Paralelos e
dissonâncias: Di Cavalcanti e as concepções artísticas europeias do entre-guerras
Luciana Dilascio Neves [1]
NEVES,
Luciana Dilascio. Paralelos e dissonâncias: Di
Cavalcanti e as concepções artísticas europeias do entre-guerras. 19&20,
Rio de Janeiro, v. IX, n. 2, jul./dez. 2014.
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/ldn_dicavalcanti.htm>.
*
* *
1.
Este
trabalho se propõe analisar algumas obras do pintor Emiliano
Di Cavalcanti (1897-1976), tendo como balizador das análises o diálogo com
as produções e concepções artísticas europeias do entre-guerras,
sobretudo as relacionadas ao ambiente parisiense. Partiremos de uma análise
geral de algumas entre as diversas estéticas europeias do entre-guerras
com as quais possivelmente Di Cavalcanti teria, em intensidade variada, tomado
contato em suas diversas idas à Europa, em especial para a França. Nossa
proposta está assim vinculada a fazer refletir sobre o intercâmbio de Di
Cavalcanti com produções, concepções e artistas que estiveram à frente de uma
nova identidade moderna no período do entre-guerras,
representados pelas diferentes agrupações do ambiente europeu a partir da
década de 1920.
2.
Inicialmente
apresentaremos algumas características da vida, do artista e da personalidade
de Di Cavalcanti, o que nos ajudará a melhor situar o artista no contexto
apresentado. A revista Visão de 7 de junho de 1968, publicou: “A arte de Di tem perfeita
coerência com a sua vida, com a sua filosofia estética e social [...] uma
personalidade original, própria do mundo brasileiro.”[2]
Ao lado desta coerência sugerida pela revista, que, mais tarde voltaremos a
abordar, salientamos a multivalência do artista que
era pintor, desenhista, caricaturista, ilustrador, jornalista, cronista, poeta,
escritor, entre outras atividades por vezes exercidas, tal como nas artes
aplicadas e na cenografia. Segundo Mindlin, ele encarnava a figura do boêmio
coexistindo com o homem de cultura: “Frequentando as camadas sociais mais
variadas, desde à alta sociedade carioca e paulista,
aos meios artísticos, literários ou musicais, ou aos bares e prostíbulos da
Lapa numa amplitude de relações e amizades a que se manteve fiel em todo curso
de sua vida.”[3]
3.
Mesmo
em face de sua personalidade ligada às classes populares, Di Cavalcanti foi um literato e intelectual engajado politicamente em toda sua
extensa vida produtiva. Em 1917, quando se mudou para São Paulo, alguns
acontecimentos o teriam marcado como a revelação do socialismo, a Revolução
Russa, o entusiasmo cívico com relação à Primeira Guerra Mundial ou a exposição
de Anita Malfatti.
4.
Di
Cavalcanti foi um dos principais idealizadores da Semana de Arte Moderna de 22,
junto com, entre outros, Oswald
e Mário
de Andrade. Entretanto, ele viria a se frustrar com o clima de euforia evasiva
da Semana e partiu para Paris, como ele mesmo justifica: “A Semana de Arte
Moderna levou-me à Paris. Era necessária a aventura de uma viagem ao
estrangeiro, era necessário tirar uma prova real de mim mesmo fora de um
ambiente que me parecia cada vez menor, obstruído pelo
começo de um novo academismo, com adesões de novos modernistas.”[4]
5.
A
relação de Di Cavalcanti com a Europa, em especial com Paris, é determinante em
toda a sua vida. Mesmo antes de sua primiera ida, em
1923, e também antes de sua ida para São Paulo em 1917, Di, ainda como
estudante no Rio, já apresentava uma identificação com autores franceses
especialmente vinculados à ideia de modernidade, tais como Charles Baudelaire,
Arthur Rimbaud, Stéphane Mallarmé, tal como afirma em
suas memórias relativas ao período estudantil:
6.
Esse grupo de
estudantes caracterizava-se por suas ideias literárias avançadas. Sentíamo-nos
malditos! [...] Admirávamos Baudelaire. E a poesia de Rimbaud, de Verlaine,
Mallarmé, davam a certeza de que a arte deveria ser diferente dos
sonetos das revistas mundanas ou da prosa elogiada por Osório Duque Estrada.
7.
Baudelaire,
sobretudo, servia para justificar nosso satanismo.[5]
8.
