Benedito Calixto na Capela do Santíssimo da Igreja de Nossa
Senhora da Consolação e São João Batista: aspectos histórico-religiosos
Karin Philippov
PHILIPPOV, Karin. Benedito Calixto na Capela do
Santíssimo da Igreja de Nossa Senhora da Consolação e São João Batista:
aspectos histórico-religiosos. 19&20, Rio de Janeiro, v.
XVI, n. 2, jul.-dez. 2021. https://doi.org/10.52913/19e20.xvi2.03
* * *
Introdução
1. O
artigo aqui apresentado resulta do estágio de pesquisa de Pós-Doutorado
realizado junto à Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-UNIFESP) entre os anos de 2017 e 2019,
e traz importantes e renovadas contribuições acerca do conjunto de seis
pinturas do artista historiador Benedito
Calixto de Jesus (1853-1927), que no ano de 1918, executou a encomenda
composta por essas seis obras em óleo sobre tela de grande formato para a
Capela do Santíssimo da Igreja de Nossa Senhora da Consolação e São João
Batista, localizada na cidade de São Paulo. A encomenda ao artista partiu do
primeiro arcebispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e Silva (1867-1938), dez
anos após o clérigo assumir o cargo na recém-criada Arquidiocese de São Paulo.
2. A
pesquisa aqui apresentada se propõe a discorrer analiticamente acerca dessas
seis pinturas à luz de suas relações com a arquitetura revivalista/historicista
Neorromânica, tipologia com que a recém-inaugurada Igreja de Nossa Senhora da
Consolação e São João Batista é construída, linguagem essa que integra a
corrente Neomedieval eclesiástica em São Paulo, considerando-se a Capela do
Santíssimo como espaço privilegiado para a pintura religiosa calixtiana nesse momento.
3. Salienta-se,
não obstante os vários estudos acadêmicos da autora já publicados ou em vias de
publicação,[1] a
inserção da pouco repercutida pintura religiosa de Benedito Calixto de Jesus
dentro do campo da historiografia artística religiosa produzida na virada do
século XX. Acerca de sua produção não religiosa, muito já foi realizado e, a esse
respeito, são conhecidos os estudos de excelência realizados pelos
historiadores Caleb Faria Alves,[2]
Milton Teixeira,[3] Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses,[4] Tadeu
Chiarelli,[5]
dentre outros. Em contrapartida, sua pintura religiosa depara-se com certa
invisibilidade, decorrente preponderantemente da dificuldade de acesso aos
espaços da própria Igreja, que não se constitui em espaço museológico, mas sim
em local de culto religioso antes de qualquer outra possibilidade - embora as
igrejas devam ser consideradas acervos eclesiásticos fundamentais ao
entendimento de toda uma sociedade.
4. Outra
questão a ser mencionada se refere às más condições luminosas para a observação
e conservação das obras. Aliás, o ciclo aqui apresentado e analisado se
encontra em condições muito precárias de conservação. A Igreja de Nossa Senhora
da Consolação e São João Batista enfrenta momentos bastante delicados em função
de infiltrações decorrentes das chuvas intensas e rachaduras, que estão
afetando seriamente as pinturas calixtianas, causando
importantes desbotamentos, descascamentos e fungos nas superfícies pictóricas.
Muitas vezes, por questões de segurança das próprias igrejas, as Capelas do
Santíssimo permanecem trancadas e interditas aos fiéis ou são abertas em
horários bastante restritos e reduzidos, geralmente próximos aos das missas ou
para a realização de Adorações ao Santíssimo, bem como para realizações de novenas,
por exemplo.
5. Além
disso, cabe ressaltar que essa invisibilidade também ocorre pela função
religiosa que as pinturas possuem, pois o fiel que ali adentra não visa
observar as pinturas como obras de arte, mas sim, exercer suas práticas
religiosas e devocionais mediadas pela fé cristã. Com isso, muitas vezes o fiel
não tem noção da autoria e da importância das pinturas como objetos artísticos,
por não ser sua intenção estar diante de um objeto artístico.
6. O
artigo, então, parte de um conjunto composto pelas seguintes pinturas: A
Caminho de Emaús, Ceia em Emaús, São Boaventura, São Tomás, São Tarcísio e Santa
Clara Virgem. Porém, antes do início da análise, é necessário apontar
alguns dados relativos ao histórico da construção da Igreja, para que a contextualização
forneça a análise maior profundidade.
Alguns
aspectos históricos
7. A
história da Igreja de Nossa Senhora da Consolação e São João Batista tem início
a partir de 1799, quando os fiéis devotos da orago Nossa Senhora da Consolação
constroem a primeira ermida em taipa, “à margem do Caminho de Pinheiros, hoje
rua da Consolação.”[6] A
pequena capela ali construída parte de um requerimento dos habitantes da região
ao então quinto Bispo de São Paulo, Dom Mateus de Abreu Pereira (1742-1824),
que por sua vez, concede a autorização para a construção da primeira capela, a
qual, um ano mais tarde, já está devidamente edificada, com fundos angariados a
partir das doações dos próprios fieis.[7]
8. No ano
de 1834, segundo Leonardo Arroyo, “a Câmara, na sessão de 15 de março, ordenara
ao seu fiscal que examinasse ‘outro pantanal que há na estrada adiante da
Igreja da Consolação, na subida do morro’,"[8] pois
o local onde a primeira capela é erguida possuía péssimas condições de acesso e
salubridade, devido ao terreno pantanoso e mal cheiroso, situação essa somente
resolvida a partir de 1834, quando a atual região do Largo do Arouche passa por
reformas e adequações sanitárias. Aliás, essas melhorias são realizadas com a
construção da segunda edificação, já sendo uma igreja propriamente dita, a
partir do referido ano, com “arruamentos, alinhamentos, aterros de pantanais,
construção de muros, etc.”[9]
Assim, a construção da Igreja em taipa de 1834 atrai não apenas melhoramentos,
como propicia a expansão do novo bairro, processo esse integrado ao próprio
crescimento urbanístico da cidade de São Paulo, no século XIX.
9. No ano
de 1840, Arroyo revela a primeira reforma, a qual “tão bem feita que durou mais
de 60 anos, pois é êsse o templo descrito em 1900
como tendo cinco janelas, duas tôrres, a porta
principal e duas laterais.”[10]
Trinta anos após a reforma de 1840, a freguesia da Consolação é criada e o
Cônego Eugênio Dias Leite (1851-1915)[11]
“consegue autorização da Assembleia Provincial para extração de loteria, a fim
de obter recursos para a reforma do prédio da Igreja.”[12] Com
isso, providencia ricos paramentos e alfaias para a construção, bem como
constrói uma grande escadaria de acesso, além de adornar o pátio com árvores e
erguer um muro, conforme se pode observar na Figura 1.
10. A
longa história da Igreja de Nossa Senhora da Consolação e São João Batista, no
entanto, passa por uma profunda transformação a partir do final do século XIX e
início do XX, quando o desenvolvimento urbano e econômico do bairro, favorecido
pela necessidade de se construir um novo templo, faz com que os fiéis abastados
da região se organizem, a fim de adquirir um terreno para a construção de uma
nova Igreja. Assim, o terreno disponível para a nova construção, pertencente à
Dona Veridiana da Silva Prado (1825-1910),[13] é
adquirido por 40 contos de réis por sua proprietária, para ser destinado ao
novo projeto.
11. Uma
vez que a antiga edificação demandava grandes reformas e não atendia mais às
necessidades da nova metrópole gerida pelo capital cafeeiro e pelo regime
republicano laico, nesse momento surge a importante presença do primeiro
arcebispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e Silva, atuando como protagonista
fundamental das sucessivas reformas, demolições e reconstruções das antigas
igrejas de taipa de arquitetura colonial paulistanas, sendo a então Paróquia de
Nossa Senhora da Consolação e São João Batista, seu alvo. Assim, em 15 de
agosto de 1909, Dom Duarte:
12.
concedeu ao vigário da paróquia da
Consolação “faculdade para mandar demolir a actual
igreja matriz da parochia a fim de que no mesmo lugar
se possa erigir uma nova matriz que possa corresponder aos belos edifícios que
ora existem nesta capital.”[14]
13. Com a demolição
da antiga Igreja, Dom Duarte contrata o engenheiro alemão e professor da Escola
Politécnica de São Paulo, Maximilian Emil Hehl
(1861-1916), para projetar a nova igreja em arquitetura Neorromânica, com
elementos neogoticizantes observáveis na fachada,
como a rosácea encimada pelos doze apóstolos esculpidos em pedra, por exemplo [Figura 2].
