Assemblagem, oclusão e a arte da sobrevivência no Atlântico
Negro *
Matthew Francis Rarey **
RAREY,
Matthew Francis. Assemblagem,
oclusão e a arte da sobrevivência no Atlântico Negro. 19&20,
Rio de Janeiro, v. XVI, n. 1, jan.-jun. 2021. https://doi.org/10.52913/19e20.xvi1.06
*
* *
1.
Um abscesso arquivístico deforma sutilmente as
páginas de um manuscrito guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT),
em Lisboa, Portugal [Figura
1]. Em 1704, agentes da Inquisição Portuguesa costuraram este objeto na
encadernação dos documentos referentes ao julgamento de Jacques Viegas, um
escravizado “natural da Mina,” que tinha então cerca de vinte anos de idade.[1]
Jacques procurou o Santo Ofício em junho daquele ano, desesperado para
confessar os pecados que o oprimiam. Da bainha da perna de sua calça, ele
removeu uma pequena bolsa de tecido verde e segurou-a para os inquisidores
verem.[2]
Foi por causa dessa bolsa, afirmou Jacques, que demônios o atacaram, agarrando
seus membros enquanto dormia. Nos quatro meses seguintes, os inquisidores
interrogaram Jacques sobre as origens, construção e uso da bolsa. Jacques
explicou que a adquiriu de Manoel, outro homem negro de Lisboa, que fabricava
bolsas que protegiam seus portadores de ferimentos de faca, tiros e forças
malévolas. Através de uma costura aberta na lateral dessa bolsa, ainda hoje se
pode vislumbrar o seu conteúdo: cabelos pretos, sementes, algodão e um pedaço
de papel dobrado [Figura
2]. Manoel sempre enchia suas bolsas com tais substâncias de poder,
mais tarde ativando-as por meio de encantamentos rituais. O segredo da
fabricação das bolsas contrastava, no entanto, com as espetaculares
performances públicas que confirmavam a eficácia das mesmas. Em certa ocasião,
Manoel colocou uma de suas bolsas e cravou uma espada em seu peito “com tanta
força, que a fez vergar, mas não o feriu."[3]
Para Jacques, isso provava que a bolsa não era um objeto ordinário: era mandinga.
Para os inquisidores, tal termo confirmava o pacto de Jacques com o Diabo.
Assim, eles o condenaram a um auto-de-fé, ao açoite público e a três
anos de exílio no sul de Portugal.[4] Embora Jacques jamais tenha voltado a
Lisboa, sua bolsa até hoje lá permanece, preservada entre as páginas
deterioradas que aprisionaram ela própria e seu dono.
2.
Entre meados do século XVII e o início do
século XIX, objetos apotropaicos chamados mandingas circularam em
lugares como a Ilha da Madeira, Cabo Verde, Brasil, Angola e Portugal. Essas
regiões diversas estavam unidas pela governança do Império Português e pela
circulação de ideias africanas gerada pelo comércio transatlântico de
escravizados, um sistema de destruições, fluxos e reinvenções transculturais
que os estudiosos passaram a chamar de mundo do Atlântico Negro (GILROY, 1993;
MATORY, 2005). Quase todas as informações sobre essas mandingas -
incluindo as únicas que restam do período -, sobrevivem nos registros de
julgamentos da Inquisição Portuguesa.[5] Embora esses documentos tenham surgido de
esforços da Inquisição para suprimir e demonizar a prática, os registros da
Inquisição também evidenciam que mandingas são arquivos ricos e até hoje
pouco examinados sobre as experiências dos africanos no início do Atlântico
Negro moderno.
3.
Para os historiadores da arte, as formas e usos
das mandingas apresentam uma série de problemas de definição. Em sentido
estrito, mandinga descreve não a forma de um objeto, mas sua função.
Enquanto mandingas geralmente protegiam seus donos da violência, algumas
podiam intervir em relacionamentos sexuais e românticos, ou mesmo permitir que
escravizados escapassem da vigilância de seus senhores.[6] Embora suas formas pudessem variar muito, uma mandinga
era, na maioria das vezes, uma bolsa de tecido na qual eram colocadas
substâncias de poder. Usadas em todas as classes raciais e sociais, essas bolsas
de mandinga eram produzidas e disseminadas principalmente por africanos
escravizados, cujas biografias cruzaram a África central e ocidental, o Brasil
e, muitas vezes, Portugal. Como os objetos que eles produziram e disseminaram
ao longo do caminho, esses africanos passaram suas vidas navegando, lutando e
reinterpretando uma série de práticas visuais e rituais conflitantes e até
mesmo contraditórias.
4.
Até hoje, as bolsas de mandinga têm
escapado ao escrutínio acadêmico. Historiadores, que muitas vezes consideram as
mandingas um sintoma das relações de poder colonial (SANSI, 2011; SOUZA,
2003; SWEET, 2003) ou uma forma de resistência africana à escravidão (HARDING,
2003), tendem a caracterizar seus conteúdos como transculturações difíceis de
interpretar ou como esforços para mascarar ou estabelecer diálogo entre crenças
nativas da África e influências estrangeiras (LAHON, 2004; CALAINHO, 2008;
SANTOS, 2008). Simultaneamente, Amy J. Buono (2015, p. 25-26) observa que os
historiadores da arte “têm amplamente ignorado as bolsas de mandinga,
nas quais os elementos mais ‘artísticos’ ficam ocultos da vista dentro da
própria bolsa.” Ambas as perspectivas se aproximam da recepção das mandingas
nos registros da Inquisição Portuguesa, onde declarações de ausência de
significação, indecifrabilidade e diabolismo acompanham as descrições de seus
conteúdos. Tal aproximação torna os estudos de história da arte dedicados às bolsas
de mandinga ainda mais urgentes.
5.
Neste artigo, argumento que a aparente
indecifrabilidade e banalidade visual das mandingas não são apenas
questões do debate acadêmico atual, mas eram as suas estratégias estéticas
centrais. Princípios de indeterminação visual, oclusão e assemblagem governavam
a produção das bolsas de mandinga como uma inovação estratégica em
resposta à violência sistêmica e às fronteiras culturais em constante mudança.
Ao ocultar seus conteúdos internos, os fazedores de mandingas (mandingueiros)
experimentaram com uma sempre cambiante assemblagem de substâncias ativadoras
cuidadosamente escolhidas. Paralelamente à experiência de deslocamento e
recontextualização de seus criadores, as bolsas de mandinga abrigavam
uma série de conteúdos que questionavam as fronteiras culturais, as ortodoxias
religiosas e as hierarquias artísticas. Suas formas também eram estratégicas:
as pequenas bolsas se mesclavam com amuletos preexistentes na África central e
ocidental, bem como na Europa cristã. Sua pequenez e leveza também facilitavam
a transferência de pessoa para pessoa. Desta forma, as bolsas de mandinga
incorporaram uma versão móvel do que Cécile Fromont chamou de "espaço de
correlação," no qual seus criadores experimentavam com transformação
cultural e eficácia sociopolítica, longe da supervisão de senhores,
inquisidores e membros de outras elites (FROMONT, 2014, p. 70). No que se
segue, analiso a classificação, construção e uso de bolsas de mandinga
específicas, a fim de investigar as contribuições que elas trazem para o estudo
das culturas visuais da diáspora africana. Ao fazer isso, tomo como fio
condutor conceitual o termo "sobrevivência." Embora este termo aluda
às seminais e frequentemente criticadas pesquisas de Melville Herskovits (1958)
por “sobrevivências” culturais africanas essencializadas nas Américas, aqui
pretendo utilizá-lo para traçar as múltiplas e até mesmo contraditórias linhas
de influência cultural das mandingas como representativas da busca de
seus criadores por segurança e proteção em um mundo violento.
