Naturezas mortas: o Museu Nacional e a construção da nação na encomenda de D. Pedro I para o ultramar

Sabrina Parracho Sant’Anna

SANT’ANNA, Sabrina Parracho. Naturezas mortas: o Museu Nacional e a construção da nação na encomenda de D. Pedro I para o ultramar. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 2, abr. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/nm_parracho.htm>.

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                     1.            Este artigo é um dos resultados parciais de pesquisa mais ampla sobre a transferência e circulação de ciência e tecnologia no Império Brasileiro, produzida com financiamento da Finep, no CHDD/FUNAG, no Itamaraty, em convênio com a FUJB/UFRJ.

                     2.            Visando ao levantamento da documentação existente no arquivo do Itamaraty para confecção de catálogo sobre os movimentos empreendidos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros para fazer circular no Império novas técnicas e saberes, a pesquisa apresentou documentação inédita e deu origem a uma série de desdobramentos.

                     3.            Ao olhar o fluxo de circulação de ciência empreendido pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, vale chamar a atenção para o contínuo crescimento do volume documental verificado, sobretudo, a partir da década de 1840. O Segundo Reinado seria, com efeito, período de intensificação da especialização do saber e de crescente recepção de informações científicas. Com relação ao período anterior, de 1822 a 1840, quando a ocorrência média se restringia a 8 documentos ao ano, o número de documentos do Arquivo Histórico do Itamaraty aponta crescimento do volume anual de documentos em 450%. De um modo geral, em todos os saberes houve intensificação de relações com o estrangeiro e o Ministério se fez cada vez mais presente na circulação de conhecimento. Ao olhar, no entanto, os procedimentos adotados por cada um dos campos científicos, o caso da História Natural parece ser especialmente digno de menção.

                     4.            No período que vai de 1822 a 1841, a História Natural representava 37,9% do volume documental apresentado no catálogo sob a rubrica de campos de conhecimento, sendo responsável pela maior parte da formação de circuitos de trocas científicas. Seguida de longe pela Agricultura que representava 26,8% da documentação, a História Natural aparecia, na comparação com os demais saberes, como a principal preocupação científica do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

                     5.            A partir de 1841, no entanto, é digna de nota a crescente perda de importância daquele saber face aos demais. No II Reinado, passa a representar apenas 10% de toda a documentação. O crescimento progressivo de transferência de informações sobre a História Natural nitidamente desacelera e o saber perde relevância em relação aos demais campos.

                     6.            Neste sentido, a História Natural, em meio aos fluxos de conhecimentos adquiridos, parece ser fonte de importante repertório no discurso do I Reinado operando, na narrativa fundadora da nacionalidade, sistemas simbólicos capazes de instituir, para dentro e para fora, uma imagem da nação. O que pretendo, neste paper, é fazer referência a documentos específicos que exprimem o fundamental papel da História Natural na constituição de uma imagem de Brasil.

                     7.            Construir um catálogo de documentação colecionada em arquivos implica sempre adotar uma série de procedimentos que permitem enquadrar o passado. Percepção histórica de realidades que, sendo inapreensíveis pela memória individual, requerem necessariamente reunir, selecionar, classificar e categorizar os vestígios do passado. Nesta medida, vale dizer que, do ponto de vista analítico, a formulação de cortes cronológicos e blocos temáticos induz a perceber grandes fluxos imersos em processos de longa duração e que permitem ver a ação do Estado do ponto de vista de uma durée, capaz de dar sentido a processos sociais.

                     8.            Entretanto, se a metodologia abrangente permite estabelecer grandes movimentos, no mais das vezes, reduzir a documentação a processos que encompassam toda ação, implica esquecer os gestos e protagonistas da mudança em que os próprios processos têm origem. Assim, entre a composição de cortes de diacronia em blocos temáticos que confirmam as homogêneas narrativas da história nacional, há, por vezes, documentos que nos fazem refletir e que, embora solitários, estabelecem relações inauditas e essenciais.