14. O
lançamento da pedra fundamental da nova Igreja ocorre em 22 de novembro do
mesmo ano. Porém, as obras são concluídas apenas na década de 1950, devido às
duas grandes guerras mundiais, entre 1914 e 1918 e 1939 e 1945, bem como à
crise do café de 1929, além das revoluções de 1924 e 1932, e de pandemias, como
a da gripe espanhola de 1918, que assolou a cidade de São Paulo, fazendo
milhões de vítimas não somente em São Paulo, como ao redor do mundo.
Benedito
Calixto na Capela do Santíssimo
15. Do
arcebispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e Silva, o artista historiador
Benedito Calixto recebe, então, a encomenda para a execução do conjunto
composto por seis pinturas em óleo sobre tela de grande formato e finalizadas
no ano de 1918, não havendo documentação acerca da referida encomenda junto ao
Arquivo da Cúria Metropolitana Dom Duarte Leopoldo e Silva, em São Paulo.
16. O
ciclo é composto de duas cenas pós-ressurreição de Cristo, representadas por
dois episódios relativos à passagem de Cristo por Emaús: A Caminho de Emaús [Figura 3] e Ceia
em Emaús [Figura
4]; dois santos doutores da Igreja, São Boaventura [Figura 5] e São
Tomás [Figura 6]
e, por fim, dois santos mártires: São Tarcísio [Figura 7] e Santa
Clara Virgem [Figura
8]. As seis pinturas estão divididas em três pares, número esse
em referência à Santíssima Trindade, e foram instaladas a mais de dois metros
de altura do piso de mármore branco e preto, pelo artista decorador Edmundo Cagni,[15] com a
técnica da marrouflage[16] sobre
três das quatro paredes da Capela do Santíssimo da referida igreja.
17. À
propósito da instalação das pinturas em altura elevada, destaca-se a
necessidade de se posicionar o divino em um patamar elevado e, portanto, acima
dos fiéis que ali frequentam. Além disso, a elevação se vincula à ascese tanto
dos seres espirituais, quanto propicia a busca pela elevação espiritual dos
fiéis, por meio da Eucaristia e dos ritos de Adoração ao Santíssimo,
constantemente realizadas na Capela do Santíssimo da referida Igreja.
18. Do
conjunto de pinturas calixtianas para essa capela,
salientam-se alguns aspectos fulcrais à criação de uma narrativa teológica e
liturgicamente estruturada dentro de uma concepção primordialmente eucarística,
por se tratar de um espaço religioso, para o qual o fiel se dirige com o
intuito de realizar suas orações mais prementes e adorações junto ao Santíssimo,
bem como participar de ritos Eucarísticos. Porém, antes de ser local de
práticas devocionais, a Capela é antes de tudo, o espaço que abriga o Sacrário
ou Tabernáculo, e que, contendo a Hóstia Sagrada, se torna o local de maior
sacralidade dentro da Igreja.
19. Aliás,
as Capelas do Santíssimo - também denominadas Capelas Eucarísticas - são
ambientes restritos, sempre dispostos do lado direito das igrejas, cumprindo,
desse modo, a dupla função simbólica e teológica associada ao ciclo do
nascimento do sol, atrelado ao nascimento de Cristo e ao próprio Credo de
Niceia, que coloca Cristo ao lado direito do Pai. Por serem espaços de
circulação restrita e com acesso a partir de uma porta estreita, aqui se
destaca a relação com o próprio acesso ao mundo divino por um caminho estreito,
seguindo, então, o Evangelho de São Mateus que diz:
20.
Entrai pela porta estreita, porque largo e
espaçoso é o caminho que conduz à perdição. E muitos são os que entram por ele.
Estreita, porém, é a porta e apertado é o caminho que conduz à Vida. E poucos
são os que o encontram (Mt: 7 – 13-14).[17]
21. Outra
questão fundamental ao entendimento da Capela do Santíssimo é a que se vincula
nesse momento de expansão urbana da cidade de São Paulo, às demolições das
inúmeras pequeninas capelas coloniais que existiam no território e que são
transferidas para dentro das novas igrejas revivalistas, como acontece na
Igreja de Nossa Senhora da Consolação e São João Batista, por exemplo.
22. Assim,
não se constituindo em um espaço museológico, no qual as pinturas são vistas
por visitantes, mas sim por fieis quanto e clérigos, essa Capela tem por
característica ser um espaço de pouca circulação, iluminação e ventilação,
possuindo apenas um lustre de ferro batido pendurado no centro do teto, além de
possuir dois vitrais representando o Cristo Santíssimo [Figura 9] e a
Virgem Santíssima [Figura
10], ambos feitos por Conrado Sorgenicht
(1836-1901), e instalados na quarta parede da Capela, que também corroboram na
iluminação do ambiente - muito embora a luz que por ali passa transfigure a luz
física em espiritual, sendo filtrada pelos vitrais policrômicos e seguindo,
portanto, a tradição observada nas catedrais góticas, por exemplo.
23. Além
disso, salienta-se certa invisibilidade dessas pinturas de Calixto, dadas as
alturas em que as pinturas são instaladas, a aproximadamente dois metros do
solo, fator que contribui para a não observação dos detalhes das mesmas. Não
obstante todas as dificuldades acima relatadas, torna-se necessário compreender
esse conjunto à luz de uma interpretação contextualizada e caracterizada pelo
ambiente proporcionado pela Reforma Ultramontana/Romanizadora
advinda do Concílio Vaticano I, realizado de 8 de dezembro de 1869 a 18 de
dezembro de 1870, ao qual se acrescenta, no Brasil, a Primeira República,
proclamada em 15 de novembro de 1889.
24. Aqui
também se considera esse mesmo conjunto como um dos últimos produzidos antes da
realização da Semana de Arte Moderna de 1922, no então recém-construído Teatro
Municipal em São Paulo, muito embora o Modernismo apenas se instale enquanto
movimento anos mais tarde. Nesse sentido, cumpre ressaltar a crítica feita pelo
ensaísta, crítico, poeta e historiador da arte católico modernista Mário
Raul de Moraes Andrade (1893-1945), que escreve:
25.
Depois vem a decadência: a arte religiosa
vai-se exaurindo a pouco e pouco, para chegar aos tempos modernos, inerme,
cadáver - a ponto de Mâle exclamar, com visos de
verdade: “há ainda artistas christãos, não existe
mais arte christã!” Se pelo estudo da iconografia só
poderão caracterizar o espírito, os sentimentos, a consciência religiosa das
épocas diversas; hoje, que se levantam: em Paris a igreja bizantino-românica!
de Montmartre, o gótico de inúmeros templos ianques, e mais particularmente
entre nós o rococó-românico-bizantino, quiçá secessionista, da igreja de Belo
Horizonte, o gótico de Nª Sª da Conceição de
Botafogo, e da igreja da Copacabana, no Rio, o gótico flamejante da nossa
catedral, o românico da Consolação e de Santa Efigênia, o normando de S. Bento,
que divisar senão uma parva desorientação? Há ainda cristãos, não mais arte
cristã, com normas exatas, com diretriz firme e determinada.[18]
26. Mário
de Andrade critica ferozmente a Igreja de Nossa Senhora da Consolação e São
João Batista por ser esse templo erigido em arquitetura revivalista e pela
demolição da antiga igreja de arquitetura colonial - para ele, o estilo
genuinamente brasileiro. Entretanto, salientam-se dois aspectos, sendo o
primeiro relacionado à defesa que faz dos artistas cristãos e o segundo que
Calixto é um artista cristão e católico fervoroso, cuja produção demonstra não
apenas a pesquisa histórica para a execução de suas encomendas, como também um
viés teológico imagético.