Mandinga entre
etnônimo e feitiçaria
6.
Em meados do século XVIII, pessoas em todo o
mundo afro-português usavam o termo mandinga - a tradução portuguesa de
Mandinka ou Mande - para designar qualquer objeto que pudesse ajudar a proteger
seu usuário de ferimentos de faca, balas e forças malévolas. Não há exata
clareza de como ou por que esse etnônimo africano passou a se referir a objetos
apotropaicos não sancionados pela Igreja Católica. No entanto, uma série de
descrições em português do início do século XVII referentes à costa da Alta
Guiné associavam os muçulmanos Mandinka ao uso de amuletos de couro que
continham orações escritas em árabe (MONOD, MAUNY e DE MOTA, 1951, p. 9).
Embora muitas vezes creditadas como superstição ou idolatria (GUERREIRO, 1930,
p. 403), era particularmente preocupante para os cronistas o papel dessas
bolsas na conversão religiosa das práticas religiosas locais ao Islã. Um relato
de 1606 do padre jesuíta Balthazar Barreira descreve como os muçulmanos
Mandinka na atual Guiné-Bissau colocavam papéis com passagens do Alcorão em
bolsas de couro e, em seguida, disseminavam os amuletos para espalhar o Islã.[7]
Em 1625, o viajante cabo-verdiano André Donelha relatou como os sacerdotes
muçulmanos Mandinka (bixirins) espalhavam “a maldita seita de Maomé” nos
portos marítimos guineenses, vendendo “feitiços em forma de chifres de carneiro
e amuletos e folhas de papel, com inscrições deles” (MOTA e HAIR, 1977, p.
161). Embora, dois séculos depois de Donelha, uma confluência semelhante de
bolsa-amuletos, chifres e talismãs locais aparece sobre os corpos dos sujeitos
retratados na gravura Peuples de la Sénégambie, de Amédée Tardieu, de
1847 [Figura 3].
Aqui, a capacidade das bolsas de operar tradução intercultural age em dois
sentidos: espalhando o Islã, de modo a transformá-lo em novas práticas nativas;
e incorporando, no processo, chifres de carneiro de práticas espirituais
nativas.
7.
Esta integração de práticas anteriormente
estrangeiras confundia os autores portugueses, especialmente quando o que eles definiam
como símbolos cristãos eram incorporados à mistura. Donelha relatou que ficou
“angustiado” ao ver um conhecido seu, o jovem Mandinka Gaspar Vaz, “vestido com
o camisão de Mandinga e com nôminas dos seus feitiços ao pescoço” (MOTA e HAIR,
1977, p 148). Mas Gaspar explicou que sua vestimenta islâmica era simplesmente
uma estratégia para ganhar o favor de seu tio muçulmano, cujos bens Gaspar
estava destinado a herdar. Levantando a bata, Donelha viu que Gaspar vestia uma
“camisa ao nosso modo, e do pescoço tirou um Rosário de Nossa Senhora” (MOTA e
HAIR, 1977, p 149). Embora a explicação de Gaspar tenha satisfeito Donelha, seu
uso da indumentária também pode ser entendido como uma manipulação astuta de
símbolos religiosos a fim de apelar a diferentes sensibilidades religiosas.
Enfrentando este mesmo problema por volta de 1615, Manual Álvares condenou a
apropriação seletiva do Cristianismo na Senegâmbia, dizendo: “Todos eles
praticavam, e sempre haviam praticado, uma forma de Cristianismo que ocultava cerimônias
pagãs, pois eles só se mostravam cristãos aos olhos do padre, enquanto aos
olhos do Senhor eram piores que os pagãos” (HAIR, 1990, p. 1). Neste contexto,
amuletos em forma de bolsa, repletos de escritos árabes e ostentados sobre o
corpo ao lado de símbolos nativos e católicos, já eram agentes de tradução (por
vezes incorreta) e conversão transculturais.
8.
Na virada do século XVIII, os registros da
Inquisição indicam que o termo mandinga foi gradualmente sendo
desassociado de seu referente étnico e transformado em um sinônimo de feitiço,
palavra da qual deriva o termo inglês “fetish.” Feitiço - também grafado
“fetisso” - referia-se a uma gama de forças malévolas invisíveis, bem como aos
objetos materiais que as controlavam, manipulavam ou neutralizavam. Este termo,
como William Pietz (1985, 1987, 1988) rastreou em sua série de artigos
seminais, surgiu do conflito entre sistemas sociais e culturais radicalmente
distintos, mas que, nos séculos XVI e XVII, começaram a se entrelaçar na costa
da África Ocidental. Nesse contexto, certos objetos materiais passaram a
corporificar as impossibilidades da tradução transcultural. Embora Pietz não
mencione explicitamente as bolsas de mandinga, estas ainda assim se
constituíam em feitiços precoces e exemplares, na medida em que incorporavam a
“problemática do valor social dos objetos materiais conforme revelado em
situações formadas pelo encontro de sistemas sociais radicalmente heterogêneos”
(PIETZ, 1985, p. 7). Ao definir esses objetos como feitiços, tanto os inquisidores
quanto seus usuários compreendiam seu poder como originário da “fixação ou
inscrição de um evento originário único que reuniu elementos anteriormente
heterogêneos em uma nova identidade” (PIETZ, 1985, p. 7). Pietz, portanto,
levanta uma série de pontos relevantes para o avenço das considerações a
respeito das bolsas de mandinga. Em primeiro lugar, os elementos
materiais constituintes dos feitiços - e, por procuração, das bolsas de
mandinga - derivavam (e implicitamente acentuavam) suas origens heterogêneas
e estrangeiras. Em segundo lugar, os feitiços materializavam debates sobre a
construção de valores sociais, ou seja, formas estéticas e materiais
particulares eram valorizadas ou ignoradas por pessoas diferentes por razões
diferentes. E, em terceiro lugar, feitiços não eram simplesmente uma
descaracterização europeia das religiosidades africanas, mas sim uma teoria das
relações materiais que evoluiu e se expandiu à medida que o mundo atlântico
amadureceu.
9.
Os registros da Inquisição de meados do século XVII
mencionam cada vez mais africanos escravizados no Brasil e em Portugal que
fabricavam e vendiam bolsas apotropaicas destinadas a proteger contra
ferimentos de faca. O primeiro caso registrado de um africano escravizado
usando tais objetos em Portugal data de 1672, quando um homem chamado Manuel
foi acusado de usar uma bolsa amarrada no pulso para se proteger de ferimentos
de faca, uma teoria que ele buscou provar desafiando um clérigo local a
golpeá-lo com uma espada em uma praça pública em Portugal.[8]
No julgamento de Manuel, suas bolsas são referidas não como
"mandinga," mas como "couro” e “bolsa.” As denúncias
inquisitoriais de usuários de mandingas aumentaram nas décadas após
1700, o que provavelmente reflete o seu crescente uso no mundo Atlântico, bem
como a suspeita inquisitorial a esse respeito.
10.
