O
nu feminino no Brasil e na Argentina nas telas de Rodolpho Amoêdo e Eduardo
Sívori
Camila Dazzi
DAZZI, Camila. O nu feminino no Brasil e na Argentina
nas telas de Rodolpho Amoêdo e Eduardo Sívori. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 2, abr./jun. 2011.
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/nus_dazzi.htm>.
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Ao folhearmos os catálogos das exposições de arte do século XIX é
possível perceber uma crescente presença de nus femininos, realizados por
artistas das mais diversas procedências. Não raro, alguns desses nus suscitavam
polêmicas e acaloradas acusações de “mau gosto” e “pornografia”. É o caso de telas
como Vénus et Psyché de Gustave Courbet, rejeitada pelo júri do Salon
de 1864, por motivo de imoralidade[1], ou Rolla, de Henri Gervex,
“recusada pelo salon de 1878 pelo acento explicitamente erótico da
representação”[2] [Figura 1]. Já outras telas, a grande maioria delas,
foram apreciadas e admiradas pelos críticos e pelo público. Basta lembrarmos de
nomes como Cabanel, Bouguereau, Chaplin e Jules Lefvebre, louvados pela
“idealização de peles nacaradas” e o pelo “clima sensualista” de suas pinturas.
Não sejamos, no entanto, inocentes. Houve quem elogiasse o despudor imperfeito
das mulheres de Courbet, assim como houve quem criticasse, e não pouco, todas
as vênus rosadas que desfilaram pelos salões oitocentistas.
Os países da América do Sul, sempre a par das últimas tendências
artísticas, também tiveram os seus escândalos. Ou, reformulando a frase,
tiveram telas que entraram para a História da Arte como escândalos. É o caso do
Estudo de Mulher (1884) [Figura 2], de Rodolpho
Amoêdo, e de Le lever de la bonne (1887) [Figura 3], de
Eduardo Sívori. Vamos nos deter brevemente no primeiro caso.
São com essas palavras que Gonzaga
Duque, em seu livro ‘Arte Brasileira’ (1888), se refere à primeira
exposição de Estudo de Mulher no Brasil, em 1884:
E para qualificar o poder de realidade que tem
este quadro, a estranha vida que anima esta obra-prima, apenas encontro como
forma clara e única a frase dita por uma senhora diante dessa figura:
- Que mulher sem-vergonha!
Este quadro que, na exposição de 1884 foi o mais bem
pintado, o que resumia mais conhecimento de modelado e maior savoir faire,
isto é, espontaneidade, segurança e elegância de toque, mereceu da congregação
acadêmica uma censura por... ser imoral![3]
As palavras do crítico fazem parecer que a tela foi excessivamente
ousada para os professores da Academia e para o público carioca. Mas teria de
fato o evento ocorrido desta forma? Aqueles que estudam a produção artística
brasileira do século XIX já sabem, por experiência própria, que Gonzaga Duque
não pode ser inocentemente tido como senhor da ‘verdade absoluta’. Vejamos
então o que foi dito, em 1884, sobre o Estudo de Mulher, por outro
articulista, Oscar Guanabarino:
[Estudo de Mulher] é o trabalho mais
delicado que temos visto neste gênero entre nós, e a mais exata reproducção da
côr da carne humana.
O tom roseo que predomina em toda a figura
talvez pareça um tanto exagerado aos que estão habituados a vêr as falsas côres
do nú, que geralmente se nos apresentão.
[...] A cabeça, os cabellos, o tronco, as
pernas, os pés, tudo emfim denuncia acurado estudo e vontade firme de vencer
algumas difficuldades sérias, como, por exemplo, esta: fazer destacar os pés,
que são de uma finura extrema, sobre as dobras de uma colcha de nobreza clara.
Mas ainda não é tudo. [...] Todo o quadro tem
muita luz e sobretudo muito ar (duas qualidades excellentes). E os accessorios
são de tal ordem que não podem passar desapercebidos. [4]
Oscar Guanabarino não parece em sua crítica, publicada em um dos mais
lidos jornais do período, minimamente chocado pela forma como foi exposto o
corpo nu da modelo.