27. Desse
modo, em primeiro lugar, consideram-se as seis pinturas do artista dentro do
campo teológico e simbólico propiciado pela Capela do Santíssimo, como local do
triunfo de Cristo sobre a própria morte, por ter ressuscitado ao terceiro dia,
ascendido aos céus e estar sentado ao lado direito de Deus Pai, como diz o
Credo Ecumênico de Niceia, de 325 d.C.. Assim, quando o fiel se dirige à
capela, depara-se com três degraus na entrada, simbolizando a Santíssima
Trindade. Salienta-se na questão desses três degraus de entrada da Capela do
Santíssimo antes uma questão simbólica e teológica do que topográfica, pois a
necessidade de se adentar um espaço mais elevado demonstra a maior proximidade
para com o sagrado. Um pequeno detalhe aqui merece destaque, entretanto: do
lado oposto da nave da Igreja de Nossa Senhora da Consolação e São João
Batista, encontra-se o acesso à sacristia e ali se veem somente dois degraus,
cumprindo, portanto, uma função meramente construtiva, visto que não haver
desnível observável no piso plano da nave da referida Igreja.
28. Voltando
ao alto da porta da Capela do Santíssimo e antes de entrar, o fiel ergue seu
olhar e observa a Santa Ceia [Figura 11], pintura em óleo sobre tela de grande formato
executada pelo artista fluminense Oscar Pereira da Silva (1867-1939). A
presença iconográfica da Santa Ceia no tímpano sobre a porta de entrada da
Capela do Santíssimo visa a rememorar o momento da última celebração de Cristo
junto aos doze apóstolos, antes de sua Crucificação. Ao subir os três degraus
para adentrar a Capela do Santíssimo, o fiel inicia o ritual de desvinculação
de sua vida mundana, bem como dos problemas que o levaram até ali, para
participar da Páscoa do Senhor, tanto pela Eucaristia, quanto pela rememoração
da Ressurreição do Cristo, que triunfou sobre sua própria morte na cruz.
Estabelece-se, a partir desse momento, a perfeita conexão entre o fiel ali na
Capela do Santíssimo e o conjunto iconográfico e icono-hagiográfico
de Benedito Calixto, por meio de sua narrativa teológica, litúrgica e
simbólica, assim como pela construção narrativa subjacente ao ciclo calixtiano e que se impõe nesse momento da Primeira
República,.
29. Desse
modo, ao adentrar na Capela do Santíssimo, o fiel se depara com as seis
pinturas calixtianas. A partir desse momento, inicia
sua completa imersão no universo simbólico e teológico trazido pela encomenda
de Dom Duarte Leopoldo e Silva, no ano de 1918. Aliás, Benedito Calixto, como
artista, é quase um teólogo da imagem,[19]
segundo aponta Emmanuel Guedes. Por sua intensa atividade na produção de
pinturas religiosas e por ser católico devoto e piedoso, sua produção favorece
aquilo que o historiador da arte norte-americano David Morgan define por
“piedade visual,”[20]
marcando um processo de dupla troca, no qual o fiel exerce sua fé e devoção ao
se simpatizar com a imagem para a qual se direciona, cujo santo ali estando
representado demonstra sua empatia para com o fiel devoto, intercedendo pelo
mesmo junto ao Pai.
30. Propõe-se,
dessa maneira, um percurso narrativo objetivamente criado a fim de estimular no
fiel que ali se encontra, tanto sua devoção, como sua entrega à Igreja
Ultramontana da Primeira República. Ressalta-se um claro processo pedagógico de
persuasão favorecido pelos paradigmas imagéticos ali dispostos, pois o fiel se
vê imerso em um ambiente criteriosamente planejado, com o intuito de lhe
ensinar não somente a doutrina cristã, como também despertar sua consciência
para que atue na Primeira República laica, transmitindo os ensinamentos
religiosos aprendidos na nova Igreja de Nossa Senhora da Consolação e São João
Batista, reconstruída com tipologia arquitetônica Neorromânica, e enriquecida
com valores doutrinários litúrgicos voltados ao resgate do Cristianismo,
conforme se observa no ciclo calixtiano.
31. Simbolicamente
falando, então, o fiel se depara com as seis pinturas calixtianas
[Figura 12],
número esse, por sua vez, atrelado à Criação divina do mundo realizada em seis
dias.[21] Esse
número, no entanto, complementa-se aos dois vitrais policrômicos de Conrado Sorgenicht, perfazendo, portanto, o número oito,[22]
respectivo ao infinito e à completude, bem como à Ressurreição de Cristo. O
número seis ainda simboliza a união com Deus, inclinando-se tanto para o bem,
quanto para o mal.[23]
Obviamente, consideram-se as duas instâncias na análise, pois o bem se
manifesta após o mal, ou seja, após a tortura que culmina na Crucificação de
Jesus e a Capela do Santíssimo é o local, por excelência, da vitória cristã e
da comunhão com Deus, através da Eucaristia. O número seis possui igualmente
uma importante aproximação com a geometria, vinculando-se aos seis triângulos
que circunscrevem um círculo, formando, assim, um hexâmetro bíblico, visto que
o mundo foi criado por Deus em seis dias. Logo, também é o número da Criação.[24]
A
Caminho de Emaús
32. Iniciando
o fiel, portanto, sua peregrinação eucarística, mística, religiosa, devocional
e simbólica dentro da Capela do Santíssimo, A Caminho de Emaús [Figura 3]
encontra-se instalada acima da porta da entrada principal da Capela e em
oposição à Santa Ceia de Oscar
Pereira da Silva. Essa pintura é a primeira e a última a ser vista pelo fiel ao
sair do recinto sagrado, a menos que ele se vire para observá-la enquanto
estiver no interior do mesmo.
33. Iconograficamente,
a tela traz Cristo acompanhado por dois de seus discípulos, totalizando três
personagens, em clara referência à Santíssima Trindade, caminhando pela estrada
em direção ao povoado de Emaús, localizado “a sessenta estádios de Jerusalém,”[25] onde
Cristo ressuscitado se revela em sua primeira aparição. O Evangelho de São
Lucas não forneça pistas acerca da identificação de um dos apóstolos com quem
Jesus ali conversa; apenas Cleofás[26] é
mencionado por São Lucas, ao perguntar a Jesus: “Tu és o único forasteiro em
Jerusalém que ignora os fatos que nela aconteceram nestes dias?”[27]
Assim, por essa pequena citação do Evangelista Lucas é possível propor que, na
pintura de Benedito Calixto, Cleofás seja o homem que
aparece à direita de Jesus e com quem estabelece uma Sacra Conversação, no
erguer de sua mão direita esboçando um gesto tanto de indicação divina, como de
identificação de si mesmo.
34. Além
disso, a pintura de Calixto ainda traz na parte inferior, separada por uma
linha marrom horizontal pintada, sobre uma plaquinha em trompe-l’oeil, a citação em latim com letras maiúsculas
escritas: “QVI SVNT HI SERMONES QVOS CONFERTIS AD INVICEM AMBVLANTES? LVC XXIV-17”,
traduzindo-se por “Que palavras são essas que trocais enquanto ides
caminhando?”[28] A
passagem do Evangelho se refere ao momento preciso em que Jesus se mistura aos
seus discípulos que não lhe reconhecem, pois está morto e ignoram o fato de que
havia ressuscitado e, aparecendo diante deles, causa-lhes surpresa e espanto.