Durante
sua vida, Di foi profundo conhecedor da cultura francesa, tal como atesta
Teixeira Leite: “senhor de vastíssima cultura literária, francesa sobretudo [...].”[6] Demonstra certa intimidade com esta
cultura mesmo antes de sua “primeira fuga europeia,” que se acentuaria em
várias idas e permanências no exterior, em especial, na França. A admissão de
sua vinculação com o contexto francês, não parecia em conflito com a noção de
brasilidade que sempre perseguiu:
9.
Nossas letras,
nossa ciência, nossos costumes estão presos à Europa e ninguém há de tirar tão
cedo da América a marca constante do espírito europeu. Aqui se expande a
cultura européia por toda parte, espalhando por estas
terras novas e por estes cérebros virgens o que se determinou chamar a
civilização ocidental [...] Desde
criança senti profundamente a marca das coisas de França.[7]
10.
Nesta
primeira viagem à Paris, o artista atuou como correspondente do Correio da Manhã do Rio de Janeiro até
1924, quando o jornal fechou,[8] tendo que depois disso recorrer a todo
tipo de trabalho para sobreviver, retornando ao Brasil em 1925. Nestes
dois anos de permanência na Europa, tomou contato com várias personalidades do
amplo meio cultural parisiense:
11.
Conhecia hoje Fargue no Café Flórida, amanhã Léger
no seu atelier da Rue Notre
Dame des Champs. Os surrealistas nasciam na literatura e nas artes.
Aragon, Eluard, Breton, Max Ernst, Chirico... Que carrousel em Paris
de ‘aprés guerre’, com seus
bairros internacionais povoados da mais esdrúxula gente de todas as partes
deste mundo. Tudo era espantoso, fabuloso, inédito!... Os fugitivos russos, os
fugitivos italianos e espanhóis, mil e um fugitivos de não sei quantos países a
baterem cotovelos no Dome, na Rotonde, na Coupole, todos com mil e uma doutrinas políticas e sociais.[9]
12.
Conheceu
Blaise Cendrars, Jean
Cocteau, Miguel Unamuno, Georges Braque, Fernand Léger, Henri Matisse, Max Ernst, Pablo Picasso, Eric Satie, entre outros, tendo se tornado amigo de alguns, como
menciona especificamente a respeito de Picasso e Unamuno. As obras de alguns
destes artistas tornaram-se influências que transpareceram em sua obra
posterior.
13.
Além
destes contatos e referências contemporâneas, Di não deixa de mencionar em suas
memórias outras que também teriam lhe causado impacto: “descubro sobretudo El Greco, Cèzanne, Delacroix, Gauguin, Renoir, Lautrec, Manet e Pisarro. Dou um
pulo à Itália, viagem que durou 20 dias: Giotto,
Paolo Uccello, Boticelli,
Piero Della Francesca, surgem diante de meus olhos como anjos [...].”[10]
Segundo Mindlin, não é difícil imaginar o impacto que este fervilhamento
cultural parisiense causava nos jovens brasileiros ávidos de “novas
experiências e novos valores.”[11] Em 1924, Di menciona como um dos
acontecimentos que marcaram sua estada em Paris, ter conhecido Pablo Picasso, o
mestre a respeito do qual nunca escondeu sua admiração. Confessa ter encontrado
no espanhol: “A magia da fuga anárquica de um mundo [...] uma órbita de novas
concepções estéticas onde se aglomera num quadro tudo o que poderia estar
disperso em mil quadros, onde a revelação e destruição das coisas se desfazem
para se refazerem, como que construindo, no espaço de uma tela, o seu passado e
o seu futuro formais.”[12]
14.
No
entanto, mesmo em face do reconhecimento destes artistas europeus e da
influência que possam ter exercido em sua obra, presenciamos em Di Cavalcanti
uma consciência sobre sua produção e uma autonomia para pensar seu próprio modo
de conceber a criação artística, fazendo com que ele mesmo reconheça suas
diferenças com artistas que o inspiraram. Com relação à Picasso, declara que o
mesmo “transforma o humano, a lembrança do homem, em símbolos, arabescos ou
mesmo imagens onde só permanece a sublimação estética.”[13]
Reconhece então sua diferença quando afirma sua necessidade da realidade objetiva
e sua crença no realismo social como caminho de desenvolvimento nas artes após
a guerra de 1914.
15.
