Victor Meirelles, o jovem pensionista na Itália: anotações sobre
a formação do artista no século XIX
Mara Rúbia
Sant’Anna [1]
SANT’ANNA, Mara Rúbia.
Victor Meirelles, o jovem pensionista na
Itália: anotações sobre a formação do artista no século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. XVI,
n. 2, jul.-dez. 2021. https://doi.org/10.52913/19e20.xvi2.06
* * *
1. Victor
Meirelles de Lima, o maduro professor da Academia Imperial de Belas Artes e
do Liceu de Artes e Ofícios,[2]
consagrado pela sua grande obra Primeira Missa do Brasil (1860), louvado
por sua Batalha dos Guararapes (1879) e, igualmente, por sua Moema
(1866) - entre tantas outras obras que compõem o acervo brasileiro de pintura
histórica ufanada em exposições, prédios públicos e livros didáticos -, possuiu
uma formação artística desfrutada a partir de 1847, que simboliza um ideal de
artisticidade do século XIX.[3] Tal
formação foi citada em muitos estudos que se centraram sobre esse artista, em
especial, os desenvolvidos por Ângelo Proença Rosa,[4] Jorge
Coli[5] e
Sônia Gomes Pereira.[6]
2. Neste
texto, propomos compreender a formação do pintor Victor Meirelles a partir da
coleção de trajes italianos, acervada no Museu Victor Meirelles - MVM
(Florianópolis) e Museu Nacional de Belas Artes - MNBA (Rio de Janeiro). Tal
abordagem não invalida os demais estudos já consolidados sobre professores,
escolas e estilos artísticos associados à formação de Victor Meirelles de Lima,
porém, busca revisitar as informações difundidas e trazer novas compreensões a
partir da própria obra tomada como ponto de reflexão.
3. As
pranchas catalogadas como “estudos de trajes italianos” foram produzidas por
Meirelles, provavelmente, entre 1853 e 1856 na Itália. O corpus da pesquisa se
compôs de 104 pranchas.[7]
Diante desta coleção se observa figuras femininas e masculinas pintadas com
cuidado e com minuciosa atenção aos trajes.[8] Na
maioria são aquarelas, feitas sobre papel, em torno de 20 x 30 cm de extensão.
Predominam as figuras femininas, muitas frontais, outras de lado, sentadas ou
de pé que, supostamente, representam um tipo humano próprio da península
itálica [Figura 1
e Figura 2].
4. Ao
observar tais imagens não há um estranhamento, mas uma identificação rápida e
fácil dos gêneros humanos e de traços e volumes que representam trajes e
adereços localizados temporalmente no século XIX ocidental. Esta familiaridade,
por um lado, e a busca de compreender a formação usufruída, por outro,
encaminhou a pesquisa a partir de uma premissa conceitual: a condição da
própria imagem como documento, percurso e indício. Para abordar a imagem nesta
premissa é preciso acionar cada prancha como agente dos sentidos que “emanam,”
pensar que ao serem produzidas foram carregadas de outros olhares e desejos,
dialogando com outras imagens e outros textos. São pranchas “brasas,” contidas
de pathosformel,[9]
produzidas mediante intericonicidades e intertextualidades[10]
próprias de uma formação e época, contendo traços entre o ver e o visto de
outra hora, mas que se tornam perceptíveis neste momento pelas possibilidades
do ver aqui e agora.[11]
5. O
tempo vivido por Victor debruçado nestes papeis, apoiando seu pincel,
escolhendo suas cores, definindo seus traços, sobrevive e mantém-se latente
como ponte entre um antes dele e um muito depois dele. Neste prazo de
sobrevida, cada obra é vislumbrada por pesquisadores que sopram, de tempo em
tempo, essas brasas e as deslocam e realocam em importância e visibilidade, em
sentidos e possibilidades de uso às narrativas que entrelaçam tempos e, também,
talentos. Logo, se propõe como objetivo discutir a formação artística usufruída
no século XIX colocando a composição das pranchas produzidas por Meirelles, que
compõem a coleção “estudos de trajes italianos,” como parâmetro de análise das
informações já recolhidas sobre o pintor e sua formação acadêmica. O objetivo
implica numa proposição teórico-metodológica que não busca revisar informações
sobre o ensino formal oferecido, mas atentar para os meandros sensíveis do
artista que se expressam na poética compositiva.
6. Portanto,
ouço soprar as cinzas[12] e
reacender as brasas, não para elas se tornarem chama outra vez, mas para dar
combustão a outras narrativas sobre estes tempos que se entrecruzam e fomentam
novos agenciamentos do ver e do narrar sobre o século XIX, os artistas e,
sobretudo, ele, Victor Meirelles.
7. Neste
intuito, o artigo se organiza em sua argumentação nas seguintes partes, após
situar a abordagem do tema: (a) a estrutura das academias e a exigência do
aprendizado do panejamento e da representação dos costumes nesta formação, o
que deveria se refletir nestes estudos de trajes analisados; (b) em seguida,
trata-se das vertentes artísticas da época e os debates em torno delas,
contrapondo suas proposições à produção estilística de Meirelles observada nas
pranchas; confrontam-se neste aspecto o romantismo, o grupo dos nazarenos e dos
puristas, a importância das paisagens e dos tipos humanos; (c) Ao final,
salienta-se como o estudo das pranchas traz novas questões para pensar o
próprio percurso de formação de Victor Meirelles e quão importante são essas
obras para refletir a respeito da poética do artista.
O
domínio do desenho
8. As
pranchas em estudo aparecem pouco em textos dedicados ao pintor Victor
Meirelles. Inversamente, em abundância são usadas nas ilustrações dos catálogos
e livros dedicados ao artista. Quando assim ocorre, as ilustrações se conectam
na intertextualidade dos artigos com as considerações sobre a sua formação na
Itália como pensionista da Academia Imperial de Belas Artes e sobre a
importância do desenho na formação do artista.
9. Ângelo
Proença Rosa e Elza Peixoto afirmam, no clássico texto “Biografia,” algumas
páginas antes de figurarem dois exemplares de trajes italianos em reprodução
colorida: “[...] da Academia de São Lucas, onde muito aproveitou no estudo do
modelo vivo e de costumes [...].”[13]
10. Mônica
Xéxeo, por sua vez, afirma: “Os ensinamentos recebidos de seus mestres
italianos e franceses foram fundamentais para a sua formação artística e o
influenciaram por toda a vida.” Mais à frente, discutindo sobre os esboços para
a grande obra Batalha dos Guararapes, reafirma: “Victor Meirelles era um
cultor do desenho, da forma. Para ele, o desenho era a base, a forma primeira
de expressão” (XÉXEO, 2009, p. 70).
11. No
mesmo livro, Sônia Pereira Gomes, analisando a formação usufruída por Meirelles
retoma suas considerações sobre a centralidade do desenho na formação de todo
artista do período:
12.