35. Outros
detalhes na cena despertam, ainda, a atenção do fiel e o guiam pelo caminho da
Comunhão Eucarística na Capela do Santíssimo. O primeiro deles parte dos
artifícios imagéticos calixtianos pela articulação de
sua composição inserindo três figuras ao centro da imagem, tendo a paisagem ao
fundo. Aqui, estabelece-se um diálogo com a pintura nazarena germânica,[29] que
se caracteriza pela inserção centralizada de personagens vestidos com roupas e
acessórios considerados de época, diante de uma paisagem histórica e
arqueologicamente construída, fazendo citação dos lugares onde os fatos
bíblico-históricos teriam ocorrido. A propósito dessa aproximação com a escola
germânica nazarena, salienta-se, ainda, uma adequação da encomenda que Calixto
recebe de Dom Duarte ao próprio projeto neorromânico e neogoticizante
do engenheiro alemão Maximilian Emil Hehl, bem como
se destaca um conjunto pedagogicamente atrelado e construído em consonância ao
decoro que se espera de uma Capela do Santíssimo, como ambiente de silêncio,
paz, luz, força e triunfo de Cristo, por sua Comunhão Eucarística.
36. No que
concerne à composição da pintura, os três personagens estão dispostos em uma
leve diagonal descendente orientada da esquerda para a direita. Do lado
esquerdo do apóstolo idoso de barba branca, observa-se uma jovem árvore de
cujos galhos tortuosos brotam folhas verdes novas, simbolizando o renascimento
de Cristo, a partir de sua Ressurreição. Ainda cumpre mencionar, no entorno da
cena, uma paisagem clara, feita de paleta de cores suaves, sem arroubos, nem
fortes contrastes, sendo apenas um ambiente silencioso e quase contemplativo. A
essa leve diagonal descendente ainda se unem os dois cajados transportados
pelos dois apóstolos e, unindo-se virtualmente os dois, chega-se a um ponto
convergente igualmente virtual, localizado acima da cabeça de Jesus. Aqui,
propõe-se o caminho a ser seguido pelo fiel ao sair da Igreja de Nossa Senhora
da Consolação e São João Batista, pois os dois cajados, a leve diagonal
descendente e o posicionamento de Cristo se voltam para a porta de entrada da
Igreja em si, bem como sinalizam, na cabeça de Cristo, o caminho a ser seguido
pelo fiel.
37. Aqui,
estabelece-se uma associação às três vias teológicas - purgativa, iluminativa e
unitiva[30] -
associadas à inserção do corpo de Cristo disposto deitado sobre a planta da
Igreja, conforme proposta pelo arquiteto sienês
Pietro di Giacomo Cataneo
(1510-1574).[31] Dessa
maneira, a terceira via, ou via unitiva, ocorre a partir da emanação divina
oriunda do presbitério, local onde a cabeça de Cristo está. Portanto, aqui se
tem uma clara mensagem de cunho teológico e litúrgico, ao mesmo tempo em que é
histórica, pois se espera que o fiel também siga como Cristo segue por Emaús –
porém, na cidade de São Paulo e agindo conforme Cristo na evangelização e na
transmissão dos valores cristãos da Igreja Ultramontana, dentro da Primeira
República laica. Obviamente, o discurso se atualiza com o passar dos dias,
meses e anos, mas a mensagem permanece.
38. Por
estarem caminhando em direção a Emaús, Cristo e os dois apóstolos estão
descalços, e Calixto os representa salientando seus pés direitos desnudos em
contato com o chão de terra do caminho. Simbolicamente se propõe que os pés
direitos descalços signifiquem tanto a vida ativa, como a força da alma,[32] muito
embora se possa observar um pouco do pé esquerdo do apóstolo idoso à esquerda
de Cristo.
Ceia
em Emaús
39. Localizada
na mesma parede da pintura precedente, Ceia em Emaús [Figura 4] traz
Cristo já em Emaús, na casa de um dos apóstolos, acompanhado pelos mesmos dois
discípulos observáveis na primeira pintura do ciclo, com quem reparte a
refeição no momento da Fração do Pão, celebração inicial cristã, na qual os
Doze Apóstolos se reúnem com Cristo repetindo o ritual da celebração da Ceia,
dividindo vinho e pão em três pedaços, para se alimentarem evocando a
Santíssima Trindade. Assim, no instante em que Cristo abençoa o Pão, ambos o
reconhecem. Enquanto o Apóstolo idoso une as mãos e olha incrédulo para Cristo,
com o corpo envergado em sua direção, Cleofás
ajoelha-se, deixando ao seu lado no chão o jarro de vinho, enquanto abaixa a
cabeça em oração, devoção e reverência a Cristo. Salienta-se, aqui, um
ensinamento ao fiel que frequenta a Capela do Santíssimo, ensinamento esse que
visa incentivar o fiel a abrir a porta de sua casa para Cristo. Além disso, no
momento em que Cristo é reconhecido no abençoar do pão e no empunhar do Cálice
Sagrado, de sua cabeça irradiam raios de luz branca, confirmação indiscutível
de sua santidade.
40. A cena
se passa em um ambiente praticamente aberto, no qual Cristo e os dois
discípulos estão sentados em bancos de madeira, ao redor de uma mesa coberta
por uma toalha branca e disposta transversalmente em relação ao formato da
pintura. Observa-se que o ambiente simples e de piso bastante rústico e
geométrico é separado por um muro baixo, sem qualquer adorno visível e, ao
fundo, a paisagem montanhosa se impõe. Calixto lança mão do recurso da
perspectiva atmosférica leonardiana ao permitir que
as montanhas sejam azuis. Chama a atenção na composição a presença dos três
ciprestes ao fundo, árvore que possui dupla simbologia, “por sua resina
inalterável e folhagem persistente, evocando a imortalidade e a ressurreição,”[33] ao
mesmo tempo em que simboliza a morte, estando, inclusive, presente em muitos
cemitérios. Em número de três, os ciprestes simbolizam ainda a Santíssima
Trindade, além de ecoar o número de personagens sagrados ali presentes. Apresenta-se,
ainda, uma acácia,[34]
árvore típica do Oriente Médio, cujos espinhos teriam sido usados na Coroa de
Cristo antes de sua Crucificação. Além disso, destaca-se seu caráter “quase
imputrescível, de terríveis espinhos e flores cor de leite e sangue,
simbolizando renascimento e imortalidade,”[35] ao
mesmo tempo em que “vincula-se ao elemento divino, em seu aspecto solar e
triunfante.”[36]
41. Ainda
em relação às quatro árvores ali presentes, a acácia é a mais distante de
Cristo, estando localizada mais próxima da linha do horizonte da composição,
atrás dos três ciprestes e do pequeno arbusto de difícil identificação
botânica. Assim, o distanciamento da acácia em relação à Cristo surge como uma
antítese de sua condição espiritual triunfante, uma vez que a acácia traz o
elemento do sofrimento a Ele imposto pelos espinhos, durante sua Paixão.
42. A
propósito da composição calixtiana, propõe-se a
utilização de artifícios imagéticos inerentes a toda a produção do artista, que
emprega a fotografia como recurso compositivo de suas pinturas. No atelier do
artista em São Vicente havia um espaço terraceado
como o que se apresenta aqui, com o mesmo muro baixo, espaço esse em que Calixto
surge fotografado muitas vezes, junto a seus familiares e amigos.[37]
43. Entretanto,
essa pintura apresenta um problema quanto à citação do Evangelho de São Lucas,
já apontado por Moisés Poletini em sua dissertação de
mestrado,[38]
quando revela um erro na numeração do capítulo do referido Evangelho. Por algum
equívoco do próprio Calixto, a citação que ali se lê em latim, traz o 25 como
número de capítulo, não obstante a numeração de esse Evangelho totalizar 24. O
versículo ali apontado está correto e na citação em latim se lê: “ET APERTI
SVUNT OCVLI EORVM ET COGNOVERVNT EVM ET IPSE EVANVIT EX OCVLIS EORVM , LVC.
XXV-31”, que se traduz por “Então seus olhos se abriram e o reconheceram; ele,
porém, ficou invisível diante deles.”[39] Nessa
materialização espiritual de Cristo, que eleva seus olhos aos céus, destaca-se
que seu manto púrpura quase não é visto na pintura, em comparação com a pintura
precedente, ao mesmo tempo em que seus pés sobre o chão confirmam sua presença
no plano terreno e salientam ainda mais a dimensão contemplativa, pois o pé
esquerdo é mais visível do que o direito.[40] Por
essa interpretação, ressalta-se a dimensão espiritual plena de Cristo, ali como
aquele que ressuscitou e está no meio de nós.