                     9.            Neste sentido, este artigo trata de um episódio em que João da Silveira Caldeira, então diretor do Museu Nacional, foi incumbido de coligir objetos para confecção de um presente encomendado por D. Pedro I para ser remetido ao ultramar em meados de 1825.  Em meio a inúmeros documentos localizados, o caso é revelador dos gestos de produção da nação que foram postos em movimento nos primeiros anos de constituição do Império.

                  10.            Se a narrativa acerca da constituição da nacionalidade evoca, por vezes, precedência do Estado sobre a nação, ou uma constituição da identidade que parece simplesmente irromper pronta como imediatamente decorrente da ruptura política e evidentemente distinta da narrativa colonial, o documento é revelador dos meandros que tornaram possível constituir um projeto nacional por protagonistas que traduziram auto-imagens atribuídas à colônia em símbolos de identidade positiva e mito de origem a repercutir na narrativa do Império.

A encomenda

                  11.            Em 14 de abril de 1825, Estevão Ribeiro de Resende, ministro dos Negócios do Império, escreveria ofício a Luís José de Carvalho e Melo, ministro dos Negócios Estrangeiros, pedindo que fossem expedidas as convenientes ordens para o embarque de uma série de engradados destinados ao ultramar. O conjunto de caixas havia sido preparado por João da Silveira Caldeira, diretor do Museu Imperial e Nacional, para cumprir as ordens dadas pelo Imperador por portaria de 15 de janeiro daquele ano. Em ofício anexo ao documento, o diretor do Museu Imperial e Nacional esmiuçava o conteúdo de cada uma das caixas a serem selecionadas para compor presente do Imperador, ao estrangeiro. Recheado dos mais diversos objetos de história natural, coligidos pelo museu, o presente parece ser revelador da imagem da nação que passava a ser construída nos primeiros anos de independência da Coroa Portuguesa.

                  12.                                                  Em observância da Portaria de V. Exa. de 15 de Janeiro do corrente ano, em que V. Exa. me ordena que examine os produtos naturais, que houverem no Museu disponíveis, e serem capazes de formar um presente próprio da Augusta Pessoa de S. M. Imperial destinado para o Ultramar, faço apresentar dos mesmos produtos o número de caixas e caixilhos, tanto de aves, como de insetos, que se acharem em circunstância de ter semelhante destino: devendo esta remessa ser também acompanhada de alguns galanteios de conchas e mariscos. Determinando outrossim que, concluída esta diligência, declare pela Secretaria de Estado, qual seja o número de volumes destinado para aquele fim, e os objetos neles incluídos.

                  13.                                                  Tenho a honra de levar à presença de Va. Exa. os objetos, que me pareceram mais dignos de formar o destinado presente. Julguei do meu dever fazer a escolha destes objetos exclusivamente entre os produtos do Brasil, como julguei que este presente deveria mostrar as riquezas que à nossa Pátria pertencem em objetos de História Natural.[1]

                  14.            As caixas, minuciosamente descritas por João da Silveira Caldeira, continham uma série de objetos que chamam a atenção. De acordo com a relação enviada: frutas, aves, répteis, insetos, conchas, mariscos e ramos de plantas estavam dispostos em quadros de inspirada composição. A encomenda continha dezoito quadros que agrupavam os produtos do Brasil, de um modo que muito pouco parecia corresponder à taxonomia lineana. Nos quadros de conchas, dispunham-se, em cestas feitas de mariscos, ananás, goiabas, frutas de conde, ramos de cafezeiro e ramos de tabaco, entremeados de flores. Nos quadros de répteis, aves e insetos, apresentavam-se juntos pequenos jacarés, lagartos, cobras, tucanos, papagaios, garças e araras, adornados por borboletas e insetos.

