O uno fragmentado: concepções de duplo na obra de Ismael Nery
Mariana
Garcia Vasconcellos
VASCONCELLOS, Mariana Garcia. O uno
fragmentado: concepções de duplo na obra de Ismael Nery. 19&20, Rio de Janeiro, v. XIII, n. 1, jan.-jun. 2018. https://doi.org/10.52913/19e20.xiii1.02
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1. A
complexidade e a singularidade de Ismael Nery impõem-se ao observador, seja qual for o ponto
de partida de sua abordagem: sua biografia é cercada de uma aura mística
construída por ele mesmo e por seus amigos mais próximos, como Murilo Mendes, tornando-se difícil separar fato e ficção;
sua pintura, embora moderna, não compartilha das questões principais do
modernismo brasileiro. Pintor, poeta, filósofo, dândi, católico fervoroso; as
diversas atividades a que se dedicava, com maior ou menor empenho, maior ou
menor talento, valeram-lhe até, da parte do crítico Mário Pedrosa (1984, p. 194), comparações com Leonardo da
Vinci.
2. Também
seus temas são carregados de dualidades, duplicidades, opostos conflitantes. O
duplo aparece não só dentro das telas que mostram casais ou duas figuras, mas
de maneira mais sutil e difusa em um diálogo extenso que se estabelece ao longo
de toda a sua obra, na abordagem de questões como Eu e Outro, Masculino e Feminino,
Sagrado e Profano (ou Divino e Satânico), Contingente e Essencial, Físico e
Espiritual, Interior e Exterior, Vida e Morte, entre outros tantos pares
possíveis. Exploro, neste artigo, as diversas manifestações dessas ideias em
sua pintura e poesia, analisando implicações filosóficas e psicanalíticas de
suas escolhas e buscando identificar os impulsos que o levaram a trabalhar
incessantemente, sob uma miríade de formas, aquele que pode ser considerado
como seu tema fundamental: o absoluto.
3. Iniciarei
essa discussão partindo de uma breve contextualização de sua obra. A pintura de
Ismael Nery costuma ser classificada em três momentos: expressionista até 1923;
cubista entre 1924 e 1927; e surrealista deste ano até sua morte precoce em
1934.[1]
Essa categorização, entretanto, diz respeito apenas a questões formais (e, de
certa forma, temáticas, no caso do surrealismo) que são superficiais em seu
trabalho. Uma análise crítica das obras e das poucas informações de datação
disponíveis mostra que as “fases” de sua pintura não são tão facilmente
dissociáveis umas das outras, além de só corresponderem de maneira bastante
precária aos estilos que lhes dão nome.[2]
4. Considerando
que Nery dedicava-se à pintura como uma atividade secundária ou complementar a
sua poesia e filosofia, é evidente que, mesmo em suas pesquisas formais mais
atualizadas em relação à arte moderna internacional, o que realmente lhe
interessava era encontrar a melhor maneira de exprimir visualmente ideias que
havia elaborado em outros campos. Neste sentido, me parece pertinente - acima
de qualquer tentativa de categorização encontrada - o seguinte comentário de Clarival do Prado Valladares
(1984, p. 242):
5.
Sua linguagem escrita é simbólica, assim
como sua pintura, e, numa visão conjunta da obra poética e pictórica, ele
poderia ser entendido como um dos mais candentes exemplos do simbolismo. Desse
modo, as caracterizações estilísticas de expressionismo, cubismo e surrealismo
passariam a valer como instrumento ou processo reflexivo para o simbolismo.
6. Essa
preocupação subjacente às experimentações formais é também espiritual e mesmo
religiosa. Embora relatos como o de Murilo Mendes encarem como excepcional a
presença de tão enraizado (e tão peculiar) catolicismo em um pintor moderno -
opondo-se às tendências anticlericais do meio artístico-intelectual carioca -,
naquele mesmo momento artistas de profunda e complexa espiritualidade
promoviam, na Europa, as revoluções abstracionistas na pintura. O cristianismo
singular de Nery, entremeado de outras influências, não é tão distante da
Teosofia de Piet Mondrian, František Kupka ou Wassily Kandinsky, por exemplo. Esses artistas têm
em comum o fato de terem tirado proveito das novas possibilidades plásticas
proporcionadas pelos desdobramentos da arte moderna e vanguardista,
direcionando-as para a expressão visual de preocupações espirituais e
filosóficas. O fato de Nery nunca ter abandonado a figuração e, especialmente,
a figura humana, não deve ser visto como um atraso em relação às vanguardas
mais radicais da Europa, mas como um aspecto inteiramente coerente com os
caminhos de seu próprio pensamento, que refletia justamente sobre dualidades de
corpo e espírito, matéria e essência.
