Maria Graham e as suas “vistas” do entorno e da cidade de Roma:
estudo de um conjunto de gravuras do acervo do Museu Britânico
Maria de Fátima Medeiros de Souza [1]
SOUZA, Maria de
Fátima Medeiros de. Maria Graham e as suas “vistas” do entorno e da cidade de
Roma: estudo de um conjunto de gravuras do acervo do Museu Britânico. 19&20, Rio de Janeiro, v. XII, n. 2, jul./dez. 2017. https://doi.org/10.52913/19e20.xii2.02
* * *
1. O
acervo do Museu Britânico abriga uma extensa coleção de obras da escritora e
artista viajante Maria Graham (1785-1842).[2]
Este artigo trata de um conjunto de 12 gravuras de Graham que está nesse
Museu e que foi realizado a partir das incursões dessa artista pela cidade de
Roma e por alguns locais adjacentes. Esse conjunto é importante para o estudo
da iconografia de viagem de Graham e se destaca dentre as demais obras do Museu
Britânico porque foram executadas diretamente pela artista, em outras palavras,
ela gravou as matrizes, sem delegar a outro profissional a execução das
gravuras.
2. A obra
de Graham foi estudada a partir de diferentes perspectivas. Muitos ressaltaram
sua produção literária, em parte derivada das viagens pelo Chile, Índia, Brasil
e Itália, como no caso dos estudos de Gonçalves (2005) e de Akel (2009). Alguns
também trataram da contribuição científica da obra imagética de Graham, aspecto
discutido em estudos como os de Hagglund (2011), Medeiros (2012), Zurbarán
(2008), Martins (2001) e de Filgueira e Peixoto (2008). As referências à obra
de Graham são extensas, mas foram poucos os estudos que enfatizaram o aspecto
iconográfico de sua produção. Este artigo procura destacar a produção imagética
dessa artista viajante, considerando que essa perspectiva ainda não foi explorada
pela literatura. Além disso, a relevância da obra de Graham está além dos
aspectos literários, uma vez que as imagens foram produzidas paralelamente à
escrita e não ocupam um local subalterno em sua produção.
3. O
conjunto de gravuras aqui destacado traz os registros de paisagens, de
monumentos em ruínas, de construções, de marinas e de jardins do entorno e da
cidade de Roma. Essas imagens serão abordadas neste escrito como sendo
"vistas" de Roma, pois essa era a denominação dos temas retratados
pelos artistas viajantes contemporâneos à Graham:
4.
A vista será, portanto, o exercício do
pintor em viagem [...] O gênero está, pois, ligado à peregrinação, à
descoberta, ao espanto diante de um aspecto não habitual das coisas, à comoção
diante de um capricho ou de uma singularidade da natureza quando esta parece
oferecer ao contemplador uma antecipação dos triunfos da arte. (STAROBINSKI,
1987, p. 193)
5. Essa
coleção de gravuras de Maria Graham é formada por quatro calcogravuras e oito
litografias realizadas em períodos distintos. Algumas gravuras apresentam a
data especificada na própria obra e outras não. De fato, as informações
disponibilizadas pelo Museu Britânico deixam dúvida quanto à datação.
Entretanto, a partir dos dados biográficos de Graham, sabe-se que ela esteve na
Itália em diversos momentos, mas uma dessas ocasiões merece destaque (AKEL,
2009): Maria Graham esteve na Itália durante três meses do ano de 1819 e
publicou posteriormente, em 1820, o diário referente a essa viagem intitulado Three
Months Passed in the Mountains East of Rome: During the Year 1819 - obra
que foi ilustrada por Charles Eastlake (1793-1865), artista que acompanhou
Graham durante essa jornada (GRAHAM, 1820).
6. A
coleção de gravuras de Maria Graham do acervo do Museu Britânico pode ser estudada
segundo a perspectiva de Baxandall (2006) para o estudo das obras de arte e dos
objetos históricos, segundo a qual:
7.
o pintor, ou o autor de um artefato
histórico qualquer se defronta com um problema cuja solução concreta e acabada
é o objeto que ele nos apresenta. A fim de entendê-lo, tentamos reconstruir ao
mesmo tempo o problema específico que o autor queria resolver e as
circunstâncias específicas que o levaram a produzir o objeto tal como ele é.
(BAXANDALL, 2006, p. 48)
8. Baxandall
(2006) propõe um estudo que considera os modos de circulação e a instância
estética das obras, entendendo que essas duas esferas são indissociáveis na
produção artística. A partir dos dados do acervo do Museu Britânico sobre a
aquisição dessa coleção de gravuras, é possível tratar do contato que Graham
estabeleceu com seus editores e também sobre a sua relação com outros
escritores contemporâneos a ela. Além disso, essa coleção de gravuras de Graham
foi produzida em um momento de crescente interesse do público por imagens que
retratavam as construções e as paisagens romanas. Também foi o período em que o
tema das ruínas romanas ainda era recorrente na produção imagética que
circulava na Inglaterra.