                  15.            O presente buscava apresentar os elementos classificados pela ciência em disposição estética, produzindo conjuntos de imagens com efeito simbólico. Tomavam-se da natureza elementos que apresentavam, em metonímia, a nação concretizada. Se a classificação lineana separava em famílias radicalmente distintas espécies incomensuráveis, sob o signo da nacionalidade era perfeitamente possível nivelar jacarés, maitacas, surucuás e tiés, entremeando-os, ainda, de borboletas. A coleção, ordenada por um sentido visual, remontava às origens dos objetos, apresentando o território como produtor da riqueza exótica do mundo tropical e como referência a permanecer operando invisível para os espectadores que a contemplavam.[2]

                  16.            Se a ciência deveria tornar o mundo mensurável, distinguindo-o, classificando-o e saturando-o de universais para torná-lo operacionalizável,[3] o Museu Nacional, ao preparar o presente encomendado por D Pedro I, se apropriava do saber científico para estabelecer relações entre objetos que, em princípio, deveriam separar-se, pondo-se num horizonte que parecia apartado das expectativas do discurso técnico. Se se pode supor como Bachelard que o pensamento científico deveria tender inexoravelmente para processos de abstração da realidade concreta, poder-se-ia pensar que João da Silveira Caldeira dava um passo atrás e, em lugar de tornar geométrica toda representação, reunia elementos por sua afinidade simbólica, louvando ao mesmo tempo a unidade do mundo e sua diversidade.[4] Se o museu, como instrumento da História Natural, não mais reunia curiosidades para remeter ao universo;[5] tomava, ainda assim, toda a natureza tropical para remeter à nação. Mais do que conhecimento científico classificando, separando e geometrizando a realidade, as composições do Museu Nacional, na encomenda de D. Pedro, faziam coincidir vocações políticas e científicas e se aproximavam de narrativas artísticas, apresentando, pelo visível, um princípio de “simultaneidade essencial, no qual o ser mais disperso, mais desunido, conquista unidade,”[6] e conformando, pela lógica das semelhanças, efeitos miméticos e alegorias[7]. Se cortes epistemológicos não são mais que abstrações impostas sobre práticas social e efemeramente constituídas, ao reunir o presente de D. Pedro, João da Silveira Caldeira operava nos limites do saber, transformando ciência em narrativa pictórica.

                  17.            Com efeito, o papel do Museu Nacional na construção da imagem do país já foi deveras salientado. São recorrentes as referências às atividades do museu na construção da identidade nacional no período posterior à independência. Fundado por D. João VI em 1818 no bojo da chegada da família real e da transformação do Rio de Janeiro em capital do Reino português, o Museu Real se insere na narrativa historiográfica como parte da vaga de criação de novas instituições que buscavam dar feição civilizada à nova sede da corte e que deram ao território símbolos capazes de forjar, nas elites coloniais, o sentimento de pertencer a uma comunidade imaginada independente. Dom João colocava para o museu a missão de contribuir para a exploração comercial da natureza tropical, mas, ao fazê-lo, contribuía também para constituir uma imagem do território como unidade distinta da Europa, associando a natureza à especificidade local e constituindo o mito de origem possível.

                  18.            Assim, não por acaso, logo após a independência, em 1824, ano anterior à encomenda de D. Pedro I para confecção do presente para o ultramar, o Museu Real passaria a denominar-se Museu Imperial e Nacional, chamando atenção para o lugar destinado à classificação da natureza e, consequentemente à história natural, na construção de uma identidade brasileira. Segundo Miriam Sepúlveda:

                  19.                                                  Embora também houvesse importantes museus de história natural na Europa, os grandes museus nacionais não eram aqueles que mostravam a flora e a fauna de cada nação, ou mesmo do mundo, mas as riquezas culturais de cada Império. No Brasil, o Museu Nacional era o museu que guardava a riqueza natural, inicialmente do Império e, mais tarde, da República. O perfil deste museu indicava a importância dos recursos naturais para o novo Estado que se consolidava e a relação de desigualdade na constituição de perfis nacionais.[8]

                  20.            Com efeito, as primeiras décadas que sucederam à independência brasileira se caracterizam por um momento de disputa para definir o projeto nacional, sendo a institucionalização da ciência capaz de fornecer material simbólico para consolidação do Estado.[9] Dotando a natureza de significado científico, o saber dos naturalistas possibilitava torná-la explorável, associando-a a utilidades e riquezas potenciais, mas também, permitindo transpor o sentido imediatamente dado pela percepção, tornava possível associar botânica, climatologia e geografia e tornar o território o marco da classificação. Ao criar uma coleção, a História Natural definia o espaço nacional tanto como natureza tropical, quanto como natureza desconhecida, espaço de possibilidades.

