As
séries na produção pictórica de Giovanni Castagneto
Helder
Oliveira [1]
OLIVEIRA, Helder. As séries na produção pictórica de
Giovanni Castagneto. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 1,
jan. 2007. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_castagneto.htm>.
* * *
Este artigo é parte da pesquisa de mestrado cujo título é Giovanni
Castagneto: um estudo sobre as
obras Marinha com barco (1895) e Paisagem com rio
e barco ao seco em São Paulo ‘Ponte Grande’ (1895)[2]
e propõe analisar algumas questões a partir da produção do artista, neste texto
abordarei a produção de séries na pintura de Giovanni Battista Castagneto. A partir
das obras acima citadas iniciamos uma comparação com algumas outras obras do
pintor e percebemos a existência de uma prática de pinturas de série
feitas pelo artista. Esta comparação demonstrou uma significativa quantidade de
obras que retratam os chamados botes e barcos ao seco muito
famosos do pintor. Posteriormente, amparados pelo levantamento realizado por
Carlos Roberto Maciel Levy no livro Giovanni Battista
Castagneto (1851-1900): o pintor do mar,
publicado em 1982, confirmamos a recorrência deste motivo.[3]
Iniciaremos a discussão sobre a produção de pintura de série, a
partir de pontos levantados por alguns autores sobre esta prática na pintura
francesa moderna, especificamente, em Claude Monet. Em seguida, analisaremos
como a produção de Castagneto pode ser avaliar como série
e quais fatores a aproximam dessa prática. Para isso apresentaremos um pequeno
histórico de sua produção e algumas considerações levantadas até o momento que
podem qualificar a modernidade desta prática na obra do artista.
Discussão sobre
série na produção de pinturas
A palavra série, quando aplicada à pintura, pode ser descrita de
duas maneiras: (a) obras encomendadas por um patrono, cujo tema dá unidade ao
grupo e são expostas em conjunto[4] (KLEIN, 1998) e (b) obras realizadas ao
mesmo tempo, com procedimentos técnicos semelhantes a partir de motivos
idênticos ou similares, desde que intencionada pelo artista e exibida em
conjunto (HOUSE, 1986). Esta última acepção é a mais utilizada como base para a
discussão sobre as pinturas do último quartel do século XIX na Europa,
especificamente às obras com características modernas como a do pintor Claude Monet.[5]
Segundo John House (1986), inicialmente na
produção de Monet, a palavra série foi frequentemente utilizada para
designar qualquer grupo de estudos ou pinturas vistos juntos ou de temas
relacionados. O próprio Monet, em 1876, segundo o autor, usou
a palavra para descrever um grupo de telas feitas do mesmo modo e ao mesmo
tempo. Mas, à medida que aprofunda a questão, House
(1986) demonstra que o termo série é normalmente usado para descrever um
grupo homogêneo de pinturas de motivos idênticos ou aparentemente idênticos que
Monet exibiu a partir de 1891. Estas tinham como características serem
sequências completas de pinturas de motivos relacionados, criadas juntas como um
grupo e tais grupos exibidos juntos como uma unidade.[6]
Alguns precedentes históricos da prática de pintura de série
podem ser verificados, segundo House, pela
caracterização das obras realizadas a partir do tratamento de um único motivo,
onde o artista repete-o em diferentes ocasiões. A repetição é impulsionada por
um interesse particular que faz o pintor retornar ao mesmo motivo fazendo
modificações sobre ele. Esse interesse particular do artista, tanto pode ser de
ordem subjetiva, como de ordem técnica. Como subjetivo podemos compreender
quando o artista tenta resolver alguma questão interna, dando reinterpretações
posteriores ao mesmo motivo.[7]
O de ordem técnica tenta resolver problemas quanto à observação da natureza,
podemos considerá-la como uma prática para o aprimoramento do artista, isto é,
refinamento da técnica pictórica.[8] Mais um dado que caracteriza os
precedentes da produção de pintura de série, para House,
são as exibições em conjunto de obras de arte, como as feitas por William
Turner[9]
e Theodore Rousseau.[10] House, ao
discorrer sobre como o número de obras pintadas relaciona-se à prática da série
na produção de Monet, cita dois momentos nos quais existe uma diferença quanto
à quantidade produzida. O primeiro momento acontece nos anos de 1880, quando
Monet realizou várias obras onde ele repetia algum motivo duas, três e mesmo
seis vezes. O segundo momento ocorre na produção do artista realizada a partir
de 1889, com a série Montes de Feno, onde o número de obras
pintadas atinge dezenas de telas. Ainda, outra característica apontada por House como fator que caracteriza tal prática é o período
(tempo) em que o pintor dedica à produção da série. Para este autor a
temporalidade a qual o artista produz suas repetições de um mesmo motivo deve
ser curto, pois isto qualifica positivamente uma série.