9. Essa
viagem de Maria Graham pelos arredores de Roma se inscreve em uma tradição de
empreendimentos semelhantes realizados por artistas e escritores viajantes, em
especial os que ocorreram a partir do final do século XVIII e na primeira
metade do século XIX. Impulsionados pela repercussão das paisagens de Claude
Lorrain (1600-1682), muitos artistas foram à Itália. A visão que os artistas e
os viajantes do século XIX idealizavam da Itália era a de uma “pátria por
excelência do pitoresco”, como destacou Starobinski (1987, p. 193).
O conjunto de gravuras de Maria Graham do
Museu Britânico
10. O
acervo do Museu Britânico contém 456 obras com autoria atribuída à Maria
Graham. Esse conjunto abrange desenhos, aquarelas e gravuras, muitas das quais
ilustraram as obras referentes às suas inúmeras viagens. Essas obras formam um
conjunto heterogêneo. Grande parte dos desenhos constituem dois livros de
esboços: um deles foi produzido entre 1821 e 1825 e se refere à produção da
artista na América do Sul e das ilustrações botânicas que foram usadas no
último livro publicado por Graham, A Scripture Herbal; o outro álbum
contém desenhos e aquarelas produzidas entre 1803 e 1819, essas obras se
referem às viagens de Graham pela Índia, Itália, ilha de Malta e algumas
regiões da Inglaterra. Os demais conjuntos abrangem uma série de gravuras
realizadas por Edward Finden e August Earle a partir dos esboços de Maria
Graham (BRITISH MUSEUM COLLECTION DATABASE).
11. Embora
fosse comum Maria Graham delegar a gravação de seus desenhos a outro artista,
as obras enfatizadas neste estudo são diferentes. A atribuição da gravação das
matrizes desse conjunto de vistas de Roma à Maria Graham parte dos dados
fornecidos pela ficha catalográfica disponibilizada pelo Museu Britânico e das
inscrições presentes nessas gravuras. Essas obras apresentam o nome de Maria
Graham como autora principal, ou seja, não há referências a outros artistas que
possam ter gravado as matrizes das gravuras. Notações a respeito da produção
das gravuras são disponibilizadas na ficha catalográfica do Museu Britânico
quando as obras apresentam inscrições que remetam a outros autores. Exemplo
disso são as referências ao gravador Edward Finden nas demais gravuras que
compõem a coleção de Maria Graham que está nesse museu. É indicado, nesse caso,
o seguinte dado: “After: Maria, Lady Callcott. Print made by: Edward Finden.”
Essas descrições atribuem a gravação da matriz à Finden a partir dos desenhos
de Maria Graham.[3] De outro modo, as inscrições presentes
nas gravuras estudadas para este artigo apresentam diferentes assinaturas de
Maria Graham - “MG” e “M. Callcott” [Figura 1].
12. Essas
inscrições também podem indicar o período em que as obras foram produzidas.
Sabendo que Maria Graham só se tornaria Lady Callcott em 1826, as gravuras que
contém referências a esse título provavelmente foram feitas a partir do ano de
seu casamento. Além disso, a única obra da coleção de vistas de Roma que possui
explicitamente a datação é a gravura Arci di Nerome [Figura 2], produzida no ano de 1820.
As demais gravuras apresentam somente a assinatura de Graham sem
especificação do período de suas faturas.
13. A
aquisição das obras de Maria Graham que retratam vistas de Roma ocorreu em
momentos distintos. Onze gravuras foram adquiridas pelo Museu a partir de
compras de obras que pertenceram ao leiloeiro Edward Daniel (1807-1892) e uma gravura
foi doada pelo colecionador e editor, Alexander Henry Hallam Murray (1854-1934)
(BRITISH MUSEUM COLLECTION DATABASE).
14. As
formas de aquisição das gravuras de Maria Graham pelo Museu Britânico podem
contribuir para entender alguns aspectos dos modos de circulação da obra dessa
artista viajante e sobre quais seriam as finalidades dessas gravuras. Os
estudos museológicos trataram da importância de se conhecer a trajetória dos
objetos colecionados, enfatizando as relações das obras adquiridas pelos museus
com seus antigos coletores (ALBERTI, 2005).
