O uno fragmentado: concepções de duplo na obra de Ismael Nery

Mariana Garcia Vasconcellos

VASCONCELLOS, Mariana Garcia. O uno fragmentado: concepções de duplo na obra de Ismael Nery. 19&20, Rio de Janeiro, v. XIII, n. 1, jan.-jun. 2018. https://doi.org/10.52913/19e20.xiii1.02

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1.      A complexidade e a singularidade de Ismael Nery impõem-se ao observador, seja qual for o ponto de partida de sua abordagem: sua biografia é cercada de uma aura mística construída por ele mesmo e por seus amigos mais próximos, como Murilo Mendes, tornando-se difícil separar fato e ficção; sua pintura, embora moderna, não compartilha das questões principais do modernismo brasileiro. Pintor, poeta, filósofo, dândi, católico fervoroso; as diversas atividades a que se dedicava, com maior ou menor empenho, maior ou menor talento, valeram-lhe até, da parte do crítico Mário Pedrosa (1984, p. 194), comparações com Leonardo da Vinci.

2.      Também seus temas são carregados de dualidades, duplicidades, opostos conflitantes. O duplo aparece não só dentro das telas que mostram casais ou duas figuras, mas de maneira mais sutil e difusa em um diálogo extenso que se estabelece ao longo de toda a sua obra, na abordagem de questões como Eu e Outro, Masculino e Feminino, Sagrado e Profano (ou Divino e Satânico), Contingente e Essencial, Físico e Espiritual, Interior e Exterior, Vida e Morte, entre outros tantos pares possíveis. Exploro, neste artigo, as diversas manifestações dessas ideias em sua pintura e poesia, analisando implicações filosóficas e psicanalíticas de suas escolhas e buscando identificar os impulsos que o levaram a trabalhar incessantemente, sob uma miríade de formas, aquele que pode ser considerado como seu tema fundamental: o absoluto.

3.      Iniciarei essa discussão partindo de uma breve contextualização de sua obra. A pintura de Ismael Nery costuma ser classificada em três momentos: expressionista até 1923; cubista entre 1924 e 1927; e surrealista deste ano até sua morte precoce em 1934.[1] Essa categorização, entretanto, diz respeito apenas a questões formais (e, de certa forma, temáticas, no caso do surrealismo) que são superficiais em seu trabalho. Uma análise crítica das obras e das poucas informações de datação disponíveis mostra que as “fases” de sua pintura não são tão facilmente dissociáveis umas das outras, além de só corresponderem de maneira bastante precária aos estilos que lhes dão nome.[2]

4.      Considerando que Nery dedicava-se à pintura como uma atividade secundária ou complementar a sua poesia e filosofia, é evidente que, mesmo em suas pesquisas formais mais atualizadas em relação à arte moderna internacional, o que realmente lhe interessava era encontrar a melhor maneira de exprimir visualmente ideias que havia elaborado em outros campos. Neste sentido, me parece pertinente - acima de qualquer tentativa de categorização encontrada - o seguinte comentário de Clarival do Prado Valladares (1984, p. 242):

5.                                    Sua linguagem escrita é simbólica, assim como sua pintura, e, numa visão conjunta da obra poética e pictórica, ele poderia ser entendido como um dos mais candentes exemplos do simbolismo. Desse modo, as caracterizações estilísticas de expressionismo, cubismo e surrealismo passariam a valer como instrumento ou processo reflexivo para o simbolismo.

6.      Essa preocupação subjacente às experimentações formais é também espiritual e mesmo religiosa. Embora relatos como o de Murilo Mendes encarem como excepcional a presença de tão enraizado (e tão peculiar) catolicismo em um pintor moderno - opondo-se às tendências anticlericais do meio artístico-intelectual carioca -, naquele mesmo momento artistas de profunda e complexa espiritualidade promoviam, na Europa, as revoluções abstracionistas na pintura. O cristianismo singular de Nery, entremeado de outras influências, não é tão distante da Teosofia de Piet Mondrian, František Kupka ou Wassily Kandinsky, por exemplo. Esses artistas têm em comum o fato de terem tirado proveito das novas possibilidades plásticas proporcionadas pelos desdobramentos da arte moderna e vanguardista, direcionando-as para a expressão visual de preocupações espirituais e filosóficas. O fato de Nery nunca ter abandonado a figuração e, especialmente, a figura humana, não deve ser visto como um atraso em relação às vanguardas mais radicais da Europa, mas como um aspecto inteiramente coerente com os caminhos de seu próprio pensamento, que refletia justamente sobre dualidades de corpo e espírito, matéria e essência.