7. De
fato, Ismael Nery desenvolveu um sistema filosófico chamado de Essencialismo,
que nunca redigiu pessoalmente. O registro mais próximo, que chegou a ser
aprovado por ele, foi feito por seu amigo Jorge Burlamaqui
e republicado por Murilo Mendes em 1935,[3] já após a morte de Nery; é preciso notar,
entretanto, que há uma incontornável vagueza nas explanações. Na definição
posterior de Murilo Mendes (1948, p. 65):
8.
Era o essencialismo, baseado na abstração
do tempo e do espaço, na seleção e cultivo dos elementos essenciais à
existência, na redução do tempo à unidade, na evolução sobre si mesmo para
descoberta do próprio essencial, na representação das noções permanentes que
darão à arte a universalidade.
9. Depreende-se,
bem ou mal, que trata-se de uma tentativa de enxergar
a essência, a unidade, através da multiplicidade de variações de um mesmo
objeto de investigação no tempo e no espaço - seja ele uma situação ou uma
pessoa - com vistas a aproximar-se o máximo possível da verdade, ainda que esta
permaneça sendo necessariamente relativa. A expressão plástica dessas ideias é
um dos objetivos principais de suas pesquisas na pintura, motivo pelo qual é
relevante buscar compreendê-las. Retomarei adiante, sob diferentes aspectos, as
manifestações do essencialismo em sua pintura, mantendo em mente a dualidade de
espaço e tempo e sua oposição a uma verdadeira Essência.
O
duplo inquietante: primeiro momento da pintura de Ismael Nery
10. Na
obra de Ismael Nery, tão variada em seus aspectos formais e estilísticos,
encontramos uma considerável uniformidade de temas, sobretudo na produção
inicial que costuma ser chamada de seu “período expressionista” e datada até
1924, expandindo-se também para uma parcela de suas experimentações cubistas
até 1927. Além das figuras únicas, geralmente autorretratos, há uma insistência
das imagens de duas figuras, seja de casais ou duas mulheres.[4]
Apesar de frequentemente portarem traços que ao desenvolver alguma
familiaridade passamos a reconhecer como do próprio Ismael e de sua esposa
Adalgisa, essas imagens não parecem ter a função de retratos; trata-se antes,
nas palavras de Mario de Andrade (1984, p. 59), da “realização dum tipo
ideal humano”, ao qual o artista chega através da progressiva esquematização -
abstração, se quisermos - das particularidades individuais, restando apenas uma
curva do nariz, o formato dos olhos, como indícios de sua identidade.
11. Nota-se
igualmente que a composição dessas pinturas “expressionistas” repete-se constantemente; as figuras são cortadas na altura
do busto, ocupando quase toda a superfície da tela, que não fornece referências
específicas de espacialidade. As personagens aparecem em contato físico ou - o
que neste caso parece ser o mesmo - sobrepostas no plano do quadro. Embora a
interação entre elas mostre variações, os diversos exemplos em que uma figura
está posicionada atrás da outra, dando por vezes a impressão de sussurrar-lhe
ao ouvido, são os mais interessantes e perturbadores dentro da primeira obra de
Nery [Figura 1]. Em
alguns casos, há uma fusão tão grande entre os dois indivíduos que chegam a
compartilhar uma ou mais partes do corpo; é o caso da obra Duas mulheres [Figura 2], em
que o olho da figura morena pertence também, por sua posição, à mulher loira.