Primeiro, o ensino do desenho, começando
pelas cópias de estampas; depois moldagens em gesso; e, finalmente, o desenho
de modelo vivo. Só depois do domínio do desenho, o aluno poderia passar para a
pintura, iniciando pela figura humana isolada, para, em seguida, enfrentar
composições com várias figuras e detalhamento do ambiente cenográfico.[14]
13. Um dos
poucos textos dedicados a considerar as produções de “estudos de trajes
italianos” foi redigido por Jorge Coli para o catálogo da Exposição “Vitor
Meirelles - um artista do Império,” realizada em 2004 no Museu Oscar Niemayer,
em Curitiba. Dois anos após, o Museu Victor Meirelles organizou uma
exposição exclusiva com as obras da coleção “estudos de trajes italianos,” com
o catálogo assinado por Charles Narloch, Raul Antelo e Fernando Lindote. Estes
três autores associam as pranchas ao realismo encontrado por Meirelles na
Europa e dão a elas um “caráter antropológico”[15] ou,
ainda, provas da genialidade de Meirelles por “seu não pertencimento a si e a
sua época, ao nos mostrar imagens que têm e não têm a cara dele, que são sua
glória e sua ruína ao mesmo tempo;”[16] por último, Lindote[17]
articula a produção pictórica de trajes ao mercado de moda e de arte,
concluindo seu texto com as seguintes palavras:
14.
Os estudos de trajes italianos de Victor
Meirelles parecem trazer escondidos sob as dobras de sua roupagem, questões que
vão além das determinações de seu tempo e lugar. Aparentemente mergulhado nos
problemas da linguagem gráfica e pictórica, Victor Meirelles talvez tenha
vislumbrado, entre seus devaneios, alguns dos liames que seriam estabelecidos
ao longo do tempo entre arte, moda e mercado.
15. Coli,
por se dedicar à análise da poética constituída nestes anos iniciais de
formação em Roma, não sugere condições excepcionais e a-históricas para
Meirelles, mas o considera, igualmente genial na solução manifestada das
influências puristas nas pranchas compostas:
16.
Meireles, seja por seu gênio próprio, seja
por influxo da tradição purista, ou melhor, certamente pela conjugação dessas
duas determinantes, produz em Roma admiráveis imagens que partem de uma cuidada
observação, mas que se resolvem, estritas, concentradas, despojadas, com
escolhas plásticas e cromáticas incisivas e simplificadas, numa concepção
sintética que as fixa, em maneira grave, icônica. Foi banida a citação
circunstancial e divertida que o pitoresco pode trazer. Ele transforma tudo
pela linha cuidados e abstrata, aprendida teórica e praticamente com os
puristas.[18]
17. Ladeando
o texto, encontra o desenho em grafite do pescador sentado (MNBA, 7964)[19] e,
nas páginas seguintes, em grande formato e colorido, duas outras aquarelas da
mesma coleção (MNBA 1620 e 1576).
18. Assim,
as primeiras referências acima indicam o desenho como uma marca da formação e,
também, da especialidade de Victor Meirelles mesmo sem tomar os estudos de
trajes como fundamento argumentativo. Enquanto, por outra entrada, os poucos
textos que tomam as pranchas em estudo como temática central não se estendem em
demasia sobre o percurso formativo do desenho na formação do artista do século
XIX. Nem, em qualquer um deles, os estudos de panejamento foram considerados
como algo próprio daquela formação.
19. Conjugando
especialmente os argumentos de Jorge Coli e Mônica Xéxeo, avança-se enfatizando
a presença do desenho na formação acadêmica do artista desde os seus primórdios
e o lugar do panejamento nesta questão.
20. A criação
de academias de arte é algo moderno, nascido após o humanismo europeu e a
separação da arte do universo da produção artesanal. A mais antiga que se tem
notícia é a de Marsílio Ficino (1433-1499), criada em Florença em 1460,
intitulada, mais tarde de Academia Platônica.[20]
Todavia, a denominação de academia de arte é mais bem apadrinhada pela instituição
criada por Vasari (1511-1574) em 1563, já no século XVI. Nesta se encontravam
aprendizes do desenho, cujo domínio era entendido como meio de uma formação
artística a ser conquistada no decorrer dos anos, pelo exercício da cópia e a
obediência às diretrizes técnicas. Por isto, quando a teorização sobre o
desenho foi estabelecida fala-se num aprendizado e num propósito acadêmico de
formação de artistas. Tais teorias da representação nasceram com os grandes
artistas do Renascimento e formularam, cognitivamente, uma estratégia que
distanciou o artesão do artista. Na medida em que o desenho se complexou e foi
firmado em teoremas e concepções de ótica, perspectiva e proporção, passando
pelo entendimento da anatomia e da cinética, ele ganhou status de expressão
artística autônoma e exigiu um aprendizado formalizado em academias.[21]
21. Nesse
processo o desenho era a base e o ápice de toda uma formação. Inspirados nas
recomendações de Leonardo da Vinci (1452-1519), cujo Tratado da Pintura
data de 1490-1517,[22] o
ensino começava com a perspectiva, a teoria e prática da proporção, para ser em
seguida praticado na execução de cópias dos grandes artistas e na observação da
natureza, só depois chegando o momento da concepção e criação. A cor,
consequente do domínio da pintura, era uma fase final e de consagração do
aprendiz, a partir de então, admitido como artista. Leon Battista Alberti
(1404-1472), nos tratados destinados à pintura, assevera que ela se trata de
uma ciência, firmada na ótica e capaz de produzir a ilusão de realidade que
todo artista deveria alcançar.[23] Nas
instituições acadêmicas, uma parte importante era a livraria ou
biblioteca, na qual se encontravam repositório de desenhos, modelos de
estátuas, plantas de edifícios, instrumentos e tratados que servissem à
aprendizagem dos jovens. A representação de corpos vestidos fazia parte deste
aprendizado e consistia no domínio do panejamento.
22. Quando
em 1853 Victor Meirelles partiu em direção à Roma, ele encontrou muito deste
modelo ainda em vigor, apesar dos séculos transcorridos. Segundo Ângelo Proença
Rosa,[24] como
citado acima, o jovem brasileiro participou da Academia de São Lucas. Nela as
práticas do ensino firmaram-se no desenho, no estudo teórico e exercício
prático, com uma importante diferença daquilo que Da Vinci e Federico Zuccari
(1539-1609) haviam proposto desde os primórdios: ao invés de cópias diretas do
natural, de humanos, paisagens ou objetos, o que prevaleceu foi cópia de
desenhos e estampas e, um pouco mais avançada, a cópia de modelos em gesso. O
exercício de modelo vivo foi se firmar mais tarde e correspondia a um momento
mais avançado da formação.
23. Além
disso, Zuccari definiu um sistema de emulação entre os estudantes,
estabelecendo prêmios para diversas categorias. A partir de 1702, na Academia
de São Lucas surgiu, “Clementine,” nome derivado de seu patrocinador o Papa
Clemente XI, a mais importante das competições acadêmicas. Todos os anos,
prêmios eram atribuídos a pintores, escultores e arquitetos, além de medalhas,
durante cerimônias solenes no Capitólio romano, na presença do Pontífice.[25] Poucas
décadas antes da chegada de Meirelles à Roma, essas cerimônias perderam o
prestígio e, a partir de 1844, passaram a ser realizadas nas salas acadêmicas
ou no prédio da academia. A competição “Clementine” ocorreu até 1869.