44. Assim
como na pintura precedente cumpre destacar, mais uma vez, o diálogo
estabelecido entre Calixto e a pintura nazarena, na qual o artista insere as
figuras centralizando-as no primeiro plano, tendo a paisagem historicamente
representada ao fundo - muito embora aqui não seja possível afirmar que Calixto
tenha buscado representar a paisagem de Emaús, não obstante a representação das
árvores típicas da região.
45. Se A
Caminho de Emaús desempenha a função de acompanhar o fiel ao sair da Capela
do Santíssimo, Ceia em Emaús convida o fiel para a Páscoa e o estimula a
participar da celebração Eucarística do ritual da Fração do Pão, promovendo,
portanto, sua comunhão com o divino. O fiel é o quarto personagem da cena,
lembrando que o número quatro representa a dimensão terrena e humana,
complementando a esfera divina da Santíssima Trindade, simbolizada pelo número
três.
São
Boaventura
46. Localizada
na segunda parede da Capela do Santíssimo, na fronteira com o presbitério da
Igreja de Nossa Senhora da Consolação e São João Batista, estão dois doutores
da Igreja vinculados a Eucaristia. O primeiro é São Boaventura
(1218-1274) [Figura
5]. Representado dentro de um espaço iconográfico estreito que lembra
tanto um santinho em formato ampliado, quanto dialoga com o caminho estreito
proposto pelo Evangelho de São Mateus,[41] assim
como a porta da própria Capela do Santíssimo, a cena traz o místico e teólogo
franciscano São Boaventura ajoelhado sobre uma plataforma que lembra a entrada
de um presbitério não especificado, de braços cruzados sobre o peito, no
momento em que um anjo surge do meio da fumaça e do qual só se vê uma pequena
porção da parte superior do corpo, portando em sua mão esquerda uma patena e na
mão direita a Hóstia Sagrada, para que São Boaventura comungue. Além desse
anjo, ainda complementam no topo da pintura outros dois anjos localizados na
esfera celeste divina rezando e comungando diante do Cálice Sagrado; esses dois
anjos encontram-se envoltos em uma atmosfera enevoada. A esse respeito,
sugere-se um diálogo estabelecido por Calixto com a tradição de Giotto di Bondone
(1267-1337), que tradicionalmente fazia seus anjos emergirem de nuvens e de
ambientes enevoados, sugerindo a representação e a encarnação do mistério
divino, preceitos esses defendidos por São Boaventura em sua vida monástica e
teológica.
47. Outra
questão iconográfica fundamental presente na imagem concerne à presença dos
nimbos quattrocenteschi dispostos
paralelamente à superfície da pintura. Os mesmos são observáveis na cabeça em
perfil de São Boaventura e na do anjo flutuante, que lhe traz a Hóstia Sagrada.
São, portanto preceitos imagéticos vinculados à representação entre fins de
Idade Média e início do Renascimento, aqui resgatados pelo viés de uma
aproximação à pintura Pré-Rafaelita, bem como à nazarena (muito embora, aqui
não haja paisagem ao fundo e as figuras não ocupem posições centrais, como nas
duas primeiras pinturas do ciclo).
48. Diferentemente
das pinturas precedentes, nas quais se viam aspectos paisagísticos, nessa
pintura apresentam-se alguns poucos móveis, como a mesa do altar coberta por
uma toalha branca e a escrivaninha de estudos do santo, mesa essa que possui
pernas torneadas. Aliás, a escrivaninha aqui se relaciona diretamente à atuação
do santo como filósofo e teólogo de Cristo. Sobre essa mesa, ainda, encontra-se
um livro aberto, que provavelmente estaria sendo lido por São Boaventura até
aquele momento. A cena se passa dentro dos limites de seu Studio, pois,
em meio às intensas névoas se observam as paredes escuras. Aqui, sugere-se um
ambiente que mescla a dimensão privada do ambiente de estudos de São Boaventura
com o de uma Capela, como a própria Capela do Santíssimo onde a pintura se
encontra. Assim, marca-se um diálogo entre aquilo que é sagrado e o que integra
as práticas devocionais dos fiéis. Por estar ajoelhado do mesmo modo que Cleofás, na pintura precedente, o fiel é instado a repetir
a mesma atitude dentro da Capela do Santíssimo, a fim de se encontrar como o
Cristo Ressuscitado, a partir da Hóstia recebida durante a comunhão,
constituindo, portanto, um ato pedagógico da fé.
49. Ainda
em relação à perna torneada da mesa de São Boaventura ressalta-se uma espécie
de reverberação imagética, na qual essa perna é ecoada pelo cinto torcido de três
nós que São Boaventura carrega amarrado na cintura de seu hábito marrom e cuja
ponta se apoia sobre a plataforma do presbitério sobre o qual São Boaventura se
ajoelha, marcando a afirmação de suas crenças diante da Hóstia Sagrada e da
Igreja. Aliás, observa-se a mesma temática do cinto torcido de Santa Clara [Figura 8], santa
franciscana como São Boaventura. Em relação aos três nós presentes no
hábito dos dois santos propõe-se a simbologia “dos três votos: pobreza,
castidade e obediência,”[42]
simbologia essa preconizada pela Ordem Franciscana.
50. Além
disso, existe uma clara alusão à citação do livro dos escribas, de Eclesiastes,
no qual se lê> “SAPIENTIAM EJVS ENARRABVNT GENTES”, e que se traduz por “As
nações declararão sua sabedoria (Ecl 39:14).”[43]
Evidencia-se na citação de Eclesiastes a atuação do franciscano São Boaventura,
que por sua erudição, leva a palavra de Deus e seus ensinamentos a todos em
todas as nações. Aliás, São Boaventura “é muito sensível à dimensão histórica e
deve ser considerado um dos pioneiros da teologia e da metafísica da história.”[44]
Aliás, São Boaventura é aquele que inaugura uma nova fase na Igreja, baseando
sua doutrina na recuperação do antigo, fator que se coaduna aos preceitos da
própria Igreja Ultramontana, que se volta aos primórdios do Cristianismo para
se (re)afirmar enquanto instituição, na Primeira
República em São Paulo.
51. Por
estar trajando hábito franciscano, São Boaventura, então, é muitas vezes
confundido com Santo Antonio de Pádua (1195-1231).
Porém, Santo Antonio de Pádua nunca foi cardeal,
posto este ocupado por São Boaventura e cujos atributos aparecem na pintura,
sendo caracterizado pelo báculo e pelo chapéu cardinalício ali dispostos na
parte inferior. Não se trata de um sinal de desrespeito, mas, além da questão
da identificação do mesmo, destaca-se o despojamento de seu cargo cardinalício,
a fim de revelar seu lado mais humano e humilde na comunhão ali ofertada. Seus
braços cruzados sobre o peito no ato do recebimento da Hóstia simbolizam sua
aceitação, tal qual a Virgem da Anunciação, que aceita seu destino como Mãe de
Jesus.