Esses esforços inquisitoriais para definir e
suprimir mandingas e seus usuários se resumem no termo feitiçaria, a
acusação mais frequentemente levantada contra os mandingueiros. De modo
amplo, feitiçaria era definida como a invocação e a manipulação de feitiços
(materiais e imateriais), bem como de outras forças santificadas ou demoníacas,
para fins específicos. Nos registros da Inquisição, o termo é frequentemente
comparado a, ou mesmo substituído por, bruxaria, sacrilégio ou magia. No
entanto, para muitos, feitiçaria muitas vezes carregava as conotações
particulares de um conhecimento especial de coisas invisíveis ou ocultas, um
tipo de perícia esotérica que permanecia elusiva e temida.[9]
Como tal, feitiçaria era ambiguamente definida como o que ela não era e, ao
longo da primeira metade do século XVIII, costumava ser apresentada como uma
acusação, em oposição a uma autodescrição. À medida que novas práticas caíam
sob a alçada da Inquisição Portuguesa nas décadas após 1700, o equacionamento
inquisitorial de mandinga com feitiçaria refletia um investimento
intelectual não apenas na ideia de uma religiosidade africana definível e
distinta, mas também na sua inerente oposição com relação à prática católica
sancionada. O primeiro dicionário da língua portuguesa, publicado por Raphael
Bluteau, deixa clara a definição inicialmente dupla de mandinga como
etnia e feitiçaria:
11.
MANDINGA. Reino,
e povoação de África, nas terras dos Negros de Guiné, ao longo do rio Gâmbia [...] os negros de
Mandinga são grandes feiticeiros [...] Parece que deste, e de outros
feiticeiros de Mandinga tomaram o nome suas bolsas, que trazem alguns negros,
como que se fazem impenetráveis às estocadas, como se tem experimentado nesta
Corte, e neste Reino de Portugal em várias ocasiões. (BLUTEAU, 1716, p.
286)
12.
Enquanto aqui Bluteau lamenta o influxo de mandingas
na metrópole imperial, ele também parece confirmar sua eficácia. Em seu
verbete, as mandingas realmente agem para proteger seu usuário de danos,
uma opinião que testemunha sua ampla popularidade nas sociedades
afro-portuguesas.
13.
Ironicamente, os próprios portugueses
facilitaram a propagação das bolsas de mandinga pelo Atlântico. Entre
1694 e 1698, as chegadas anuais de africanos escravizados ao Brasil quase
quadruplicaram (Voyages Database, 2017); e, embora durante esse período os mandingueiros
tivessem origem em todas as raças, os clientes de mandingas pareciam
preferir as bolsas de africanos escravizados que haviam passado pelo menos
algum tempo no Brasil. No entanto, nenhum registro da Inquisição existente que
discuta mandingas se refere a um réu de etnia Mandinka.[10]
Em outras palavras, por volta de 1720, o termo “mandinga” não só fora
totalmente desassociado de uma origem étnica identificável, mas era aplicado a
objetos e pessoas cujas biografias cruzavam a África, o Brasil e a Europa
(SANSI, 2011, p. 23; SOUZA, 2003, p. 134). A edição de 1789 do dicionário de
Bluteau torna isso explícito: A definição é simplesmente “Mandinga:
Africana. Feitiçaria” (BLUTEAU, 1789, p. 51).
14.
Os debates do início de 1600 sobre as
afiliações religiosas dos Mandinka e a redefinição gradual do termo como um
objeto de feitiço de inclassificável ou sincrética confusão contrastam, no
entanto, com os esforços para definir Mandinga como um etnônimo em mapas
coevos. O mapa de 1680 de William Berry intitulado Africa: divided according
to the extent of its principal parts exibe tanto o etnônimo, em caixa
baixa, quanto o “Reino” de Mandinga, em caixa alta [Figura 4 e Figura 4, detalhe].
Um pequeno castelo reforça visualmente a designação de “reino,” enquanto uma
linha pontilhada delimita seus limites geográficos. Desta forma, o mapa torna
visíveis etnônimos africanos distintos, que podem ser classificados pelo
observador. Mesmo o título do mapa ativamente “divide [África] em partes [...]
distintas uma da outra,” enquanto essa ação classificatória é sublinhada pelas
linhas pontilhadas coloridas, que delimitam uma série de “impérios, monarquias,
reinos, estados e povos.” O amplo enquadramento do mapa, no entanto, também
torna visível a costa leste do Brasil. Trata-se de uma visão que pretendia
atrair mercadores e traficantes de escravos, mostrando a proximidade geográfica
entre as duas regiões, mas que também incorpora áreas que os fazedores de mandingas
reconheceriam e os inquisidores sabiam serem fundamentais para a construção da
aparente africanidade das mandingas: Portugal e sua colônia brasileira.
Conversões
e transformações do liminar e do estrangeiro
15.
Em 1700, as bolsas de mandinga se
afirmaram como um dos talismãs mais procurados e eficazes no mundo Atlântico.
Mas as mandingas frequentemente funcionavam em diálogo com uma ampla
gama de outros amuletos de proteção. Os africanos no Brasil utilizavam uma
mistura de tatuagens, escarificações, joias, contas, amuletos e medalhas que
Tania Andrade Lima, Marcos André Torres de Souza e Glaucia Malerba Sene (2014,
p. 104) referiram como uma “segunda pele,” protetora e estética, para “fechar o
corpo.” Uma aquarela do final do século XVIII, do artista e coronel
ítalo-português Carlos Julião mostra o papel das bolsas de mandinga
nessa prática [Figura
5].[11] A imagem sem título retrata uma
vendedora ambulante negra no nordeste do Brasil.[12]
Emoldurada contra uma paisagem esparsa, ela equilibra uma bandeja de frutas na
cabeça enquanto carrega uma criança nas costas. Em sua representação, Julião
desvia o quadril e o peito esquerdos da figura para o fundo da imagem, o que
chama nossa atenção para os diversos amuletos e talismãs dispostos sobre seu
corpo. Em torno de seu pescoço, está pendurado um escapulário devocional,
representado como um quadrado preto suspenso por um cordão vermelho, que, na
prática, seria marcado com imagens de ou orações para um santo católico. Outros
objetos pendurados em sua cintura também remetem a afiliações católicas [Figura 5, detalhe].
Os círculos amarelos e vermelhos representam medalhões então comuns, de latão
ou bronze, com imagens de santos e de Cristo. Um deles é identificável:
trata-se, na extrema direita, de uma medalha de prata em forma de coração,
reproduzindo o Sagrado Coração de Jesus - que, no início do século XVIII,
estava bem estabelecido como um símbolo devocional católico popular
(KILROY-EWBANK, 2014). No Brasil da era da escravidão, escapulários e medalhas
como essas eram populares entre os “cristãos novos,” principalmente judeus e
africanos que haviam sido recentemente batizados, por escolha ou à força.
“Cristãos novos” eram os tipos mais frequentemente denunciados à Inquisição sob
a acusação de feitiçaria. Ocasionalmente, tais denúncias eram resultado do que
Julião nos mostra na imagem: a íntima mistura, sobre seus corpos, de objetos
ortodoxos, como escapulários e medalhas, junto com outros amuletos sacrílegos e
símbolos apotropaicos. Uma tatuagem ou desenho de um pentagrama - um símbolo
ocultista e talismânico comum - marca as costas da mão esquerda da mulher,
enquanto duas bolsas pendem de cordas presas ao pano branco que envolve sua
cintura.
16.
