma escadaria” que recebe o
julgamento moral de Debret. Trata-se de “uma velha negra indigente [que] antes
de entrar com sua vela dá um vintém de esmola a outra mais pobre ainda”.
17.
O
relacionamento dos habitantes negros com as igrejas também forma um pólo importante na narrativa. Um par de pedintes [Esquema
2c], por exemplo, media informações sobre organizações religiosas e
evidenciam a nuança racial da população. O “irmão pedinte” branco exerce tal função para a confraria da
Santa Casa de Misericórdia. O outro, um “irmão pedinte” negro, trabalha para a
Irmandade de São Benedito, que foi um “santo negro como os irmãos que lhes são
devotados e moderno protetor da raça preta, pois foi canonizado há pouco.” [ 137/ v. 3] Nova notícia, em nota, revela a existência da
irmandade dos mulatos, conhecida como a irmandade de N. S. da Conceição.
Entre a cruz e a liturgia
18.
Mas,
nada é tão singular na construção debretiana como a cena Negras novas a
caminho da igreja para o batismo [Figura 4, Esquema 4]. Com relação a ela, cita um “artigo da primitiva lei sobre a escravidão”
que dizia respeito à cristianização dos africanos recém-chegados, cujo
objetivo, em sua opinião, seria moral. O autor se coloca como testemunha de que
essa lei produziu resultados, visto que seria “raro, encontrar-se hoje em dia
um negro que não seja cristão.” Da mesma forma discorre sobre a “educação
cristã dos negros”, que, “do ponto de vista político,” seria uma garantia para
os senhores e suas “centenas de escravos reunidos”. Alguns dos “velhos negros
livres”, apreciados por saber falar várias línguas africanas, seriam
professores dos princípios da religião católica. [147/ v. 3]
19.
O
catolicismo como forma de progresso também é retratado visualmente. O pároco
que recebe os novos catecúmenos pertence às igrejas servidas por “padres negros”. Todavia,
Debret ironiza a cerimônia que considera uma cristandade forçada.
20.
A
cristianização dos habitantes negros é bem evidente no pescoço de um negro, em
uma cena do cotidiano [Figura 5, Esquema
5], ou quando eleitos para representar ícones
como o dos reis magos [Figura 6, Esquema
6], todos os três negros, o que os inclui no testemunho da cristandade
como fator de civilização.
21.
Pintor
de história, Jean Baptiste Debret, na sua autoridade acerca do Brasil, elenca a
cristandade, ao lado de outras construções, como a ideia de harmonia social
quando oferece o país como possibilidade ao público de sua obra: os franceses.
IMAGENS
E EVIDÊNCIAS DO IMAGINÁRIO - A CRISTANDADE NO INTERIOR DE UMA RESIDÊNCIA NO
SÉCULO XIX, por Rosana Ramalho de
Castro[2]
22.
O
processo de colonização da América portuguesa caracterizou-se pela presença de
diferentes estilos arquitetônicos. O híbrido cultural apresentava-se nas
representações do maneirismo, do clássico pombalino e do barroco português.
Também o estilo rococó de Luiz XVI, a riqueza da cultura africana e a cultura
material indígena, natural das regiões do extenso território. Todas eram
visíveis na cidade do Rio de Janeiro no início do século XIX.
23.
Para
aparelhar a colônia e transformar na sede da monarquia portuguesa na América
foram adotadas diversas providências a partir de 1808, logo após aportar no
Arsenal de Marinha Dom João VI e um grande número de
ilustres senhores. A corte passava a ocupar as moradias disponíveis e outras
que “se fizeram” disponíveis. As casas eram
construções simples, de acabamento precário.
24.
Segundo
relata J. B. Bury na obra-A Arquitetura e a Arte
do Brasil Colônia: “A modesta
amostragem da arquitetura civil no Brasil do século XVI ao XVIII é um reflexo
da condição colonial do Brasil. Não houve um monarca residente no Brasil antes
de 1808, de modo que não havia palácios reais”.
25.
Excluindo
as Igrejas e edifícios públicos, a cidade apresentava marcas coloniais nas
construções simples, de singelo estilo composto em portas e janelas construídas
de tábuas rústicas e telhados que destacavam as peças realizadas nos moldes das
cochas dos escravos.
26.
A
mudança de status na cidade evidenciou a simplicidade da arquitetura das
residências acrescida da estética da metrópole. As paredes rústicas caiadas de
branco e os pisos de tábua corrida abrigavam os móveis de estilo e os hábitos
europeus dos novos moradores. A transformação abrupta trouxe à cidade uma
visualidade de aspecto tão peculiar que despertava o interesse de artistas
estrangeiros.
27.
As
representações em nada apontavam para os modos e hábitos adotados no continente
europeu, pois, apesar das contribuições culturais havia o imaginário da
cristandade que se mantinha dentro e fora dos lares, nas casas da sede da
monarquia, nas residências dos fazendeiros ou nas ruas da cidade do Rio de
Janeiro.
28.