Neste
sentido, reflete que, para determinado grupo de artistas, “o extravasamento
cubista, dadaísta ou surrealista” não constituiria daí para frente uma solução
humana, acreditando antes no “aparecimento de novas condições da economia que
dirige em última análise não só a política, a administração pública, como a
própria vida cotidiana o que viria precisar a literatura e a arte criando um
novo realismo.”[14]
16.
Ainda
na França, após tudo o que vira de criação pictórica, Di Cavalcanti se afasta
da pintura em uma espécie de crise existencial “pela presença grandiosa de um
mundo cuja verdadeira significação até então não havia compreendido.”[15]
No entanto, será a partir desta primeira viagem que se iniciará uma nova fase
de produção. Para Zanini,[16] a influência de Picasso é natural, mas
não foi a única. O artista teria recebido diversas outras influências na
Europa, captando distintas correntes artísticas do pré-guerra, como cubismo e
expressionismo, e do entre-guerras, como o
surrealismo e as da chamada “Escola de Paris,” alterando essas influências ao
nível de sua própria reflexão.
17.
A
partir de 1930, sua inquietação com relação aos problemas sociais passa a ser
cada vez mais acentuada. A obra dos muralistas
mexicanos torna-se também outra influência:
18.
Quando voltei de minha primeira
viagem à Europa, senti plenamente a força lírica do Rio de Janeiro e verifiquei
que desta magia iria viver a vida inteira. Os mexicanos Diego Rivera, Orosco e Siqueiros
começavam a influenciar na minha pintura, não propriamente no lado técnico, mas
na substância social. O México criava com seus novos mestres uma teoria de
participação do artista na vida política do povo.[17]
19.
Neste
período podemos verificar um engajamento em revistas e conferências para fazer
refletir sobre a questão da realidade social. De acordo com Ferreira Gullar,
embora comprometido com a questão social, Di Cavalcanti não trás para sua
pintura os temas dramáticos e as denúncias da desigualdade social porque, em
sua concepção, a expressão artística decorre de uma espécie de correspondência
com a realidade social de cada país. Neste sentido, a arte do México
revolucionário é epopeica e trágica e de acordo com o artista: “como pode o
Brasil ter uma arte trágica e grandiosa sem que se faça a revolução social?”[18]
20.
Decorre
daí a sua crença em que “a nossa expressão é ainda em grande parte lírica,”
numa espécie de beleza inconsciente de sua própria força e natureza, tal como o
artista “que se descobria de instante a instante, sozinho, a beleza dêste mundo; nas borboletas voando, no oscilar das palmas
dos coqueiros, nas tranças se desatando da moça Luísa, nas páginas reproduzindo
obras primas dos Museus do Louvre e do Prado!”[19]
21.
Juntamente
com este lirismo, a inquietação de Di Cavalcanti com os problemas sociais foi
constante e outra influência presente em sua obra refere-se ao contato com a
produção da chamada “Nova Objetividade” na Alemanha, em especial, com a obra de
George Grosz e sua amarga e satírica crítica social,
com apelo ao grotesco, ao bizarro e ao absurdo, possíveis equivalentes a um
caos moral e social do mundo moderno. Ainda que relativizada por um olhar mais
lírico sobre o humano, se olharmos para as primeiras produções de Di, antes do
contato europeu, veremos que esta expressão satírica
da sociedade já se apresentava em suas caricaturas para o I Salão dos
Humoristas no RJ, em 1916, e mais enfaticamente, em sua visão crítica nos
desenhos para os Fantoches da Meia Noite.
Podemos fazer a consideração de que as influências mais tarde recebidas no
ambiente europeu de certo modo, já se apresentam latentes no período de sua
formação inicial no Brasil, como vocações próprias relacionadas a sua natureza conceptiva.
22.
Com
relação às produções e concepções europeias observadas no entre-guerras,
partimos da distinção básica entre as vanguardas do pré-guerra e as estéticas
que prosseguiram e/ou se desenvolveram a partir do fim da Primeira Guerra
Mundial, identificando no entre-guerras uma
diversificação de tendências ainda mais aguda, “com grupos de interesse
competindo [...] pelo significado da arte moderna e pela natureza da vida
moderna.”[20]
23.
A
proliferação dos grupos e a veemência dos discursos e das concepções presentes
nos manifestos e revistas demonstram a patente necessidade de se lutar pela
natureza da arte e toda sua implicação sócio-político-cultural, com a defesa de
posicionamentos engajados com relação aos problemas de um mundo em dramática
transformação. No entanto, a compreensão deste espaço disputado sempre foi
complexa, uma vez que a demarcação entre os grupos e as concepções não eram
precisas ou unívocas.