7.      De fato, Ismael Nery desenvolveu um sistema filosófico chamado de Essencialismo, que nunca redigiu pessoalmente. O registro mais próximo, que chegou a ser aprovado por ele, foi feito por seu amigo Jorge Burlamaqui e republicado por Murilo Mendes em 1935,[3] já após a morte de Nery; é preciso notar, entretanto, que há uma incontornável vagueza nas explanações. Na definição posterior de Murilo Mendes (1948, p. 65):

8.                                    Era o essencialismo, baseado na abstração do tempo e do espaço, na seleção e cultivo dos elementos essenciais à existência, na redução do tempo à unidade, na evolução sobre si mesmo para descoberta do próprio essencial, na representação das noções permanentes que darão à arte a universalidade.

9.      Depreende-se, bem ou mal, que trata-se de uma tentativa de enxergar a essência, a unidade, através da multiplicidade de variações de um mesmo objeto de investigação no tempo e no espaço - seja ele uma situação ou uma pessoa - com vistas a aproximar-se o máximo possível da verdade, ainda que esta permaneça sendo necessariamente relativa. A expressão plástica dessas ideias é um dos objetivos principais de suas pesquisas na pintura, motivo pelo qual é relevante buscar compreendê-las. Retomarei adiante, sob diferentes aspectos, as manifestações do essencialismo em sua pintura, mantendo em mente a dualidade de espaço e tempo e sua oposição a uma verdadeira Essência. 

O duplo inquietante: primeiro momento da pintura de Ismael Nery

10.    Na obra de Ismael Nery, tão variada em seus aspectos formais e estilísticos, encontramos uma considerável uniformidade de temas, sobretudo na produção inicial que costuma ser chamada de seu “período expressionista” e datada até 1924, expandindo-se também para uma parcela de suas experimentações cubistas até 1927. Além das figuras únicas, geralmente autorretratos, há uma insistência das imagens de duas figuras, seja de casais ou duas mulheres.[4] Apesar de frequentemente portarem traços que ao desenvolver alguma familiaridade passamos a reconhecer como do próprio Ismael e de sua esposa Adalgisa, essas imagens não parecem ter a função de retratos; trata-se antes, nas palavras de Mario de Andrade (1984, p. 59), da “realização dum tipo ideal humano”, ao qual o artista chega através da progressiva esquematização - abstração, se quisermos - das particularidades individuais, restando apenas uma curva do nariz, o formato dos olhos, como indícios de sua identidade.

11.    Nota-se igualmente que a composição dessas pinturas “expressionistas” repete-se constantemente; as figuras são cortadas na altura do busto, ocupando quase toda a superfície da tela, que não fornece referências específicas de espacialidade. As personagens aparecem em contato físico ou - o que neste caso parece ser o mesmo - sobrepostas no plano do quadro. Embora a interação entre elas mostre variações, os diversos exemplos em que uma figura está posicionada atrás da outra, dando por vezes a impressão de sussurrar-lhe ao ouvido, são os mais interessantes e perturbadores dentro da primeira obra de Nery [Figura 1]. Em alguns casos, há uma fusão tão grande entre os dois indivíduos que chegam a compartilhar uma ou mais partes do corpo; é o caso da obra Duas mulheres [Figura 2], em que o olho da figura morena pertence também, por sua posição, à mulher loira.