52. Vale
notar que o equívoco na identificação de São Boaventura como Santo Antonio de Pádua aparece na dissertação de Moisés Poletini;[45] no
livro sobre a pintura sacra do artista feito pela Pinacoteca Benedicto Calixto, localizada em Santos;[46] no
site dedicado a catalogar parcialmente a produção calixtiana;[47] bem como,
ainda, se repete no CD-ROM feito em comemoração aos 150 anos de Benedito
Calixto.[48] Há
ainda mais um artigo,[49] que
reitera a identificação equivocada do santo. Cumpre, aqui, respeitosamente
apontar, corrigir e justificar a correção do equívoco, a fim de que seja
possível elaborar a correta análise e interpretação do conjunto das seis
pinturas de Benedito Calixto para a Capela do Santíssimo da Igreja de Nossa
Senhora da Consolação e São João Batista. Dentro da pesquisa realizada acerca
dessas seis pinturas há fontes corretas como Leonardo Arroyo,[50] que
identifica São Boaventura, por exemplo, bem como nossa pesquisas,[51] e, por fim, o próprio folheto da Igreja de Nossa Senhora da
Consolação.[52]
53. Dentro
do ciclo iconográfico calixtiano da Capela do
Santíssimo, São Boaventura é aquele que marca a transição da Igreja dos
Apóstolos para a dos Doutores letrados,[53] sendo
o santo aqui presente o exemplo de erudição associada à ideia de pobreza, pois
São Boaventura é seguidor do franciscanismo. Ao mesmo
tempo, sua presença no ciclo iconográfico estabelece um contraponto com a
última santa ali presente, Santa Clara, fundadora da ordem mendicante das Clarissas, que funciona paralelamente à Ordem de São
Francisco. Assim, a ideia de pobreza se alia à simplicidade de Jesus, bem como
revela o ideal de vida espiritual do paulista naquele momento em que a epidemia
de gripe espanhola assolava a população da cidade de São Paulo.
54. Considerando-se
São Boaventura como Doutor Seráfico, aponta-se em sua doutrina teológica a
defesa da dupla natureza entre o Cristo da alma humana e o Cristo histórico. Aqui,
salienta-se, desse modo, a historicização de Cristo dentro de uma perspectiva
positivista e cientificista, bem ao gosto de Dom Duarte Leopoldo e Silva, pois
o arcebispo defende essa vertente na Igreja por meio de seus escritos e sermões.[54] Aqui,
estabelecem-se preceitos atrelados ao paradigma historicista da virada do
século XX.
55. A
pintura de São Boaventura encontra-se instalada sobre a segunda porta de acesso
à Capela do Santíssimo: esse se dá exclusivamente pelo presbitério, ao qual
somente o pároco ou oficiante do culto católico tem acesso. Assim, a presença
de São Boaventura encimando essa discreta porta revela uma aproximação entre o
clérigo e o santo, pois simbolicamente quem por ali passa assume todas as
características teologais e litúrgicas preconizadas por São Boaventura e, de
certa forma, se investe de seu poder.
São
Tomás
56. A
quarta pintura da Capela do Santíssimo, São Tomás [Figura 6], traz a
representação do santo dominicano, que se apresenta como aquele que transita entre
os mundos intelectual e espiritual. Disposto como retrato de aparato, São Tomás
de Aquino (1225-1274) surge na imagem em pé e de frente para o fiel - embora
não dirija seu olhar ao mesmo -, enquanto faz uma breve pausa em seu processo
de escrita, pausa essa sinalizada pela pena suspensa no ar. Aqui, trata-se de
um longo escrito em formato de rolo, o qual não parece ser legível; destaca-se,
porém, uma série de elementos iconográficos fundamentais à compreensão
imagética da cena.
57. O
primeiro aspecto se refere ao local onde São Tomás está representado, que, na
realidade, é o próprio atelier de Benedito Calixto de sua casa em São Vicente,
fato que sugere uma possibilidade de aproximação a sua autorretratística
e de personificação do artista em São Tomás, muito embora fossem fisicamente
muito diferentes entre si. O acervo do Museu Paulista da Universidade de São
Paulo possui um autorretrato fotográfico de Calixto,[55] no
qual o artista historiador aparece sentado de lado para quem vê a fotografia e
ali se observa o mesmo mobiliário da pintura de São Tomás, destacando-se a
mesma estante de livros do artista, além da mesa sobre a qual os escritos de
São Tomás se encontram [Figura 13]. A citação do ambiente de trabalho de
Calixto dentro da pintura de São Tomás dentro da Capela do Santíssimo parece
apontar para a afirmação do artista tanto enquanto fiel, quanto revela a
necessidade de se posicionar no ambiente sacro, trazendo Cristo para seu
atelier.
58. Nessa
pintura da Capela do Santíssimo ainda se contempla o anjo abençoador que,
ajoelhado sobre uma nuvem, estende seus braços, dirigindo seu olhar em direção
ao santo localizado logo abaixo. Nessa chave interpretativa que engloba São
Tomás, o anjo, os objetos dispostos na pintura, bem como a citação em latim -
“BENE SCRIPSISTI DE ME THOMA!..”, traduzível por “Bem Escreveste sobre Mim,
Tomás,”[56]
observável igualmente no rodapé da pintura, assim como nas telas anteriores do
ciclo calixtiano da referida Capela - revela-se um
conjunto de significados atrelados à atividade teológica do santo. Nesse
contexto textual, infere-se uma interpretação na qual a citação em latim
presente na pintura parte da seguinte sentença: “Thoma,
bene scripsisti de me, quam
recipier a me pro labore mercedem?
Qui respondit: Domine, non nisi te”[57] - ou
seja, salienta-se um discurso no qual São Tomás participa da Eucaristia com
Cristo, que parece conversar com o dominicano enquanto realiza suas orações e
estudos. Com efeito, segundo a narrativa tomasiana,
Cristo teria conversado com Tomás através do crucifixo, observável na pintura;
por este estar ali representado de perfil, sugere-se que o objeto sacro pertença
apenas ao mundo do santo, posto que não está de frente para o fiel dentro da
Capela do Santíssimo. Entretanto, a questão que aqui se coloca parte de um
panorama mais amplo, conforme se observa:
59.
A história, não no contexto que usualmente
aparece, mas por outro lado na sua forma mais explícita, é encontrado na Vida
34 em Guilherme de Tocco. Domingos de Caserta, o sacristão de Nápoles, uma noite depois da prece
da manhã seguiu Tomás para a capela de São Nicolau, e o encontrou em oração,
levantado dois côvados no ar.
60.
Ele ouviu uma voz falando do crucifixo: “Thoma, bene scripsisti de me, quam recipier a me pro labore mercedem? Qui respondit:
Domine, non nisi te”. Depois ele escreveu a terceira
parte da Summa, da Paixão e ressurreição de Cristo, e isto era quase a última
parte que ele escreveu, um sinal de que ele já tinha recebido esta recompensa.[58]
61. Desse
modo, dentro da construção narrativa da santidade de São Tomás, cuja existência
é forjada por vários autores e biógrafos ainda na Idade Média, dentre as
versões existentes, a pintura calixtiana privilegia o
relato do biógrafo mais conhecido de São Tomás, Guilherme de Tocco.[59] Ainda
em relação à biografia do santo, cumpre salientar uma fundamental aproximação
de sua figura a Cristo, conforme Colledge propõe:
“Tomás nos seus primeiros dias foi formado no molde de Cristo”[60] - ou
seja, aproxima-se o santo ao molde de Cristo, tornando São Tomás mais do que um
simples representante da figura cristã; aqui, São Tomás é construído segundo
tal molde.
62. A
escolha dos dois doutores da Igreja por Dom Duarte Leopoldo e Silva revela não
apenas a própria fé do arcebispo, como também estabelece um vínculo
determinante para a pedagogia direcionada ao fiel, pois São Boaventura e São
Tomás indicam ao mesmo tempo caminhos eucarísticos e doutrinários. Se Calixto
personifica São Tomás na representação dos objetos presentes na cena iconografada, Dom Duarte também se personifica na força dos
doutores, sendo ele mesmo um doutor que produz escritos teológicos.
63. A
pintura calixtiana ainda traz mais um elemento a ser
analisado. Trata-se da coroa disposta sobre um livro no primeiro plano da
pintura, no canto esquerdo inferior. Aqui, a referência não parte de Guilherme
de Tocco, mas sim dos escritos do próprio São Tomás,
que discute acerca da natureza da auréola e da coroa:
64.
No céu, a recompensa é, essencialmente, a
perfeita união da alma com Deus pertence e é amado, este prêmio é dito metaforicamente
coroa de ouro, o halo, no entanto, diminuto, é algo inferior e acidental,
derivado ou Came To, portanto é auréola chamado a
alegria de suas boas obras, que vê a sua vitória que contribui para a alegria
de possuir Deus, e assim o halo é distinto da coroa de ouro.[61]
65. A
coroa assume seu caráter de inferioridade diante da força do halo, caráter esse
reforçado pela disposição quase de abandono da mesma sobre um livro no chão.