Outra importante mudança que Victor encontrou foi a instalação definitiva da
academia num edifício próprio, construído por Pietro Camporese na Via Ripetta,
em 1845.[26]
24. Portanto,
o ensino artístico encontrado pelo jovem catarinense em Roma encontrava-se numa
fase de renovação, em suas relações com o Pontífice, com o prestígio dos
concursos e com sua estrutura física. Todavia, a centralidade da formação no
domínio do desenho ainda permanecia mesmo em tempos de tantos risorgimentos.[27]
Segundo pesquisa de Jorge Coli (2004), junto à Academia de São Lucas Meirelles
nunca constou como aluno inscrito. Frequentou apenas o ateliê privado de Nicola
Consoni (1814-1884), seguidor de Tommaso Minardi (1787-1871), durante os anos
em Roma. Todavia, Consoni foi aluno, professor e diretor da Academia de São
Lucas,[28] o que
leva a admitir que em seu ateliê fosse adotado o mesmo modelo de ensino da
instituição.
25. Antes
de desfrutar do modelo acadêmico em Roma, Meirelles foi preparado na Academia
Imperial no Rio de Janeiro, fundada nos moldes da Academia francesa, que por
sua vez descendeu do modelo italiano defendido por Charles Lebrun (1619-1690) e
pelo Cardeal Mazzarino (1602-1661), e instalada no reinado de Luís XIV
(1638-1715).[29]
26. Félix-Emile
Taunay (1795-1881), descendente de um dos artistas que fundaram a academia
de belas artes no Brasil, era o diretor da academia brasileira quando o jovem
catarinense Meirelles se tornou aluno da instituição, em meados de 1847. A
Academia de Belas Artes brasileira, apesar de ser muito mais recente que as
italianas ou francesas, seguia a mesma tradição formativa e trazia em sua
estrutura essa tradição longamente cultivada.
27. Por
dois anos Meirelles esteve matriculado na Classe de Desenho, ministradas por Manoel Joaquim de Melo Corte Real (1810-1848) e Joaquim Inácio da Costa Miranda (1818-1878). Comprovando
sua agilidade no manejo do desenho, a partir de 1849 até 1852 frequentou as
Classes de Pintura Histórica, tendo como professores José Correia de Lima (1814-1857) e Manuel de
Araújo Porto-Alegre (1806-1879), este um dos discípulos de Jean-Baptiste
Debret (1768-1848).[30]
28. Mesmo
sem constar nos registros dos programas de ensino uma atenção particular para o
aprendizado do panejamento e da representação de trajes tanto no Brasil como na
Europa, o jovem Victor Meirelles pode observar em seus mestres acadêmicos e nas
grandes obras da história da pintura europeia, a quem deveria render devoção,
um tipo de exercício obrigatório: a representação dos trajes, com suas
peculiaridades e tradições.
29. Tal
formação centrada no desenho, mesmo quando ganhou o Prêmio de Roma em 1852, não
foi rompida. Ao contrário, como todas as academias existentes no século XIX se
mantiveram depositárias do modelo nascido nos primórdios dos quinhentos,
Meirelles encontrou em Roma ou em Paris as mesmas diretrizes como parâmetros da
sua condição de artista, ou seja, a destreza do desenho.
30. Portanto,
mesmo no século XIX, o lugar privilegiado do desenho é mantido e indica a
formação centrada num estilo clássico, no qual o domínio da técnica consistia
num regime escópico renascentista (JAY, 1993), em que a perspectiva e a
representação deviam corresponder ao natural do corpo humano ou da natureza, a
partir de um ponto pré-determinado e fixo.
31. Essa
concepção se mantinha viva mesmo após tantos séculos e reformas existentes nas
academias de arte, porque quem se consagrava nelas eram aqueles que não ousavam
contestar os modelos provindos da tradição, dos grandes Mestres e, assim,
continuavam a reproduzir tais ideais, como é o caso do referido Minardi, que
exacerbou essa obediência.[31]
32. Numa
publicação rara, intitulada Dalla qualità essenziale della pittura italiana
dal Rinascimento al tempo del discorso perfetto,[32]
Minardi defende que é preciso ser atento à natureza e justifica a
espontaneidade da produção do desenho como um processo gradativo de
amadurecimento da capacidade de geometrizar o natural, o que é observável.
Minardi cita como exemplo um vaso etrusco e a representação da figura humana
ali presente e, principalmente, exalta a obra de Giotto. Dentre o domínio que
caracterizaria a verdadeira arte diz Minardi:
33.
Assim, desde o início, a arte da pintura
foi ressuscitada, maravilhosamente estabelecida pelos grandes princípios
fundamentais e reguladores da própria arte: a criação e a composição do assunto[33] mais interessante do
coração humano, a expressão mais vívida e conveniente, os personagens e os
costumes os mais verdadeiros e justos, em tudo simples e único; por conseguinte,
tudo moderado pela economia do mais belo, proporcional ao lugar, ao tempo e ao
assunto mesmo.[34] (grifos nossos).
34. O
traje serve, como defendeu Minardi, em sua representação minuciosa e atenta,
para caracterizar o personagem e alcançar a expressão ideal do belo. Numa verve
de exaltação dos grandes mestres como Da Vinci e Raphael de Sanzio (1483-1520),
Minardi defende o ideal de uma arte capaz de elevar o homem (p. 16 e 17) e se
cumplicia com os propósitos românticos da arte e do artista, sob a defesa de um
purismo que se discutirá mais adiante.
35. Como
primeiro professor de Meirelles em Roma e de Consoni, que o orientou na
continuidade de sua estada, essas concepções de Minardi são caminhos de
reflexões a respeito da produção das pranchas do jovem pensionista.