24.
Entre
as distintas estéticas do entre-guerras,
uma tendência claramente observada em vários países e de modos distintos, foi o
retorno à figuração. Na França, o que se denominou como “Retorno à Ordem” (Rapell à l’ordre)
era identificado ao classicismo e abrangia produções de Picasso, Derain, Lhote, entre outros. De
acordo com Batchelor,[21] o rótulo “Escola de Paris”, que
pode ser inserido dentro das concepções do “Retorno à Ordem,” aplica-se a um agrupamento de pintores que,
no início da década de 1920, trabalhavam em um estilo informal e figurativo.
Embora possam ser observadas semelhanças entre estas produções, elas também
abarcam várias distinções conceptivas.
25.
Sabemos
que muitas destas produções tiveram grande influência entre os modernistas
brasileiros e nos interessa refletir aqui sobre a crítica a estas produções,
que muitas vezes entendeu-as como um retrocesso diante do progressivo processo
de abstração e fragmentação do objeto laureado pelas vanguardas do pré-guerra,
crítica esta que foi extensiva aos modernistas brasileiros.
26.
Consideramos
também a crítica de que o “Retorno à Ordem” estava identificado com a
reconstrução da França no pós-guerra e o classicismo - como autêntica tradição
da cultura francesa - apresentava o “veículo para uma ideologia nacionalista
levemente velada.”[22] No entanto, sem desprezar esta “retórica
determinada por um conjunto de interesses políticos e ideológicos
contemporâneos,”[23] queremos apresentar outros
posicionamentos.
27.
De
acordo com Batchelor, encontramos em L’Esprit Nouveau et lès
poetes de Guillaume Apollinaire, espécie de
manifesto artístico-literário publicado em 1918, a seguinte declaração: “[...]
o retorno aos primeiros princípios foi motivado por um sentimento profundo de
horror ao caos.”[24] Se entendermos a arte através de um
movimento cíclico de mudança e retorno, a volta da figuração pode ser
compreendida dentro de um quadro natural, o qual a guerra seria o próprio
fato, concreto e simbólico, de maior expressão.
28.
Fazemos aqui a suposição de que este “retorno aos primeiros princípios”
pode estar relacionados a uma continuidade de intenções que fora almejada muito
antes por pós-impressionistas
e pelas primeiras vanguardas, voltando o olhar para a arte africana e para
culturas extra-europeias.
Como lembra Herbert Read,[25] em 1912, uma exposição e o almanaque Der Blaue Reiter foram produzidos por Franz Marc e
Wassily Kandinsky, representando uma mostra de grande
parte dos estilos modernos que estavam sendo então desenvolvidos: fauvismo,
cubismo, futurismo, raionismo e, evidentemente,
expressionismo. Eclético, o almanaque Der
Blaue Reiter
continha reproduções de vitrais bávaros, arte folclórica russa, arte medieval,
desenhos e xilogravuras chinesas e japonesas, máscaras africanas, escultura e
tecidos pré-colombianos, desenhos infantis. Num prefácio a segunda edição do
almanaque, Marc declarava:
29.
Percorremos a arte
do passado e do presente com uma espécie de varinha hidroscópica. Mostramos
apenas a arte que permanece intocada pelas injunções da convenção. Nosso amor
desvelado estendeu-se a todas as expressões artísticas que nasceram sozinhas,
vivem por seus próprios méritos e não andam com as muletas do costume.[26]
30.
José
Paulo Paes, abordando o modernismo brasileiro, reflete acerca de concepções em
torno do termo “primitivo,” na década de 1920:
31.
Primitivo era então
um termo muito amplo. Abrangia não apenas culturas tradicionais já extintas
como a etrusca, a egípcia e a da Grécia pré-clássica, ou
ainda vivas, como as da África negra, da Oceania e das Américas, mas
também a cultura popular contemporânea, especialmente as expressões da arte naive tão
caras aos cubistas, fossem os quadros do Douanier
Rousseau e os espetáculos de circo, a música de café-concerto ou o romance
folhetim, cuja leitura Apollinaire [...] reputava
“uma ocupação poética do mais alto interesse.”[27]
32.