As bolsas se destacam nesta ampla gama de
mídias talismânicas por sua aparente banalidade visual e ambiguidade,
fatores-chave para o poder sutil das mandingas. Como o termo mandinga
descrevia a função de um amuleto, não sua forma, a exibição de amuletos e
símbolos apotropaicos sobre o corpo imediatamente levantava questões sobre seus
potenciais poderes. Dentes e cordões de algodão, por exemplo, estão entre os
objetos descritos como mandingas nos registros da Inquisição, enquanto
bolsas podiam servir a outras funções talismânicas ou mesmo práticas distintas
das mandingas.[13] Como tal - e talvez de modo mais nefasto
para os inquisidores -, o escapulário representado por Julião também poderia
ser mandinga e só podia ser distinguido das bolsas ao redor da cintura
de sua personagem por uma eficácia ritual invisível, manifestada por meio de
conteúdos que permaneciam ocultos mesmo quando esses objetos eram
orgulhosamente exibidos. Desse modo, as bolsas de mandinga tanto
escondiam quanto ostentavam o conhecimento esotérico de seus criadores, ao
mesmo tempo que convidavam à especulação sobre a existência e a forma de seus
conteúdos. Esta oclusão estratégica é comparável ao argumento de Mary Nooter
sobre certas artes africanas, já que os poderes das bolsas de mandinga
derivavam parcialmente da “obstrução deliberada, obscurecimento ou retenção” de
seu conteúdo (NOOTER 1993, p. 56). Surpreendentemente, isso é comparável ao
discurso performativo da feitiçaria, levantando questões sobre a relação entre
a estética esotérica de certas sociedades africanas e o discurso emergente
sobre a feitiçaria no início do Atlântico Negro moderno. Roger Sansi, por
exemplo, observa como a feitiçaria depende mais ou menos da retenção
estratégica de uma verdade totalmente revelada, que “só pode ser revelada em
parte, precisamente porque é a ocultação que torna a feitiçaria poderosa”
(SANSI 2011, p. 21). A bolsa joga com o espectador, constantemente exibindo uma
verdade oculta potencial, mas nunca franqueando totalmente a sua revelação.
17.
Os processos da Inquisição também parecem jogar
este jogo, revelando vislumbres rápidos ou descrições do conteúdo das bolsas
de mandinga, mas quase nunca a lógica por trás dele. No entanto, parece
que, conforme as bolsas de mandinga ganharam uma clientela cada vez mais
diversificada nas décadas após 1700, seus fabricantes também começaram a
incorporar novos tipos de conteúdo ao seu arsenal estético, radicalmente
distintos dos papéis com inscrições do Alcorão na costa da Guiné. Registros das
primeiras décadas do século XVIII dão uma ideia desses tipos de inclusões. Em
Pernambuco, em 1719, Luís de Lima comprou uma bolsa de mandinga contendo três
orações católicas, um pedaço de pedra de altar (pedra d’ara) e o osso de
uma pessoa morta.[14] Em Portugal, em 1729,
Pedro José possuía uma mandinga de tecido vermelho contendo um “osso
nela, e cabelos,”[15] enquanto três anos depois Antônio de
Sousa recebeu uma mandinga que continha um chifre, papel branco e
algumas “penas vermelhas de algum pássaro do Brasil.”[16] E em Angola, em 1715, Vicente
de Morais recebeu uma bolsa de mandinga que continha “umas orações em
Latim” e “uma coisa verde que ele não conheceu.”[17]
18.
Diante das dúvidas dos inquisidores, Luís,
Pedro José, Antônio e Vicente deram poucas informações sobre o que pensavam a
respeito do conteúdo de suas bolsas. Mas, em conjunto, os conteúdos que eles
descreveram fornecem uma seção transversal tentadora da lógica por trás da
produção das mandingas: um assemblagem material que privilegiava
inclusões despretensiosas, transformativas, liminais e estranhas. Elementos
relacionados aos processos de conversão, sejam eles religiosos ou materiais,
abundavam dentro das bolsas. Somente por meio da interação com pedaços de pedra
d’ara, por exemplo, a hóstia católica não consagrada poderia se transformar
no corpo físico e no sangue de Jesus. A habilidade das pedras d’ara de
transformar pedaços de pão inertes na carne e sangue divinos exemplifica a
habilidade das mandingas de santificar objetos aparentemente cotidianos
e, portanto, teria sido inestimável dentro de uma bolsa com objetivos
semelhantes. Enquanto isso, os ossos, outra inclusão comum, também cruzavam as
linhas entre vida e morte - assim como as mandingas deviam fazer para
funcionar eficazmente -, ao mesmo tempo em que faziam eco a suas empoderadoras
inclusões em relicários católicos. O fato de tais ossos serem frequentemente
coletados em cemitérios, à meia-noite, reforça que seu poder derivava desses
tempos liminares.
19.
Dentro das bolsas de mandinga, a escrita
muitas vezes desempenhava uma função fundamental. Papéis cobertos com desenhos,
orações e orações serviam, talvez, para enredar a efemeridade da linguagem,
transformando-a em tinta e papel. Por exemplo, em 1765, um papel apotropaico
usado por Silvestre de Pinho, um negro livre de dezesseis anos do extremo sul
do Brasil, transformava medalhas, cruzes e tatuagens em tinta [Figura 6].[18]
Amassado de tanto ser dobrado, o papel é aqui mostrado aberto para revelar os
símbolos que o transfiguram em um objeto de poder. Um pentagrama como o da mão
da mulher na imagem de Julião - aqui emparelhado com uma série de cruzes -
aparece mais uma vez, “tatuado” no papel da mesma forma que havia sido tatuado
na pele. Cada símbolo se mistura com orações curtas e assinaturas, enquanto
pequenas cruzes, colocadas aparentemente ao acaso no papel, se assemelham a
marcas de pontuação apotropaicas.
20.
Como receptáculos para o estrangeiro e o
desconhecido, também leio as mandingas como uma maneira que seus
criadores usaram para tentar mapear, ou arquivar, suas experiências pessoais no
mundo do Atlântico Negro, baseado na transformação cultural e na destruição
provocada pela escravidão. Os conteúdos despretensiosos, liminares e/ou
aparentemente inclassificáveis de algumas mandingas parecem ser as
meditações estendidas de seus criadores sobre a definição de bruxaria de
Michael Taussig (1991, p. 465) como um "ponto de encontro para a
alteridade." Moedas, sistemas de escrita, símbolos religiosos e exóticos
de todo o mundo Atlântico abundam nas bolsas de mandinga. Diante disso,
as penas de aves brasileiras ganham novos significados potenciais. Permitindo a
liberdade de movimento no céu e marcando um ponto de origem que cruza o oceano,
tais penas se contrapõem às migrações forçadas de africanos escravizados pelo
Império Português. Isso ressalta de que modo as manifestações de origens
estrangeiras emergiram como elementos constitutivos do poder dos feitiços. Na
verdade, o próprio termo mandinga aludia a uma africanidade estrangeira
genérica e, portanto, aos poderes particularmente eficazes derivados de objetos
e lugares estrangeiros.
21.