15. A
gravura de Maria Graham proveniente da coleção de Hallam Murray - intitulada Tasso’s
Oak [Figura 3]
- indica alguns aspectos relevantes sobre a circulação da obra de Graham e de
outros artistas e escritores viajantes do séculos XIX. Hallam Murray era neto
do escritor e editor inglês John Murray II (1778-1843), descendente de uma
linhagem que construiu uma presença relevante na publicação da literatura
inglesa desde o final do século XVIII. A editora em questão era a John
Murray Press, fundada por John Murray I (1737-1793) em 1768, e que editou
escritores como Lord Byron (1788-1824), Jane Austen (1775-1817), Charles Darwin
(1809-1882) e alguns livros da própria Maria Graham (THE JOHN MURRAY ARCHIVE,
2016).
16.
Akel (2009) assinalou um longo período de
trocas de correspondências entre Maria Graham e John Murray II. São cartas que
tratam desde aspectos particulares da vida de Graham, como os momentos em que
ela esteve doente no ano de 1834, até a abordagem de questões comerciais
ligadas à publicação dos diários da viajante. Como assinalou Akel (2009, p. 69), “In her last phase, she wrote history
books for children, books on art, articles for John Murray's newspaper, the Representative, and even a treatise on botany.”
17. John
Murray II travou relações com muitos intelectuais e escritores em encontros
periódicos em sua casa. Essas reuniões foram nomeadas pelo escritor Sir Walter
Scott (1771-1832) como Murray's 4 o'clock friends, encontros que
mais tarde, em 1824, formaram o Aethenaeum Club (THE JOHN MURRAY
ARCHIVE, 2016).
18. O
contato entre Murray II e Graham foi extenso. Algumas das correspondências
remetem ao ano de 1815, por exemplo, período em que Graham queixava-se da
solidão em terras estrangeiras e da falta que sentia de se envolver em assuntos
intelectuais. As correspondências entre Graham e Murray II também atestam a
procura da viajante por notícias a respeito das novidades da literatura inglesa
(AKEL, 2009).
19. Ao
observar as inscrições presentes na gravura Tasso’s
Oak, encontramos no canto direito uma dedicatória de Maria Graham à Murray
II. Provavelmente, Hallam Murray herdou essa obra da coleção de seu avô, Murray
II, assim como grande parte das gravuras e desenhos que hoje estão no Museu
Britânico. A coleção completa doada por Hallam, entre 1922 e 1923, é formada
por 84 obras. Segundo dados fornecidos pelo museu, Hallam Murray “gave a large collection of
topographical prints to the BM, which was registered on November 1922 and 20
January 1923.”. Esse conjunto apresenta páginas avulsas de
livros ilustrados com gravuras originais que se referem a vistas de construções
e de cidades, algumas obras produzidas por artistas viajantes e desenhos de
teor científico. Grande parte das obras doadas por Hallam Murray datam do
século XIX e algumas das folhas avulsas advém de livros publicados pela John
Murray Press (BRITISH MUSEUM COLLECTION DATABASE).
20. Como
explicitado, com exceção da obra Tasso's Oak, as demais gravuras
de Maria Graham estudadas neste artigo foram adquiridas a partir da compra do
acervo de Edward Daniel pelo Museu Britânico. Apesar de não haver muitos dados
biográficos de Edward Daniel, sabe-se que ele foi negociante de uma casa de
leilões em Londres especializada em obras de arte e em artes gráficas. O acervo
de Daniel adquirido pelo Museu Britânico é extenso, abrangendo mais de vinte
mil obras. Ao observar as obras que pertenceram à Edward Daniel percebemos seu
interesse por gravuras, tanto é que ele participou da produção de um catálogo
de gravuras que retratavam personagens ilustres da literatura inglesa.
Inclusive esse catálogo menciona o retrato de Maria Graham gravado em metal por
Dawson Turner (1775-1858) (DANIEL, 1900).
21. Dentre
essas gravuras de vistas de Roma produzidas por Maria Graham quatro obras
apresentam um dado adicional que as associam a outro colecionador. Segundo
informações das fichas catalográficas do Museu Britânico, essas quatro gravuras
estavam juntas em um invólucro com as seguintes inscrições: “Kept in a wrapper
which is inscribed in brown ink: the gift of Mrs. M. Callcott./ to William
Wells July 1834.” Esse registro evidencia que Graham presenteou William Wells,
que também foi leiloeiro, com essas gravuras em julho de 1834. Aqui, Graham
oferece novamente obras a seus conhecidos, assim como remeteu a gravura Tasso's
Oak à John Murray II. Embora os dados biográficos de William Wells sejam
escassos impossibilitando estabelecer sua relação com Graham, as inscrições
dessas quatro gravuras são indícios de como a obra dessa artista circulou entre
as casas de leilão londrinas do século XIX.
22. Tratar
dos aspectos ligados aos intercâmbios dos objetos das coleções antes de sua
chegada ao museu pode evidenciar traços da circulação desses objetos na
sociedade. No caso do conjunto de gravuras de Maria Graham enfatizados neste
artigo, conhecer os antigos proprietários das obras revela algumas
particularidades da recepção da obra literária e iconográfica dessa viajante.