De
modo geral, podemos observar tendências no modernismo brasileiro vinculadas a
estas concepções que envolviam o termo “primitivo”, seja, por exemplo, na obra
de Di Cavalcanti, Candido Portinari, Vicente do
Rego Monteiro, entre outros, com suas diferenças plásticas e na maneira
como tais concepções eram utilizadas. Considerando as diferenças entre uma
referência pré-clássica e uma vinculada à arte africana, observamos que os
artistas brasileiros e europeus aqui citados as utilizaram de modo múltiplo e
diversificado, inseridos dentro de um repertório tido como moderno. Por isto,
acreditamos que a relação entre estas referências ocorre nesta extensão do que
José Paulo Paes reúne em torno do termo “primitivo,” e o almanaque Der Blaue Reiter, pela relação que buscamos estabelecer aqui,
reunia também uma eclética produção de arte folclórica, medieval, africana,
pré-colombiana e desenhos infantis.
33.
Assim,
entendemos que, esta ênfase no retorno ao clássico em alguns artistas franceses
já não se referia especificamente ou somente ao clássico de Ingres,
dos neoclássicos e, menos ainda, dos chamados acadêmicos: se tratava, antes, de
um clássico “arcaico,” transfigurado pelas questões da modernidade, que servia
de fonte da mesma maneira que, inseridas no contexto moderno, poderiam servir
de fontes a arte egípcia e de outros países africanos, ainda que o uso de cada
uma destas referências pudesse gerar proposições totalmente distintas na
produção dos artistas que as utilizavam, pela relação consequente entre a
referência e as relações de sentido da obra. Consideramos também que as
utilizações destes tipos de referências em países como França e Alemanha - já
que acima relacionamos o Blaue Reiter -
foram regidas por situações e proposições distintas.
34.
Acreditamos,
ainda, que a ideia de clássico nos modernos não está contida especificamente no
tema, apesar dos atributos que uma obra pode comportar, como o perfil grego,
vasos e vestimentas, mas, na gênese formal que pressupõe uma ordem clássica,
que advém da inteira autonomia da lógica construtiva da imagem em detrimento do
tema e da representação. Como mostra Batchelor, em
algumas imagens de Picasso, tal como Duas Mulheres correndo na praia [Figura 1],
aparece uma ordem clássica que está numa justa tensão das partes num espaço, em
que o “equilíbrio formal do quadro é alcançado somente em detrimento das
proporções clássicas das figuras,”[28] que se distorcem e se esquematizam em
função de uma ordem formal abstrata. As duas mulheres no quadro aparecem numa
disposição em cruz em que seus corpos e proporções se alongam ou deformam
projetando uma tensão de forças para o centro de cada lateral da composição [Esquema 1]. Conforme Batchelor, o
braço e as pernas de uma das figuras “têm quase o dobro do tamanho dos braços e
pernas da figura em primeiro plano, mas paradoxalmente isto contribui para
acentuar o equilíbrio da composição do que para rompê-lo.”[29]
35.
Em
As Duas Banhistas [Figura 2],
esquematizadas e retorcidas, encontramos mais claramente ainda uma ordem
abstrata que determina um todo em detrimento do próprio classicismo das
figuras, numa ambiguidade entre planaridade e
espacialidade que contraria um princípio de clareza mais tipicamente
classicizante, mas que, por outro lado, apresenta a ideia moderna de clássico
conferindo uma ordem abstrata em que as partes individualizadas se tensionam e se ajustam mutuamente a um todo conciso. Neste
caso, as duas figuras se decompõem para se ajustarem a esse todo abstrato
composto de partes fragmentadas, mas que mantém a unidade num bloco monumental.
A pequena cabeça de uma das figuras, remotamente justaposta sobre o corpo,
parece aludir a um distanciamento espacial amparado pela concepção da
perspectiva clássica em que as formas tendem a diminuir conforme a sua posição
espacial, ainda que a lógica que une cabeça e corpo nesta imagem contrarie esta
sugestão. A indução espacial pode ser vista aqui também como uma indução
temporal, em que as partes unidas a um todo mantém suas autonomias e a cabeça,
enquanto vínculo à memória, se desloca temporalmente
do corpo, enfaticamente mais presente, fisica e
materialmente. Ainda que a ambiguidade das obras não seja uma peculiaridade da
modernidade, é possível perceber nestas produções intenções demarcadas que
“compartilham com os escritos de Apollinaire a capacidade de, simultaneamente,
evocar qualidades contraditórias dentro de uma única obra.”[30]
36.