Quadros de natureza morta

                  21.            Refletir sobre o gesto de Dom Pedro supõe, antes de mais nada, pensar os aspectos simbólicos ali implicados. A portaria de 15 de janeiro de 1825, ordenando que se fizessem reunir no museu nacional objetos de história natural para que fossem presenteados ao ultramar, era editada cerca de dois anos depois de proclamada a independência, justamente quando era chegado o momento de reconhecimento internacional. Em agosto daquele ano, depois de amplas negociações mediadas pela Inglaterra, Portugal seria indenizado pelo Brasil pela perda do território e, aos olhos do mundo, seria concedido ao país o título de Estado independente.

                  22.            O presente, gesto da dádiva exigindo reciprocidade, era, sem dúvida, significativo e parecia ser indicador do desejo de início de relações entre iguais. O presente de Dom Pedro ao ultramar parece ser, com efeito, revelador da posição que o país deveria ocupar em face do restante do mundo. Gesto que buscava inaugurar uma posição internacional, mediando uma relação entre o eu e o outro, definindo alteridades e identidades. De fato, o ofício, constituindo presente, endereçado ao exterior, definia simplesmente como ultramar o possível destino da encomenda, e deixava em aberto a escolha do presenteado a ser definida pelo imperador. A correspondência delimitava tão-somente o espaço do nacional e do estrangeiro, constituindo o território como limite da identidade nacional.

                  23.            É bem verdade, todavia, que se poderia argumentar que dons e contra-dons, fazendo parte da prática diplomática, muito pouco poderiam dizer da especificidade do momento de fundação da nacionalidade. O fato parece ser, no entanto, revelador, na medida em que parece repetir gesto já executado, fazendo acionar imagens anteriores, pondo em movimento mundos originários a repercutir indefinidamente como memórias ritualizadas e institucionalizadas a trazer à lembrança um passado que se pode, finalmente, dizer nacional.

                  24.            Com efeito, o gesto de Dom Pedro parece inevitavelmente recuperar gesto anterior, produzido por Maurício de Nassau, presenteando nobres da Europa com representações pictóricas da colônia, quando era administrador dos domínios holandeses no nordeste do Brasil. Em 1678, cerca de um século e meio antes da independência brasileira, Luís XIV receberia de Nassau telas de Eckhout, que seriam copiadas para tapeçarias, divulgando no mundo as imagens da colônia holandesa [Figura 1]. Em 1654, vinte e uma telas seriam doadas ao Rei Frederico III, da Dinamarca.

                  25.            O gesto de D. Pedro remete ao passado cristalizado na memória coletiva. Se as paisagens estavam necessariamente presentes no conjunto da encomenda enviada por Nassau à Dinamarca, como peças constitutivas do barroco holandês e da possibilidade de apresentar uma natureza tropical controlada, daquele presente, o que chama aqui especial atenção são as doze representações de naturezas mortas, vistas contra o céu [Figura 2].

                  26.            Em outras ocasiões, já Pesavento chamou a atenção para a o lugar do barroco holandês na constituição de uma imagem de Brasil. Espalhadas pela a Europa, responsáveis por criar representações da natureza, as telas de Gillis Peters, Frans Post e Eckhout ordenaram o mundo tropical e o apresentaram como natureza traduzida pela cultura, transformando-o, ora em paisagem, ora em natureza morta. Estabeleceram, assim, a imagem de Brasil a repercutir entre viajantes, marcando a recepção do país na Europa e ordenando um mito fundador e uma identidade que se definia pelo outro. O mito de origem, cosmologia nacional a ser artificialmente acionada pelos rituais da história do Estado,[10] aparecia, de fato, agora no presente de D. Pedro a por em movimento a natureza controlada no momento do reconhecimento internacional.