As vistas de Maria Graham das cercanias e
da cidade de Roma
23. A
produção imagética de Maria Graham ocorreu em paralelo aos seus escritos. Em
certos momentos, enquanto se lê a obra Three Months Passed in the
Mountains East of Rome é possível reconhecer alguns dos lugares retratados
nas gravuras que estão no acervo do Museu Britânico. São as descrições da
paisagem local, as referências às ruínas de grandes construções, às florestas e
às árvores dos arredores de Roma. É necessário enfatizar que essa coleção de
gravuras não se configura como ilustração, no sentido de estar atrelada ao
texto, mesmo porque nenhuma delas foi efetivamente usada no escrito de Graham
sobre Roma.
24. Durante
esses três meses na Itália, Maria Graham esteve junto de seu primeiro marido,
Thomas Graham, e do artista Charles Eastlake. Maria Graham já havia lançado o
diário de viagem de sua estadia na Índia, Journal of a residence in
India, de 1812, obra que havia alcançado certo reconhecimento entre o
público europeu. Na verdade, como afirmou Akel (2009), o diário da viagem à
Itália está situado entre os dois grandes sucessos editoriais de Maria Graham:
o que se refere à sua visita à Índia e o que narra sua viagem ao Brasil, Journal
of a voyage to Brazil and residence there during part of years 1821, 1822,
1823, publicado em 1824 (AKEL, 2009).
25. Como
mencionado, o caminho percorrido por Graham se distinguia das rotas habituais
dos viajantes contemporâneos à ela. Logo no prefácio a autora sinalizou essa
intenção ao visitar a Itália. Na verdade, Graham pretendia fugir um pouco
daquilo que, em seu entender, já havia sido muito explorado pelos viajantes,
caso das construções monumentais romanas e de outras cenas mais célebres
comumente retratadas. Por isso, Graham percorreu outros caminhos em busca de
cenas e de locais pouco conhecidos daqueles que apreciavam a literatura de
viagem.
26.
Yet there is one subject on which modern travellers have been silent: the state of the present
inhabitants of the near neighbourhood of Rome. With
the exception of M. de Chateauvieux, the visitors of
the "eternal city" seem to have forgotten that there are still living
men to till the ground, and to dress the vineyards that surround it. And it is
natural that it should be so. The apparent deadness of the Campagna, during the
season when most travellers cross it, the scanty
population, whose habits and manners savour of an
older world, the wall of ruin that surrounds every thing
that is new and fresh in Rome, force the thoughts back upon the past, and veil
the present, as the future, from our eyes (GRAHAM, 1820, p. 4).
27. Em
parte, as gravuras do Museu Britânico se distanciam dessa proposta inicial
enunciada por Graham em seu diário referente à Roma. Como veremos mais adiante,
os espaços representados nessas obras eram conhecidos pelos artistas e pelos
viajantes que passavam pela cidade italiana. A viagem de Maria Graham aos
arredores de Roma se aproxima de muitos projetos semelhantes empreendidos por
artistas e escritores do século XIX. Para este estudo, pelo menos duas questões
podem ser realçadas nas imagens referentes a essa viagem de Graham: o interesse
crescente do público inglês pelas obras que retratavam vistas de paisagem e a
tradição dos artistas que viajavam para Roma.
28. A
primeira das questões levantadas se refere ao intenso comércio na Inglaterra de
pinturas e de gravuras que retratavam vistas de paisagens interioranas, fossem
essas paisagens inglesas ou estrangeiras:
29.
Desde pelo menos a década de 1680 havia um
mercado estabelecido de pinturas de “vistas” para serem penduradas nas paredes
das casas de classe média. De início, a maioria delas provinha da Holanda ou da
Itália, mas no decorrer do século XVIII o cenário inglês tornou-se objeto de
crescente atenção artística; e o reinado de Jorge III presenciou um nível de
aquisição sem paralelo na arte paisagística inglesa. Pela década de 1780 houve
uma torrente de publicações sobre viagens e de guias para as belezas da
Inglaterra, adornados por aquatintas e panoramas pitorescos a partir de 1775 e
de gravuras em aço depois de 1810. Essas representações artísticas, quer
inglesas quer estrangeiras, moldavam o gosto das classes educadas. (THOMAS,
2010, p. 375)
30. Essa
procura por paisagens de locais campestres evidencia também certo saudosismo da
vida fora da cidade e as imagens ajudavam a evocar essa experiência. A partir
do século XVIII, a relação entre homem e natureza passou por mudanças
significativas. Isso se deu em decorrência das novas descobertas dos estudos
sobre a história natural que suscitaram o questionamento da posição central do
homem em relação à natureza. No caso específico da Inglaterra, pátria de Maria
Graham, o crescimento das cidades foi marcante. Ao mesmo tempo em que muitos se
deslumbravam com as imponentes construções de Londres, havia uma crescente
nostalgia pelas belezas naturais campestres (THOMAS, 2010).