Produzindo a partir de uma ênfase nos aspectos
liminar, transformativo e estrangeiro, parece que os mandingueiros
frequentemente buscavam objetos que desafiavam classificação. Cabelos, ossos e
chifres, que eram inclusões comuns em mandingas, resistem a definições
claras de uso e interesse estético.[19] Ao incluir essas substâncias, os mandingueiros
enfatizavam o sigilo do conhecimento que possuíam, um conhecimento que
cuidadosamente identificava e aproveitava os poderes de objetos e símbolos
cotidianos por meio de uma recontextualização dinâmica. Esse ponto se evidencia
na rápida descrição de Vicente de Morais da “coisa verde que ele não conheceu,”
ou seja, um objeto que provavelmente foi escolhido não apesar de sua
ilegibilidade visual, mas justamente por causa dela e dos efeitos
sobrenaturais que visualmente transmitia. A ilegibilidade, portanto, funcionava
tanto como uma estratégia de sigilo quanto de eficácia, como uma incorporação
do discurso da feitiçaria, e, talvez, para os escravos, como um momento de fuga
da vigilância e controle organizados.
22.
Como instrumentos de conversão material e
religiosa, como métodos de captura de uma vida fugaz e precária, e como exames
do poder do desconhecido, as bolsas de mandinga intervieram e
encapsularam um mundo Atlântico cada vez mais diverso e interconectado, baseado
em vazantes, fluxos e instabilidades. A própria mandinga circulava entre
esses reinos, incorporando os materiais que capturava ao longo do caminho.
Nesse sentido, as mandingas mapeiam tanto a experiência pessoal de seus
criadores quanto a totalidade do mundo Atlântico vivido pelos escravizados.
Mas, para a Inquisição Portuguesa, as práticas espirituais polimórficas
exibidas dentro das bolsas de mandinga exemplificavam uma mistura
religiosa nefasta, que ameaçava a estabilidade da doutrina católica. Tal mistura
frequentemente resultava na prisão e nos julgamentos dos fabricantes de mandingas,
durante os quais os inquisidores dramaticamente abriam as mandingas a
fim de definir e classificar o conteúdo interno que lhes conferia seu poder
mágico. No entanto, ao serem confrontados com esta ladainha de materiais
transformativos e liminares, os inquisidores portugueses frequentemente
manifestavam confusão ou desinteresse pelo significado das substâncias. O
conflito entre a oclusão visual, as ambiguidades dos catolicismos heterodoxos e
a eficácia potencial do conteúdo das bolsas se manifesta mais claramente na
prática de José Francisco Pereira.
José
Francisco Pereira: um estudo de caso
23.
José Francisco Pereira, natural de Ouidah, foi
preso em Lisboa sob acusação de feitiçaria em 1730.[20]
Nascido na África, escravizado no Brasil e finalmente levado para Portugal,
Pereira emergiu como um dos mandingueiros mais procurados de Lisboa. O
processo de seu julgamento contém o registo mais extenso e detalhado da
produção de mandingas na Lisboa do século XVIII. O processo
inquisitorial referente ao seu cúmplice, José Francisco Pedroso, contém uma
série de sete desenhos que Pereira colocava dentro das bolsas de mandinga,
e que foram apresentados como prova em seu julgamento.[21] A partir deles, assim como das
descrições da dupla de acusados, podemos indicar como a prática de Pereira não
só embaralhava uma distinção emergente entre a iconografia de feitiços
entendidos como africanos e a católica, mas também servia de espaço para forjar
a reinvenção dinâmica de suas próprias experiências rituais e religiosas, como
desafios potenciais para as realidades diárias da escravidão.
24.
À primeira vista, os desenhos de José Francisco
exibem, em conjunto, o que os inquisidores poderiam identificar como uma
iconografia católica permissível. Em uma das três imagens quase idênticas que
ele produziu [Figura
7], José Francisco desenhou ao centro uma cruz, acentuada por uma lança
e uma vara encimada por uma esponja. No topo, um símbolo de coração é
atravessado por duas flechas - uma imagem provavelmente derivada dos símbolos
do Sagrado Coração de Jesus acima referidos. Já o símbolo circular no centro
derivava da vasta gama de medalhas devocionais e moedas transformadas em
amuletos que circulavam nos corpos das pessoas em todo o mundo afro-português.[22]
As duas linhas que se cruzam sobre o círculo representam a lança e a esponja
usadas durante a crucificação de Cristo, que aqui são convertidas em linhas com
penas. Elas evocam, assim, a pena que José Francisco teria usado para criar
seus desenhos: trata-se de um momento de autorreflexividade, no qual os
conteúdos das mandingas refletem sobre a sua própria produção.
25.
Em outra imagem, desenhada em tinta preta e
sangue vermelho, José Francisco retrata as Arma Christi, uma coleção de
objetos e referências a eventos relacionados à paixão de Cristo [Figura 8]. Este
agrupamento de símbolos era usado em toda a Península Ibérica e no sul da
Europa já no século IX (BERLINER, 1955; GAYK, 2014). Uma cruz, encimada com as
letras INRI, é flanqueada, à esquerda, pela coluna da flagelação de Cristo,
sobre a qual vemos o galo que cantou quando da terceira negação de Jesus por
Pedro. A escada, à direita, foi usada para a deposição do corpo de Cristo da
cruz, enquanto a presença de uma caveira e ossos cruzados, abaixo da cruz, era
geralmente interpretada como o túmulo de Adão. Hoje em dia, uma cromolitografia
das Arma Christi é comumente usada para representar Olofi, o
ser-criador, em velas que homenageiam um grupo de sete orixás da religião
afro-cubana de Regla Ocha, ou Santería [Figura 9]. Embora
eu não esteja defendendo uma linhagem direta entre a imagem de José Francisco e
o uso das Arma Christi nas práticas religiosas de matriz africana
contemporâneas em Cuba e nos Estados Unidos, a identificação de longa duração
da iconografia aparentemente católica com religiosidades africanas nos estimula
a traçar a gênese dessa distinção, especialmente como ela se dá no interior das
bolsas de mandinga e nas páginas dos processos da Inquisição.[23]
Com efeito, Vanicléia Silva Santos (2008, p. 200) sugeriu que a obra de José
Francisco atuava na intersecção de “manifestações de religiosidades Kongo e
católica,” aprendida no Brasil junto a indivíduos oriundos da África Central,
que deveriam estar familiarizados com, ou praticar, compreensões
particularmente africanas do catolicismo antes mesmo de sua escravidão
(FROMONT, 2014; THORNTON, 1984; THORNTON, 2016). Este ponto parece ser reforçado
quando se considera o forte estabelecimento, no início do século XVIII, de
comunidades rituais da África Central em Pernambuco e Rio de Janeiro (SWEET,
2011, p. 61), duas regiões onde José Francisco foi escravizado enquanto esteve
no Brasil.
26.
O registro do julgamento de José Francisco
contém descrições detalhadas de sua trajetória de vida, permitindo-nos refazer
ou inferir aspectos-chave de sua experiência. que podem ter influenciado sobre
sua prática pessoal. Isso ajuda a contextualizar como ele pode ter entendido
símbolos como as Arma Christi, ao mesmo tempo que fornece estruturas
para interpretar outros aspectos materiais de suas bolsas de mandinga.
José Francisco Pereira nasceu por volta de 1704, provavelmente no Reino do
Daomé ou nos seus arredores, durante a expansão militar desse reino.
Prisioneiros de guerra e pessoas que fugiam da violência constituíram muitos
dos que se viram capturados e escravizados em portos da costa e, eventualmente,
transportados em navios destinados às Américas. Imerso nessas mudanças por
volta de 1718, José Francisco foi escravizado e vendido em Ouidah. Apesar da
diversidade política e regional existente entre aqueles que eram reunidos nos
navios negreiros, provavelmente havia algumas semelhanças gerais que os uniam,
incluindo a língua e uma formação religiosa baseada no culto aos voduns.