Por possuir um nimbo plano de gosto quattrocentesco
sobre a cabeça, São Tomás assume a própria santidade dentro de seu scriptorum, por assim dizer, haja vista a representação
dos objetos ali dispostos. Sua santidade é corroborada pelas presenças do anjo,
do crucifixo e da frase dita por Cristo a partir do crucifixo, tal qual
Guilherme de Tocco menciona.[62] Além
disso, a presença de São Tomás formando um par com São Boaventura contribui
tanto para a conversão do fiel, quanto convida o mesmo a participar da
Eucaristia, igualmente observável no genuflexório presente entre a coroa e o
altar onde se encontra o crucifixo.
São
Tarcísio
66. A quinta
pintura do ciclo calixtiano da Capela do Santíssimo
traz o jovem São Tarcísio, considerado primeiro mártir da Eucaristia [Figura 7]. Ele
foi morto por apedrejamento,[63] aos
11 anos de idade, enquanto caminhava pela Via Ápia transportando o cálice com a
Hóstia Sagrada para os cristãos prisioneiros, antes destes serem executados
durante as perseguições perpetradas pelo Império Romano. Em sua jornada para
cumprir a missão que lhe havia sido confiada pelo Papa Xisto II, no ano de 257,
São Tarcísio teria sido descoberto por outros garotos de sua idade, conforme se
lê na Homilia do Papa Bento XVI,[64] que
corrobora as informações obtidas a partir da inscrição em latim instalada na
entrada da Basílica de São Silvestre in Capite, Roma:
67.
Quem quer que leia isso, que como prêmio
do martírio que foi ofertado ao diácono Estêvão, que morreu por apedrejamento,
assim deve ser acordado a Tarcísio, quem, embora ferido, escolheu a morte a
confiar em mãos de “cães raivosos” o Corpo Precioso que carregava. Em letras
pequenas no final dessa inscrição estão as palavras: ex
antiquis manuscriptis,
significando “tirado de um velho manuscrito.”[65]
68. Outra
fonte documental igualmente fundamental acerca do jovem acólito é encontrada no
livro Fabiola or The Church
of the Catacombs,
escrito em 1886 pelo cardeal canadense Nicholas Patrick Wiseman,[66] que acrescenta
informações hagiográficas sobre São Tarcísio, dentro de uma perspectiva
narrativa literária romântica e eclesiástica, ao mesmo tempo. Wiseman acrescenta uma mulher patrícia[67] à sua
narrativa e coloca o pequeno mártir caminhando em frente a sua luxuosa casa.
Ela o interpela e ele diz estar transportando algo muito valioso e sagrado. Em
seguida, ela quer que ele entre em sua casa, mas Tarcísio se recusa a fim de
prosseguir em seu caminho e lhe diz ser órfão. Na sequência, há a cena dos
garotos que o apedrejam até a morte e Quadratus,
soldado romano cristão que o encontra em agonia. A mulher surge novamente em
cena, tenta socorrê-lo, mas Tarcísio sorri para ela e morre nos braços de Quadratus. Aqui, observa-se que o martírio do jovem acólito
teria ocorrido dentro da cidade, e não na Via Ápia.
69. Qualquer
que seja a correta sequência dos fatos e a origem familiar do jovem acólito,
Calixto faz uma pintura na qual São Tarcísio caminha sozinho;
iconograficamente, a pintura o traz caminhando na Via Ápia, da qual é possível
observar seu famoso aqueduto, bem como a pedra-marco indicando o local exato
onde o jovem acólito teria encontrado seus algozes. Com olhos lacrimejantes
voltados ao alto, seguindo a tradição do pintor barroco italiano Carlo Dolci (1616-1686) - que executou uma grande quantidade de
santos e santas lacrimejantes que olham para o alto -, Benedito Calixto traz a
representação de São Tarcísio descalço, enquanto caminha com passos firmes,
carregando contra seu peito o Cálice com a Hóstia Sagrada, coberta por uma acitara[68] de
linho branco, da qual emanam raios de luz. O jovem mártir veste uma túnica
branca de linho coberta por um manto azul celeste, em referência ao manto de
Nossa Senhora, oferecendo aqui proteção Materna ao garoto. O linho de sua túnica e da acitara significa pureza, característica essa presente no
próprio Sudário de Cristo, como também na Hóstia Sagrada coberta pela acitara. Esse transportar da Hóstia Sagrada significa transportar
o corpo de Cristo, completando a Eucaristia ocorrida na Capela do Santíssimo,
na qual o fiel é convidado a participar da comunhão.
70. Assim,
propõe-se que a escolha e definição do mártir São Tarcísio como criança ou
muito jovem quando é martirizado por apedrejamento ou lapidação reforça esse
caráter de pureza, como um ser não corrompido que leva o Pão ou Corpo de Cristo
aos prisioneiros mártires. Aqui, assume-se o sentido da Eucaristia, que torna
São Tarcísio como o mais próximo de Deus e o mais próximo do Menino Jesus, a
quem personifica.
71. Portando
um nimbo quattrocentesco plano, o jovem mártir
aparenta já estar morto, pois não há sangue na imagem. Apenas algumas pedras no
chão sugerem seu apedrejamento e, nessa representação decorosa, tranquila e silenciosa
- como são as pinturas calixtianas -, sugere-se que o
artista tenha dialogado mais uma vez com a pintura nazarena, ao centralizar o
jovem acólito em uma paisagem histórica e arqueologicamente construída. Como
Calixto jamais esteve na Itália, propõe-se que o aqueduto da Via Ápia, local de
enterramento dos cristãos e criminosos perseguidos pelo Império Romano, tenha
partido de uma fotografia ou cartão postal do local.
72. Aliás,
em relação à presença da arquitetura histórica clássica onde o martírio teria
acontecido, Marcos Tognon aponta para o papel de
“testemunho hagiográfico e de construção da memória,”[69] pois
a arquitetura se torna testemunho do martírio, incrementando, portanto, não
apenas o valor do martírio em si, como também conferindo veracidade ao fato.
73. Outra
questão fundamental à icono-hagiografia de São
Tarcísio se refere à tipologia da representação da natureza, em franco diálogo
com pinturas renascentistas, como as de Piero di
Cosimo (1462-1522) e Sandro Botticelli (1445-1510), nas quais árvores jovens em
florescimento se vinculam tanto à simbologia da Ressurreição de Cristo, como da
Santíssima Trindade pelo número três. Assim, na tela calixtiana
de São Tarcísio e considerando-se a Capela do Santíssimo como local da
Ressurreição de Cristo, as três árvores jovens florescendo se traduzem pelo
próprio triunfo Eucarístico de Cristo, bem como, aqui, associa-se o jovem São
Tarcísio à personificação do Menino Jesus. Além das três jovens árvores
dispostas em triângulo, mais ao fundo da pintura, do lado esquerdo de São
Tarcísio, observam-se três ciprestes, igualmente símbolos da ressurreição, da
imortalidade e da morte.[70] Tal
personificação se justifica igualmente pela localização da pintura emoldurando
o altar da referida Capela, pelo lado esquerdo.
74. Ainda
na referida pintura cumpre salientar a dimensão da composição calixtiana que demonstra partir de santinhos. Desse modo,
propõe-se que Benedito Calixto tenha ampliado o modelo, a fim de que os fiéis
presentes na Capela do Santíssimo tivessem contato com essa dimensão do
devocionário privado favorecido pelo santinho, caracterizando-se por ser uma
imagem popular reproduzida em grande escala sobre papel, na qual de um lado se
vê a reprodução de um santo em tricromia e do lado oposto, uma oração referente
ao mesmo. Aqui, assume-se uma característica de cunho social, pois um santinho
desfruta do poder da ampla circulação entre os fiéis, expandindo os limites da
atuação da Igreja na cidade de São Paulo. Além disso, um santinho ampliado em
óleo sobre tela permite a identificação imediata do fiel com o santo ali
reproduzido em escala humana, fator que privilegia a identificação com São
Tarcísio, aqui personificado como Menino Jesus. A identificação de seu nome na
parte inferior da pintura confirma essa correta identificação.