31. Essa
nova relação entre o ser humano e a natureza pode ser associada com a
circulação das vistas de paisagens semelhantes às que Maria Graham fez em
algumas das gravuras que retratam Roma. A obra Monastery of San
Stefano [Figura 4]
apresenta um enquadramento em que predominam os elementos naturais. O efeito
dessa gravura supõe um observador que contempla a uma certa distância,
apresentando uma vista ampla onde o terreno montanhoso ao fundo e a floresta
que circunda o monastério são enfatizados. Esse afastamento do
observador confere um vasto enquadramento da paisagem e a porção de floresta
que entremeia o monastério e suas adjacências formam uma massa indistinguível
de árvores.
32. Outro
aspecto a ser notado em Monastery of San Stefano é a apresentação
de um paisagem selvagem, sem elementos indicativos da presença humana no
cultivo da natureza. O interesse dos ingleses para apreciação de obras que
retratavam paisagens não cultivadas se apresenta em contraste aos vastos campos
ocupados com a agricultura. Essas imagens da natureza não explorada ofereciam
algo como um momento de evasão para esse público. E é necessário destacar que
essa fuga propiciada pelas vistas de paisagens pressupunha uma iniciação do
público nas referências literárias e iconográficas às quais as imagens faziam
alusão. Sobre esse aspecto, ressalta Thomas (2010, p. 374):
33.
Mas a apreciação consciente do cenário
rural que se desenvolveu de modo tão espetacular durante o século XVIII foi
algo diferente, pois dependia do conhecimento prévio da tradição pictórica
europeia. O atrativo primeiro do cenário campestre era que ele lembrava ao
espectador as pinturas paisagísticas. Na realidade, a cena somente era chamada
de “paisagem” [landscape] por recordar uma vista [landskip] pintada; era
pitoresca porque se parecia com uma pintura. A circulação da arte topográfica,
na qual ou não havia figuras humanas ou não tinham importância, precedeu
portanto a apreciação de paisagens rurais e determinou a forma que esta
assumiu.
34. O
olhar dos artistas viajantes em direção à paisagem se aproxima da noção de
“geografia imaginativa” proposta por Said (1996). Embora Roma esteja
efetivamente na Europa, a forma com que Graham se pôs a representar esse espaço
geográfico assumiu a perspectiva do olhar do estrangeiro. Por essa ótica, a
viajante partia da comparação dos seus próprios costumes e da configuração das
paisagens inglesas para contrastar com as localidades que visitava. Algumas
passagens do livro Three Months estão imersas nessa concepção,
assim como as gravuras que retratam Roma (AKEL, 2009).
35. Como
enfatizado por Coli (2015), a partir do final do século XVIII e princípios do
XIX, houve uma mudança da relação do ser humano com a natureza e isso se
refletiu na representação da paisagem. Cada vez mais relacionada às qualidades
simbólicas, a representação da paisagem se aliava às noções de espiritualidade
e à atribuição de singularidade ao espaço natural (COLI, 2015). De modo
semelhante, Belting (2014) trata da influência que as imagens podem exercer na
percepção das localidades geográficas. Muitas vezes só conhecemos os lugares a
partir das imagens que foram produzidas. E essas imagens podem interferir na
forma com que presenciamos algumas localidades, uma vez que nosso repertório
imagético já formou certas cenas, enquadramentos ou iluminações
característicos:
36.
Transfere-se a imagem de um lugar (por
exemplo, a cidade) para uma imagem antitética (a natureza) a fim de, a partir
dali, se trasladar com maior autoridade [...]
Esta geografia cultural
reflete-se nas imagens da arte onde lugares e espaços desempenham um papel.
Basta apenas pensar no gênero paisagem em pintura que, no século XIX, oferecia
uma imagem decididamente antitética em relação à urbanização e à
industrialização. (BELTING, 2014, p. 88)
37. As
produções literárias e imagéticas resultantes das viagens à Itália, como a de
Graham, povoavam o imaginário coletivo europeu nesse sentido enfatizado por
Belting. A tradição de viagens às cidades italianas remonta ao século IV;
muitos foram os que se aventuravam pelos lugares citados nos versos de Virgílio
(70-19 a. c.), e, posteriormente, em busca das obras dos mestres da pintura
renascentista e barroca, assim como a reverência aos locais da Itália evocados
pelas paisagens de Claude Lorrain. Esses viajantes produziram materiais
escritos e iconográficos que contribuíram com a formação de uma imagem da
Itália que ainda despertava interesse em princípios do século XIX (MAUGHAM,
1903).