12. A
sugestão de simbiose e a incerteza a respeito das identidades - serão dois
indivíduos ou um só, desdobrado? - provoca no espectador a sensação daquilo que
foi descrito por Sigmund Freud como “unheimlich”.
Faz-se necessário, para melhor compreensão dos efeitos característicos da
pintura de Ismael Nery, tomar um certo espaço para a exposição do “inquietante”
(ou “estranho”) freudiano e suas relações com o duplo.
13. O “unheimlich” é, segundo Freud (1996b, p. 139), “aquela
categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito
familiar”. Um dos elementos que, quando encontrados na literatura e nas artes
ou na vida real provocam essa sensação é, justamente,
o duplo - por exemplo, na repetição de eventos ou similaridade excessiva entre
dois indivíduos. Para Freud e para Otto Rank (2013, p. 138), cujo estudo sobre
esse tema é antecedente, o duplo surge como uma concepção primitiva criada pela
mente para lidar com a ideia da morte:
14.
[...] o narcisismo primitivo, sentindo-se
ameaçado pela inevitável anulação do Eu, criou como primeira representação da
alma uma imagem o mais idêntica possível ao Eu corpóreo, portanto, um
verdadeiro duplo. Assim, a ideia da morte é desmentida através de uma
duplicação do Eu que se corporifica na sombra ou no reflexo.
15. Entretanto,
passado esse estágio mental primitivo, o duplo “reaparece na superstição como
mensageiro da morte” (2013, p. 142), ou seja, simbolicamente invertido. Para
Freud (1996b, p.149),
16.
[...] a qualidade de estranheza só pode advir
do fato de o ‘duplo’ ser uma criação que data de um estádio mental muito
primitivo, há muito superado - incidentalmente, um estádio em que o ‘duplo’
tinha um aspecto mais amistoso. O ‘duplo’ converteu-se num objeto de terror,
tal como após o colapso da religião, os deuses se transformam em demônios.
17. Verifica-se
uma ambivalência, portanto, na imagem do duplo; está relacionado em sua origem
tanto com um amor excessivo ao Eu, como com a consciência de sua mortalidade -
duas questões que encontramos também na pintura de Nery.
18. Entretanto,
os exemplos de duplo que Rank busca na literatura, em autores como Hoffmann,
Poe e Dostoievsky, envolvem angústia, medo, vontade de aniquilação do duplo.
Não é precisamente esse o caso de Ismael Nery. Se a angústia é em alguma medida
visível, em especial em suas obras tardias, há de início antes uma fascinação
algo mórbida, uma sensualidade do sentir-se duplo ou de espelhar-se no outro
(ou na outra). Embora, segundo relatos, Nery tenha concebido desde muito cedo a
noção de sua morte precoce, nessas obras iniciais o artista demonstra um
interesse apaixonado pela vida presente em seu próprio corpo e nas experiências
que este lhe possibilitava.
Dois e
um só: o andrógino e a relação sexual
19. Um dos
aspectos mais frequentemente notados pelos comentadores da obra de Ismael Nery
é a androginia manifesta nas figuras de seu período expressionista. Maria Bernardete Ramos Flores (2014) fala sobre esse elemento da
obra de Nery e suas raízes na ideia já antiga do andrógino como ser ideal e que
resume em si a essência da humanidade. Além da sensualidade, também fortemente
marcada na personalidade do artista, existe portanto
na figura do andrógino algo que remete à filosofia essencialista de Nery.
20.
Para o artista brasileiro, na abstração do
tempo e do espaço, não havia lugar para divisões entre sexo, erotismo e
castidade, tudo era voltado para uma mesma experiência mística. Seu projeto de
desintegração do corpo pictórico encerrava o desejo de encontrar a essência da
forma divina como energia pura, o que o levou a criar o sistema filosófico que
denominou Essencialismo (FLORES, 2014, p. 829)
21. Em
alguns casos, trata-se de uma única figura que é, ao mesmo tempo, de ambos os
sexos; o exemplo mais claro é a aquarela Andrógino
[Figura 3]. Mas, em muitos retratos de casal,
Nery elimina quase todo indício de gênero específico em ambas as figuras, representando portanto um par de opostos que são também, de
certa forma, iguais [Figura 4]. Em
ambos os exemplos, é a si mesmo que Ismael representa como andrógino, seus
traços misturados aos de Adalgisa em uma representação do “tipo ideal humano” -
simultaneamente duplo e uno, como polos positivo e negativo que se neutralizam.