Devo destacar dentre os estudiosos da pintura de série Paul Tucker
(1989), este estudioso relaciona esta prática de Claude Monet a um certo ‘nacionalismo francês’, desta maneira, a pintura de
paisagens feita em forma de série deste artista não seria um simples
exercício pictórico moderno – como grande parte dos estudiosos apontam –
compreendendo assim as imagens de Monet como um ‘treino’ esvaziado de sentido
simbólico e preso apenas a discussões da representação plástica e da técnica do
pintar, mas carregaria um teor significativo sobre os valores do ‘ser francês’.
Neste sentido, trata-se de uma maneira de interpretar a obra de Monet
totalmente oposta à opinião de Richard Brettell (1999) que considera a pintura
de Monet e toda a pintura moderna de paisagem como banal, ou seja, trata-se de
exercício da arte somente, não trata de problemáticas sócio-culturais mais
densas.
John Klein (1998) nos apresenta uma definição mais detalhada de série
modernista como um desdobramento da série tradicional.[11] E cita Claude Monet, Alfred Sisley
e Camille Pissarro como
artistas que exemplificam
esta idéia. A série
modernista apresenta duas importantes diferenças em relação à série
tradicional: (1) não ser necessariamente uma encomenda, assim, sua unidade
não é determinada de antemão e; (2) a inexistência de
uma narrativa, o que faz com que as obras possam ser separadas após sua
produção, mesmo que em alguns casos, a intenção do artista tenha sido exibi-las
em conjunto. Klein discorre ainda sobre a relação entre mercado de arte e a produção de séries.
Segundo o autor, a
motivação comercial para vender as obras individualmente não pode ser separada
dos aspectos estéticos e conceituais de sua instalação como um conjunto. O marketing do marchand cria uma motivação para a venda das obras, em separado desmontando a série.
O fato das séries modernistas não possuírem uma
narrativa permitiria a essas serem vendidas individualmente.
Assim sendo, para analisarmos a produção pictórica de Castagneto, sob a ótica da prática da pintura de série,
precisamos definir alguns pontos como referências que os autores anteriormente
citados nos ajudam a refletir sobre a ideia de série: (a) a similaridade
e/ou repetição do motivo retratado na obra; (b) as variações do ‘ponto de
vista’ ou do ‘enquadramento’ utilizados para a realização das pinturas; (c) o
tratamento técnico das pinturas; (d) a intencionalidade do artista em produzir
pinturas de série; (e) se a série foi exposta em conjunto ou não;
ou se é pensada enquanto unidade pelo artista produtor; (f) a quantidade de
obras realizadas; (g) a relação com o mercado; e (h) o tempo de produção da série.
Todos os pontos assinalados são importantes como base para uma análise
das obras que tem como apoio o enfrentamento junto às mesmas. A partir
deste confronto analítico é que podemos qualificar uma produção artística como série.