12.    A sugestão de simbiose e a incerteza a respeito das identidades - serão dois indivíduos ou um só, desdobrado? - provoca no espectador a sensação daquilo que foi descrito por Sigmund Freud como “unheimlich”. Faz-se necessário, para melhor compreensão dos efeitos característicos da pintura de Ismael Nery, tomar um certo espaço para a exposição do “inquietante” (ou “estranho”) freudiano e suas relações com o duplo.

13.    O “unheimlich” é, segundo Freud (1996b, p. 139), “aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”. Um dos elementos que, quando encontrados na literatura e nas artes ou na vida real provocam essa sensação é, justamente, o duplo - por exemplo, na repetição de eventos ou similaridade excessiva entre dois indivíduos. Para Freud e para Otto Rank (2013, p. 138), cujo estudo sobre esse tema é antecedente, o duplo surge como uma concepção primitiva criada pela mente para lidar com a ideia da morte:

14.                                   [...] o narcisismo primitivo, sentindo-se ameaçado pela inevitável anulação do Eu, criou como primeira representação da alma uma imagem o mais idêntica possível ao Eu corpóreo, portanto, um verdadeiro duplo. Assim, a ideia da morte é desmentida através de uma duplicação do Eu que se corporifica na sombra ou no reflexo.

15.    Entretanto, passado esse estágio mental primitivo, o duplo “reaparece na superstição como mensageiro da morte” (2013, p. 142), ou seja, simbolicamente invertido. Para Freud (1996b, p.149),

16.                                   [...] a qualidade de estranheza só pode advir do fato de o ‘duplo’ ser uma criação que data de um estádio mental muito primitivo, há muito superado - incidentalmente, um estádio em que o ‘duplo’ tinha um aspecto mais amistoso. O ‘duplo’ converteu-se num objeto de terror, tal como após o colapso da religião, os deuses se transformam em demônios.

17.    Verifica-se uma ambivalência, portanto, na imagem do duplo; está relacionado em sua origem tanto com um amor excessivo ao Eu, como com a consciência de sua mortalidade - duas questões que encontramos também na pintura de Nery.

18.    Entretanto, os exemplos de duplo que Rank busca na literatura, em autores como Hoffmann, Poe e Dostoievsky, envolvem angústia, medo, vontade de aniquilação do duplo. Não é precisamente esse o caso de Ismael Nery. Se a angústia é em alguma medida visível, em especial em suas obras tardias, há de início antes uma fascinação algo mórbida, uma sensualidade do sentir-se duplo ou de espelhar-se no outro (ou na outra). Embora, segundo relatos, Nery tenha concebido desde muito cedo a noção de sua morte precoce, nessas obras iniciais o artista demonstra um interesse apaixonado pela vida presente em seu próprio corpo e nas experiências que este lhe possibilitava.

Dois e um só: o andrógino e a relação sexual

19.    Um dos aspectos mais frequentemente notados pelos comentadores da obra de Ismael Nery é a androginia manifesta nas figuras de seu período expressionista. Maria Bernardete Ramos Flores (2014) fala sobre esse elemento da obra de Nery e suas raízes na ideia já antiga do andrógino como ser ideal e que resume em si a essência da humanidade. Além da sensualidade, também fortemente marcada na personalidade do artista, existe portanto na figura do andrógino algo que remete à filosofia essencialista de Nery.

20.                                  Para o artista brasileiro, na abstração do tempo e do espaço, não havia lugar para divisões entre sexo, erotismo e castidade, tudo era voltado para uma mesma experiência mística. Seu projeto de desintegração do corpo pictórico encerrava o desejo de encontrar a essência da forma divina como energia pura, o que o levou a criar o sistema filosófico que denominou Essencialismo (FLORES, 2014, p. 829)

21.    Em alguns casos, trata-se de uma única figura que é, ao mesmo tempo, de ambos os sexos; o exemplo mais claro é a aquarela Andrógino [Figura 3]. Mas, em muitos retratos de casal, Nery elimina quase todo indício de gênero específico em ambas as figuras, representando portanto um par de opostos que são também, de certa forma, iguais [Figura 4]. Em ambos os exemplos, é a si mesmo que Ismael representa como andrógino, seus traços misturados aos de Adalgisa em uma representação do “tipo ideal humano” - simultaneamente duplo e uno, como polos positivo e negativo que se neutralizam.