E a Academia? Se o quadro foi condenado por ser imoral, não deveriam ter
sido os professores da AIBA a ‘lançar a primeira pedra’? E, de fato, Amoêdo não
poderia ter se esquivado do crivo dos professores daquela instituição, uma vez
que Estudo de Mulher era um dos envios do seu quarto ano como
pensionista da AIBA na Europa. Vejamos o parecer dos professores Victor
Meirelles e José Maria de Medeiros sobre a tela, redigido em setembro
de 1884:
A Comissão encarregada de dar parecer sobre os
trabalhos do pensionista Rodolpho Amoêdo, tendo examinado as quatro telas, que
constituem a nova remessa, vê nesses estudos que representam: 1.A partida de Jacob; 2.Esboceto de Cristo em Cafarnaum
; 3.Esboceto de
Tiepolo; 4. Grande estudo de mulher nua vista de dorso. Que estes trabalhos
revelam grande aproveitamento, deixando antever o resultado final de seus
esforços, que por certo atingirão; libertando-se mais tarde, da situação
transitória e dependente, que o estudo, a prática e os preceitos da Escola
francesa contemporânea, tanto influem e o induzem a sentir desse modo[5].
Também não vemos aqui, por parte dos professores responsáveis pelo
parecer, qualquer crítica provocada por excesso de pudor. A crítica é feita à
adoção, por parte do artista, dos “preceitos da Escola francesa contemporânea”.
Já as palavras do Vice-Diretor da Academia, Ernesto Gomes Moreira Maia, no seu
relatório sobre o ano de 1884 ao Ministro do Império[6],
reforçam o embate entre ‘escola clássica’ e ‘escola realista’, não uma aversão
pudica ao corpo nu de uma burguesa:
Os últimos trabalhos que enviou e que foram recebidos
durante a Exposição Geral das Belas Artes, justificam o juízo que em princípio
emiti sobre este pensionista. Todavia me parece que um desses trabalhos (estudo
de mulher de grandeza natural), conquanto bem observado e cuidadosamente feito,
não lhe teria valido a recompensa que obteve na prorrogação da pensão; porque
nele, arrastado pelo furor da moda e pela onda do realismo exagerado,
afastou-se muito dos bons princípios da escola clássica, que não cessamos de
recomendar aos nossos alunos.
Mas teria sido o intuito de Amoêdo chocar, expondo uma tela imoral?
Cremos que não. O artista, juntamente com o envio das quatro telas referidas no
parecer, solicitava uma prorrogação de dois anos da sua estadia em Paris, como
pensionista. Ele sabia depender do parecer favorável dos ‘velhos’ professores
da Academia para alcançar os seus objetivos. Sendo assim, podemos deduzir que o
intuito de Amoêdo era demonstrar, com Estudo de Mulher, que ele estava à
altura das expectativas nele depositadas. Os professores, de fato, ainda que
‘torcendo um pouco o nariz’, reconhecem as qualidades do artista e são
favoráveis a continuidade da pensão. Sorte de Amoêdo não ter contado com Gomes
Moreira Maia entre os pareceristas.
A adesão de Amoêdo aos “preceitos da Escola francesa contemporânea”,
foco de crítica dos professores da AIBA, não foi, no entanto, suficiente pra
suscitar o louvor absoluto dos críticos. Um artigo, publicado na Revista
Illustrada de Angelo Agostini, que sabemos ter sido um dos principais
defensores dos jovens artistas que tinham a possibilidade de modernizar a
Academia, é bastante duro ao comentar a tela:
Gostamos muito da maneira franca como está
pintada essa tela, menos a cor da mulher, da cintura para baixo. Aquella cor
que termina nos pés não nos parece natural, nem está de accordo com a das
costas. A cabeça é admiravel porém o cabello deixa muito a desejar: falta-lhe
luz. O braço, apezar de ser um pouco fino, está bem modelado: outro tanto não
podemos dizer das pernas, nem das... (ó diabo!) Onde acabam as costas emfim.