Sobre a pintura de
série em Castagneto
Ao longo de sua produção artística, Castagneto
realizou uma grande quantidade de obras que repetem um mesmo motivo. Os motivos
eram, geralmente, trabalhados em duas, três e mesmo quatro versões, com
pequenas modificações e em períodos curtos, de um a dois anos.[12]
Essas pequenas alterações realizadas pelo artista podiam ser: o ponto de vista
(enquadramento, distanciamento e posicionamento), o tratamento técnico
(experimentação plástica com cores, pinceladas etc) e
o suporte (experiência com material e tamanho). O método de trabalho de Castagneto nos dá algumas pistas de como pensar a pintura
de série em sua produção, sobretudo porque pinta obras representando um
mesmo local, mas o faz de diferentes pontos de vista.
Porém, as definições vistas até agora sobre série, em especial as
análises feitas baseadas em obras de Claude Monet, possuem farta documentação
sobre a intencionalidade e consciência deste artista na produção de suas
pinturas de série. No caso de Castagneto
isto é difícil, uma vez que não é possível comprovar por meio de documentos a
intenção do artista em realizar esta prática. A aproximação que podemos apontar
surge através de uma passagem em artigo de Gonzaga-Duque
(2001)[13]
a qual nos permite uma possível aproximação à maneira como Monet pintava: “´[...] estudando um ponto tantas vezes quantas
forem os aspectos que esse ponto apresente pelos efeitos de intensidade ou
diminuição da luz, em determinadas horas do dia” (trecho do artigo do
jornal A Semana de 30 de outubro de 1886).
Observa-se por esta citação, que Gonzaga-Duque fazia uma sugestão de um
exercício de experimentação de sua técnica, isto é, Castagneto
deveria repetir o motivo quantas vezes fosse necessário
para melhor apreender várias possibilidades de composição da paisagem que se
apresentava como motivo. Porém, devemos ter cuidado em tomar para o nosso
estudo o posicionamento do crítico oitocentista, pois podemos vir a concluir
inicialmente que a produção pictórica de Castagneto é
uma prática ligada a uma ideia de refinamento da técnica, portanto, deixaria de
ser um exercício moderno para ser um treino de suas capacidades pictóricas,
afastando assim da produção de Monet. O posicionamento de Gonzaga-Duque pode
ser uma armadilha, pois, suas palavras nas críticas são muito ambíguas, ora
apontando elementos modernos (ou modernizantes) como positivos, ora
condenando-os (mesmo que não o faça conscientemente, já que é um fervoroso
defensor dos valores modernos). O cuidado é necessário, pois, não sabemos as
intenções do artista ao produzir estas obras, uma vez que ele poderia não estar
encarando as mesmas como um ‘simples’ exercício.
Suas primeiras obras, as quais podemos identificar
como pinturas de série foram realizadas em 1884, e são as marinhas: Praia
e Igreja de Santa Luzia (1884, óleo sobre tela, 34 x 50,5 cm, coleção
particular), Praia e Igreja de Santa Luzia (1885, óleo sobre tela, 32 x
52 cm, propriedade sem informação) e Praia e Igreja de Santa Luzia (1885,
óleo sobre tela, 36 x 75 cm, coleção Maria Helena Loures).[14]
Nestas percebemos elementos que possibilitam um reconhecimento do mesmo tema –
a praia e a igreja de Santa Luzia – em uma composição que praticamente se
repete, com nuances de variações no seu enquadramento, distanciamento, formato
do suporte e local de assinatura. Castagneto produz
desde duplas, como Vapor Ancorado na Ilha de Mocanguê
em Niterói (1885, óleo sobre tela, 13 x 23 cm, Pinacoteca do Estado de São
Paulo) e Vapor ancorado na Ilha de Mocanguê em
Niterói (1885, óleo sobre tela, 36 x 50 cm, coleção particular),[15] até séries com cinco versões como
no caso das Faluas Ancoradas na Ponta do
Caju no Rio de Janeiro, realizadas entre 1885 e 1886. Estas retratam duas embarcações
ancoradas na Ponta do Caju e apresentam suportes e enquadramentos diferentes.[16]
Em viagem feita a Angra dos Reis em 1886, Castagneto
pinta um conjunto com três obras, cujo tema ele retratará inúmeras vezes até o