27.
Dana Rush (2010) esboçou convincentemente os
princípios estéticos do culto aos vodun como uma dialética entre o
"efêmero" e o "inacabado." Em vez de vincular seus
praticantes a uma espécie de ortodoxia ritual, o vodun deve
necessariamente e continuamente permanecer aberto a novas ideias e influências.
Isso é reforçado pelo envolvimento físico que os praticantes têm com objetos do
vodun, sintetizados como uma "assemblagem" (BLIER, 2004): os
altares devem constantemente receber novas ofertas para substituir as antigas;
os conjuntos efêmeros devem ser destruídos para fazer explodir seu potencial de
ativação; e é privilegiada a inclusão de objetos anteriormente estranhos -
novos acréscimos à estética do vodun, que mantêm a religião vibrante,
viva e poderosa. Essa estética pode ser entendida como uma resposta ao e um
sintoma do período e da região em que José Francisco foi escravizado. A região
Aja-Fon no início do século XVIII era caracterizada por instabilidade política,
fome e doenças, que contribuíram para a migração e formação de novas
comunidades rituais e dos espíritos a elas associados. Embora apenas um
adolescente na época, pode-se presumir que José Francisco deixou a África com
uma compreensão ampla de um grupo de espíritos intercessores exigentes e sempre
cambiantes; uma ênfase no papel da reclusão e sigilo rituais na manifestação do
poder das divindades; uma crença na mutabilidade e transformação de algumas
dessas mesmas divindades; e conhecimento da capacidade da estética acumulativa
em manifestar o poder dialético das forças divinas. José Francisco usou esses
aspectos como marcos gerais para o amplo espectro de experiências culturais que
desenvolveu em sua prática.[24]
28.
Um tipo de objeto vodun pode ter
desempenhado um papel fundamental nesse processo: trata-se de assemblagens
“empoderadas” chamadas bo, que, na região de Aja-Fon, continham uma
série de capacidades protetivas e de intervenção. Curiosamente, bo possuíam
uma variedade de formas com corolários nas posteriores bolsas de mandinga,
como substâncias do mundo natural amarradas em feixes e penduradas no corpo [Figura 10].[25]
Bocio - os "cadáveres empoderados" que servem como corolários
escultóricos do bo tipicamente não-figurativo - fornecem outra
perspectiva para as mandingas de José Francisco. Na análise de abertura
de seu trabalho definitivo sobre bocio no Benim e no Togo, Suzanne Blier
(1995, p. 1) descreve o efeito de um bocio no qual “uma gama de emoções
parece explodir de dentro, a escultura quase se superando e transgredindo seus
próprios limites.” Tal estética, observa Blier, serve como uma manifestação
material e performativa de males psicológicos, por meio da qual seus criadores
literalmente despejam os destroços e o peso de suas vidas em um intermediário
escultórico. Soterrados por pesos, grilhões e matéria assemblada, suturados
junto com os detritos do trauma cultural, bocio espelham o caráter
amorfo contido nas bolsas de mandinga de José Francisco. Blier
interpreta, de forma convincente, o uso de figuras bocio em torno do
Daomé como uma forma de lidar com as instabilidades sociopolíticas forjadas
pelo comércio interno e transoceânico de escravizados. Entender as bolsas de
mandinga de José Francisco como uma espécie de bo ou bocio
fornece uma perspectiva necessária sobre a estética de sua própria escravidão,
ao tentar resolver um problema central que ele enfrentava: José Francisco não
podia despejar seus fardos em um intermediário escultórico - ele tinha que
carregá-los com ele através do Atlântico, dentro dos objetos que produzia. Em
certo sentido, as bolsas de José Francisco funcionavam para protegê-lo de novas
violências e traumas; mas, fazendo isso, ele necessariamente teve que
incorporar o que provavelmente ansiava por abandonar.
29.
Podemos apenas especular sobre o que essa
mentalidade significaria quando José Francisco chegou ao Brasil, onde foi
batizado como cristão e exposto aos símbolos e orações desse novo sistema
espiritual. Lá, ele entrou em outro mundo religiosamente fluido, onde o ritual
e a iconografia católicos podiam ser incorporados e reinventados como culto ao vodun.
James Sweet lembra de um caso de 1740, por exemplo, no qual um grupo de negros
escravizados e libertos em Pernambuco foi encontrado cometendo “ritos
abomináveis” diante de uma imagem de Cristo, deitada no chão e decorada com
flores - um ritual fortemente sugestivo de templos Aja-Fon do início do século
XVIII (SWEET, 2011, p. 63). Por sua vez, José Francisco provavelmente teria
reconhecido essa fluidez do culto vodun em outras imagens e ideias que
encontrou no Brasil, que compreendiam alusões a rituais da África Central,
formas indígenas e imagens católicas adaptadas. Com efeito, José Francisco
conheceu as mandingas no Brasil, por meio de outro africano chamado
Zamita. Quando chegou a Portugal, José Francisco constatou que o seu nascimento
africano e a passagem pelo Brasil já o haviam transformado em um mandingueiro:
“muitos pretos o perseguiam a ele declarante,” registar o seu julgamento na
Inquisição, “porque [ele] havia de ter trazido [mandingas] de lá [Brasil].”[26]
Se valendo de sua formação e conhecimentos como base para um novo
empreendimento de fabricação e venda de mandingas, José Francisco
estabeleceu-se como o líder de um mercado produtivo para africanos em Lisboa.
Mas este sucesso teve um preço, e ele foi preso pela Inquisição no verão de
1730.
30.
Embora oficialmente a Inquisição definisse as mandingas
como equivalentes à feitiçaria, a estética transmidiática e de assemblagem que
governava a produção de mandingas de José Francisco contrastava
fortemente com o investimento dos inquisidores em delinear ortodoxia e
sacrilégio. Este diálogo se evidencia nas Arma Christi de José
Francisco. Tanto no Brasil quanto em Portugal, José Francisco teria encontrado
as Arma Christi em uma ampla variedade de formas. Elas se manifestavam
como uma assemblagem figurativa que era carregada durante as celebrações da
Semana Santa [Figura
11]; como uma pequena imagem em manuscritos devocionais; como um
pingente usado no corpo [Figura 12]; etc. Oscilando entre emblema, talismã e
relíquia, cada uma dessas formas enfatizava visões efêmeras e uma controlada
revelação sobre as formas institucionalizadas de experiência religiosa, que
foram tratadas com suspeita crescente após a Reforma (GAYK, 2014, p. 275). A
promiscuidade das Arma Christi, atravessando uma variedade de mídias,
acentuou seu poder transformador, ao resignificar os instrumentos da tortura de
Cristo em símbolos de proteção pessoal e redenção. Como José Francisco viu
pingentes semelhantes circulando pelo Brasil e Portugal, sendo carregados nos
corpos de “novos cristãos” e em diálogo com outros mandingas e
escapulários, ele adotou este símbolo em seu arsenal de ferramentas
talismânicas, em especil por conta de sua função apotropaica.
31.
Os registros do julgamento de José Francisco
também afirmam que suas mandingas costumavam incluir enxofre, pólvora,
sílex, balas, o osso do dedo de um cadáver, cópias da oração de São Marcos e um
vintém, uma pequena moeda de prata portuguesa. Embora seja difícil
interpretar essas substâncias, elas coletivamente falam sobre as amplas
preocupações e crenças do mandingueiro a respeito da eficácia de
substâncias transformadoras com poderes aparentemente sobrenaturais.