22.    É interessante comparar a versão de Pausânias para o mito grego de Narciso, citada por Rank (2013, p. 116) - em que Narciso confunde o próprio reflexo com a imagem da irmã gêmea falecida a quem amava - com o poema Ismaela (1932), de Nery:

23.                                  A minha irmã é a minha edição feminina e o meu castigo.

24.                                  Dá a todos o que nunca de mulher alguma eu recebi.

25.                                  Se eu não soubesse que sou também o seu castigo

26.                                  Há muito tempo que seria fratricida ou suicida.[5]

27.    No caso de Nery como de Narciso, a irmã (que o pintor não tinha) é tanto o Outro como uma repetição do Eu, realizando a fantasia de ver a si mesmo reproduzido em um ser exterior, em sua versão feminina e portanto passível de ser transformada em objeto amoroso-sexual. O tema do incesto também aparece com frequência em seus poemas, como nesta Confissão do poeta de 1933:

28.                                  Eu tenho um ciúme terrível da minha sogra e do meu genro

29.                                  E uma saudade mortal da minha esposa falecida

30.                                  Eu queria ter sido meu pai ou ser agora a minha nora.

31.                                  Ou ter morrido como meu irmão...

32.                                  No instante em que nasci.

33.    Ismael perdeu seu pai aos nove anos e seu irmão mais novo por volta dos dezoito,[6] após o que sua mãe voltou-se para uma religiosidade intensa. Se não é possível tentar dar conta de sua obra através de dados biográficos como estes, eles servem ao menos como elementos enriquecedores e que conferem densidade psicológica às imagens mentais e pictóricas de Nery.

34.    O artista produziu mais de uma tela com a temática das “irmãs,” seja explicitamente indicada no título, seja implícita na semelhança entre as duas figuras [Figura 5]. A obra O luar (dois irmãos) [Figura 6] é bastante peculiar: as duas figuras titulares são indissociáveis, como que geradas a partir da mesma matéria. Suas feições se misturam e o arco que une as duas metades do rosto parece formar ainda uma terceira entidade. Apesar de referir-se especificamente a dois indivíduos homens, uma ambiguidade de gênero se estabelece em função da forma arredondada no peito da figura à direita, que aparece como um seio em outras obras de Nery.

35.    As diversas representações da relação sexual em sua obra gráfica, embora provavelmente posteriores (Nery não costumava datar seus desenhos), também devem ser comentadas aqui. Nelas, vemos dois corpos transparentes, indistintos, feitos da mesma linha simples e transformada em uma espécie de novelo único [Figura 7]. A profundidade e, consequentemente, a distância entre um e outro são aniquiladas; é impossível separá-los.

36.    Sua solução formal expressa elegantemente a fusão absoluta entre dois indivíduos, que não apenas forma momentaneamente uma unidade composta, mas tem também potencial de gerar um terceiro elemento, como Nery mostra em uma pequena série chamada Origem, que mostra (ainda que fora da ordem natural) os momentos da reprodução humana: formação, embrião, concepção e a “Etapa final” [Figura 8].

O Eu-duplo

37.    Evidentemente, a questão do duplo também está presente, por definição, nos autorretratos. Vale retomar a ideia de Rank a respeito da função do duplo como salvaguarda contra a destruição do Eu. Ismael, que sempre acreditou que fosse morrer precocemente, reinventou incessantemente a própria imagem, adotando diversos papéis como quem experimenta-se em frente ao espelho. Murilo Mendes (1996, p. 60) cita uma afirmação do próprio artista: “Senti sempre uma imperiosa necessidade de representar simultaneamente os papéis mais diversos, e, quanto maior em número fossem eles, mais eu me sentia estável na minha vida pessoal, e incorporado à vida universal”. A dualidade feminino-masculino é apenas uma entre as que Nery explora. Em seus autorretratos deste período, também representa a si mesmo ora como ser divino [Figura 9] - mesmo como Cristo [Figura 10] -, ora satânico ou demoníaco [Figura 11], colocando em questão suas concepções religiosas.