final de sua vida: os botes e barcos ao seco. Tratam-se das obras
Praia da Boa Vista em Angra dos Reis (1886, óleo sobre madeira, 21 x 31
cm, coleção particular), No Varadouro (Angra dos Reis) (1886, óleo sobre
madeira, 14,5 x 31,2 cm, coleção Cora Maria de Sá Freire Vieitas) e No
Varadouro (Angra dos Reis) (1886, óleo sobre madeira, 45 x 80,2 cm, coleção
particular), nestas fica clara a importância que o pintor dá a vida simples
presente nas orlas marinhas. Isto porque notamos que os barcos são representados
com pontos de vista e composição muito similares, ocupando o foco principal de
interesse da tela.[17]
Em 1890, Castagneto embarca para Paris, mas é
em Toulon que o artista passa a maior parte de sua viagem. O foco principal do
pintor são os barcos dos pescadores, indicativa da vida comercial e social da
cidade, lá ele pinta um grupo de pinturas que possui dois conjuntos que merecem
ser citado neste texto: Barco de Pesca Ancorado em Toulon, realizados
entre 1892 e 1893, em quatro versões.[18]
E, Barco a Vela Ancorado na Praia de Toulon, pintadas no mesmo período.[19]
Notamos que mesmo em sua estadia na Europa, Castagneto
não busca o frenesi urbano de Paris, ou as paisagens do interior francês como
motivo de sua pesquisa pictórica, ele busca pelo seu mais querido tema: a vida
simples na beira do mar. Desta maneira, notamos que estas duas séries
pintadas em Toulon são de barcos de pescadores locais.
Como podemos notar, a presença da produção de pintura de série
abarca todos os motivos pintados pelo artista, inclusive os dois quadros do
MASP que são foco do presente estudo: Marinha com barco (1895, óleo
sobre madeira, 16 x 22 cm, MASP) [Figura 1]
e Paisagem com Rio e Barco ao seco em São Paulo ‘Ponte Grande’ (1895,
óleo sobre tela, 33 x 55 cm, MASP) [Figura 2],
ambos fazem parte de séries de pinturas que retratam os botes e barcos
ao seco.
A série “botes ou
barcos ao seco”
As pequenas embarcações dos pescadores deixadas nas praias quando não
estavam em uso, foram motivos de inúmeras pinturas de Castagneto.
Os botes ou barcos ao seco como ficaram conhecidos nos títulos de
suas obras, são pinturas que o artista representou de maneiras diferentes,
experimentando tonalidades, composições e pinceladas, em diversas técnicas. O
tema surge na obra Porto do Rio de Janeiro de 1884 (óleo sobre tela, 54,7
x 94 cm, Museu Nacional de Belas Artes) e segue com o artista até sua morte em
1900, portanto, são 16 anos trabalhando sobre a mesma temática.
As séries de botes e barcos ao seco são inauguradas
em 1886 com as já citadas obras realizadas em Angra dos Reis. Uma das
possíveis motivações do artista para explorar este tema das coisas mais simples
da beira do mar, como os barcos de pescadores em recantos
paisagísticos, dá-se como um elemento de escolha subjetiva, já que Castagneto tinha origem de marinheiro e assumia
publicamente sua preferência pela vida perto do mar, chegando a morar em uma
casa-ateliê-barco. Destarte, estar à beira-mar era uma fonte de recursos
criativos, sendo a pintura desses barcos um meio de expressão subjetiva.
A produção de Castagneto, assim como a de Monet, não é narrativa, o que libera o autor a fazer a quantidade que desejar. Ao aproximarmos essa questão das definições de House (1986), acima colocadas, percebemos que o artista em questão não produz uma quantidade alta de repetições sobre um mesmo motivo. Castagneto, comumente, limitava a repetição de um mesmo motivo a três ou quatro obras. A compreensão desse procedimento pode ser ajudada a partir dos pressupostos que Klein (1998) nos apresenta sobre a produção de séries de Monet dos anos de 1890: “In these series, the artist´s vision, will, and personal experience generate the variations on the single unifying motif. There is no story or cycle. These moderns series have neither beginning nor end. Their extension is potentially infinite, so any limits are arbitrary” (Klein, 1998:124).