36. Outro
aspecto relevante é a exigência do aprendizado do panejamento, que, nos tempos
contemporâneos, quando as fronteiras do desenho e da pintura tendem a se
fundir, como diz Nathan Goldestein,[35] e as
formas se constituem em grandes massas sobre as quais os conceitos e valores se
exprimem subjetivamente, o panejamento não tem mais a mesma valorização e nem
as mesmas exigências do tempo de Victor Meirelles. O panejamento é o
substantivo que designa o vestuário das figuras desenhadas, pintadas ou
esculpidas. Mas é, também, a forma pela qual o artista representa as roupas das
figuras, obtendo efeitos plásticos de suas cores e texturas, de seu pregueado,
caimento entre outros, conforme a postura da figura e, mesmo, a densidade do
tecido ou aviamento representado. Tecnicamente, o trabalho artístico do desenho
consiste na representação dos trajes por meio de meticuloso trabalho de
tracejar simples ou cruzado, cujo resultado de sombra e luz dará a amplitude do
volume e as condições de movimento e textura dos têxteis. Como afirma Patrick
Le Chanu: “A representação do drapeado não é uma proeza, mas um exercício
plástico.”[36]
37. Da
Vinci reprovava o uso de manequins em madeira por não expressar o verdadeiro
efeito do tecido sobre o corpo, e foi com Antoine Watteau (1684-1721), com suas
damas sentadas, que o panejamento expressou ricamente o domínio da técnica,
obtida pelo estudo cuidadoso e preliminar da observação do tecido verdadeiro
sob determinadas condições de luz, de movimento e apresentação. Conforme Le
Chanu: “Os artistas dos séculos XIX e XX não esqueceram um dos exercícios mais
antigos, esse do drapeado excepcional, prova de destreza na representação dos
volumes, sombras e cores tal como elas são.”[37] Logo,
seja no Brasil ainda, ou na Europa depois, Meirelles teve o dever de dominar a
expressão do tecido, envolvido num corpo, especialmente após o parecer de
Porto-Alegre[38] a
respeito do envio do primeiro trabalho em Roma - Degolação de São João
Batista (1855)[39] -, no
qual é questionado: “que sombra é essa, do braço de Salomé, que segue seu
próprio caminho linear, invés de se conformar com o relevo das dobras do tecido
sobre o qual se projeta?” Entre outros “erros,” como o relacionado à anatomia
dos corpos representados, Porto-Alegre destacou o detalhe da sombra sobre a
túnica da personagem, alertando o jovem pensionista para o exercício do
panejamento.
38. Portanto,
a formação oferecida pelas academias europeias e a brasileira, cuja inspiração
vinha do Renascimento e de uma visão tratadística do aprendizado da arte,
contextualizam a produção de tantas pranchas que o jovem pensionista realizou
no espaço de três anos na Itália. Talvez, por não ter a dimensão precisa
desta coleção, outros pesquisadores de Meirelles não deram grande atenção a ela
enquanto discutiam a “maestria” do desenho detida pelo pintor ou, mesmo, não
consideram naquelas texturas pictóricas assinalado o quanto os preceitos
puristas influenciaram o jovem catarinense.
39. Segundo
Monica Xéxeo, apenas no Museu Nacional de Belas Artes há mais de setecentos
desenhos de Meirelles que perpassam seu período como pensionista, professor e
artista consagrado. Estes desenhos, tão numerosos e muitos de uma intensidade
ímpar, caracterizam um artista que tinha no seu processo criativo a presença
indispensável do desenho, talvez como uma ponte fundamental entre o desejo e a
realização. Nos termos de Xexeo “Para Vitor Meirelles o desenho é essencial e
permanente forma de expressão. Muitos dos seus desenhos, por seu refinamento,
podem ser considerados obras autônomas, sem caráter auxiliar.”[40]
Do
desenho a busca do traço subjetivo
40. O desenho
como aspecto central na formação do artista, especialmente nesta formação
herdada do modelo clássico, é uma noção consolidada nos estudos relacionados.
Porém o que caracteriza o desenho de Meirelles - como sintetizou Coli (2004,
p.24), “a linha tendia para uma extraordinária leveza, para uma abstração
ideal” - vai além da formalidade da aprendizagem do desenho na formação em
discussão.
41. A
“abstração ideal” indicada por Coli, possivelmente, levou Antelo e Narloch a
conduzir suas considerações sobre as pranchas com trajes italianos para um
campo inusitado de interpretação, quase de caráter surreal ou de puro
diletantismo.
42. Sem
considerar a possibilidade de uma influência do movimento artístico realista,
cogita-se pensar a dimensão do romantismo nesta questão. Como diz J. Guinsburg,
tudo que foi criado nos últimos séculos deve em alguma instância algo ao
romantismo, tido como “espírito mágico, que, buscando as esferas mais profundas
do homem, reptou o consagrado, o estabelecido, o modelado, efetuando uma revolução
fundamental na conceituação e na realização de todas as artes [...].”[41]
43. Dentre
os muitos artistas filiados na história da arte ao romantismo e que possuíram
alguma aproximação com a trajetória de Meirelles, identifica-se, no cenário
francês, Horace Vernet (1789-1863), Paul Delaroche (1797-1856) e Léon Cogniet
(1794-1880). Os três produziram com os ímpetos do romantismo sob as normas
estéticas do classicismo em muitos aspectos. Vernet realizou grandes pinturas
históricas, tal como Victor fará para a sua consagração, enquanto Delaroche era
um modelo a ser seguido na opinião de Porto-Alegre, e Cogniet foi o responsável
por sua orientação em Paris. Do outro lado da Mancha, J. M. W. Turner
(1775-1851) e John Constable (1776-1837), junto com Camille Corot em solo
francês, se consagraram com a intensidade de suas paisagens e emoções deste
efeito do sublime sob o humano,[42] algo
que repercute na obra de Meirelles quando as brumas e fumaças se elevam em meio
às batalhas representadas.
44. Como
insiste Guinsburg, o romantismo não se resume ao movimento artístico a que
estes e outros pintores se filiaram no século XIX. Ele se constitui num fato
histórico que marcou a expansão da consciência histórica, fundamental diante
das ideologias nacionalistas em pleno vigor naquele mesmo século, conjugando-se
com as diferentes revoluções e disputas por direitos civis, ideais de liberdade
e governo. Em meio aos cenários revolucionários e de radicais mudanças
econômicas e sociais, com o avanço da industrialização e do comércio voltado
para as grandes massas, surgiu a figura do ser humano com uma personalidade
psicológica, única, individual e exclusiva que, quando investido de uma missão
e sensibilidade aguçada, constituía-se na figura do herói, às vezes anônimo,
mas sempre trágico e sofrido.
45. Mais
que uma temática ou estilo, o que se impõe com o romantismo é outro regime
escópico, no qual as normas estabelecidas nos tratados de perspectiva e
anatomia são barateadas em favor de um não visível,[43] que
corresponderia ao que é percebido pela alma e não mais pela vista.
Desestabilizando a forma em sua estrutura matemática e racional, os valores
estéticos inaugurados com o romantismo permitem uma apreensão do sensível.
Dessa forma, os “valores tácteis” de David e Ingres são transformados segundo
Robert Jay, numa “visão ótica” expressa em contornos evanescentes e efeitos
espaciais do tempo e do clima, mediando apreensões do humano e de seus
sentimentos.