38. Em
certas passagens de Three months, por exemplo, Maria Graham cita
versos de Virgílio e de Horácio (65-8 a.c.): “Every where we could trace a
rock, a hill, or at least a name, which Virgil has immortalized” (GRAHAM, 1820,
p. 129). São paisagens e construções que constantemente são citados por Graham
em saudação aos poetas e artistas reverenciados pelos viajantes que passavam
pela Itália. A gravura Tasso's Oak traz a imagem de um carvalho
que, segundo a tradição, teria sido o lugar onde o poeta italiano do século
XVI, Torquato Tasso (1544-1595), teria morrido. Graham mencionou essa
localidade em seu diário, destacando o fato de esse carvalho ser o lugar onde
poeta morrera dias antes de ser coroado pelo papa como o “rei dos poetas,” A
guirlanda, mencionada por Graham, que quase foi dada a Tasso, seria a sua
coroa:
39.
In the garden of the convent of Saint Onofrio, on the Janiculan Hill,
there is a large oak called Tasso's Oak. Tradition says, that the poet, during
the few last days of his life, which were spent in the convent, was often
brought out to sit under that tree; and on the cypresses behind it we love to
believe that the garland was hung, which, on the 16th of April, was to have
crowned him, but that his death on the 15th prevented it. Under that oak there
is a little stone theatre built by San Philippo Neri. (GRAHAM, 1820, p. 294)
40. Enquanto
percorria as estradas entre os vilarejos, Maria Graham citou uma cena que muito
a fazia lembrar as pinturas do artista Gaspard Dughet (1615-1675), também
conhecido como Gaspard Poussin em referência ao efetivo parentesco com Nicolas
Poussin (1594-1665) e pela proximidade entre a produção paisagística de ambos.[4]
A passagem é a seguinte:
41.
About five miles from Poli we reached an
antique building, arched and vaulted, and surrounded by large blocks of stone,
and other traces of an extensive edifice: there we turned south, and rode
towards the dell. As we approached it, we saw on the opposite side a ruin,
corresponding with the former, on which a small sloping roofed house has been
erected, with some picturesque chimneys. It stands on the brink of a precipice,
partially shaded with fine wood, and the Alban hills are seen be yond it. The
composition of the whole put us in mind of the pictures of Gaspar Poussin.
(GRAHAM, 1820, p. 106)
42. Algumas
pinturas de Dughet retratam locais que Graham efetivamente visitou [Figura 5].
Embora seja considerado um artista francês, Dughet viveu na Itália e parte
significativa de sua produção retrata paisagens dos arredores de Roma. Durante
o século XVIII, sua obra foi considerada um modelo das paisagens de Roma
(HARRIS, 2009). Provavelmente, Graham evoca as paisagens de Dughet devido a
popularidade da obra desse artista.
43. Na
perspectiva de Belting (2014), a forma com que presenciamos as localidades é
influenciada pelo material imagético que se produziu sobre elas. Muitos
artistas já haviam retratado as paisagens romanas e algumas dessas referências
foram efetivamente explicitadas por Graham, sejam nas passagens de seu diário
referente à sua estadia em Roma, sejam nas gravuras que retratam as localidades
aí visitadas.
44. Algumas
gravuras de Graham apresentam cidades e monumentos de Roma que eram comumente
reverenciados pelos viajantes. As obras que retratam o jardim de Vila Albani e a
ponte Sistina vista do Palácio Farnese se referem a monumentos conhecidos pela
aproximação com artistas do Renascimento, em especial com o pintor Rafael
Sanzio (1483-1520).
45. O
lugar retratado na gravura Sistine bridge from the Farnesine Garden
[Figura 6]
apresenta uma vista do jardim do Palácio Farnese notável por abrigar dois
afrescos de Rafael: O triunfo de Galatéia e Cupido e Psique.
Essas obras de Rafael foram exaltadas por Goethe em seu escrito Viagem à Itália, publicada em 1786.
Goethe fala da imponência dos afrescos de Rafael e da oportunidade de
presenciar o efeito dessa obra para os que a veem pessoalmente (GOETHE, 1885).
46. A
gravura Garden of the Villa Albani [Figura 7]
apresenta um grupo de personagens em um jardim entremeado de construções arquitetônicas
e de esculturas antigas. Esse jardim era famoso por ter sido o local onde
Winckelmann (1717-1768) escreveu sua História
da Arte Antiga. Na verdade, o jardim retratado por Graham faz parte do
conjunto arquitetônico do Palácio Albani que é conhecido pelo seu aspecto
exótico. Nesse palácio, encontram-se coleções de réplicas de esculturas de
monumentos mundiais. Essas esculturas fazem parte de uma extensa coleção do
cardeal Alexander Albani constituída no final século XVIII e com a qual Winckelmann
trabalhou:
47.