Se, por um lado, essa afirmação serve para justificar a
grande quantidade de obras de um único motivo pintados por Monet, por
outro lado, pode justificar um número limitado de obras, como no caso de
Castagneto, pois se é o artista quem determina a quantidade de variações sobre
o mesmo motivo, então, podemos afirmar, que qualquer variação pode ser
considerada série, independente de uma pequena ou grande quantidade de
pinturas, desde que forme um conjunto. Neste caso, podemos considerar a obra de
Castagneto como uma produção composta de pequenas séries, justificadas
tanto pela experiência pessoal do artista, quanto pela inexistência de uma
narrativa em suas obras, o que possibilita trabalhar o mesmo motivo várias
vezes.
Dentre estas pequenas séries identificamos
as obras Marinha com barco e Paisagem com rio e barco ao seco em São
Paulo ‘Ponte Grande’ como pertencentes a dois conjuntos
distintos. Estes foram produzidas ou em São Paulo – caso da segunda obra
citada - ou para provável venda em São Paulo – ocorrência da primeira. A
vinda de Castagneto para São Paulo em 1895[20]
apresenta um caráter original da produção do artista, pois esse realiza
pinturas a beira dos rios paulistas. Esses trabalhos utilizam os mesmos
elementos que alimentavam suas obras no Rio de Janeiro: as embarcações simples
e seu meio aquático. Ou seja, Castagneto não abandona
a sua característica como pintor de marinhas, mesmo numa cidade que não tem
mar. Por sua vez faz experimentações não mais com o mar, mas com o rio,
tornando a particularidade fluvial da cidade, personagem do diálogo com o
barco.
Paisagem com rio e barco ao seco em São Paulo
‘Ponte Grande’ pertencente
ao MASP é uma obra que se relaciona diretamente com outras obras de mesmo nome
produzidas em São Paulo em 1895, sob a mesma técnica, óleo sobre tela. As
similaridades estão na presença do rio como central na composição, os pequenos
barcos abandonados e vazios, além de seu tamanho reduzido. A composição
plástica é diferenciada entre si, porém, apresentando soluções similares para a
sua construção pictórica, isto é, massas de cor construindo em pinceladas
rápidas os elementos formais da paisagem fluvial. Esta série
possui correlações plásticas claras com outras anteriormente produzidas pelo
artista como Canoa ao Seco na praia em Angra dos Reis (1886, óleo sobre
madeira, 38,5 x 65,8 cm, Museu Histórico Nacional), Vista do Porto de Maria
Angu tirada da Penha no Rio de Janeiro (1887, óleo sobre madeira, 24 x 46
cm, coleção Antonio Paiva Filho) e Bote a seco na
praia (1889, óleo sobre madeira, 11 x 21 cm, Museu
Nacional de Belas Artes). Demonstrando uma solução de composição que
constantemente acompanha e é atualizada pelo artista ao longo de sua carreira.
Marinha com barco também pertencente ao MASP é uma obra mais
sofisticada nas relações que estabelece com as outras obras de Castagneto, pois, suas obras irmanadas são mais esparsas no
tempo, não seguem a temporalidade tradicionalmente esperada na confecção de uma
série modernista. O primeiro identificado foi Bote com mastro
ancorado na praia (1885, óleo sobre madeira, 15,5 x 23 cm, coleção
particular), seguido anos depois por Botes a seco na praia (1889, óleo
sobre tela, 24,5 x 40,5 cm, coleção Francisco Márcio Carneiro Porto), no ano de
1895 Castagneto confecciona Marinha com barco,
no ano seguinte Bote de um mastro a seco na praia em Paquetá (1896, óleo
sobre madeira, 10 x 25 cm, Coleção Acervo Galeria de Arte) e em 1898
produz uma trinca de obras que reelaboram a composição de Marinha com barco,
estas são Bote de um mastro atracado a uma praia em Paquetá (título
anterior: Beira de Praia, 1898, óleo sobre madeira, 17,5 x 27,5 cm,
coleção particular), Bote de um mastro e canoa a seco na praia em Paquetá (c.