                  27.            Com efeito, embora seja impossível reconstituir a exata ordem em que se apresentou a composição dos quadros montados pelo Museu Nacional, algumas escolhas não parecem ter ocorrido ao acaso. Os quadros compostos no Museu Nacional se orientavam, com efeito, por um sentido estético cuja composição havia sido cuidadosamente disposta. João da Silveira Caldeira havia tomado uma série de precauções para que a ordenação dos objetos não fosse comprometida na viagem, dizia ele que todos os quadros iam também parafusados pelo fundo às caixas, em que iam encaixotados para não se desarranjarem, e serem sujeitos a espedaçarem-se durante o transporte.

                  28.            De um lado, a escolha de objetos oriundos do Brasil, constituindo uma imagem de riqueza exótica, mercadorias raras comerciáveis, dava, aos quadros do presente, o caráter alegórico que podia fazer tomar a imagem das aves, conchas e borboletas pela metonímia da pátria tropical, natureza fausta, em que se plantando tudo dava. De outro, a escolha de frutas nem sempre nativas, como eram os pêssegos, romãs e melões, excluía o sentido evolutivo que mais tarde seria decerto empregado pelo Museu e tecia relações entre objetos não relacionados, fazendo aparecer o caráter mimético da composição; mimeses capaz de inserir os objetos no horizonte de expectativas das representações de naturezas mortas europeias. De fato, se os quadros eram de conchas, a presença das frutas, não necessariamente locais, chamava atenção para seu caráter acessório, adorno a finalizar a composição, capaz de remeter às telas de Eckhout, Frans Post e outros, primeiras imagens do território a repercutir indefinidamente como mito de origem atualizado.

                  29.            Se os quadros do barroco holandês haviam nivelado frutas, aves e crustáceos, apresentando as riquezas da colônia de Nassau e fazendo repercutir no mundo a posse do território, lócus do exótico; João da Silveira Caldeira parecia incorporar imagens conhecidas para pôr em movimento um discurso que agora se podia dizer nacional e acionava o estigma associado à terra estrangeira, instrumento que a tornava despida de direitos, para, em lugar de objeto, fazer-se sujeito da narrativa do território tropical. Assim, se o mito fundador aparecia como mundo originário a repercutir, em eterno retorno, a cosmologia nacional; ao atualizá-la em gesto narrativo, passava o museu a operar com categorias absolutamente distintas daquelas presentes nas imagens distribuídas pelo governo holandês aos seus aliados na Europa: em lugar da colônia, a pátria; em lugar da arte, a ciência; em lugar da representação, a coisa mesma; em lugar do tempo que degenera, o tempo fixado; contra a natureza, a cultura.

                  30.            O gesto de construção de uma imagem da nação a ser consolidada para fora implicava mudanças na estrutura discursiva da narrativa. Embora depois de 1822 a instituição permanecesse tendo “a finalidade de explorar o potencial de riquezas que a natureza do país podia oferecer, em benefício do comércio e das artes,”[11] a partir da independência, tornar-se-ia possível falar em “riquezas que à nossa pátria pertencem.”[12] Com efeito, a partir do decreto que tirava do museu a designação real, tornando-o Museu Imperial e Nacional, a instituição podia começar a se constituir como lugar de identidade coletiva que se punha de todo modo como centro de narrativas compartilhadas, operando como espaço de símbolos em que sentimentos coletivos podiam se encarnar, sendo objeto de culto e peregrinação.[13] Assim, ao definir coleções e objetos pelo pertencimento a uma nossa pátria, João da Silveira Caldeira passava a constituir, pela posse, um patrimônio nacional do qual podia pensar-se sujeito. Se no gesto de Nassau a natureza era representação de posse do território, no Museu Nacional de Dom Pedro, a natureza era território em pátria constituído.