Observamos
que nessa concepção de clássico subjaz uma ordem relativa aos meios plásticos -
tenham os quadros temas “modernos” ou vinculados à tradição -, pela qual se
afirma um sentido construtivo: jogo de forças contrastantes que se tensionam e se compensam, tendendo, em intensidade variada,
a suspender os valores emocionais, narrativos ou evocativos da experiência
humana, numa autonomia objetiva dos meios formais.
37.
Considerando
suas diferentes proposições e razões, encontramos certas características gerais
relacionadas a esta construção objetiva da forma e da composição, como o
tratamento da figura humana com formas precisas, volumes geométricos, gestos,
movimentos e expressões reduzidos a uma configuração simplificada que alude a
uma psicologia não demarcada emocionalmente.
38.
Embora
exista uma série de distinções entre as produções figurativas
do entre-guerras parisiense, podemos apontar
algumas características presentes em autores como Picasso, Derain,
Lhote, que evocando um passado clássico, inserem-se
nos temas gerais da existência humana, ao invés de específicos a tempos,
lugares, tipos e personalidades. Esta tendência, percebida claramente em
Picasso, tal como observou Di Cavalcanti, provoca uma sublimação estética,
retirando da obra qualquer referência ao mundo cotidiano, inserindo suas
figuras num diálogo permanente com a produção artística ocidental. Neste sentido,
o tema não está livre de sua bagagem cultural e de seu potencial de diálogo, de
associação e dissociação com a cultura contemporânea à produção de Di
Cavalcanti.
39.
Relacionado
a estas estéticas classicizantes aparecem o caráter monumental e as
configurações geometrizadas que assumem uma espécie de pregnância
e estaticidade que mantém o tom arcaizante. No
entanto, o que se percebe nestes artistas citados é que a variação em suas
produções se impõe sobre um tipo específico. Nelas, aparecem obras que vão da
figuração, vinculada ao seu potencial associativo e sua reflexão cultural, à
abstração, que demonstra a consciência da autonomia formal da imagem, por
vezes, procedimentos típicos da colagem num espaço fragmentado e descontínuo.
40.
Com relação ao artista Di Cavalcanti, observamos em sua produção um
intercâmbio entre o realismo e a abstração, permeado pela influência de
concepções distintas. Presenciamos,
juntamente com sua crescente questão social, a busca por uma síntese de seus
sentimentos de brasilidade e lirismo permeada pelos procedimentos e
concepções que ele desenvolveu no decorrer de seu processo como artista e
também pela influência de artistas como Picasso e Léger,
entre outros, e considerando sempre, a nosso ver, suas próprias concepções e
necessidades particulares, vinculadas mais especificamente à realidade da
América Latina, assim como de seus artistas. Não se pode deixar de perceber no
artista brasileiro aquela dimensão da experiência figurativa, em parte deixada
de lado por alguns artistas europeus que lhe foram referência, que inclui uma
relação íntima e poética da existência humana com as coisas.
41.
Neste
sentido, quando começa a se ver confrontado com as tendências abstracionistas
que se desenvolveriam no Brasil sobretudo a partir da
década de 1950, declara em depoimento para a coluna “Diálogo em Preto e Branco”
da Folha da Manhã de São Paulo, em
1954: “Nunca fiz o abstracionismo porque sou um artista literário. Isto é,
escrevo com o grafismo da minha arte. Conto alguma coisa! Testemunho
realidades! Fixo dramas! Surpreendo horas, estados da alma, o povo, a rua, os
interiores pobres etc.”[31]
42.
Em
1961, Di Cavalcanti rompe com a Bienal de São Paulo, fato que teve grande
repercussão na imprensa da época. Empreendeu uma posição de combate à arte
abstracionista deste período, por alegar perceber na mesma uma ausência de
valores humanos. Em conferência no Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o
artista teria declarado, de acordo com Jayme Maurício:
43.
A arte abstrata é uma forma de
obscurantismo academizante, destinado a afastar o
povo da pintura [...] A Bienal de São Paulo - portadora de
infecções artísticas europeias - está ligada aos interesses dos marchands de tableau, sem qualquer
vinculação com a realidade brasileira.[32]
44.
Diante
da polêmica gerada e das críticas recebidas, é interessante a defesa de Jayme
Maurício ao artista:
45.