1898, óleo sobre madeira, 9 x 24 cm, Coleção Luiz Ioklevitc) e Bote de um mastro atracado em uma praia em
Paquetá (1898, óleo sobre madeira, 15 x 22,5 cm, coleção particular).
Notamos assim a existência de uma unidade nessas obras apesar do maior
espaçamento de tempo na produção das mesmas.
Considerações Finais
Castagneto é um reconhecido pintor de marinha.
Inicialmente, seguiu a tradição de pintura de marinha caracterizada pelas
representações de grandes barcos e cenas de portos, e mesmo uma marinha histórica,[21] mas a partir de meados dos anos de 1880,
os barcos de pescadores ocupam um lugar de destaque em sua produção, resultado
de uma nítida preocupação do pintor em retratar as pequenas embarcações e os
recantos de praia, como aponta Gonzaga-Duque: “Toda a atenção do artista convergiu para a vida humilde dos pescadores,
para os míseros recantos de beira-mar, onde a paisagem, se não houvesse colmo
de gente da pesca, que traduzisse a poesia de sua existência obscura, pudesse
lembrá-la pela proximidade da terra”. (publicado
na revista Kosmos).[22]
A pintura desta vida simples do litoral de Castagneto
coincide com a renovação do tema da marinha na Europa, principalmente, pela produção
francesa a partir de meados do século XIX. Na França, apesar de muitos pintores
manterem a tradição de representar grandes navios,[23]
os pintores modernos se destacam na historiografia da arte por introduzirem
novos motivos à pintura de marinha. As cenas de praia, as cenas de mar aberto e
embarcações pesqueiras, assim como os riachos, rios e barcos fluviais, estão
presentes em importantes pintores do período.[24]
As pinturas de Castagneto são a demonstração assim um
registro local da paisagem do universo praiano do Rio de Janeiro. A cidade não
é o foco de suas pinturas. O pintor não olha para a vida urbana, prefere buscar
seus motivos nas bucólicas e vizinhas Niterói e Paquetá.
Podemos assim, destacar a modernidade de Castagneto
na técnica, já que os pressupostos levantados pelos autores
citados para se avaliar as produções artísticas das séries no
ambiente moderno francês servem de base para criar uma abordagem da prática de série
para a produção do pintor. E, na temática, ao introduzir novos motivos na sua
pintura coincidentes com as mudanças temáticas na pintura de marinha francesa
do mesmo período.
Referências bibliográficas
BRETTEL, Richard R. Modern art 1851-1929: capitalism and representation.
Oxford/New York: Oxford University Press, 1999.
DUQUE-ESTRADA,
Luiz Gonzaga. A arte
brasileira. São Paulo: Mercado de Letras, 1995.
_____. Graves & Frívolos
(por assuntos de arte). Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa/Sete
Letras, 1997.
GUIMARÃES, Júlio Castañon, LINS, Vera (orgs.). DUQUE-ESTRADA, Luiz Gonzaga .
Impressões de um amador: textos esparsos de
crítica (1882-1909). Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Fundação Casa de
Rui Barbosa/Editora UFMG, 2001.
GRANGEIA, Fabiana de Araújo Guerra. A crítica de artes em Oscar Guanabarino: Artes plásticas no século XIX. Campinas: dissertação de Mestrado IFCH/Unicamp, 2005.
KLEIN, John. The dispersal of the modernist series.
Oxford Art Journal, vol. 21, nº 1, 1998.