Podemos dizer que os elementos do estilo
neoclássico histórico, introduzidos pela missão francesa na arquitetura efêmera
dos cenários realizados para a Família Real, tiveram um emprego destinado a
mostrar a sede da monarquia para ser vista pelos europeus e, por serem
utilizados fora do contexto de sua concepção inicial, o conjunto dos elementos
parecia sem sentido para a realidade local. O universo simbólico original,
rejeitado pelos artistas franceses não serviram como referência para constituir
novos valores estéticos na visualidade da cidade. A desrealização da realidade cotidiana imperava nos simulacros produzidos aqui e espelhados
no paradigma europeu.
29.
Para
compreendermos o distanciamento entre o estilo refletido nos projetos efêmeros
e a visibilidade existente na cidade, analisaremos os aspectos coloniais no Rio de Janeiro do
início do século XIX observando a obra pictórica de Johann Moritz Rugendas chamada Família de Fazendeiros (1825) [Figura 1,
Esquema
1].
30.
A
imagem estudada também apresenta o modo de convivência entre os colonos e o
imaginário da cristandade da época, representada na figura do padre em visita à
sede de uma fazenda.
31.
O
desenho faz parte da obra Viagem pitoresca através
do Brasil na qual o autor relatou suas experiências no território
brasileiro e registrou imagens da região. Nos relatos de Rugendas
encontramos informações a respeito da residência de um fazendeiro.
32.
A casa do colono abastado tem apenas um andar; as
paredes são de taipa e algumas vezes caiadas. Os alicerces, que se erguem a
mais ou menos dois pés acima do solo, são formados de blocos de granito bruto.
O telhado, recoberto de largas telhas convexas, ultrapassa de 8 a 12 palmos os
muros do edifício e é suportado por vigas de madeira. Em torno da casa,
estende-se uma varanda [...] Entra-se primeiramente numa grande peça [...].
E somente num dos quartos laterais se encontram, assim mesmo raramente, móveis
mais elegantes, espelhos, etc.
33.
Rugendas realizou uma ilustração do interior de uma
casa de fazenda que, a nosso ver, é emblemática, pois representa um aspecto que
perdura desde a vida colonial na América portuguesa. São perceptíveis as
paredes rústicas, o piso de terra batida e o teto feito com
ripas de madeira aparente que serviam de sustentação para as telhas canal,
forradas com palha na parte interior.
34.
O
cômodo retratado apresenta vários feixes de palha, um deles fixado por um
instrumento que define o tamanho padrão de corte. Na cena, provavelmente a
palha seria destinada ao pagamento do dízimo à Igreja.
35.
Um
rapaz negro anuncia a visita de um membro da comunidade e quem parece admitir
sua entrada no recinto é o padre, conforme indica a posição de mão do
sacerdote. A cena denota a situação hierárquica: o padre é a principal figura
retratada, além de ser o centro de atenção da família ali representada em
atitude de submissão e respeito. No encontro das linhas estruturais do
quadro - as diagonais da composição - encontra-se a figura do padre como
principal destaque. A porta entreaberta nos permite ver o avarandado, da
esquerda para o centro encontram-se os familiares.
36.
Em
primeiro plano, destacam-se as crianças, os negros e a mulher que serve leite à
ama. A seguir, os senhores da fazenda: um homem sentado numa cadeira e uma
senhora acomodada na rede. Atrás do homem, uma senhora da família se apoia no
encosto da cadeira. Vê-se o tocador de banjo além do padre e um rapaz negro que
acaba de entrar. À direita destaca-se a palha, os instrumentos de trabalho, o
banquinho rústico e a porta entreaberta, com um visitante à espera.
37.
O
dedo do negro indica na direção do visitante e a mão do padre demonstra
aquiescência à entrada de um homem cujo traje é semelhante ao usado pelo
senhor, sugerindo ser ele outro fazendeiro que aguarda a atenção do
representante da Igreja. A posição do homem de fora da casa demonstra respeito
e submissão. A cabeça tendida para o ombro esquerdo revela apreensão e
tentativa de ver, além da porta, entreaberta.
38.
A
família, o padre e a palha representam a relação familiar, a cristandade e o
preço pago por ela.. Ao lado direito, vê-se uma
cadeira de estilo marquesa (detalhe do espaldar inclinado para trás), móvel
português encontrado nos interiores das residências, antes da chegada da corte
à cidade. A cena evidencia características coloniais, pelo acabamento da
construção, pelos móveis e uso de objetos da estética indígena e africana. O
dono da casa e o visitante usam o mesmo tipo de vestimenta: calças, camisolas e
um casaco curto. Estão sem sapatos ou botas, por isso, concluímos ser o
visitante um fazendeiro vizinho. Rugendas relata a
forma de vestir dos fazendeiros.
39.
A indumentária do homem consiste em uma camisa de
algodão e uma calça do mesmo tecido. Andam descalços, embora com grandes
tamancos muitas vezes munidos de esporas, de modo a estarem sempre prontos a
montar o cavalo, pois é raro que o colono faça a pé o mais curso trajeto.
40.