Alexander Albani,
having spent his life in collecting ancient sculpture, formed such porticoes
and such saloons to receive it, as no other Roman would have done: porticoes
where the statues stood free on the pavement between columns proportioned to
their stature; saloons which were not stocked but embellished with families of
allied statues, and were full without a crowd. Here Winckelman
grew into an antiquary under the Cardinal's patronage and instruction, and here
he projected his history of art, which brings this collection continually into
view. (MAUGHAM, 1903, p. 422)
48. Winckelmann
também escreveu sobre a sua estadia na Itália e se notabilizou pelas suas
descobertas arqueológicas e por resgatar artistas da antiguidade como grandes
referências para a arte de seu tempo. Para esse historiador, o classicismo era
o mais alto grau que a arte havia alcançado. Winckelmann também estabeleceu
autonomia metodológica para o estudo da história da arte (KERN, 2010).[5]
Os escritos de Winckelmann foram bastante difundidos e, inclusive, foram
citados nas cartas de Goethe referentes à sua estadia em Roma (GOETHE, 1885).
49. Em
paralelo à propagação de imagens que retratavam localidades famosas da Itália,
as ruínas romanas se multiplicaram nas vistas de paisagens:
50.
Em breve, as antiguidades célebres
(Obeliscos, Coliseu, Templo de Sibila em Tivoli) tornar-se-ão acessórios
figurativos que os pintores distribuirão segundo seu próprio gosto. Lorrain não
hesitará em plantar o Arco de Constantino à margem de um rio. E mesmo aqueles
que nunca viram Roma tirarão das coleções de gravuras a imagem do templo em
ruínas para conferir interesse a uma paisagem. Um vestígio do passado enobrece
a natureza, faz de uma vista banal uma paisagem “heroica” ou “idílica.” (STAROBINSKI,
1987, p. 200)
51. Um
evento que contribuiu para o crescente interesse pelas ruínas foram as
escavações de algumas cidades italianas. Winckelmann acompanhou escavações que
ocorreram nas cidades de Nápoles, Pesto e Herculano. Essas escavações, assim
como as de Pompéia, contribuíram com a disseminação das viagens à Itália e com
o interesse pelas obras que retratavam ruínas (BAZIN, 1989).
52. Como
assinalado, as construções e os espaços saudados por Maria Graham se referem ao
caminho que ela percorreu pelas redondezas da cidade de Roma. Dentre as
gravuras da coleção do Museu Britânico, algumas retratam construções romanas em
ruínas. Em relação a essas construções, no diário Three months, Graham
falou dos achados arqueológicos e do efeito das ruínas na percepção do
andarilho que as encontra pelo caminho:
53.
That part of the plain to which we
ascended belongs to Poli; to our right lay the tenement belonging to
Palestrina, called San Giovanni in Camp-orazio,
where, besides the ancient aqueduct across the deep ravine that divides it from
the lands of Poli, there are many ancient substructures; and funeral vases, and
other antique fragments, have been found. The name of this tenement has led to
some serious enquiries, as to whether Horace ever possessed a villa or a
vineyard near Preneste. (GRAHAM, 1820, p. 17)
54. A já
referida gravura Arci di Nerome [Figura
2] apresenta a imagem de um aqueduto romano em decadência. A ruína é
apresentada por Graham imersa na natureza, sugerindo uma comunhão entre esses
elementos. Sabe-se que esse tipo de aproximação entre as ruínas e a paisagem
natural era constantemente enfatizada nas composições de alguns artistas do
século XVIII (STAROBINSKI, 1987).
55. No
diário de Maria Graham sobre sua estadia em Roma, um dos relatos trata da
dificuldade da viajante para chegar ao local que aparenta ser o espaço
registrado na gravura Arci di Nerome:
56.
we were obliged to climb the rocks, to
cross another plain, to see the fourth portion of the aqueducts which still
remain in this neighbourhood. After walking in a
northerly direction about half a mile, we arrived at some very extensive ruins.
One large tower might have been built, or at least added to, and used as a
strong place, in the middle ages, from its appearance. (GRAHAM, 1820, p. 110)
57. Com
efeito, a gravura Arci di Nerome parece supor um observador
imerso em um espaço que não apresenta vestígios humanos, exceto pelo aqueduto
em decadência. A forma com que Graham representa essa construção deixa mais
evidente a proximidade entre as ruínas desse aqueduto e a mata que o incorporou
com o tempo.