22. É
interessante comparar a versão de Pausânias para o mito grego de Narciso,
citada por Rank (2013, p. 116) - em que Narciso confunde o próprio reflexo com
a imagem da irmã gêmea falecida a quem amava - com o poema Ismaela (1932), de Nery:
23.
A minha irmã é a minha edição feminina e o
meu castigo.
24.
Dá a todos o que nunca de mulher alguma eu
recebi.
25.
Se eu não soubesse que sou também o seu
castigo
26.
Há muito tempo que seria fratricida ou
suicida.[5]
27. No
caso de Nery como de Narciso, a irmã (que o pintor não tinha) é tanto o Outro
como uma repetição do Eu, realizando a fantasia de ver a si mesmo reproduzido
em um ser exterior, em sua versão feminina e portanto
passível de ser transformada em objeto amoroso-sexual. O tema do incesto também
aparece com frequência em seus poemas, como nesta Confissão do poeta de 1933:
28.
Eu tenho um ciúme terrível da minha sogra
e do meu genro
29.
E uma saudade mortal da minha esposa
falecida
30.
Eu queria ter sido meu pai ou ser agora a
minha nora.
31.
Ou ter morrido como meu irmão...
32.
No instante em que nasci.
33. Ismael
perdeu seu pai aos nove anos e seu irmão mais novo por volta dos dezoito,[6]
após o que sua mãe voltou-se para uma religiosidade
intensa. Se não é possível tentar dar conta de sua obra através de dados
biográficos como estes, eles servem ao menos como elementos enriquecedores e
que conferem densidade psicológica às imagens mentais e pictóricas de Nery.
34. O
artista produziu mais de uma tela com a temática das “irmãs,” seja
explicitamente indicada no título, seja implícita na semelhança entre as duas
figuras [Figura 5]. A obra O luar (dois irmãos) [Figura 6] é
bastante peculiar: as duas figuras titulares são indissociáveis, como que
geradas a partir da mesma matéria. Suas feições se misturam e o arco que une as
duas metades do rosto parece formar ainda uma terceira entidade. Apesar de
referir-se especificamente a dois indivíduos homens, uma ambiguidade de gênero
se estabelece em função da forma arredondada no peito da figura à direita, que
aparece como um seio em outras obras de Nery.
35. As
diversas representações da relação sexual em sua obra gráfica, embora
provavelmente posteriores (Nery não costumava datar seus desenhos), também
devem ser comentadas aqui. Nelas, vemos dois corpos transparentes, indistintos,
feitos da mesma linha simples e transformada em uma espécie de novelo único [Figura 7]. A profundidade e, consequentemente, a
distância entre um e outro são aniquiladas; é impossível separá-los.
36. Sua
solução formal expressa elegantemente a fusão absoluta entre dois indivíduos,
que não apenas forma momentaneamente uma unidade composta, mas tem também
potencial de gerar um terceiro elemento, como Nery mostra em uma pequena série
chamada Origem, que mostra (ainda que
fora da ordem natural) os momentos da reprodução humana: formação, embrião,
concepção e a “Etapa final” [Figura 8].
O
Eu-duplo
37. Evidentemente,
a questão do duplo também está presente, por definição, nos autorretratos. Vale
retomar a ideia de Rank a respeito da função do duplo como salvaguarda contra a
destruição do Eu. Ismael, que sempre acreditou que fosse morrer precocemente,
reinventou incessantemente a própria imagem, adotando diversos papéis como quem
experimenta-se em frente ao espelho. Murilo Mendes (1996, p. 60) cita uma
afirmação do próprio artista: “Senti sempre uma imperiosa necessidade de
representar simultaneamente os papéis mais diversos, e, quanto maior em número
fossem eles, mais eu me sentia estável na minha vida pessoal, e incorporado à
vida universal”. A dualidade feminino-masculino é apenas uma entre as que Nery
explora. Em seus autorretratos deste período, também representa a si mesmo ora
como ser divino [Figura 9] -
mesmo como Cristo [Figura 10] -,
ora satânico ou demoníaco [Figura 11],
colocando em questão suas concepções religiosas.