A ser realista, é preciso sel-o devéras. Perdoariamos
a ousadia de uma posição como a d’essa mulher, se a sua execução chegasse a
provocar, da parte de quem olha, o desejo de dar-lhe uma palmada. Então sim!...[7]
Amoêdo, em sua tela, ao mesmo tempo em que mantinha um vínculo com os
modelos da tradição clássica, (perceptível em obras como o Hermaphroditus
Borghese, a Vênus ao Espelho, de Velázquez e a Grande Odalisca,
de Ingres) [Figura 4],
assimilava as novidades da “Escola Francesa” dos anos de 1880. O exagero de
certas linhas presentes em Estudo de Mulher nos leva a arriscar, ainda,
que a tela possui uma interessante conexão com as primeiras fotografias
pornográficas do século XIX. Surgidas em uma época em que as mulheres burguesas
eram prisioneiras do corset “droit-devant” e do faux-cul, a
fotografia pornográfica, através de principiantes como Auguste Belloc ou o
escritor Pierre Louÿs[8], nos revelam o verdadeiro gosto masculino
da época, e ele não tendia às silhuetas tubulares e andróginas [Figura 5]. Nádegas
redondas e proeminentes, acentuada por cinturas extremamente finas, como
aquelas apresentadas em Estudo de Mulher, encarnavam, na década de 80 do
séc. XIX, o corpo feminino erotizado [Figura 6]. As formas do corpo apresentadas em Estudo
de Mulher parecem ter encantado, por exemplo, Guanabarino, que procurou
justificá-las, no seguinte comentário:
A mimosa côr de rosa pallida impera em todo o
corpo, modificando-se aqui, alli, para contornar os membros ou accentuar um
musculo.
Talvez pareção exageradas certas linhas desse corpo
nú; mas, como não se trata de uma creação, porém sim da reproducção da um
modelo vivo, nada temos que vêr com isso. E ainda que tivessemos, a molleza
daquella carnadura e a flexibilidade de todos os seus membros fazem desculpar
esse defeito, se defeito é.
Com tudo o que foi dito sobre a tela, Estudo de Mulher não
causaria grandes “exclamações” se tivesse sido exposta no Salon
parisiense de 1884, fazendo par com uma série de obras que ali foram expostas,
onde figuravam belas mulheres de corpos acetinados, jovens burguesas em poses
da tradição clássica.
Mas não só de beldades se constituía a arte dos anos de 1880. E as
disparidades que surgiam, essas sim causavam algum impacto, como podemos
perceber na leitura da crítica que se segue, dirigida a uma tela exposta no Salon
parisiense de 1887:
La mujer de piel negruzco,
despojada de toda vestidura, tiene la vulgaridad de contornos y de color que es
la ostentación de su situación social. Al vela, nadie se siente con ganas de ir
a acompañarla.[9]
A crítica publicada no parisiense Memorial Diplomatique, por
Roger-Míles, e posteriormente traduzida e publicada no jornal argentino El
Diário fazia referência à pintura Le lever da la bonne, ou o El
despertar de la Criada, do artista argentino Eduardo Sívori[10].
O quadro, como podemos perceber pelas palavras do articulista, vai em um
sentido completamente oposto daquele adotado em Estudo de Mulher. Ao
ambiente luxuoso se contrapõe à simplicidade de um quarto cuja mobília se
constitui de uma cama de ferro e uma mesinha. A suavidade rosada da pele
nacarada é substituída por um tom amarelado e doentio. A silhueta em S de fins
de século, que correspondia a uma mulher de cintura finíssima, é substituída
pela robustez. A rigidez da carne, à flacidez. É assim que surgia, diante dos
contemporâneos, de Sívori o “Despertar da Criada”, nos dizeres dos críticos da
época, uma ‘mulher feia e suja’, que assumia a sua nudez com a maior
naturalidade.