38.    Nestor Habkost (1994) aborda a diversidade de papéis assumidos pelo artista nessa produção expressionista inicial como disfarces para um mesmo Eu, diferentes manifestações deste no plano - apolíneo, segundo o autor - das aparências. Afirma que na representação dos corpos andróginos “Ismael chega à imagem de um corpo único e sintético, como se a busca de uma imagem de si só pudesse se realizar, caso conjugasse todas as imagens possíveis sem ser nenhuma delas.” Comparemos este trecho ao que Freud (1996b, p. 149) define como uma das ideias incorporadas à imagem do duplo:

39.                                  Há também todos os futuros, não cumpridos mas possíveis, a que gostamos ainda de nos apegar, por fantasia; há todos os esforços do ego que circunstâncias externas adversas aniquilaram e todos os nossos atos de vontade suprimidos, atos que nutrem em nós a ilusão da Vontade Livre.

40.    E, por fim, ao poema Oração de I. N. que Ismael escreve em 1933:

41.                                  Meu Deus, para que pusestes tantas almas num só corpo?

42.                                  Neste corpo neutro que não representa nada do que sou,

43.                                  Neste corpo que não me permite ser anjo nem demônio,

44.                                  Neste corpo que gasta todas as minhas forças

45.                                  Para tentar viver sem ridículo tudo que sou.

46.                                  - Já estou cansado de tantas transformações inúteis.

47.                                  Não tenho sido na vida senão um grande ator sem vocação,

48.                                  Ator desconhecido, sem palco, sem cenário e sem palmas.

49.                                  - Não vedes, meu Deus, que assim me torno às vezes irreconhecível

50.                                  A minha própria mulher e a meus filhos.

51.                                  A meus raros amigos e a mim mesmo?

52.                                  Dai-me, como vós tendes, o poder de criar corpos para as minhas almas

53.                                  Ou levai-me deste mundo, que já estou exausto.

54.                                  Eu que fui feito à vossa imagem e semelhança.

55.                                  Amém!

56.    Este poema é possivelmente, de toda a sua obra poética, o exemplo que mais claramente expressa a profunda angústia que parece ter sido a força motriz de seu trabalho artístico, ou seja, a impossibilidade de transcender a contingência e constituir-se como absoluto. De um lado, sonha com englobar em si, que imagina como Uno, toda a diversidade de seres e elementos existentes; de outro, a unidade de que efetivamente dispõe como indivíduo é limitadora, pesam-lhe todos os Eus diversos que sente em si e que não consegue expressar adequadamente. A analogia entre este poema e a pintura Almas num corpo [Figura 12] é evidente; aqui, trata-se da representação visual, projetada no espaço, das identidades múltiplas povoam um só indivíduo.

A fragmentação como busca da essência: o cubismo

57.    Por volta de 1924, Ismael Nery passou a fazer experimentos com uma linguagem mais próxima do cubismo, representando corpos que se desdobram e se decompõem em planos no espaço. Entretanto, longe de substituir os objetivos filosófico-espirituais de sua obra anterior por uma observação fria peculiar ao cubismo analítico, Ismael transforma o estilo em ferramenta de expressão de seu sistema filosófico essencialista. O Essencialismo, como vimos, lidava com a abstração do espaço e tempo, que poderiam ser condensados e vistos simultaneamente. O interesse dos cubistas na representação do movimento, seja do objeto representado ou do ponto de vista cambiante do observador, pode ser visto como a preocupação em condensar, no espaço da tela, mudanças que se dão ao longo do tempo. Entrando em contato com essas tendências, era improvável que Nery não buscasse apropriar-se de uma técnica alheia que lhe abria possibilidades expressivas próprias.