38. Nestor
Habkost (1994) aborda a diversidade de papéis
assumidos pelo artista nessa produção expressionista inicial como disfarces
para um mesmo Eu, diferentes manifestações deste no
plano - apolíneo, segundo o autor - das aparências. Afirma que na
representação dos corpos andróginos “Ismael chega à imagem de um corpo único e
sintético, como se a busca de uma imagem de si só pudesse se realizar, caso
conjugasse todas as imagens possíveis sem ser nenhuma delas.” Comparemos este
trecho ao que Freud (1996b, p. 149) define como uma das ideias incorporadas à
imagem do duplo:
39.
Há também todos os futuros, não cumpridos mas possíveis, a que gostamos ainda de nos apegar,
por fantasia; há todos os esforços do ego que circunstâncias externas adversas
aniquilaram e todos os nossos atos de vontade suprimidos, atos que nutrem em
nós a ilusão da Vontade Livre.
40. E, por
fim, ao poema Oração de I. N. que Ismael escreve em 1933:
41.
Meu Deus, para que pusestes tantas almas
num só corpo?
42.
Neste corpo neutro que não representa nada
do que sou,
43.
Neste corpo que não me permite ser anjo
nem demônio,
44.
Neste corpo que gasta todas as minhas
forças
45.
Para tentar viver sem ridículo tudo que
sou.
46.
- Já estou cansado de tantas
transformações inúteis.
47.
Não tenho sido na vida senão um grande
ator sem vocação,
48.
Ator desconhecido, sem palco, sem cenário
e sem palmas.
49.
- Não vedes, meu Deus, que assim me torno
às vezes irreconhecível
50.
A minha própria mulher e a meus filhos.
51.
A meus raros amigos e a mim mesmo?
52.
Dai-me, como vós tendes, o poder de criar
corpos para as minhas almas
53.
Ou levai-me deste mundo, que já estou
exausto.
54.
Eu que fui feito à vossa imagem e
semelhança.
55.
Amém!
56. Este
poema é possivelmente, de toda a sua obra poética, o exemplo que mais
claramente expressa a profunda angústia que parece ter sido a força motriz de
seu trabalho artístico, ou seja, a impossibilidade de transcender a
contingência e constituir-se como absoluto. De um lado, sonha com englobar em
si, que imagina como Uno, toda a diversidade de seres
e elementos existentes; de outro, a unidade de que efetivamente dispõe como
indivíduo é limitadora, pesam-lhe todos os Eus
diversos que sente em si e que não consegue expressar adequadamente. A analogia
entre este poema e a pintura Almas num
corpo [Figura 12] é
evidente; aqui, trata-se da representação visual, projetada no espaço, das
identidades múltiplas povoam um só indivíduo.
A
fragmentação como busca da essência: o cubismo
57. Por
volta de 1924, Ismael Nery passou a fazer experimentos com uma linguagem mais
próxima do cubismo, representando corpos que se desdobram e se decompõem em
planos no espaço. Entretanto, longe de substituir os objetivos
filosófico-espirituais de sua obra anterior por uma observação fria peculiar ao
cubismo analítico, Ismael transforma o estilo em ferramenta de expressão de seu
sistema filosófico essencialista. O Essencialismo, como vimos, lidava com a
abstração do espaço e tempo, que poderiam ser condensados e vistos
simultaneamente. O interesse dos cubistas na representação do movimento, seja
do objeto representado ou do ponto de vista cambiante do observador, pode ser
visto como a preocupação em condensar, no espaço da tela, mudanças que se dão
ao longo do tempo. Entrando em contato com essas tendências, era improvável que
Nery não buscasse apropriar-se de uma técnica alheia que lhe abria
possibilidades expressivas próprias.