Achamos que Di tem toda razão. Não
que sua visão de pintura seja exata e justa. [...] Mas
Di tem razão em tomar uma atitude, em ser ele mesmo, em usar e abusar do
inestimável ‘jus sperneandi’, do direito de
espernear. [...] mais um Dom Quixote
contra os moinhos de vento - contra a instituição Oficializante
e Açambarcadora...[33]
46.
Diante
destes fatos podemos considerar que Di Cavalcanti foi um artista engajado e
consciente de seus posicionamentos, tendo se influenciado por vários artistas e
movimentos, mas sabendo conduzir-se de acordo com seus próprios interesses e
visão particular.
47.
Com
relação à produção de Di Cavalcanti, também observamos uma variação de
procedimentos. A partir do exposto até aqui, faremos uma breve análise de duas
obras de Di Cavalcanti; essa análise tem como propósito afirmar as
particularidades das suas escolhas, fruto de suas próprias
concepções e posicionamentos, em face de todo intercâmbio do pintor com o
contexto europeu, em especial, o parisiense.
48.
Em
Vênus, de 1938 [Figura 3],
observamos, tal como em outros quadros, a iconografia da mulher mestiça
brasileira que, conforme Ferreira Gullar,[34] encarnava na mulher do povo outra
concepção de beleza que se explicita na espontaneidade e na franca sexualidade,
mas que, a nosso ver, se constrói também no mistério, na ambiguidade, e na
profundidade desta psicologia. Ainda segundo Gullar, um componente ideológico
se expressa na identificação de Di Cavalcanti com os excluídos, as classes
pobres e os marginais, permitindo uma leitura menos pitoresca de sua temática,
pela qual a exaltação da figura mestiça se reveste de uma intenção que tem
alcance social, no resgate de um valor humano que não é medido pelo preconceito
e pela discriminação e, principalmente, que não é medida pela moralidade e
pelos valores das classes dominantes.
49.
Neste
sentido, Di Cavalcanti usa de certa ordenação clássica, com a figura em
primeiro plano relacionada à Vênus, como sugere o título. Formalmente, isto é
reforçado com o uso de uma triangulação na configuração dessa figura, que
atribui a ela pregnância e estaticidade,
colaborando para seu relativo isolamento e para a suspensão do tempo específico
ao qual ela pertence. Nesta
ambiguidade, Di Cavalcanti reúne os atributos específicos das figuras que se
apresentam no quadro - o tipo físico, a expressão, a atitude
- ligando-as à esfera mítica, ou seja, a relação destas figuras
com a imagem arquetípica de Vênus, numa espécie de diálogo com a mitologia
ocidental, buscando provavelmente reunir, deste modo, o específico ou temporal,
ao abrangente e arquetípico. Por outro lado, aparece outra triangulação, mais dinâmica, entre as
figuras que se sucedem ao fundo, dinâmica esta que visualmente se direciona à última figura sobre um interior de um recinto escurecido,
em contraste com a iluminação e extensão que resulta da paisagem ao fundo [Esquema 2].
Assim, observamos uma espécie de gradiente que vai de um tempo mítico,
imobilizado, a um tempo específico que registra os
atributos essenciais que circunscrevem a vivência destas figuras. Esta
ordenação registra também um gradiente que vai da
exterioridade, polarizada pelo panejamento branco em
primeiro plano à interioridade sugerida pela escuridão do pequeno recinto, ao
fundo. Abrangendo os opostos, Di Cavalcanti revela uma interioridade nas
figuras que se revela pela sua concreta, natural e sensual exterioridade.
50.
Em
Mulata, de 1938 [Figura 4],
conforme observa Thadeu Chiarelli [35],
aparece uma ambientação impregnada de um sentido metafísico. A nosso ver, aqui
não há uso de ordenações, mas uma espécie de justaposição de momentos.
Basicamente, vislumbramos uma divisão básica em duas partes: uma, em que as
figuras masculinas claramente se identificam ao contexto da paisagem ao qual
estão inseridas; outra, em primeiro plano, definido por um corte escurecido em
que duas figuras femininas parecem vagar, em direções
contrárias, ocupando o mesmo espaço físico, mas pertencendo a tempos distintos.
Novamente observamos a sugestão de que a figura nua dialoga com uma espécie de
Vênus, que assumindo formas e tipos, vaga perpassando o tempo. A figura em
primeiro plano, claramente mais localizada temporalmente com suas vestimentas,
mantém, no entanto, a mesma expressão ausente. As duas figuras, em sentidos
contrários, sugerem certa convergência, enquanto um muro, na mesma área destas
figuras, direciona o olhar para a praia e seu contexto específico.