58.    Um aspecto pouco comentado de sua obra, para o qual Tadeu Chiarelli (2004) chama a atenção, é o interesse de Nery pelas tecnologias do cinema e da fotografia, capazes de realizar de maneira mais efetiva do que a pintura essa abstração do tempo e do espaço. Murilo Mendes conta que, ao retornar de sua primeira viagem à Europa, o artista se disse decepcionado com a pintura, que “estava em crise, pois muitas de suas possibilidades deveriam ser realizadas pelo cinema”. Ismael produziu ao menos uma experimentação com a técnica do fotograma: uma imagem de sua própria mão, com o registro de seu movimento e a legenda “a mão que fez os desenhos” [Figura 13]. Chiarelli (p. 173) observa que “além de signo fotográfico, essa imagem pode ser pensada igualmente como cinema - cinema possível de ser alcançado fixando precariamente o deslocar da mão sobre o papel durante a pose”.

59.    Em sua segunda estadia na França, em 1927, entrou em contato com Marc Chagall, com quem desenvolveu uma certa amizade. Encantou-se com as soluções de representação do espaço desenvolvidas pelo artista russo, que possibilitavam comprimir simbolicamente imensas distâncias dentro da superfície da tela. Em sua série de obras ditas “chagallianas,” Ismael explora essa linguagem. Destaco a aquarela Composição [Figura 14] e o óleo Autorretrato [Figura 15] porque, ainda que não sejam os exemplos em que a influência de Chagall aparece com maior clareza, são interessantes por mostrar os usos pessoais - leia-se essencialistas - que Nery dá a essa lógica compositiva.

60.    Na primeira imagem, a gravidade parece atuar a partir do centro da composição, em torno do qual organizam-se em círculo personagens, cidade, montanhas. Na segunda, mais carregado de simbolismo e de sentimento pessoal, o próprio Nery é representado sentado, imenso, tendo à sua direita o Rio de Janeiro e à esquerda, Paris - cada cidade é personificada em um rosto que beija o do pintor. Em ambas as imagens, as distâncias são anuladas, como em sonho. Esse é o primeiro surrealismo de Ismael Nery. Embora costume ser visto como um período único, é preciso diferenciar os temas mais simples e alegres deste momento daqueles que virão em seguida.

Novas dualidades: interior e exterior, vida e morte

61.    Por volta de 1930, a obra de Ismael sofre uma mudança que costuma ser associada à sua convivência próxima com a ideia da morte, em função da tuberculose que contrai em fins desse ano e que de fato ocasionará seu falecimento em 1934, aos 33 anos de idade como - segundo relatos - já há muito tempo havia previsto. O artista praticamente abandona a pintura de cavalete, produzindo grande volume de desenhos e a maior parte de seus poemas conhecidos.

62.    Chamo a atenção para a questão da poesia e da imagem na obra de Nery porque também aí há duplicidade, relação já há muito estabelecida pela literatura artística no debate do “ut pictura poesis”. A palavra, arte do tempo; a imagem, do espaço; cada qual com suas especificidades que nunca são inteiramente traduzíveis na outra. Se considerarmos que Ismael, como filósofo essencialista, via a abstração desses dois eixos como uma necessidade para a compreensão da real condição humana, é evidente que só lhe seria possível ver suas ideias expressas artisticamente se fizesse sua abordagem por ambos os lados.

63.    No que diz respeito às imagens, nesta fase o aspecto do duplo interioriza-se: sua preocupação principal desloca-se da dualidade Eu-Outro para aspectos que dizem respeito somente ao Eu, como corpo e alma, vida e morte, interno e externo. Esse último momento de sua produção é considerado “surrealista” em função das imagens oníricas e da presença de elementos - estátuas clássicas, paisagens desérticas ou com construções desabitadas, entre outros - que remetem bem ou mal aos surrealistas europeus e, especialmente, à pintura metafísica de Giorgio de Chirico.[7]

64.    Ao invés de aparecer como figura multiforme e sensual, Nery passa a retratar-se morto, frequentemente cortado em pedaços ou com o crânio à mostra [Figura 16]. Também figuras alegóricas e até sua esposa Adalgisa [Figura 17] têm seus órgãos internos expostos ou saindo para fora. Não há sangue ou violência - há um interesse mórbido, como um estudo de anatomia fantasioso, nessas figuras que não vivem nem morrem, mas existem na imobilidade de um não-espaço que parece estar além de ambos os estados [Figura 18].