58. Um
aspecto pouco comentado de sua obra, para o qual Tadeu Chiarelli (2004) chama a
atenção, é o interesse de Nery pelas tecnologias do cinema e da fotografia,
capazes de realizar de maneira mais efetiva do que a pintura essa abstração do
tempo e do espaço. Murilo Mendes conta que, ao retornar de sua primeira viagem
à Europa, o artista se disse decepcionado com a pintura, que “estava em crise,
pois muitas de suas possibilidades deveriam ser realizadas pelo cinema”. Ismael
produziu ao menos uma experimentação com a técnica do fotograma: uma imagem de
sua própria mão, com o registro de seu movimento e a legenda “a mão que fez os
desenhos” [Figura 13].
Chiarelli (p. 173) observa que “além de signo fotográfico, essa imagem pode ser
pensada igualmente como cinema - cinema possível de ser alcançado fixando
precariamente o deslocar da mão sobre o papel durante a pose”.
59. Em sua
segunda estadia na França, em 1927, entrou em contato com Marc Chagall, com quem desenvolveu uma certa amizade. Encantou-se
com as soluções de representação do espaço desenvolvidas pelo artista russo,
que possibilitavam comprimir simbolicamente imensas distâncias dentro da
superfície da tela. Em sua série de obras ditas “chagallianas,”
Ismael explora essa linguagem. Destaco a aquarela Composição [Figura 14] e o
óleo Autorretrato [Figura 15] porque, ainda que não sejam os
exemplos em que a influência de Chagall aparece com
maior clareza, são interessantes por mostrar os usos pessoais - leia-se
essencialistas - que Nery dá a essa lógica compositiva.
60. Na
primeira imagem, a gravidade parece atuar a partir do centro da composição, em
torno do qual organizam-se em círculo personagens, cidade, montanhas. Na
segunda, mais carregado de simbolismo e de sentimento pessoal, o próprio Nery é
representado sentado, imenso, tendo à sua direita o Rio de Janeiro e à
esquerda, Paris - cada cidade é personificada em um rosto que beija o do
pintor. Em ambas as imagens, as distâncias são anuladas, como em sonho. Esse é
o primeiro surrealismo de Ismael Nery. Embora costume ser visto como um período
único, é preciso diferenciar os temas mais simples e alegres deste momento
daqueles que virão em seguida.
Novas
dualidades: interior e exterior, vida e morte
61. Por
volta de 1930, a obra de Ismael sofre uma mudança que costuma ser associada à
sua convivência próxima com a ideia da morte, em função da tuberculose que
contrai em fins desse ano e que de fato ocasionará seu falecimento em 1934, aos
33 anos de idade como - segundo relatos - já há muito tempo havia previsto. O
artista praticamente abandona a pintura de cavalete, produzindo grande volume
de desenhos e a maior parte de seus poemas conhecidos.
62. Chamo
a atenção para a questão da poesia e da imagem na obra de Nery porque também aí
há duplicidade, relação já há muito estabelecida pela literatura artística no
debate do “ut pictura poesis”.
A palavra, arte do tempo; a imagem, do espaço; cada qual com suas
especificidades que nunca são inteiramente traduzíveis na outra. Se
considerarmos que Ismael, como filósofo essencialista, via a abstração desses
dois eixos como uma necessidade para a compreensão da real condição humana, é
evidente que só lhe seria possível ver suas ideias expressas artisticamente se
fizesse sua abordagem por ambos os lados.
63. No que
diz respeito às imagens, nesta fase o aspecto do duplo interioriza-se: sua
preocupação principal desloca-se da dualidade Eu-Outro para aspectos que dizem
respeito somente ao Eu, como corpo e alma, vida e morte, interno e externo.
Esse último momento de sua produção é considerado “surrealista” em função das
imagens oníricas e da presença de elementos - estátuas clássicas, paisagens
desérticas ou com construções desabitadas, entre outros - que remetem bem ou
mal aos surrealistas europeus e, especialmente, à pintura metafísica de Giorgio
de Chirico.[7]
64. Ao
invés de aparecer como figura multiforme e sensual, Nery passa a retratar-se
morto, frequentemente cortado em pedaços ou com o crânio à mostra [Figura 16]. Também figuras alegóricas e até sua
esposa Adalgisa [Figura 17] têm
seus órgãos internos expostos ou saindo para fora. Não há sangue ou violência
- há um interesse mórbido, como um estudo de anatomia fantasioso, nessas
figuras que não vivem nem morrem, mas existem na imobilidade de um não-espaço
que parece estar além de ambos os estados [Figura 18].