46. Como
Hugh Honour esclarece,[44] o
romantismo é um conjunto de conceitos, de temas fundamentais como a vida
artística, a busca incessante da liberdade, de um ideal, de algo não palpável
como o passado, a história e as nações e, inclusive, de um não tempo e espaço,
que são tão bem expressos nas paisagens. A própria origem do romantismo alemão
se dá por uma ânsia de viajar, de se deslocar, uma imersão no mar e no encontro
de si, que o próprio isolamento da viagem produz. Segundo Isabelle Julia, “com
o romantismo começa o tempo do mundo finito, mas também esse do espaço
explorado.”[45]
Submerso numa ideia de progresso e conquista mundial devido ao capitalismo e
sua expansão industrial, o século XIX institui a ideia da viagem e descoberta
de novas paisagens como uma aventura, nada perigosa ou restritiva, mas
necessária e culturalmente enriquecedora. Contudo, não de um enriquecimento
restrito à cultura erudita e consagrada de lugares santos ou grandiosas obras,
mas de um preenchimento existencial que, supostamente, se daria no entendimento
e conhecimento de outros lugares e gentes. Para a formação do artista, tais
viagens se constituíram num verdadeiro rito: “Expressão de uma alegria de viver
e de uma curiosidade sem limites, o ‘Grand Tour’, périplo na Europa em que a
Itália é a etapa culminante e a gloriosa Roma o objetivo último da peregrinação
iniciática, se impõe como maneira de formação.”[46]
Victor Meirelles foi abarcado neste espírito. Aos 15 anos viaja para o Rio de
Janeiro, aos 20 chega à Europa, aos 24 está em Paris, aos 29 anos havia
concebido a Primeira Missa e retorna ao Brasil com a certeza de sua
consagração. Diante dessa circulação, o olhar muda e com ele a forma de ver o
universo, descortinando, além dos fatos, as emoções que as descobertas
ensejaram. Toda a experiência é fator multiplicador de emoções, fontes de
encantamento e de prazer, numa concepção artística romântica do período.
47. É sob
este propósito de formação que os prêmios das academias consistiam em viagens.
A Academia de Belas Artes de Paris tinha em Roma a sua sede na Villa Médicis
desde 1803, aberta aos eleitos pelo Grand Prix de Rome. Neste local, tanto
os premiados como outros artistas franceses que se auto custeavam, iam passar
meses e até anos. Os diretores supervisionavam o aprendizado e organizavam
passeios pelo mundo rural e, especialmente, para Nápoles, onde “eles são
seduzidos pela natureza e pelo povo simples italianos, cuja alegria e traje em
cores vivas e intensas os surpreendem.”[47]
Enfim, a vida e povo mediterrâneo pareciam, aos conceitos artísticos daquele
momento, mais apropriados para se aproximar da história antiga e de uma
supostamente mais intacta origem humana. Marie-France Cussinet, ao estudar
sobre a boemia do século XIX, destaca: “O tema [das viagens] retorna com força
no século XIX, trazido pelo gosto do deslocamento. E se os artistas sempre viajaram,
eles o fazem a partir de então com frenesi.”[48]
48. Um
texto de 1800, Éléments de perspective pratique à l’usage des
artistes ..., recomenda em diversas partes que o artista realize viagens,
observe atentamente todos os objetos, tipos humanos, cores e formas; se caso o
aprendiz não dispusesse de recursos para fazer viagens mais longas, que então
viajasse ao interior do pais onde encontraria “lugares verdadeiramente
interessantes e quase tudo que a natureza pode espargir de grande e de
vantajoso e de imponente em seu conjunto, de rico, de amável e de delicioso em
todos os seus detalhes.”[49] Ou
seja, viajar era preciso também para artista do século XIX e, nesse percurso, o
registrar de cores, de formas e dos tipos encontrados garantiria um
aprendizado, considerado indispensável mais à sensibilidade do que ao domínio
técnico. A paisagem é, enfim, meio e fim de uma conceituação de arte própria
aos românticos.
49. Compreender
a paisagem na produção da sensibilidade romântica leva ao começo do movimento
em fins do século XVIII. No contexto europeu da época, escritores e poetas se
abrem para o mundo físico: a natureza, suas cores, seus sons, luzes e
“mensagens;”[50]
posteriormente, os pintores descobrem os mesmos encantos e são atraídos para as
regiões remotas ou mesmo outros cantos da cidade e da história, onde buscam a
revivescência de outras épocas e lendas, misturando razão e utopias, o sagrado
e o profano, entre mistérios e segredos e, assim, se apegam às concepções
encharcadas de sentimento e anedotário pitoresco, próprios do estilo troubadour.[51] Essa
variante do romantismo, mais voltada à Idade Média, encontrou suas vertentes na
Lukasbrüder ou Confraria de São Lucas, cujos membros foram apelidados em
Roma de nazarenos; nos puristas surgidos na Itália sob a inspiração destes
primeiros e, ainda, na Inglaterra num agrupamento denominado Pre-Raphaelite
Brotherhood (P.R.B), fundado em 1848.[52]
50. Para
além dos que cultivaram o medievalismo como fonte primordial de inspiração,
como no caso de Alexandre-Évarites Fragonard (1780-1850) na França, os
nazarenos reunidos no Convento de Santo Isidoro em Roma, provindos das regiões
a leste do Reno, deram, a partir de 1810, um novo impulso às ideias de Wilhelm
H. Wackenroder (1773-1798) e Novalis (1772-1801), buscando muita inspiração em
Albrecht Dürer (1471-1528)[53] e na
pintura italiana do século XIII ao XV, como Cimabue (1240 -1302) e Raphael
(1483-1520). Com esse repertório e imbuídos da missão de reabilitar a arte pela
religião e, conjuntamente, as tradições germânicas, os nazarenos valorizaram o
desenho e contribuíram para a “riqueza imagística do pathos romântico
alemão.”[54]
Segundo os escritos deixados por J. F. Overbeck (1789-1869), era preciso dar
novamente à arte “o coração, a alma e o sentimento,”[55]
devolvendo-lhe a verdade religiosa, nacional e popular como havia sido na Idade
Média. O cristianismo tinha, segundo os nazarenos, pervertido os trajes e a
arte, durante o seu desenvolvimento, de uma "sujeira" pictórica,
contra a qual caberia fazer a reparação, voltando às formas mais limpas, como
as observadas na maioria das aquarelas de Meirelles aqui em estudo. O movimento
dos nazarenos se desdobrou para um agrupamento chamado Puristas, cuja
denominação já indica a preocupação com temas simples, apresentados “com
limpeza extrema, com formas cromáticas concisas e brilhantes,”[56]
conforme Barilli.[57]
51. Na
liderança dos puristas italianos encontra-se, nada menos que Tommaso Minardi já
apresentando acima. As contribuições estritamente pictóricas de Minardi foram
sempre mantidas em busca do reducionismo, em uma chave "menor,"
negando as realizações de grande formato e realmente confiadas à pintura,
segundo Barilli. Ele era um excelente desenhista, também usando
inteligentemente os recursos de tinta e realce adequado com pastéis e gizes. Os
temas que ele tratou estão localizados ao longo da trajetória da antiguidade
greco-romana, bem ao gosto do temário de trovadores e nazarenos, mas sob os
ímpetos de um nato italiano. Também abordou as histórias de santos e temas
religiosos em pequenos formatos,
52.