Curiosamente, argila de caulim, enxofre e pólvora são substâncias importantes
para a escrita gráfica feitas no chão em práticas rituais Kongo contemporâneas,
em Cuba e no Brasil (MARTÍNEZ-RUIZ, 2013, p. 74). Embora eu não esteja defendendo
uma ligação direta, o uso contemporâneo dessas substâncias potencialmente
ilustra algumas das preocupações de José Francisco. A pólvora, de queima
rápida, é escolhida para problemas que requerem atenção imediata e, portanto, é
preferida na proteção física de pessoas; já o enxofre, de queima mais lenta, é
escolhido devido à sua eficácia prolongada. A analogia é instrutiva: o enxofre
amarelo - que rapidamente irrita o olfato, mas que queima lentamente -, confere
à mandinga um longo período de eficácia; já a pólvora - ela própria parte
enxofre e parte carvão, os restos queimados de matéria orgânica - age rápida e
violentamente. Enxofre e pólvora transformam-se em fogo com apenas uma faísca,
acesa por uma pederneira, que dispara a arma de fogo simbólica a qual José
Francisco alude dentro de suas mandingas, ao incluir uma bala.
32.
Operando como uma espécie de bocio
móvel, as mandingas de José Francisco contêm representações metafóricas
dos perigos dos quais ele procurava se proteger. O aprofundamento desta dialética,
onde substâncias e símbolos do quotidiano representam proteção e perigo, requer
uma reconsideração das Arma Christi de José Francisco. Enquanto os
símbolos representados com tinta preta parecem ser, no geral, símbolos de
proteção, como as próprias Arma Christi, os símbolos representados em
vermelho - especificamente sangue de uma galinha ou do braço de José Francisco
- parecem ser aqueles contra os quais José Francisco tenta se imunizar:
soldados segurando espadas; a caveira e os ossos cruzados; e,
surpreendentemente, o brasão do Império Português [Figura 8, detalhe].
Este símbolo teria acompanhado José Francisco em toda a sua odisseia pelo
Atlântico Negro. Ele recebeu-o no porto de escravos em Ouidah e adornava o
navio que o transportou para o Brasil. Provavelmente, tal símbolo se
encontraria na igreja em que ele foi batizado, ou em outros prédios públicos em
Pernambuco, Rio de Janeiro e Lisboa. Dentro de suas mandingas, José
Francisco optou por incluir o brasão não uma, mas duas vezes: primeiro nas Arma
Christi, depois no reverso da pequena moeda de prata incluída na mandinga
[Figura 13].
Este vintém de prata data do reinado de João V, durante o qual José
Francisco foi escravizado na África, levado para o Brasil e finalmente julgado
em Lisboa. Feito de prata provavelmente extraída das Américas, enviada para o
outro lado do oceano e transformada em uma nova forma que circulava entre os
órgãos e instituições por onde José Francisco navegou ao longo de sua vida, tal
inclusão não era incidental à sua estética acumulativa. Um homem escravizado e
levado a julgamento pelas autoridades portuguesas, José Francisco pode ter
pretendido reorientar e reimaginar as forças por trás deste símbolo, como fez
com as balas e as orações. Desse modo, José Francisco reformulou sua própria
necessidade de proteção, tal qual a contraditória insistência da Inquisição em
definir ortodoxia e sacrilégio e como ela se desenvolve dentro da mandinga:
ou seja, como um esforço para dar sentido e processar o pluralismo religioso
que o Império Português criou.
Conclusão
33.
José Francisco Pereira não era um
preservacionista cultural africano. Ele incorporou novos símbolos e materiais
em uma prática que operava através dos poderes de objetos que eram
representativos e que respondiam a sua escravidão. Deste modo, ele procurou
navegar nas realidades pluralistas do mundo afro-português. Suas bolsas também
se adaptaram a novos contextos e incorporaram o que lhe permitia sobreviver.
Sua portabilidade, incorporação dinâmica de novos elementos e oclusão de seus
próprios conteúdos tornavam as bolsas de mandinga opções rituais
atraentes para africanos escravizados. A ameaça mágica representada por essas
bolsas residia, no entanto, em seu potencial para incorporar substâncias
desafiadoras e invocações sobre os corpos de africanos, e elas o faziam mesmo
quando inquisidores ou promotores abriam e detalhavam seus conteúdos. Ao
resignificar o estrangeiro como familiar, o perigoso como protetor, e o
aparentemente católico como feitiço, os mandingueros abriram a
possibilidade de que qualquer objeto ou símbolo pudesse ser empoderado e se
voltar contra as intenções daqueles que os criaram.
34.
No entanto, embora em certo sentido eu leia mandinga
como um exemplo dinâmico de estratégica de invenção cultural africana e de
resistência contra-hegemônica em espaços transculturais, parar por aí seria
negligenciar o outro papel central das mandingas: o de uma resposta à
violência sistêmica enfrentada por aqueles que as fabricavam e usavam. Embora
nunca possamos saber ao certo, as balas incluídas por José Francisco poderiam
relembrar um dos seus próprios encontros com a violência; nesse sentido, as
balas tornam-se manifestações físicas do que R. Ben Penglase (2011, p. 412)
chama de “in(segurança)” de seu dono. Essas inseguranças também pesavam sobre
Jacques Viegas quando ele invadiu o salão da Inquisição em 1704. Depois de
sobreviver a uma luta de facas em uma igreja, Viegas estava ansioso para
encontrar algo para se proteger de mais danos. A bolsa de mandinga que
lhe foi oferecida, porém, virou-se contra ele. Levando demônios ao seu encalço,
acabou resultando em punição severa e a mais um exílio forçado, pelo menos o
terceiro de sua até então curta vida.
35.
Nas entranhas dos navios negreiros, nas plantations
e cidades portuguesas, os escravizados africanos entraram em contato com novas práticas
culturais e concepções de identidade que eles não só tiveram que negociar, mas
muitas vezes tiveram que assumir e fazer suas próprias, como meio de
sobrevivência. A criação e adoção de novas identidades e sistemas religiosos
envolveram o apagamento - muitas vezes por meios violentos - de entendimentos
anteriores de pertencimento comunitário, ocasionados por rupturas radicais,
conflitos interétnicos, migrações forçadas e diminuição populacional. Neste
mundo, uma pequena bolsa portátil que oferecia proteção contra a violência pode
ter sido a única ferramenta à disposição. Outros escravizados, que não
sobreviveram tanto quanto Jacques Viegas ou José Francisco Pereira, tinham
nomes que nunca aparecerão nos registros inquisitoriais. Eles provavelmente nunca
foram capazes de escolher por constituir uma nova identidade, interpretar novas
linguagens simbólicas ou se proteger com uma pequena bolsa.