65. Nestor
Habkost (1994) desenvolve uma interessante teoria,
identificando três tipos de abordagem do próprio corpo que dizem respeito a
diferentes momentos da obra de Nery:
66.
Tomando por base sua obra plástico-poética
e privilegiando aquelas que são auto-figurativas,
cheguei a uma série primeira [fase “expressionista”], onde a representação de
si lida com o disfarce, com a aparência: é o teatro do mesmo
num palco apolíneo. Uma segunda série traz o corpo desmembrado, traz o não
visto interior que desfaz a aparência, mostra a carne crua e nua, a dor do
despedaçamento dionisíaco e a vida brotando em cada parte. A terceira série
apresenta o corpo metafísico, imaterial, o corpo como volume etéreo que se
funde e se deixa transpassar por outros corpos, é uma espécie de nebulosa em
movimento.
67. Essa
terceira série é descrita por Habkost como uma
solução católica para esse problema do corpo, em oposição ao apolíneo e
dionisíaco das anteriores: já não é tão sensual como uma, nem tão carregada de
horror como a outra. Despe-se do corpo físico, fonte de prazer e dor, e
conserva apenas a alma imortal, sua essência. No poema em prosa Manhã, de 1932, Nery diz: “Olhei-me no
espelho e achei excessiva a anatomia do meu corpo, sobretudo da minha cara.
Para que olhos, para que boca, para que nariz? [...] O homem deveria ser uma
bola com pensamento.”
68. Algumas
de suas pinturas, como Essencialismo [Figura 19] e Eternidade
[Figura 20], não estão distantes dessa ideia. É
como se nelas o artista pudesse consolar-se a respeito da iminência da morte
com a perspectiva de uma permanência da alma - que, devemos lembrar, Rank
afirma ser o duplo original. Nery parece alcançar, enfim, uma representação
satisfatória de seu essencialismo e de suas angústias existenciais nessas
figuras indistintas em que são abolidas as dualidades de gênero, corpo e alma,
matéria e essência.
O uno
inatingível, o duplo frustrante
69. Podemos
considerar que, para o artista, o apropriar-se de múltiplas linguagens,
estilos, personas, servia para compensar o que era visto como a inescapável
incompletude de cada um desses elementos quando tomados separadamente. O que
Nery almejava acima de tudo, fica claro em seus poemas e no conjunto de sua obra
pictórica, era o absoluto; não lhe sendo possível ser simplesmente absoluto,
dedicou-se a ser fragmentariamente tudo o que podia ser, desdobrando-se em uma
miríade de papéis e utilizando-se de todas as ferramentas disponíveis.
70. Esse
desejo de unicidade, de absoluto, lembra aquilo que é ceticamente descrito por
Freud como “sentimento oceânico” no início de O mal estar na civilização. Esse
sentimento lhe foi relatado por um amigo, com a hipótese de que seria a fonte
original de toda religiosidade no ser humano: “trata-se de um sentimento que
ele gostaria de designar como uma sensação de ‘eternidade’, um sentimento de
algo ilimitado, sem fronteiras - ‘oceânico’, por assim dizer” (1996a, p. 42).
Ao buscar uma explicação psicanalítica para esse fenômeno, Freud lembra que,
nas primeiras fases da vida, o recém-nascido não faz a distinção entre ele
próprio e o mundo, mas é logo forçado a gradualmente construir esses limites:
71.
Nosso presente sentimento do ego não
passa, portanto, de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais
inclusivo - na verdade, totalmente abrangente -, que corresponde a um vínculo
mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Supondo que há muitas pessoas em
cuja vida mental esse sentimento primário do ego persistiu em maior ou menor grau,
ele existiria nelas ao lado do sentimento do ego mais estrito e mais
nitidamente demarcado da maturidade, como uma espécie de correspondente seu.