Além
dos indícios da cultura portuguesa, indígena e africana, destaca-se, na parede
central do recinto, a moldura maneirista com a imagem da santa protetora. Ao lado,
vê-se o crucifixo. A moldura apresenta os elementos de folhagens e flores, mas
destacam-se na parte superior e inferior elementos antropomorfos, do período
maneirista.
41.
À
esquerda da cena, uma janela é adornada com pesadas cortinas, presas conforme
os modelos dos altares das igrejas barrocas do século XVIII. A representação do
panejamento pode ter sido escolhida pelo pintor com a
intenção de reforçar as linhas estruturais que convergem para o padre, para a
imagem maneirista e para o crucifixo, destacando, assim, a força da Igreja no
interior da residência.
42.
Mesmo
distante do centro da cidade do Rio de Janeiro, a família mantinha a cultura
europeia nos elementos maneiristas e no mobiliário português. Mas, além disso,
causa impacto o modo de representação da submissão dos colonos à figura
representante da cristandade. Enquanto na fazenda via-se a presença da Igreja e
os efeitos produzidos nos colonos, na sede da monarquia, na mesma época,
ilustravam-se os modos e hábitos franceses.
Considerações
finais
43.
Como
discute Rosana Ramalho de Castro, a mudança da Corte para a cidade do Rio de
Janeiro, gesta uma espécie de desrealização que ativa a produção de simulacros
espelhados em paradigmas europeus. Em contrapartida, a análise da estampa
assinada pelo alemão Johan Moritz Rugendas, vai
revelando na reunião de elementos híbridos, seja o cesto indígena, na imagem
maneirista na parede seja no mobiliário de gosto português, a extrema
rusticidade da vida dos habitantes no país.
44.
Por
sua vez, os habitantes negros, no olhar de Jean Baptiste Debret examinado por
Heloisa Pires Lima aparecem, da mesma forma, como
simulacros para a representação de uma harmonia social e o devir de uma
civilização sob a influência da pátria francesa.
45.
Estes
registros estrangeiros na sua dimensão realista ou idealizada se servem do
argumento acerca da cristandade, destacando-o conforme demonstraram as autoras.
46.
Pressupondo
o real sempre muito mais complexo que sua representação, a circunscrição de uma
leitura do real também desafia por sua complexidade. Tendo como perspectiva o
leitor dessas construções, os ambientes que aparecem referidos, os personagens
mais ou menos destacados, a posição que ocupam no cenário, tudo faz parte de
uma lógica que orienta seus julgamentos. Por sua vez, as categorias em cena
resultam do que o autor conhecia daquela realidade observada, o que selecionou
ou o que lhe chamou a atenção para registrar. A autoria decodifica ou
realiza a tradução a partir de repertórios conhecidos ou reconhecidos pelo
público desses retratos sociais. Afinal, o relator é um informante das
peculiaridades da nação descrita.
47.
O
Brasil na conjuntura de início do XIX era um recém reino
ou império. Portanto, na perspectiva europeia uma sociedade em formação.
Certamente o potencial econômico geraria aspectos relevantes para os relatos.
Mas, sobretudo os hábitos e os habitantes da terra visitada forneceriam o
potencial deste devir. E a cristandade aparecia como degrau para a civilização:
na imagem de Rugendas, no centro da cena, o pároco
com quem se dá a interlocução com os demais figurantes; nas de Debret, a alma
cristã nos habitantes negros do país.
48.
Como
exercício de relação é importante perceber que todas acabam, também,
evidenciando a escravidão no país. Porém, associada à ideia de uma cristandade que
não a condena. Nos relatos, os autores não se indignam,
apesar dessa não ser uma experiência social nos seus países de origem.
Referências
bibliográficas
BAXANDALL,
Michel. O Olhar Renascente - Pintura e Experiência Social na Itália da
Renascença. RJ, Paz e Terra, 1991
BETHELL,
Leslie. História da América Latina. América Latina Colonial. Vol II cap: A arquitetura e a
arte do Brasil Colonial. SP, Edusp. 1999
DEBRET,
Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Belo Horizonte,
Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1972, 3 vols.
RAMALHO
DE CASTRO, Rosana. Imagens e Evidências: a missão francesa, a Academia
Imperial de Belas Artes e a constituição da identidade monárquica. Tese de
doutorado defendida no Programa de Pós Graduação em História / UFF. 2004
RUGENDAS,
Johan Moritz. Viagem Pitoresca através do Brasil. Trad. Sérgio Milliet.
SP, Círculo do Livro, s/d .
[1] O presente texto é desdobramento das reflexões
realizadas na tese - Negros debretianos: Investigação sobre um
repertório cultural presente na obra Voyage pittoresque
et historique au Brésil (1834-39), defendida
no ano de 2006 no Departamento de Antropologia-FFLCH-USP sob a orientação da profª Drª Lilia K. M. Schwarcz.
[2] O texto faz parte da tese de doutorado: Imagens e
Evidências - a missão
francesa, a Academia Imperial de Belas Artes e a identidade monárquica,
apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da UFF em 2004.