Para explicarmos o motivo de a tela ter sido um ‘escândalo’, podemos
começar mencionando que ela dificilmente poderia estar inserida, sem chamar
alguma atenção, no contexto de Exposição de 1887, na qual foi exibida. De fato,
o “Despertar da Criada” recebeu alguma atenção dos jornais franceses [Figura 7]. Nada
menos que onze deles dedicaram algum comentário ao quadro do desconhecido
argentino, como:
- Emery del ‘Seine’: Muy natural esta pobre y fea
chica, sentada en una miserable cama de hierro, disponiéndose á calzar sus
medias inmundas. El "Lever de Bonne" de M. Sivori, es una grosera y
fuerte moza, acostumbrada al trabajo, con su garganta siempre colgando y con
sus miembros fuertes y musculosos.
- Ripoult del "Petit Bordeaux” se expressa en los siguientes términos:[...] Parece que es muy
natural, esa muchachota de pechos caídos con su pelo en desorden, de limpieza
dudosa, la camisa está ausente, no quiero saber porqué; el caso es que no gusto
de estas intromisiones, por muy naturales que quieran ser, en un arte que a mi
modo de ver debe dirigirse tan sólo a lo bueno y a lo bello.[11]
Tais comentários se explicam pelo contexto no qual foi exibido Le
lever de la bonne no Salon de 1887. Por um lado, o Salon
contava com muitos quadros que, ainda que entendidos como ‘realistas’, acentuavam
aspectos sentimentais e melodramáticos: camponeses pobres dedicados ao seu
trabalho, crianças órfãs, mães virtuosas, como aquelas apresentadas nas telas
de Warrener, Carré-Soubira e Venat [Figura 8] [12]. Um tipo de pobreza que “entusiasmava a
burguesia”. A pobreza do quadro de Sívore não possuía o encanto
anteriormente mencionado. Basta compará-la com algumas telas que foram expostas
no Salon de 1887, mulheres em interiores humildes, mas dotadas de dignidade e,
por vezes, de um sentimento de tristeza e abandono. Mas, certamente nenhuma
delas nua. O mais perto
que essas telas chegavam, no Salon de 1887, de apresentar mulheres das
ditas “classes inferiores”, camponesas ou citadinas, dotadas de sensualidade
era em telas como Pensierosa de E. H. Sain, na qual uma pobre moça de
pés descalços penteia os longos e negros cabelos, ou ainda na Ignorance,
de Comerré-Paton, onde uma jovem, também descalça, está deitada de bruços a
beira de um lago, tendo a cabeça coberta por um lenço [Figura 9]. As mulheres
pobres, as criadas, mesmo em representações sensuais, foram representadas
vestidas na Salon de 1887.
Mas e os nus femininos expostos no Salon de 1887? Havia vários
naquele ano, de artistas renomado e desconhecidos, nas mais diversas poses, em
interiores requintados ou em meio à natureza [Figura 10]. Fez especial sucesso aquele ano tela de
Charles Chaplin, Dans les Réves, posteriormente conhecida como Depois
do Baile [Figura 11].
A feminilidade açucarada que a tela apresenta, é talvez o exemplo máximo do que
o público estava acostumado a ver nas paredes dos Salons [13].
A “Criada”, no contexto dos demais nus femininos expostos no Salon de
´87, se apresentava como um nu imperfeito, destituído do erotismo elegante e
adocicado que caracterizava as demais telas. O contraste, para o publico abitué
dos Salons é evidente, basta vermos lado a lado uma tradicional cena de
toilete, como a tela Después del Baño, de Raimundo de Madrazo e a
“Criada” de Sívori [Figura 12].