Nesse caso, o conteúdo ideacional a ele apropriado seria exatamente o de
ilimitabilidade e o de um vínculo com o universo - as mesmas idéias com que meu amigo elucidou o sentimento ‘oceânico’. (FREUD,
1996a, p. 44)
72. Há, se
não uma relação direta, ao menos uma analogia possível entre essa ideia e o
ideal de Ismael Nery, que poderia ser indistintamente chamado de absoluto,
unidade ou Deus. Ao contrário da acepção comum deste último conceito, Nery não
enxerga a divindade como algo externo a si, uma autoridade onipotente e
avassaladora; antes, o divino é a sensação que tem (ou que expressa, o que é o
mesmo, uma vez que consegue concebê-la com suficiente intensidade) de ser uno
com o resto do mundo, de ser, ele mesmo, Deus. Mas para além de toda
grandiloquência poética, Nery conhece a própria fragilidade - sobre ele, vale
repetir o que Maurice Merleau-Ponty (2004, p. 140) disse de Cézanne: “ele
acreditou-se impotente porque não era onipotente, porque não era Deus”.
Observemos, em seu poema Confissão de
1933, a mescla entre um ardente desejo de absoluto e a desesperadora
consciência dos próprios limites:
73.
Não quero ser Deus por orgulho.
74.
Eu tenho esta
grande diferença de Satã.
75.
Quero ser Deus por necessidade, por
vocação.
76.
Não me conformo nem com o espaço nem com o
tempo,
77.
Nem com o limite de coisa alguma.
78.
Tenho fome e sede de tudo,
79.
Implacável.
80.
Crescente.
81.
Talvez seja esta a minha diferença de Deus
82.
Que tem fome e sede de mim,
83.
Implacável,
84.
Crescente,
85.
Eterna
86.
- De mim que me desprezo e me acredito um
nada.
87. Tadeu
Chiarelli (2004, p. 172) comenta também essa meta-dualidade entre uno e duplo
(ou múltiplo):
88.
Nota-se em grande parte de seus desenhos e
pinturas que Nery, usando a metáfora do corpo cindido em partes ou em
transmutação, trabalha com o sentido de fragmentação do eu, com a
incomunicabilidade e, ao mesmo tempo, com a necessidade de operar com todas as
dualidades que o cercavam. Por outro lado, são visíveis em alguns de seus
trabalhos os índices do utópico desejo de restabelecer a unidade perdida entre
o eu e o outro, as pontes possíveis entre o sujeito e o mundo.
89. Em
toda a sua pintura, em sua poesia e sua filosofia, está presente essa luta. Se mostra-se múltiplo, adotando sempre um novo papel ou um novo
estilo, é para melhor abarcar toda a diversidade da experiência. Se busca
apagar o tempo e o espaço, as distinções entre os sexos, as próprias
características particulares a seu corpo, é porque o tornam contingente,
limitado. A dualidade última é, para ele, entre a unidade ideal e a necessária
fragmentação do ser; angústia de quem se percebe, a despeito de toda ambição,
finito.
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______________________________
[1] Essa é a periodização
referida por Aracy Amaral (1984, p. 12-13).
[2] A reunião que faz Antonio Bento (1984, p. 177) das duas primeiras fases em
uma só, cubista-expressionista, alivia um pouco essa problemática.
[3] Revista A Ordem, março
de 1935, p. 187-195.
[4] A ocorrência de duas
figuras claramente masculinas é baixíssima, o que não deixa de ser
significativo. O autorretrato acompanhado do amigo Murilo Mendes e a pintura O
luar (dois irmãos) são os únicos exemplos de que tenho conhecimento.
[5] Todos os poemas citados
estão no livro Ismael Nery (2004), organizado por Denise Mattar.
[6] Segundo J. B.
Schneider, “a atitude do irmão mais velho em relação ao mais novo é análoga à
do auto-erótico em relação a
si mesmo” (apud RANK, 2013, p. 127).
[7] Não se pôde verificar
se e em que momento Ismael Nery tomou contato com a
pintura metafísica ou com Giorgio de Chirico, embora
também Aracy Amaral (1984, p. 13) note esta influência.