Tradução de Arthur Valle,
revisão de Matthew Francis Rarey
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______________________________
Agradeço a Ana Lucia Araújo, Yaëlle Biro, Jill Casid, Henry Drewal, Cécile
Fromont, Lindsay Fullerton, Susan Gagliardi, Peter Minosh, Tamika Nunley, James
Sweet, Katharine Wells, Danielle Terrazas Williams, e ao revisor anônimo por
sua ajuda e feedback sobre versões anteriores deste artigo. Gostaria de agradecer em particular a Cécile Fromont, pois
ambos trabalhamos em estudos descritivos e interpretativos de bolsas de
mandinga. Animados por um desejo mútuo de inquerir sobre o que esses
objetos podem nos dizer a respeito da escravidão e da cultura visual do
Atlântico negro, nossa pesquisa se beneficiou de conversas francas, informações
compartilhadas e feedback editorial nos últimos três anos. Com tal
intercâmbio, as conclusões compartilhadas são inevitáveis e
bem-vindas. Meus generosos colegas da University of Wisconsin-Madison, da
University of Wisconsin-Milwaukee e do Oberlin College também ofereceram úteis
sugestões. Apresentei partes deste trabalho nas conferências da College Art
Association (2015), da African Studies Association (2016) e do Arts Council of
the African Studies Association (2017). Agradeço aos meus colegas painelistas e
aos membros da audiência nestes locais por suas perguntas e comentários. A
Conference on Latin American History, o Council on Library and Information
Resources, a University of Wisconsin-Madison, e o Oberlin College forneceram
apoio financeiro para a pesquisa deste artigo.
* Originalmente publicado como: RAREY, Matthew Francis. Assemblage,
Occlusion, and the Art of Survival in the Black Atlantic. African Arts 51:4 (Inverno 2018), p. 20-33. As citações de
época tiveram suas grafias atualizadas.
**
Historiador
da arte Africana e do Atlântico Negro, e Professor no Departamento de Arte do
Oberlin College, Ohio, EUA. URL: https://www.oberlin.edu/matthew-rarey
[1] Os comerciantes portugueses de escravizados
referiam-se aos africanos nascidos no continente como “naturais” do seu porto
de embarque. Chamar Jacques de “natural da Mina” significava dizer que ele foi
vendido a comerciantes na, ou perto da, cidade de Ouidah, localizada na atual
República de Benim.
[2] Arquivo Nacional da
Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Processo 2355, f. 7r.
[3] ANTT, Inquisição de
Lisboa, Processo 2355, f. 7v.
[4] ANTT, Inquisição de
Lisboa, Processo 2355, f. 38r e 42r. Um auto-de-fé era um ritual público
de penitência perfromado pelos que eram julgados culpados pela Inquisição
Portuguesa. O auto-de-fé de Jacques foi realizado na Praça do Rossio, em
Lisboa, em 19 de outubro de 1704, antes de seu açoite e exílio. Ver ANTT,
Inquisição de Lisboa, Autos da Fé, Livro 7, f. 181r.
[5] Calainho (2008) realizou
um estudo aprofundado dos fabricantes de mandingas denunciados e
julgados pela Inquisição em Portugal. Para uma história geral da Inquisição
Portuguesa, ver Marcocci e Paiva (2016).
[6] Ver, por exemplo, ANTT,
Inquisição de Lisboa, Processos 502 e 15628.
[7] ANTT, Cartório dos Jesuitas, Maço 68, Doc. 119.
[8] ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do
Promotor, no. 51, Livro 248, f. 283r-285v. Sweet (2009, p. 197) também discute
este julgamento.
[9] Para uma visão geral nuançada das definições
históricas de feitiçaria e suas problemáticas traduções, ver Bethencourt
(2004), que também observa que o dicionário português de Raphael Bluteau (1713,
p. 63-64) confere “primado ao conhecimento das coisas ocultas entre as
motivações das feiticeiras” (BETHENCOURT, 2004, p. 57).
[10] Santos (2012) corrige.
de forma inteligente, especulações anteriores de que as bolsas de mandinga
no Brasil e em Portugal foram produzidas por Mandinkas.
[11] Embora os originais
estejam na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, as pranchas foram
reproduzidas em cores em Julião e Cunha (1960). Para uma análise da obra de
Julião, ver Silva (2010).
[12] É provável que Julião
pretendesse que esta imagem representasse uma mulher nascida na África
Ocidental. Julião incorporou uma versão ligeiramente adaptada desta imagem,
rotulada como “preta Mina da Bahia,” no registro inferior de seu
panorama-colagem intitulado Elevação e fachada mostrando em perspectiva
naval a cidade de Salvador (1779), hoje conservado no Gabinete de Estudos
Arqueológicos e da Engenharia Militar em Lisboa. Lara (2002, p. 137) argumenta
que essa designação indica a identidade transatlântica e fluida da vendedora de
frutas, que é “baiana” (ressaltando, assim, sua escravidão no Brasil), mas
permanece “Mina,” etnônimo que na época era aplicado por comerciantes escravistas
portugueses a africanos escravizados no atual Benim e arredores.
[13] Em 1656, Crispina Peres Banhu, uma parda
(mestiça) em Cacheu (atual Guiné-Bissau), usava cordões de algodão que ela
chamava de “mandinga,” amarrados na cintura, para facilitar o trabalho de
parto: ver ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo 2079. Na década de 1720, José,
um africano escravizado no Porto, usava um dente de “mandinga”: ver ANTT,
Inquisição de Coimbra, Processo 1630.
[14] ANTT, Inquisição de Coimbra, Processo 1630, f.
7r.
[15] ANTT, Inquisição de Coimbra, Processo 7840, f.
3 r.
[16] ANTT, Inquisição de
Lisboa, Novos Maços, Maço 27, No. 41.
[17] ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo 5477, f.
45r. Para uma história completa deste caso, ver Pantoja (2004).
[18] ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo 224. Silvestre
de Pinho foi condenado por sacrilégio por dobrar esta oração em torno de uma particula,
forma de hóstia consagrada dada aos comungantes nas missas católicas.
[19] Doris (2011), em seu
excelente estudo sobre a estética Iorubá, faz uma observação semelhante em
relação ao poder das ààlè, assemblagens de sucata encontradas no
sudoeste da Nigéria.
[20] ANTT, Inquisição de
Lisboa, Processo 11767. Ver mais análises deste julgamento em Mott (1988).
[21] José Francisco Pedroso,
também natural de Ouidah, foi escravizado do irmão do senhor de José Francisco
Pereira. Os dois trabalhavam juntos para produzir e vender mandingas a
africanos em Lisboa.
[22] Sobre a utilização de
moedas como amuletos em Portugal, ver Vasconcellos (1900, 1905).
[23] Em sua análise das bolsas
de mandinga, Sansi (2011, p. 24) afirma que “os efetivos componentes
materiais dessas bolsas […] não eram necessariamente africanos. Pelo contrário,
eram frequentemente católicos.” Este enquadramento busca apontar estruturas
interpretativas para as bolsas que transcendem as ideias de resistência dos
escravizados e preservação cultural africana. Estou em dívida com Sansi com
relação a esse ponto, mas observe que as próprias bolsas podem ter sido uma das
arenas em que a oposição Africano vs. Católico foi contestada e definida pela
primeira vez.
[24] Meu argumento aqui
segue, até certo ponto, o de Lahon (2004) e minhas conversas pessoais com
Cécile Fromont, que também vê a prática de José Francisco como derivada de
bases vodun no Daomé
[25] Sobre esses vários
tipos de bo, ver Herskovits (1967, v. 2, p. 256–288). Esse argumento se
aproxima do de Sweet (2009, p. 197), que também vê bo como um elemento
que influenciou as bolsas de mandinga feitas por pessoas oriundas do
Daomé.
[26] ANTT, Inquisição de
Lisboa, Processo 11767, f. 27r.