                  31.            Assim também, ao instituir-se um novo sujeito do discurso, novas representações pareciam, do mesmo modo, fazer parte do repertório. Ainda que imersas entre frutas e borboletas, a classificação dos objetos em padrões científicos era anterior à composição estética em que esbarrava. Ainda que as designações da taxonomia lineana estivessem ausentes do documento, classificavam-se os conjuntos entre quadros de conchas e quadros de aves, répteis e insetos, chamando-se ainda especial atenção para o quadro número 18, no qual encontrava-se uma recém-descoberta espécie de pássaro.  Ainda que o enquadramento em sequências evolutivas só fosse ocorrer a partir de meados do século XIX,[14] já em 1825 os discursos científicos da História Natural substituíam os cabinets de curiosité que haviam povoado o Renascimento e o presente encomendado por Dom Pedro parecia se investir de um saber que, se optava por uma imagem estética, não deixava de amparar-se na legitimidade do discurso científico.

                  32.            Com efeito, a escolha de uma instituição de ciência para compor os quadros da imagem nacional não parecia ocorrer por acaso. Se os quadros de História Natural, como coleção de objetos, mantêm o caráter alegórico que torna possível unir o visível e o invisível, apresentando a natureza tropical como metonímia da pátria recém constituída, fato é que a ciência torna possível substituir o discurso da arte pelo da técnica, substituindo a representação pelo objeto mesmo. Natureza dessecada, empalhada, submetida à taxidermia, os objetos do museu nacional parecem contrapor uma nova lógica às representações do território. Ao penetrar no mundo por mediação da técnica, o museu elimina a mediação da arte e fixa os objetos, apresentando coisas em si. Dá assim concretude aos quadros, recusando, da mimeses, a mediação da linguagem, retirando o caráter ficcional da obra, criando a ilusão de estar ali, operando, com os objetos, a própria alegoria do mundo e, assim, instaurando a pátria como real. Se as telas de Eckhout eram dupla representação, objetos reproduzidos em narrativa pelo pintor e narrativa alegórica do território-colônia, os quadros do Museu Nacional eliminavam a narrativa e instauravam a alegoria material, a nação aqui e agora.

                  33.            Salta, portanto, também aos olhos a especificidade dos procedimentos escolhidos para constituir a encomenda. Ao olhar, a especificidade institucional do museu, vale refletir sobre o caráter científico da obra que aponta para uma natureza controlada, passível de repetição, de regularidade, de civilidade. Escolhendo os objetos entre as duplicatas do museu, como era procedimento corrente nas instituições de História Natural, a técnica os tornava capazes de eliminar as barreiras da unicidade do objeto de contemplação que só se dá à vista, aqui e agora, uma única vez.[15] Com efeito, a cientificidade da composição, retirando os objetos da vida e do tempo, parece apontar para formas finalmente civilizadas de estar nos trópicos.

                  34.            Se as naturezas mortas de Eckhout, contemporâneas do barroco holandês, se inseriam num gênero artístico próprio, constituindo um discurso sobre o tempo e a natureza, há que se olhar o modo como a ciência atualiza as imagens com as quais dialoga. Com efeito, se as naturezas mortas do barroco se apresentavam como metáfora do presente a passar, acionando o recorrente topos da fruta que bela por fora, não tarda a amadurar e se decompor, tempo fugidio a supor a degeneração, e, assumindo forma pictórica, supunham, contra o linear do Renascimento, um movimento também indicativo do tempo a transcorrer; os quadros compostos no Museu Nacional, apresentando os corpos de frutas e animais como natureza efetivamente morta, assumem o tempo fixado e rompem com a expectativa do devir. Ao contrário da representação do tempo passando, técnicas de taxidermia apresentavam o objeto fora do fluxo da vida, coleção de objetos retirados da natureza e que supunham um tempo universal, científico, apartado da natureza, implicando do futuro a mera descoberta de novas espécies a serem acumuladas nas coleções de objetos, cujo tempo e espaço se resumia a classificação lineana. Assim, entre os quadros coletados, o último apresentava “uma nova espécie de [pássaros] coleira cor de rosa”. Por oposição ao tempo da natureza, o tempo fixado impunha o devir da cultura, a saturar o mundo de proposições.[16] a se constituir como descoberta e a apresentar o território como acumulação de conhecimento e controle. Brasil feito nos dias;[17] rotina de tomar o território e fazê-lo conhecer por protagonistas que se dedicassem aos procedimentos padronizados dos naturalistas, capazes de fornecer, pela ciência, técnicas de tornar o mundo dos trópicos objeto inteligível e passível de exploração.