Sívori não somente representou uma mulher do povo nua, a fez possuidora
de um corpo bastante ‘imperfeito’. Podemos pensar, nesse sentido, que o artista
procurava se inserir em uma tradição que tem como exemplo mais conhecido As
Banhistas (1853), de Gustave Courbet [Figura 13],
tela que provocou reações negativas devido à representação do corpo feminino,
obeso e disforme, o que possibilitou ao então jovem Courbet se destacar na cena
artística parisiense. Os comentários depreciativos dirigidos em 1853 às Banhistas
nos lembram bastante aqueles posteriormente direcionados à “Criada” de Sívori:
Quelle a été l'idée du peintre en exposant cette surprenante anatomie ? […] Pose-t-il dans
cette Baigneuse son idéal de beauté, ou s'est-il contenté de copier une
créature obèse, à la graisse mal distribuée, déshabillée sur la table de
l'atelier? (Théophile Gautier)[14]
Ou ainda:
Que veulent ces deux figures? Une grosse bourgeoise, vue par le dos et
toute nue sauf un lambeau de torchon négligemment peint qui couvre le bas des
fesses, sort d'une petite nappe d'eau qui ne semble pas assez profonde
seulement pour un bain de pieds.(Delacroix)[15]
O El Censor publicará
uma crítica feroz dirigida a Le lever de la bonne,
que em nada perde para aquelas dirigidas às Banhistas de Courbet:
¿A quién se le ocurre pintar semejante majadería, sobre todo cuando la
sirvienta es tan fea, tan desgreñada y tan sucia como la que él ha elegido de
modelo? [..] El cuerpo, como anatomía y como color, es soberbio; pero más que
cuerpo de mujer parece el de un mozo de cordel. Las mechas sucias del pelo y lo
feo y soñoliento de la cara, no quitan el que toda la cabeza esté pintada con
fuerza, con verdad, pero el arte no consigue aquí vencer la repulsión que
inspira lo grosero. [...] Los pies de la sirvienta son todo un poema
bestial. ¡Qué juanetes más abultados y violáceos, qué callos más geológicos,
qué uñas más córneas y amarillentas! Eso de elegir un tema sucio para limitarse
a la reproducción de algo repugnante, es un error en que caen los principiantes
en su entusiasta radicalismo [...].[16]
Outra provocação de Sívori ao público e aos articulistas da época foi
resignificar um tema clássico de uma maneira bastante provocativa. A criada com
as pernas cruzadas, em meio a sua toilete, ocupa o lugar daquelas que sempre
representaram na pintura o ideal de beleza feminino: Susana [Figura 14], Betsabá [Figura 15] e Diana [Figura 16]. No lugar das longas sedosas cabeleiras e dos
seios firmes e rosados, a feia e flácida criada. Para além da substituição do
corpo humano jovem e rijo, na tela de Sívori só temos um personagem, já que a
presença da criada, que ajuda a ama na toilete, seria impossível em uma tela
que representa a criada fazendo a própria toilete. No entanto, vários elementos
permanecem, notadamente o tecido branco próximo ao copo feminino que pode ser
interpretado como uma indicação de inocência, pureza ou, simplesmente, limpeza.
Mas, o que mais parece ter ofendido aos contemporâneos de Sivori são os
pés. Pés que são tão linda, pura e delicadamente representados, muitas vezes
objeto de maior atenção da toilete [Figura
17], na criada de Sívori, parecem sujos e mal cuidados, um “poema
bestial” com “callos geológicos” e” uñas amarillentas” como disse o crítico
argentino do jornal El Diário, acima citado.
Como se não fossem suficientes todas essas transgressões, a tela foi
igualmente tida como pornográfica. Flácida, feia e com pés horrorosos, ou não,
ao representar o toilete de uma criada, Sívori se conectava a uma tradição
erótica de longa data. O quadro chegou a receber, após a sua exibição em Buenos
Aires, o seguinte comentário de crítico:
Ahora bien ¿debe
clasificarse la pintura de pornográfica? Pensamos que se puede clasificar de
tal, sin que esto afecte en lo más mínimo el valor intrínseco de la obra que es
realmente notable como factura. Es de sentir que el realismo del asunto no
permita exhibir al público esta muestra de un talento que se desarrolla tan
ventajosamente para el arte nacional.[17]
Pintar uma criada nua ou seminua ao fazer a sua toilete não foi um ato
de criação desconectado de uma tradição por parte de Eduardo Sívori. As
representações de criadas em seus cômodos simples, momentos antes de se
vestirem (ou momentos depois de se despirem) podem ser encontradas em telas
dedicadas ao deleite privado, e possuíam forte conotação sexual, não somente
por expor o corpo feminino nu ou seminu, mas também pela presença na tela de
conhecidos fetiches masculino, como as meias e sapatinhos ou sandálias. Tal
combinação de elementos rendeu telas famosas, como Toilete pela manhã
(1660), de Jan Steen, Le lever de Fanchon (1773) [Figura 18], de
Nicolas-Bernard Lépicié e Mulher com meias brancas (1861), de Courbet.