65.    Nestor Habkost (1994) desenvolve uma interessante teoria, identificando três tipos de abordagem do próprio corpo que dizem respeito a diferentes momentos da obra de Nery:

66.                                  Tomando por base sua obra plástico-poética e privilegiando aquelas que são auto-figurativas, cheguei a uma série primeira [fase “expressionista”], onde a representação de si lida com o disfarce, com a aparência: é o teatro do mesmo num palco apolíneo. Uma segunda série traz o corpo desmembrado, traz o não visto interior que desfaz a aparência, mostra a carne crua e nua, a dor do despedaçamento dionisíaco e a vida brotando em cada parte. A terceira série apresenta o corpo metafísico, imaterial, o corpo como volume etéreo que se funde e se deixa transpassar por outros corpos, é uma espécie de nebulosa em movimento.

67.    Essa terceira série é descrita por Habkost como uma solução católica para esse problema do corpo, em oposição ao apolíneo e dionisíaco das anteriores: já não é tão sensual como uma, nem tão carregada de horror como a outra. Despe-se do corpo físico, fonte de prazer e dor, e conserva apenas a alma imortal, sua essência. No poema em prosa Manhã, de 1932, Nery diz: “Olhei-me no espelho e achei excessiva a anatomia do meu corpo, sobretudo da minha cara. Para que olhos, para que boca, para que nariz? [...] O homem deveria ser uma bola com pensamento.”

68.    Algumas de suas pinturas, como Essencialismo [Figura 19] e Eternidade [Figura 20], não estão distantes dessa ideia. É como se nelas o artista pudesse consolar-se a respeito da iminência da morte com a perspectiva de uma permanência da alma - que, devemos lembrar, Rank afirma ser o duplo original. Nery parece alcançar, enfim, uma representação satisfatória de seu essencialismo e de suas angústias existenciais nessas figuras indistintas em que são abolidas as dualidades de gênero, corpo e alma, matéria e essência.

O uno inatingível, o duplo frustrante

69.    Podemos considerar que, para o artista, o apropriar-se de múltiplas linguagens, estilos, personas, servia para compensar o que era visto como a inescapável incompletude de cada um desses elementos quando tomados separadamente. O que Nery almejava acima de tudo, fica claro em seus poemas e no conjunto de sua obra pictórica, era o absoluto; não lhe sendo possível ser simplesmente absoluto, dedicou-se a ser fragmentariamente tudo o que podia ser, desdobrando-se em uma miríade de papéis e utilizando-se de todas as ferramentas disponíveis.

70.    Esse desejo de unicidade, de absoluto, lembra aquilo que é ceticamente descrito por Freud como “sentimento oceânico” no início de O mal estar na civilização. Esse sentimento lhe foi relatado por um amigo, com a hipótese de que seria a fonte original de toda religiosidade no ser humano: “trata-se de um sentimento que ele gostaria de designar como uma sensação de ‘eternidade’, um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras - ‘oceânico’, por assim dizer” (1996a, p. 42). Ao buscar uma explicação psicanalítica para esse fenômeno, Freud lembra que, nas primeiras fases da vida, o recém-nascido não faz a distinção entre ele próprio e o mundo, mas é logo forçado a gradualmente construir esses limites:

71.                                  Nosso presente sentimento do ego não passa, portanto, de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo - na verdade, totalmente abrangente -, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Supondo que há muitas pessoas em cuja vida mental esse sentimento primário do ego persistiu em maior ou menor grau, ele existiria nelas ao lado do sentimento do ego mais estrito e mais nitidamente demarcado da maturidade, como uma espécie de correspondente seu. Nesse caso, o conteúdo ideacional a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e o de um vínculo com o universo - as mesmas idéias com que meu amigo elucidou o sentimento ‘oceânico’. (FREUD, 1996a, p. 44)