LEVY, Carlos Roberto Maciel. Giovanni Baptista Castagneto
(1851-1900), o pintor do mar. Rio de Janeiro: Pinakotheke
(Série Ouro), 1982.
MARQUES FILHO, Luiz César. Catálogo MASP - Museu de Arte de São Paulo
‘Assis Chateaubriand’. São Paulo: MASP, 2001 [volume: ‘Arte
do Brasil e demais coleções’].
MIGLIACCIO, Luciano. “Arte do Século XIX”. In AGUILAR, Nelson (org.). Mostra
do Redescobrimento. São Paulo: Fundação Bienal de São
Paulo/Associação Brasil 500 anos, 2000.
TUCKER, Paul Hayes. Monet in the 90’s: the series paintings.
New Haven: Yale University Press, 1989.
Referências documentais
AGOSTINI, Ângelo. Revista
Ilustrada, 15 de
Junho de 1887.
GUANABARINO, Oscar. O Paiz,
16 de Junho de 1887, 24 de Junho de 1887, 30 de Junho de 1887 (artigos não
assinados).
COCK, Marciano. Diário Ilustrado, 21 de Junho de
1887, 25 de Junho de 1887, 11 de Julho de 1887.
_________________________
[1] Mestrando em História da Arte no Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) e é bolsista do CNPq. E-mail para contato: helder.heldermso@gmail.com
[2] Estas obras pertencem à coleção do Museu de Arte de
São Paulo ‘Assis Chateaubriand’ (MASP).
[3] Percebemos ainda a existência de outros motivos nos quais
podemos constatar que o artista produziu séries, por exemplo, cenas de portos,
barcos de pescadores, trechos de praias, barcos e navios em alto-mar que
retratam a vida marítima do Rio de Janeiro, Niterói, Angra dos Reis, Paquetá,
Toulon e cenas de barcos em rios – a vida fluvial – em São Paulo.
[4] Como exemplo o autor cita o ciclo da Maria de Médicis realizado por Rubens no século XVII.
[5] Claude Monet foi o artista que consagrou a pintura
moderna de séries, já que foi o pintor que mais se aprofundou e por mais
tempo se dedicou a este tipo de prática em sua produção artística. Ver mais
sobre o assunto: HOUSE (1986), TUCKER (1989) e LEVINE (1986).
[6] Como exemplo as pinturas que têm como tema os montes
de feno e a catedral de Ruen.
[7] Um bom exemplo, citado pelo autor, são os auto-retratos de Rembrandt.
[8] House cita como exemplo as
obras do artista Pierre-Henri Valenciennes.
[9] Em 1809, Turner exibiu duas vistas de Tabley House.
[10] Em 1855, Rousseau mostrou duas vistas da Floresta de Fontainebleau.
[11] A série tradicional é definida por Klein a
partir de um tema central que é o fator criador e de unidade das obras
pictóricas de série, desta maneira, a série tradicional está
diretamente ligada às estruturas iconográficas de narração, liturgia, alegoria
e ciclos. Como exemplo podemos colocar o já
supracitado ciclo da Maria de Médicis realizado por
Rubens no século XVII.
[12] Pressuposto apontado por House
como importante para a qualificação de uma produção de série.
[13] GUIMARÃES, Júlio Castañon,
LINS, Vera (orgs.). Gonzaga Duque: Impressões
de um amador: textos esparsos de crítica (1882-1909). Rio de Janeiro/Belo
Horizonte: Fundação Casa de Rui Barbosa/Editora UFMG, 2001. Este livro traz
artigos críticos de Luis Gonzaga Duque-Estrada publicados em periódicos cariocas no final do século XIX e
início do XX. Destacamos que Gonzaga-Duque foi muito próximo de Castagneto, e grande admirador de sua obra.
[14] Informações colhidas em LEVY (1982).
[15] As obras em dupla podem ser inicialmente
interpretadas como estudos e obras finalizadas, o que não chega a ser um
problema para um estudo da idéia de série, já
que estamos aqui partindo da idéia de série
modernista de Klein (1998), e esta tem princípios desenvolvidos a partir da
idéia de estudos, isto é, estes deixam de ter caráter
ensaístico para serem documentos do processo criativo do artista moderno.