[...] confirmando as melhores prerrogativas
estilísticas: torcendo as figuras, tratando-as de maneiras regressivas, quase
infantis, como se fosse hora de encontrar algum tipo de teatro folclórico de marionetes:
simplicidade, pureza do coração, retorno aos valores primários, quase como um
humilde copista das graças que consta na Madonna do século XV.[58]
53. Em
1843, Minardi, Pietro Tenerani e Overbeck assinam juntos o manifesto Del
purismo nelle arti, publicado por Antonio Bianchini, que consistia numa
defesa diante das acusações dos “outros” liderados por Francesco Hayez, que
criticavam o estilo purista. Apesar do embate de concepções artísticas, o
purismo teve uma longa posteridade na arte italiana, especialmente na Toscana,
com Luigi Mussini (1813-88), nascido na Alemanha de pais italianos. Mussini
estudou na Academia de Belas Artes de Florença e, em 1840, realizou um
pensionato em Roma. Oito anos mais tarde viveu em Paris e se aproximou de
Ingres, entre outros. Ao retornar, mudou-se para a Toscana, trabalhou em Siena,
onde fundou uma escola de artes e nesta criou um centro purista que, apesar de
todas as mudanças vividas, resistiu até ao simbolismo fin-de-siècle. O
naturalismo de Ingres, portanto, manteve atualizado o convite de uma arte mais
“pura” que os nazarenos do começo do século XIX haviam sugerido.
54. O
romantismo italiano traz, portanto, a marca indiscutível do purismo, de um
desejo de fidelidade aos primeiros tempos do Renascimento, uma adoração à
Raphael que, por sua vez, contemplou o surgimento das tratadísticas de arte e
da própria tradição acadêmica. Em busca deste tempo áureo, como na Inglaterra
dos pré-rafaelitas, há uma contestação à vida industrializada, ao pragmatismo
dos tempos urbanos e uma atitude pessimista que nega o presente para lançar uma
evocação espiritual do passado. Concebem, assim, com simplicidade e contenção,
a figura humana e sua ambiência, dando ao traço uma função central em cenários
cujos detalhes compõem narrativas.
55. Neste
mix de avanços tecnológicos, revoluções e heróis, no qual um novo regime
escópico se constituía, não apenas as paisagens com seus encantos e seus nadas
- como dizia Corot, “tu não pões nada e está lá tudo”[59] -
ganharam voz, assim como a gente simples e os costumes típicos regionais. Logo,
nada mais consequente que um jovem como Meirelles se dedicar à execução de
pranchas para registrar os costumes vestimentares de uma sociedade que ele
observava sob um prisma romântico.
56. Isso
se encontra bem exemplificado na prancha da Figura 3. Se as duas
figuras femininas são anônimas em suas fisionomias e expressões, os trajes que
portam narram uma origem geográfica e uma marca temporal. Os volumes, a
composição e as poses das figuras indicam um tempo de reclusão, de conversa e
confissão - talvez - mas, sobretudo, um ritmo, aquele próprio de uma região
distante da cidade, dos modismos e das mudanças bruscas. São apenas “mulheres”
investidas de seus trajes próprios e, consequentemente, segundo a concepção
estética vigente, mais puras porque simples. Nem bíblicas ou públicas, apenas
“mulheres” de uma vila qualquer do interior italiano. Essa é uma narrativa e,
como nos ensina Sônia Gomes Pereira: “Para compreender a insistência do ensino
acadêmico no domínio técnico da representação da figura humana, é preciso
lembrar que toda a tradição da pintura ocidental, desde o Renascimento, está
ligada à função narrativa.”[60] Por
isso, a singeleza de uma prancha aquarelada com duas figuras femininas não
perde em narratividade visual.
57. Segundo
Louis Hourticq, Delacroix, potencializou a cor incorporando-a de sentimento e
liberou o traço para além das normas, dando-lhe força impulsiva, enquanto
Ingres, voltado para o natural entendido como o essencial, colocou sua
imaginação a serviço da realidade, permitindo que ao mesmo tempo se observasse
“uma simples boca entreaberta e se admirasse uma ingenuidade pensativa,” de
modo que, “com sua linha abstrata e apesar de sua arte totalmente imaterial,
[Ingres] incorporou em suas belas curvas até mesmo o calor da carne.”[61]
58. Como
Hourticq ao se referir aos efeitos estésicos dos artistas românticos
consagrados, Jorge Coli, escrevendo sobre Meirelles em Roma, enfatizou o vínculo
do artista ao purismo e registrou: “a pintura linear dos nazarenos e puristas
não desdenhava, de modo nenhum, a paisagem.” Neste mesmo sentido, Coli
completa: “Por Minardi, e pelo estímulo oferecido pelo ambiente romano,
Meirelles chegou à soberba maestria da fusão das cores na espessura do ar.”[62]
59. Percorrendo
a formação realizada em Paris, Coli considera a influência sobremaneira de
Andrea Gastaldi (1826-1889), no estilo de Meirelles que superou o empenho
narrativo e rigoroso de Cogniet. Mônica Xéxeo compartilha da visão de Coli
sobre a importância da formação auferida por Meirelles entre 1853 e 1861. Ela
diz que “seu aperfeiçoamento europeu o marcou profundamente [...] foram
fundamentais para a sua formação artística e o influenciaram por toda a vida”[63] e
segue, em seu texto de 2004, tratando das grandes obras do artista.
60. Contudo,
Coli ou Xéxeo não chegaram as suas conclusões remontando às pranchas da coleção
de trajes italianos e sim considerando as obras consagradas. Todavia, é mais
evidente na argumentação de Coli em que consistiu o purismo e como ele se
manifestou na produção de Meirelles, mesmo após o pensionato:
61.
É o ambiente romano que contribui para
enfraquecer a materialidade das linhas, para a simplificar os volumes, para
definir a nitidez das superfícies, para submeter o traço à regência das formas
abstratas, para tornar discreto o colorido sensível, sem violências, de sua
pintura.[64]
62. Assim,
Coli conduz seu leitor a compreender a extraordinária leveza da linha que marca
a produção de Meirelles, o que torna impalpável os limites da forma. Tal
maestria diz respeito ao exaustivo exercício decorrido na execução das pranchas
coloridas observadas, nas quais a leveza do traço e a singeleza da gradação de
tons da aquarela impecável faturam a poética compositiva de Meirelles.
63. As
experiências criativas, de estesia e de revisão das próprias normas vigentes no
campo artístico tanto envolveu o jovem Victor como semeou as inovações
conceituais que ocorreriam, como a “objetividade de visão do Realismo e o
purismo impressionista”, pois, no final do século XIX, “as tendências
simbolistas mostram a perseverante infiltração dos conceitos românticos no
pensamento e na sensibilidade europeus.”[65]
64. Assim,
compreendendo as pranchas de Victor Meirelles flutuando entre estudos de
panejamentos, exercícios de desenho impecável e concepções puristas do
pitoresco, se arrisca também a compreendê-las como uma paisagem romântica.