51.
Em
ambas as imagens analisadas, como observa José Mindlin, ainda que vinculadas a
uma iconografia de tipos e locais brasileiros, a produção de Di Cavalcanti
“transcende o realismo do cotidiano e o dinamismo histórico, situando-se num
tempo estático, abstrato e imaginário, sem cronologia.”[36]
Observamos nestas obras correspondências com procedimentos empregados por
algumas tendências artísticas do entre-guerras, como
o uso de uma ordenação clássica, o diálogo cultural, a consciência de uma
autonomia formal, a justaposição num mesmo espaço de objetos significativa ou
temporalmente diferenciados - um procedimento que, poderia se dizer, foi
enfatizado pelo surrealismo. No entanto, compreendemos que seu uso se faz
mediante uma concepção e uma vontade específica, onde a necessidade do tema
constrói a forma encontrada; indícios que nos fazem pensar na ideia de
coerência afirmada pela revista Visão
a respeito do pintor, coerência esta vista dentro do seu percurso e dentro do
ambiente que considerou fonte para sua criação: coerência de um artista
cosmopolita, que procurava seu caminho a partir da consciência de estar
escolhendo um, entre os muitos possíveis, para percorrer.
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[1] Departamento de
Artes / Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
[2] GULLAR, Ferreira et al. Di Cavancanti
1897-1976. Textos de Ferreira Gullar, José Mindlin e Max Perlingeiro. Rio de Janeiro: Pinakotheke,
2006, p. 52.
[3] Ibidem, p. 14.
[4] DI CAVALCANTI,
Emiliano. Viagem da minha Vida. Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia:
Civilização Brasileira, 1955, p. 124.
[5] Ibidem, p. 75.
[6] LEITE, José
Roberto Teixeira. Di Cavalcanti e outros perfis.
Osasco: EDIFIEO, 2007, p. 16.
[7] DI CAVALCANTI, op.
cit., p. 130.
[8] “Em 31 de agosto
de 1924, o [Correio da Manhã] chegou
a ser fechado pelo presidente Artur Bernardes, sob a acusação de estar
imprimindo clandestinamente o folheto Cinco de Julho, em apoio aos 18 do Forte.
Em 20 de maio de 1925 o periódico foi reaberto, sob a direção provisória do
senador Moniz Sodré.” Ver mais informações sobre o periódico em: <http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/correio-da-manh%C3%A3>.
Acesso em: 1/12/2014.
[9] DI CAVALCANTI, op.
cit., p. 134.
[10] Idem.
[11] GULLAR, op. cit.,
p. 17.
[12] DI CAVALCANTI, op.
cit., p. 138-139.
[13] Ibidem, p. 139.
[14] Ibidem, p.133.
[15] Ibidem, p. 135.
[16] Apud GULLAR, op. cit., p. 17.
[17] DI CAVALCANTI, E.. Reminiscências Líricas de um Perfeito
Carioca. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 1964, p. 33
[18] Apud GULLAR, op.
cit., p. 21.
[19] DI CAVALCANTI,
1964, p. 11.
[20] BATCHELOR, David et al. Realismo, Racionalismo,
Surrealismo. A Arte no entre-Guerras. São Paulo: Cosac & Naify, 1998, p. 3.
[21] Ibidem, p. 9.
[22] Ibidem, p. 17.
[23] Ibidem, p. 28.
[24] APOLLINAIRE apud BATCHELOR, 1998, p. 62
[25] READ, Herbert. Uma História da Pintura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 228.
[26] Apud READ, 2000,
p. 228.
[27] PAES, José Paulo. Cinco livros do Modernismo
Brasileiro. Estudos Avançados, São
Paulo/USP, v. 2, n. 3 (1988), pp. 89-90. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/ea/v2n3/v2n3a07>.
Acesso em: 13/11/2014.
[28] BATCHELOR, op.
cit., p. 72.
[29] Idem.
[30] Ibidem, p. 73.
[31] Apud GULLAR, op.
cit., p. 44.
[32] Ibidem, p. 72.
[33] Ibidem, p. 73.
[34] Ibidem, p. 12.
[35] CHIARELLI, Thadeu. L’Italia è qui: una presentazione. In: Novecento Sudamericano. Relazione artistiche
tra Italia e Argentina, Brasile, Uruguay. Milano: Skira editore, 2003, p. 20.
[36] GULLAR, op. cit.,
p. 18.