72.    Há, se não uma relação direta, ao menos uma analogia possível entre essa ideia e o ideal de Ismael Nery, que poderia ser indistintamente chamado de absoluto, unidade ou Deus. Ao contrário da acepção comum deste último conceito, Nery não enxerga a divindade como algo externo a si, uma autoridade onipotente e avassaladora; antes, o divino é a sensação que tem (ou que expressa, o que é o mesmo, uma vez que consegue concebê-la com suficiente intensidade) de ser uno com o resto do mundo, de ser, ele mesmo, Deus. Mas para além de toda grandiloquência poética, Nery conhece a própria fragilidade - sobre ele, vale repetir o que Maurice Merleau-Ponty (2004, p. 140) disse de Cézanne: “ele acreditou-se impotente porque não era onipotente, porque não era Deus”. Observemos, em seu poema Confissão de 1933, a mescla entre um ardente desejo de absoluto e a desesperadora consciência dos próprios limites:

73.                                  Não quero ser Deus por orgulho.

74.                                  Eu tenho esta grande diferença de Satã.

75.                                  Quero ser Deus por necessidade, por vocação.

76.                                  Não me conformo nem com o espaço nem com o tempo,

77.                                  Nem com o limite de coisa alguma.

78.                                  Tenho fome e sede de tudo,

79.                                  Implacável.

80.                                  Crescente.

81.                                  Talvez seja esta a minha diferença de Deus

82.                                  Que tem fome e sede de mim,

83.                                  Implacável,

84.                                  Crescente,

85.                                  Eterna

86.                                  - De mim que me desprezo e me acredito um nada.

87.    Tadeu Chiarelli (2004, p. 172) comenta também essa meta-dualidade entre uno e duplo (ou múltiplo):

88.                                  Nota-se em grande parte de seus desenhos e pinturas que Nery, usando a metáfora do corpo cindido em partes ou em transmutação, trabalha com o sentido de fragmentação do eu, com a incomunicabilidade e, ao mesmo tempo, com a necessidade de operar com todas as dualidades que o cercavam. Por outro lado, são visíveis em alguns de seus trabalhos os índices do utópico desejo de restabelecer a unidade perdida entre o eu e o outro, as pontes possíveis entre o sujeito e o mundo.

89.    Em toda a sua pintura, em sua poesia e sua filosofia, está presente essa luta. Se mostra-se múltiplo, adotando sempre um novo papel ou um novo estilo, é para melhor abarcar toda a diversidade da experiência. Se busca apagar o tempo e o espaço, as distinções entre os sexos, as próprias características particulares a seu corpo, é porque o tornam contingente, limitado. A dualidade última é, para ele, entre a unidade ideal e a necessária fragmentação do ser; angústia de quem se percebe, a despeito de toda ambição, finito.

Referências bibliográficas

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[1] Essa é a periodização referida por Aracy Amaral (1984, p. 12-13).

[2] A reunião que faz Antonio Bento (1984, p. 177) das duas primeiras fases em uma só, cubista-expressionista, alivia um pouco essa problemática.

[3] Revista A Ordem, março de 1935, p. 187-195.

[4] A ocorrência de duas figuras claramente masculinas é baixíssima, o que não deixa de ser significativo. O autorretrato acompanhado do amigo Murilo Mendes e a pintura O luar (dois irmãos) são os únicos exemplos de que tenho conhecimento.

[5] Todos os poemas citados estão no livro Ismael Nery (2004), organizado por Denise Mattar.

[6] Segundo J. B. Schneider, “a atitude do irmão mais velho em relação ao mais novo é análoga à do auto-erótico em relação a si mesmo” (apud RANK, 2013, p. 127).

[7] Não se pôde verificar se e em que momento Ismael Nery tomou contato com a pintura metafísica ou com Giorgio de Chirico, embora também Aracy Amaral (1984, p. 13) note esta influência.