65. Ao se
dizer paisagem romântica não se restringe o termo às telas suaves, cheias de
arbustos e vastos céus e horizontes que pintores como Corot assinaram, o que
nem seria o caso de ser observado nas pranchas estudadas. Afinal, basta lembrar que se, nas diversas telas dos paisagistas
românticos, as categorias estéticas do sublime se fazem evidentes, ao caráter
de Meirelles, no silêncio de suas figuras, a paisagem semântica[66] que
predomina é a da consistência de um corpo completo, vestido em todos os
detalhes, caracterizados por seu gênero, condição de trabalho e origem.
66. Pierre
Levy considera o texto como uma paisagem móvel e acidentada, sendo ele
esburacado, riscado e semeado de brancos, no qual os leitores não são obrigados
a percorrer um único caminho, mas têm a possibilidade mesmo de “produzir dobras
interditas,”[67] fazendo
com que outros efeitos de sentidos entre os sujeitos se estabelecem. Portanto,
mediante essa ideia de Levy, considera-se os “estudos de trajes italianos” de
Meirelles como textos sempre aptos à atualização, uma viagem por contornos e
formas que levam a um campo textual maior, móvel e também reconfigurável. Tanto
que as pranchas em que a figura não possui o olhar desenhado, por exemplo,
reafirmam a proposta que é o traje - na composição daquela posição corporal que
produz um panejamento próprio e registra um tipo social particular - a paisagem
móvel e acidentada, porém intacta, pela qual o olho deve passar.
Algumas
palavras finais
67. A
despeito da consagração da Academia Francesa e de ter sido nela que Meirelles
esboçou, compôs e foi encaminhado à exposição de sua obra inaugural - a Primeira
Missa no Brasil - foi imerso numa proposição de arte pictórica firmada no
purismo, que o pensionista brasileiro cunhou sua poética e, logo, nada mais
emblemático dessa sua trajetória formativa do que as 104 pranchas coloridas de
trajes italianos.
68. A
maestria do desenhista, do pintor da memória nacional, das batalhas com suas
comoções e singeleza foi conquistada a partir do exaustivo exercício decorrido
da execução das pranchas coloridas observadas, nas quais a leveza do traço e a
singeleza da gradação de tons da aquarela impecável faturam a poética
compositiva de Meirelles, dando a sutileza indizível daquelas narrativas
silenciosas em composições uníssonas de corpos vestidos.
69. Essas
pranchas sempre ocuparam uma clave menor nos estudos e discussões sobre a obra
de Victor Meirelles de Lima. Por vezes, ilustraram alguns textos posteriores,
estiveram presentes em muitas exposições como complemento das grandes telas,
mas até então nunca foram tomadas como objeto de estudo da expressão formativa
do artista que as compôs. Espera-se que o presente texto tenha dado o seu
devido relevo a esse trabalho exaustivo; afinal, são mais de uma centena de
pranchas, excelentes na qualidade representativa de trajes e tipos populares
italianos e de uma harmonia compositiva que ultrapassa muitas de suas
similares, produzidas por outros artistas do século XIX.
70. Também
é certo que uma tradição associada à representação de trajes regionais, vigente
no século XIX e, especialmente, na Itália reforçava a motivação de Meirelles
para tal produção, o que se discutiu na obra resultante da pesquisa.
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_______________________________
[1] Doutora em História
(UFRGS, 2005), professora efetiva da Universidade do Estado de Santa Catarina e
membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da mesma
instituição. Realizou pós-doutoramento em História na Université de Strasbourg
(2011) e em Artes Visuais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (2017)
[2] BIELINSKI, Alba
Carneiro. O “senhor do desenho” no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro,
2009. In: TURAZZI, Maria Inez (org.). Victor Meirelles: novas
leituras. São Paulo: Studio Nobel Museu Victor Meirelles, 2009.
[3] PAREYSON, Luigi. Os
problemas da estética. São Paulo, Martins Fontes, 1989.
[4] ROSA, Ângelo Proença
da, et al. Victor Meirelles de Lima (1832-1903). Rio de Janeiro: Edições
Pinakotheke, 1982.
[5] COLI, Jorge; XEXÉO,
Mônica F. Braunschweiger. Vitor Meireles, um artista do império. Rio de
Janeiro: MNBA, MON, 2004.
[6] PEREIRA, Sonia Gomes.
Victor Meirelles e a Academia Imperial de Belas Artes. In: TURAZZI,
Maria Inez (org.). Victor Meirelles: novas leituras. São Paulo: Studio
Nobel Museu Victor Meirelles, 2009.
[7] O corpus documental da
pesquisa foi o total de 104 pranchas coloridas e 66 com desenhos não coloridos,
sendo assim distribuídas: 72 coloridas pertencentes ao Museu Nacional de Belas
Artes, 21 do Museu Victor Meirelles e 11 de colecionadores particulares.
[8] Ver estudo completo em:
SANT’ANNA, Mara Rúbia. O jovem Victor Meirelles: tempos, traços e
trajes. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes; Florianópolis: Museu
Victor Meirelles, 2021.
[9] BURUCÚA, José Emilio. Las
pathosformeln de lo cómico y el grabado europeo a comienzos de la modernidad. In: Encantos da
imagem: estâncias para a prática historiográfica entre história e arte. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2010. p. 19-79.
[10] PIROTTE,
Jean. Images et critique historique. In: JADOULE, Jean-Louis. L’histoire
au prisme de l’image. Vol.1: L’historien et l’image fixe texte. Louvain/BG:
Université Catholique de Louvain, 2002.
[11] DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante
el tiempo: historia del arte y anacronismo de las imágenes. - 4ª. ed - Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2015.
[12] ANTELO, Raul. A
imanência histórica das imagens. In: Encantos da imagem:
estâncias para a prática historiográfica entre história e arte. Florianópolis:
Letras Contemporâneas, 2010, p. 9.
[13] ROSA, op. cit., 1982,
p. 31
[14] PEREIRA, op. cit., p.
48-49
[15] NARLOCH, Charles. Trajes
italianos, poesia na formação de um neoclássico. In: ROSSETTO, Lourdes
et al. Victor Meirelles: Estudos de Trajes italianos. Florianópolis:
Museu Victor Meirelles, 2006, p. 8.
[16] ANTELO, Raul. Um desejo
vacilante. In: ROSSETTO, Lourdes et al. Victor Meirelles: Estudos de Trajes
italianos. Florianópolis: Museu Victor Meirelles, 2006, p. 22
[17] LINDOTE, Fernando.
Academia, moda, mercado… In: ROSSETTO, Lourdes, et al. Victor Meirelles: Estudos de Trajes
italianos.Florianópolis: Museu Victor Meirelles, 2006,.p. 29
[18] COLI, Jorge. Meirelles
em Roma. In: Victor Meirelles, um artista do império. Rio de
Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes, 2004, p. 25
[19] Numeração da
catalogação das pranchas no acervo do Museu Nacional de Belas Artes e operadas
neste sistema na pesquisa que ensejou o presente texto.
[20] PEVSNER,
Nikolaus. Les académies d’art. Paris: G. Monfort, 1999.
[21] LISBOA, Maria Helena. As
academias e escolas de belas artes e o ensino artístico. Lisboa: Ed.