[16] As obras intituladas Faluas
Ancoradas na Ponta do Caju no Rio de Janeiro são: a primeira de 1885, ost colada em madeira, 23 x 33 cm, coleção particular; a
segunda de 1885, óleo sobre cartão, 24 x 32 cm, coleção Paulo Fontainha Geyer (atualmente sob cuidados do Museu Imperial); a
terceira de 1885, óleo sobre tela, 30 x 51cm, coleção
Felix Urquiza; a quarta de 1886, óleo sobre tela, 32
x 54,5 cm, coleção Hermano do Amaral Pinto; e a quinta de 1886, trata-se de um
óleo de paradeiro desconhecido.
[17] Além, do conjunto de obras citado, o artista realizou
nessa viagem, uma outra obra na qual retrata um barco
ao seco, trata-se da pintura Canoa a seco na praia em Angra dos Reis (1886,
óleo sobre madeira, 38,5 x 65,8 cm, Museu Histórico Nacional), o tema
semelhante é tratado em composição completamente diversa, porém, notamos que
reforça a importância do tema do barco ao seco para este artista.
[18] Duas dessas obras pertencem atualmente a coleções
públicas, especificamente ao Museu Histórico Nacional (Rio de Janeiro) e Museu
Carlos Costa Pinto (Salvador).
[19] Destas uma pertence à Pinacoteca do Estado de São
Paulo e outra à coleção Sérgio Fadel.
[20] A vinda de Castagneto a São
Paulo foi antecedida pelas exposições de Antonio Parreiras e Francisco
Aurélio de Figueiredo e Mello, ambas obtiveram sucesso de vendas. Castagneto passou o ano de 1895 praticamente em São Paulo e
Santos, onde realizou duas exposições individuais: no salão nobre do Banco
União de São Paulo, de junho a aproximadamente agosto e no Salão de
Concertos da Paulicéia, em outubro. Teve grande sucesso de vendas com os
colecionadores locais. Durante esse período, pintou trechos de paisagens
tanto em São Paulo, quanto em Santos, o que sugere existir um significativo
número de obras pintadas em terras paulistas.
[21] A sua tentativa de realizar uma pintura histórica de
marinha oficial com Salva de grande gala na baía do Rio de Janeiro
(1887, óleo sobre tela, 74 x 150 cm, MASP), não foi muito acertada. A obra é
uma tela atípica na produção do artista e gerou polêmica na imprensa de crítica
de arte da época, com o “duelo” entre Marciano Cock,
do jornal Diário Ilustrado e Oscar Guanabarino,
de’ O Paiz, além de uma crítica depreciativa
de Angelo Agostini, na Revista Ilustrada. Após esse
fato, Castagneto apresentou a tela a Academia e a
mesma foi rejeitada em relatório feito pelos professores João
Zeferino da Costa (1840-1915) e José Maria
de Medeiros (1849-1925). Mais sobre o assunto: LEVY, 1982 e GRANGEIA,
2005.
[22] Ver a íntegra desse texto no presente site http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/gd_castagneto.htm
[23] Como,
por exemplo, as tradicionais pinturas de marinha de Théodore Gudin e
Jules-Achille Noel.
[24] Charles-François Daubigny e
Alfred Sisley retrataram muitas cenas com a presença
de rios. Eugène Boudin
apresentou cenas de portos com luz, movimento e multidões com trajes da moda
que freqüentavam as praias de Deauville
e Trouville, este foi um dos principais pintores
franceses de marinha no século XIX. Claude Monet tem também lugar de destaque,
pois foi o artista que mais contribuiu para a produção de marinhas modernas,
estas retratavam cenas de beira-mar, passeios de iates e pequenos barcos e
cenas de rios explorando a luz em diferentes momentos do dia e em diversas épocas
do ano.