Nos anos de 1880, com o início da fotografia erótica, também circulavam imagens
de criadas seminuas, em interiores que denunciavam suas posições sociais e, não
raro, estavam presentes na imagem as meias e os sapatinhos [Figura 19].
*
Concluindo, através dessa breve análise foi possível verificar não
somente como se deu a recepção dessas duas telas, reforçando ou desfazendo
mitos de escândalo na arte oitocentista da América do Sul. Igualmente,
esperamos ter colaborado para a compreensão de como Eduardo Sívori e Rodolpho
Amoêdo se apropriaram, na Europa, dos modelos da tradição clássica e das
contemporâneas representações do nu feminino, inclusive aquelas
disponibilizadas pala técnica fotográfica.
____________________
[1] LARAN, Jean; GASTON-DREYFUS, Philippe; BENEDITE,
Léonce. L'Art de Notre temps - Courbet.
Paris: La Renaissance du livre, J. Gillequin, 1911.
[2] BROOKS, Peter. Le corps-récit, ou Nana enfin dévoilée. Romantisme,
1989, n°63, p. 75.
[4] Edição de 26 de setembro de 1884 - Jornal do
Commercio - Ano 63 N. 269 -
página 1. FOLHETIM DO JORNAL DO COMMERCIO. BELLAS-ARTES. Rio, 25 de Setembro de
1884.
[5] Academia Imperial das Belas Artes - 3 de Setembro de
1884 "- Victor Meirelles - José Maria de Medeiros." Academia das
Belas Artes, 13 de Setembro de 1884.
[6] Relatório do ano de 1884, por Ernesto Gomes Moreira Maia,
Vice-diretor da AIBA, em substituição a Antonio Nicolao Tolentino, que então se encontrava
gravemente infermo. Redigido em em 13 de abril de 1885. Transcrição com grafia atualizada de Arthur Valle e
Camila Dazzi, disponível em: http://www.dezenovevinte.net/documentos/relatorios_ministeriais/rltr_mntr_1884anexo.htm
[8] POCHON, Caroline; ROTHSCHILD, Allan. La face
cachée des fesses. Paris: ARTEEditions/Democratic Books, 2009.
[9] El Diario, 2 de Julio de 1887.
[10] COSTA, Laura Malosetti. Los primeros modernos.
Arte y sociedad en Buenos Aires a fines del siglo XIX (reimpresion). Buenos
Aires: Editorial FCE, 2001.
[11] Primeros Modernos en Buenos Aires (1876 - 1896). Buenos Aires, Museo Nacional de Bellas Artes,
2007. p. 52. (Catálogo da exposição).
[12] Salon de 1887 -
Catalogue Illustré. Peinture & Sculpture.Paris: Librairie d`Arte/Ludovic
Baschet Éditeur, 1887 (vendu ao salon et referermant la list des exposants)
[13] GYP. Au Salon. L'Univers illustré, 7 de maio 1887,
p.296
[14] La Galerie Bruyas, Alfred Bruyas, Paris, 1876.
[15] LAMBERTI, Maria Mimita. Du réalisme et du fromage de Brie.
In: Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 66-67, mars 1987. p 81.
[16] COSTA, Laura Malosetti. Los primeros modernos.
Arte y sociedad en Buenos Aires a fines del siglo XIX (reimpresion). Buenos
Aires: Editorial FCE, 2001. p. 216.
[17] Sud-America, 6.IX.1887,p.1,c.5.