Colibri IHA/Estúdios de Arte Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Nova de Lisboa, 2007.
[22] Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k134521m.r=pintura%20pintura?rk=21459;2 Acesso em: 28/02/2020.
[23] LISBOA, op. cit., 2007.
[24] ROSA, op. cit., 1982.
[25] GOLDSTEIN, Carl. Teaching Art: Academies and Schools from Vasari to
Albers. Cambridge, New York: Cambridge University Press, 1996.
[26] Atualmente, a Academia de
São Lucas se encontra no Palácio Carpegna, ali instalada desde 1932.
[27] O processo de
unificação dos estados Italianos, chamado de Risorgimento, iniciado em
1815, se desdobrou em fases: a primeira de 1848 a 1849, a segunda de 1859 a
1860 e a derradeira a partir de 1866, findando-se apenas em 20 set. 1870, com a
anexação de Roma. Logo, Victor Meirelles se encontrou na região exatamente no
momento de trégua destas lutas, mas cujas questões não haviam sido resolvidas
no âmbito político e econômico, o que certamente interferiu na qualidade de
vida e ensino ali usufruído. Ver mais em: JANNUZZI, Giovanni. Breve história
de Itália. Buenos Aires: Letemendía, 2005.
[28] CONSONI, Claudia.
Restauro conservatio e restauro integrativo: l’intervento di Nicola Consoni
sull’afresco di Raffaello e Perugino in San Severo. Revista Ricerche di
Storia dell’Arte, 1997, n. 62. Dossie: Cavalcaselli e il dibattito sul
restauro nell’Italia dell’800.
[29] FUGIER,
Anne Martin. La vie d’artiste au XIX siécle. Paris Audibert, 2007
[30] ROSA, op. cit.,
p.28-29.
[31] A ruptura desse modelo
é anunciada a partir da irreverência do Salon des réfusés, isto é, da
exposição feita alheia à Academia de Belas Artes pelos artistas que ousavam não
obedecer aos cânones acadêmicos.
[32] Este texto, encontrado
dentre as obras raras da Biblioteca de Strasbourg, está datado de 04 de
setembro de 1834 e consiste na transcrição do discurso feito por Minardi na
Academia de Arqueologia, como emissário da Academia de São Lucas, na cidade de
Roma. Atualmente, disponível digitalizado em: https://play.google.com/store/books/details?id=IMG78ZiBbr4C&rdid=book-IMG78ZiBbr4C&rdot=1
[33] O termo utilizado é “subbjetti.”
Contudo, mesmo em dicionários de italiano antigo ou latim, o termo não aparece
explicado/encontrado. Por isto, foi traduzido da maneira mais conveniente no
conjunto da frase.
[34] MINARDI, Tommaso. Della
qualita essenzalli della pintura italiana dal suo rinasciment fino all epoca de
la perfezione... Roma, 1834,.p. 9.
[35] GOLDESTEIN.
op. Cit.
[36] LE
CHANU, Patrick. Le drapé: carnet de dessins. Paris: La Bibliothèque de
l'image, 2002, p. 14.
[37] Idem, p. 16.
[38] COLI, op. cit., p. 30
[39] Óleo sobre tela. 130,0
x 96,9 cm. Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes. Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/degola%C3%A7%C3%A3o-de-s%C3%A3o-jo%C3%A3o-batista/4QF851lJohrEMg. Acesso em: 30/04/2020.
[40] COLI, Op. cit, p. 21
[41] GUINSBURG, J. (org). O
romantismo. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 13.
[42] REYNOLDS, Donald. A
arte do século XIX. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1986.
[43] JAY,
Martin, ALBARET, Michèle. Les régimes scopiques de la modernité. Réseaux,
v. 11, n. 61, 1993, p. 107.
[44] HONOUR,
Hugh; FLEMING, John. The Visual Arts: A History. - 7 ed. - Laurence
King, 2013.
[45] JULIA,
Isabelle. L’etourdissement des paysages. In: 1815 - 1850 les années
romantiques, Paris Musées Nationaux, 1995, p. 140.
[46] Idem, p. 141.
[47] Idem, p.144.
[48] CUSSINET, Marie-France.
Bohémiennes et saltimbanques dans les musées d’Auvergne. In:
AURAIX-JONCHIERE, Pascale; LOUBINOUX, Gérard. La bohémienne: figure
poétique de l'errance aux XVIIIe et XIXe siècles : actes du colloque du Centre
de recherches révolutionnaires et romantiques. Collection
Révolutions et Romantisme. V. 8. Université Blaise-Pascal, Clermont-Ferrand,
2003, p. 316.
[49] VALENCIENNES. Elemens
(sic) de perspective pratique à l’usage des artistes de réflexions et conseils
à une élève sur la peinture et particulièrement sur le genre du paysage. Paris, an VIII (1800).,
p. 626.
[50] SAFRANSKI, Rüdiger.
Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação Liberdade, 2010.
[51] Estilo que marcou o
início do século XIX com a valorização da Idade Média e adoção do que,
supostamente, representava esse período nos diferentes domínios da arte, da
decoração e até nas cerimônias estatais do Império de Napoleão Bonaparte e seus
sucessores. Ver : PUPIL, François. Le style troubadour ou
la nostalgie du bon vieux temps. Nancy: Presses Universitaires de
Nancy, 1985.
[52] CALLFORT,
Michel. Les Nazaréens français. Rennes: Presses Universitaires de
Rennes, 2009.
[53] Importante destacar que
as primeiras litogravuras com trajes típicos são atribuídas a Albrecht Dürer.
Ver: Capítulo 2: Narrativas da tradição. In: SANT’ANNA, op. cit.
[54] ZANINI, Walter. A arte
romântica. In: GUINSBURG, J. (Org). O romantismo. 4. ed. São
Paulo: Perspectiva, 2011, p. 199.
[55] Apud CALFFORT, op.
cit., p.228
[56] BARILLI, Renato. Storia
dell'arte contemporanea in Italia: da Canova alle ultime tendenze,
1789-2006. Torino: B. Boringhieri, 2007, p. 62
[57] Ibidem.
[58] Idem, p. 64.
[59] COROT apud CHRIST,
Yvan. A arte no século XIX. São Paulo: Martins Fontes, 1986. p. 23.
[60] PEREIRA, op. cit., p.
49.
[61] HOURTICQ, Louis. Encyclopédie des beaux-arts. - Architecture - Sculpture
- Peinture - Arts Décoratifs.Paris: Hachette, 1925, p. 432
[62] COLI, op. cit.,
p. 29
[63] XEXÉO, Monica. Os
primeiros anos. In: Victor Meirelles, um artista do império. Rio
de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes, 2004, p. 46
[64] COLI, op. cit., p. 37.
[65] ZANINI,
op. cit., p. 206.
[66] “A inteligência do
leitor levanta por cima das páginas vazias uma paisagem semântica móvel
e acidentada” (LÉVY, Pierre. Cibercultura. - 2. ed. - São Paulo: Ed. 34,
1999, p.35).
[67] Idem, p. 37.