                  35.            O discurso da ciência parecia pôr em movimento e constituir um mito de origem nacional, fazendo uso das imagens de um léxico inscrito num passado remoto que ligava o discurso colonial a uma unidade pré-existente, centrada no território e na natureza.

Considerações finais

                  36.            Ao olhar a bibliografia produzida sobre a formação da ideia de nação no mundo ocidental, o conceito é sempre apresentado como tendo sido cunhado ao fim do século XIX, e associado a uma série de discursos que, junto com a célebre conferência de Renan de 1882,[18] surgiram na Europa e passaram a refletir sobre a nação como uma comunidade etnolinguística, territorialmente localizada e soberana. Mesmo que Herder e Fichte muito anteriormente tenham discutido a nacionalidade alemã, o fenômeno é no mais das vezes definido a partir de suas consequências efetivas, quando as ideias puderam efetivamente arrebanhar movimentos populares em torno da ideia de soberania. O final do século XIX teria, portanto, assistido a uma vaga de emergência de Estados nacionais, dando origem a um fenômeno absolutamente moderno e historicamente constituído.

                  37.            No entanto, ao olhar a produção do pensamento social brasileiro, no período pós-independência, o termo nação, usado em referência ao Brasil e aos demais Estados soberanos, é recorrente. Já em 1813, o Dicionário Moraes Silva trazia o verbete nação e o definia como “a gente de um país ou região que tem a língua, leis e governo à parte”.[19] A definição já delineava a ideia de nação como cultura e governo comuns a uma mesma região espacial. Assim, vale perguntar o que teria tornado possível forjar aqui tão precocemente uma comunidade imaginada própria e em que medida pôde o Museu Nacional ser, por seu turno, também agente deste movimento, fazendo coincidir os limites da ciência com os limites da política, tornando a História Natural elemento constitutivo da nacionalidade.

                  38.            Com efeito, se Jens Andermann chama a atenção para o processo de reorganização dos museus de História Natural que a partir da primeira metade do século XIX teria transformado os cabinets de curiosité em narrativas evolutivas capazes de conferir um lugar para identidades latino-americanas e dar ao Museu Nacional uma posição chave entre o mais amplo debate sobre um ‘ser nacional’ concebido como emanação de lutas e sucessões de formas no mundo natural;[20] fato é que já, em princípios do século XIX, os discursos científicos sobre a natureza pareciam servir no museu para intervir sobre o destino do país, dando a conhecer novas espécies para exploração, sendo capaz de forjar uma identidade ordenada pela imagem de natureza potência.

                  39.            Assim, vale, portanto, recorrer a Anderson, e pensar que talvez tenha havido no Brasil, assim como na América Hispânica, uma identidade embasada numa unidade administrativa territorialmente localizada e capaz de forjar uma comunidade imaginada,[21] que transforma o estigma, de tornar-se excluído de direitos pela origem espacial, em instrumentos de memória coletiva e símbolos nacionais.[22] Identidade que, localmente definida, não poderia centrar-se, senão no território/natureza, no sentimento de não pertencimento à minoria dos eleitos da metrópole.