58. Starobinski
(1987) enfatiza que as imagens de ruínas eram uma maneira pela qual o gosto
europeu dá vazão à sua rememoração. Para esse autor, os monumentos deteriorados
ofereciam uma imagem incompleta do passado, vestígios de um tempo que se foi e
que só é possível acessar a partir das ruínas.
59. O
artista do século XIX representou o tema das ruínas de modos distintos. As
gravuras de Graham, por exemplo, apresentam as ruínas das construções sem
recorrer ao efeito fantástico e monumental suscitado pelas pinturas de Hubert
Robert (1733-1808) e pelas gravuras de Giovanni Battista Piranesi (1720-1778).
Esses dois artistas também retrataram ruínas de construções romanas e eram
referências para esse tipo de representação.
60. A
gravura Circus of Salust [Figura 8]
apresenta a figura de uma mulher sentada ocupando o centro da composição e nos
planos seguintes a vista de uma cidade. De um lado vê-se uma densa vegetação e
de outro, as ruínas de uma construção antiga. Outros dois personagens seguem em
direção à cidade sustentando algo em suas cabeças. Essa obra de Graham parece
retratar uma cena corriqueira, que não é grandiosa e tampouco fantástica,
diferente das ruínas pintadas por Hubert Robert. Mesmo quando Graham recorre ao
recurso que compara a escala humana com a do monumento, o efeito da composição
não supõe grandiosidade.
61. O
tratamento dado ao tema da ruína na obra de Maria Graham encontra paralelo com
algumas gravuras do artista holandês Herman van Swanevelt (1600-1655) [Figura 9].
Swanevelt também esteve em Roma e retratou paisagens e monumentos desgastados
pelo tempo. As gravuras do artista holandês trataram as ruínas romanas imersas
em espaços que abrigam comunidades que efetivamente conviveram com essas construções
antigas. E esse aspecto foi realçado por Goethe em sua descrição da sensação de
visitar as ruínas de Roma que ele conhecera somente a partir de gravuras como
as de Piranesi e as de Swanevelt:
62.
We, however, called vividly to remenbrance Hermann von Schwanefelt
who, with his tender graver, instinct with the purest feeling of nature and
art, knew how to reanimate those scenes of the past and transform them into the
most graceful supports of the living present. (GOETHE, 1885, p. 460)
63. O
artista holandês é evocado por Goethe por tratar as ruínas de maneira mais
próxima do povoado que ali viviam. E esse modo de representação encontra
paralelo com o tratamento que Maria Graham deu à suas gravuras em que as
construções decadentes aparecem.
64. O tema
da ruína se configura como uma forma de contemplação melancólica da passagem do
tempo e também como uma representação pitoresca e interessante a ser
contemplada. As gravuras de Maria Graham propõem uma relação com as ruínas a
partir da proximidade entre os vestígios do passado com a vida cotidiana e
simples das populações que viviam nas cercanias de Roma.
Considerações finais
65. A
coleção de gravuras que está no Museu Britânico constitui uma parte importante
da iconografia de viagem de Maria Graham. Embora se reconheçam suas qualidades
estéticas e históricas, essas obras ainda não haviam sido estudadas. Nesse
sentido, este artigo procurou enfatizar essas gravuras de Graham segundo a
complexidade que envolveu sua produção e modos de circulação na sociedade.
Olhar a obra de Graham pela ótica da comercialização e difusão dos objetos
artísticos e históricos contribui para um estudo mais abrangente abarcando
também a dimensão estética da obra dessa artista viajante.
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_____________________________
[1] Doutoranda em Teoria e
História da Arte Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade
de Brasília. Mestra em Ciência da Informação (Museologia, Biblioteconomia e
Arquivologia) e bacharel em Artes Plásticas. Bolsista da CAPES.
[2] Escritora e artista
viajante que esteve no Brasil, Chile, Índia no século XIX.
[3] No sistema disponibilizado
pelo Museu Britânico, a coleção de Maria Graham atende pelo seguinte buscador:
Maria, Lady Callcott. O sobrenome de Graham se refere ao primeiro casamento da
artista. Maria Graham ficou viúva e se casou com o artista e Lord Augustus Wall
Callcott, por isso seu nome a partir de 1826 passou a ser Lady Callcott (AKEL,
2009).
[4] Gaspard
Dughet foi aluno e cunhado do pintor Nicolas Poussin.
[5] A respeito dos estudos
de Winckelmann para o estabelecimento da arte como disciplina autônoma, Kern
(2010, p. 12) afirmou: “Winckelmann ao projetar o futuro, afirma o sujeito
histórico como agente de mudanças. Ele faz da arte um dos meios pelo qual o
projeto de modernidade possa ser concretizado e inaugura um fenômeno inédito ao
delimitar a ação do sujeito histórico pela retomada da origem da arte como
mecanismo de produzir o novo.”