                  40.            Criado em 1818, o Museu Real, passando, em 1824, a denominar-se Museu Imperial e Nacional, constituir-se-ia, a partir da consolidação do Império, em importante narrativa da nacionalidade. O ofício de 14 de abril de 1825, embora vestígio solitário no arquivo do Itamaraty, é, ainda assim, revelador de um conjunto de práticas institucionais que seriam recursivamente acionadas para fazer coincidir os discursos de ciência e política, fazendo do colecionamento uma narrativa da nação para dentro e para fora dos limites do território. A descrição da seleção de objetos, que obedecia à encomenda de Dom Pedro I, fazia referência, de um lado, a imagens de território que seriam correntemente operadas como narrativa nacional remetendo a uma origem comum constituída em mundo originário, território-natureza capaz de dar unidade à identidade compartilhada, e, de outro, fazia referência ao lugar da ciência como discurso passível de controle e capaz de ordenar o trópico-potência dando a ele caráter civilizado. Constituindo um mito de origem, punha-se também em movimento uma utopia, projeto que poderia deixar de ser um não-lugar, se construído pela cultura racional do dado. Tornava-se possível intervir sobre a natureza e apresentar aos outros Estados do mundo os caminhos de transformação de superação do atraso.

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[1] ARQUIVO HISTÓRICO DO ITAMARATY. Aviso de 14/04/1825 do Ministério dos Negócios do Império ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. AHI 300 02 13.

[2] POMIAN, Krzysztof. Collectors and Curiosities: Paris and Venice, 1500-1800. London: Polity Press, 1990

[3] LATOUR, Bruno. Os objetos têm história? Encontro de Pasteur com Whitehead num banho de ácido láctico. História, ciências, saúde - Manguinhos. vol. 2, no 1. Rio de Janeiro: Jun, 1995.

[4] BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.

[5] POMIAN, Krzysztof. Collectors and Curiosities: Paris and Venice, 1500-1800. London: Polity Press, 1990

[6] BACHELARD, Gaston. O Direito de sonhar. São Paulo, DIFEL, 1994.

[7] BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. In: ____. Obras Escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,  1987.

[8] SANTOS, Myriam Sepúlveda.  Museus brasileiros e política cultural. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol: 19, n.55.  São Paulo: Anpocs, 2004.

[9] KURY, Lorelai. Ciência e nação: romantismo e história natural na obra de E. J. da Silva Maia. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. Rio de Janeiro: Julho/outubro, 1998.

[10] NORA, P. Entre Histoire et Memoire. In: ____. Les lieux de memoire. Vol.1, La République. Paris: Gallimard, 1986.

[11] Decreto de Fundação do Museu Nacional de 06 de junho de 1818. Apud: Domingues

[12] ARQUIVO HISTÓRICO DO ITAMARATY. Aviso de 14/04/1825 do Ministério dos Negócios do Império ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. AHI 300 02 13.

[13] HALBWACHS, Maurice. La topographie légendaire des évangiles en terre sainte. Paris: PUF, 1971.

[14] ANDERMANN, Jens. The Optic of the State: Visuality and Power in Argentina and Brazil. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2007

[15] Benjamin, Walter  A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: ____. Obras Escolhidas.  São Paulo: Brasiliense, 1987.

[16] LATOUR, Bruno. Os objetos têm história? Encontro de Pasteur com Whitehead num banho de ácido láctico. História, ciências, saúde - Manguinhos. vol. 2, no 1. Rio de Janeiro: Jun, 1995.

[17] BOTELHO, André. O Brasil e os dias: Estado-nação, modernismo e rotina intelectual. Bauru: EDUSC, 2005.

[18] RENAN, Ernest. Qu’est-ce qu’une nation?, 1882. Conférence faite en Sorbonne, le 11 mars 1882.

[19] SILVA, António de Morais. Diccionario da lingua portugueza. 2a. edição. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813, p. 332.

[20] ANDERMANN, Jens. The Optic of the State: Visuality and Power in Argentina and Brazil. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2007. p. 24.

[21] ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2005.

[22] HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo, Centauro, 2006.