75. Ainda
a respeito da questão da personificação, ressalta-se na presença de São
Tarcísio um paradigma comportamental na sociedade paulista, pois o garoto
mártir é aquele que dá sua vida pela Igreja e por Cristo, estimulando assim a
pedagogia das crianças naquele momento, favorecendo a confirmação da vida
cristã destas na Primeira Comunhão.
76. Ainda
em relação ao paradigma imagético calixtiano,
propõe-se que o artista tenha partido da observação de um santinho, a fim de
compor sua pintura. Dentre a imensa quantidade de santinhos de São Tarcísio,
duas imagens [Figura
14 e Figura
15] chamam a atenção pela semelhança iconográfica com a pintura
de Calixto e parecem ter servido de modelo para o artista. Ambas as imagens tricrômicas oriundas da Itália trazem as mesmas
características fisionômicas do jovem acólito transportando o Cálice com a
Hóstia sagrada coberta pela acitara, além da
representação do santo olhando para o alto com olhos lacrimejantes. Embora não
tenham sido encontradas informações acerca da data da produção desses
santinhos, propomos um arco temporal delimitado entre o final do século XIX e
início do XX, devido à tipologia imagética dos mesmos, bem como a qualidade de
impressão. Também há, porém, diferenças iconográficas observáveis entre a
pintura do artista brasileiro e os santinhos, que mostram a cena do martírio e
o momento em que São Tarcísio é socorrido por Quadratus.
Santa
Clara Virgem
77. A
sexta e última pintura do ciclo calixtiano da Capela
do Santíssimo mostra Santa Clara Virgem [Figura 8], única
figura feminina do conjunto. Chiara D’Offreducci, ou
Santa Clara de Assis (1194-1253), contemporânea e amiga de São Francisco de
Assis, era oriunda de uma família aristocrática e fundou a Ordem das Clarissas, vindo a se instalar no Convento de São Damião,
localizado em Assis, convento esse, no qual Santa Clara demonstra que:
78.
Sua fé na presença real da Eucaristia era
tão grande que em duas ocasiões se comprovou um fato prodigioso. Só com a
ostensão do Santíssimo Sacramento, afastou os soldados mercenários sarracenos,
que estavam a ponto de agredir o convento de São Damião e de devastar a cidade
de Assis.[71]
79. Assim,
Calixto a apresenta em sua pintura. Como nas pinturas precedentes, Santa Clara
surge em uma composição em diálogo franco com a pintura nazarena, tendo sua
figura centralizada diante de uma paisagem arquitetônica historicamente
construída, e a arquitetura mais uma vez se torna testemunha do poder da santa
ao expulsar, com o ostensório sagrado, os sarracenos invasores do Convento de
São Damião. O artista a insere no alto, diante da porta superior do convento em
Assis, tendo ao fundo da imagem, a torre com ameias da igreja do convento, bem
como a paisagem montanhosa da Úmbria. Propõe-se, nessa pintura calixtiana, bem como nas demais, um olhar de artista
historiador que executa suas encomendas sempre a partir de pesquisas profundas
acerca do tema a ser por ele desenvolvido.
80. No que
tange a iconografia calixtiana de Santa Clara na
Capela do Santíssimo, deve-se considerar a recuperação histórica feita pelo
artista ao colocá-la na composição segurando o ostensório com a Hóstia Sagrada,
com sua mão esquerda descoberta e a acitara, com a
direita, enquanto volta seus olhos, lacrimejantes e abatidos pela enfermidade,
para o alto, assim como São Tarcísio - muito embora o jovem
lacrimeje de modo trêmulo, talvez devido a sua pouca idade. Na imagem ainda se
destacam suas vestes franciscanas marrons, com o cinto de três nós, em
referência à Santíssima Trindade e aos preceitos franciscanos, observados no
mesmo cinto de São Boaventura, bem como os instrumentos bélicos dos
sarracenos, por ela expulsos aquando da tentativa frustrada de invasão do
Convento de São Damião.
81. Ainda
no que concerne às mãos de Santa Clara, propõe-se que sua mão direita coberta
pela acitara simbolize estar nas mãos de Deus, assim
como quando a Virgem deixa suas mãos serem envolvidas pelas do bispo,[72]
representante de Deus na Terra, estabelecendo-se, desse modo, um paralelo com
as derradeiras palavras de Cristo ao expirar: “Pai, em tuas mãos entrego o meu
espírito.”[73] Por
outro lado, sua mão esquerda descoberta revela seu poder de decisão e ação na
defesa do Convento de São Damião, naquele momento preciso. Ou seja, sua mão
descoberta demonstra ser aquela que toma as rédeas de seu destino e de suas
irmãs Clarissas, na defesa da própria Igreja e do
Cristianismo ali ameaçado pelos sarracenos muçulmanos.
82. Em
relação a esses instrumentos bélicos, Calixto faz uma bela natureza-morta da
violência, a partir da representação do elmo, do escudo, da espada
desembainhada, do punhal e da lança, objetos esses pertencentes ao acervo
pessoal do artista e utilizados em outras pinturas históricas do artista, como
em Fundação de São Vicente,[74] por
exemplo. Em oposição à violência da guerra, já bastante doente, no ano de 1198,
ao saber da invasão ao Convento,
83.
Santa Clara fez questão de ir até o portão
de entrada. Ali, em lágrimas, ela segurou o ostensório com o Santíssimo
Sacramento e bradou: ‘Senhor, guardai Vós estas Vossas servas, porque eu não as
posso guardar!’ Logo depois, ouviu-se uma voz suave, dizendo: ‘Eu te defenderei
para sempre!’. Diante daquela intervenção do próprio Deus, os sarracenos foram
tomados por um grande medo e fugiram sem invadir ou saquear o convento.[75]
84. Por Santa
Clara ser o exemplo de santa mulher que defende e transforma a Igreja e com
isso, toda uma sociedade, sua escolha por Dom Duarte Leopoldo e Silva para
compor e concluir o ciclo calixtiano da Capela do
Santíssimo revela não apenas sua potência feminina enquanto exemplo de conduta
da mulher para a fiel republicana, como também a personificação de Nossa
Senhora, igualmente Virgem e coluna de sustentação da própria Igreja, assim
como se observa no caráter colunar das vestes e da postura pétrea de Santa Clara
na pintura de Calixto. Se de um lado São Tarcísio é a personificação do Menino
Jesus, por outro e concluindo o emolduramento do
altar da Capela do Santíssimo, Santa Clara personifica Nossa Senhora, ao mesmo
tempo em que participa da Eucaristia, sendo a guardiã da Hóstia Sagrada, assim
como o jovem acólito faz. Ao erguer o ostensório, Santa Clara assume para si o
papel da Comunhão Eucarística, afugentando o inimigo, aqui representado pelos
sarracenos já ausentes do espaço pictórico e da Capela do Santíssimo, porém,
presentes nos objetos da violência ali dispostos de maneira aparentemente
apressada e desordenada, mas calculadamente dispostos pelo artista na porção
inferior da pintura.
85. A
importância de Santa Clara dentro da Igreja é reconhecida no ano de 2010 pelo
Papa Bento XVI, que escreve:
86.
Clara foi a primeira
mulher na história da Igreja a compor uma Regra escrita, sujeita à aprovação do
Papa, para que o carisma de Francisco de Assis fosse preservado em todas as
comunidades femininas que se iam estabelecendo já nos seus tempos e que
desejavam inspirar-se no exemplo de Francisco e Clara.[76]
87. Propõe-se
que Santa Clara atue, então, como exemplo de mulher tanto dentro da Igreja
quanto fora, por sua força e poder no combater o mal pela imposição da Hóstia
Sagrada, por sua personificação de Nossa Senhora na Capela do Santíssimo e pela
aproximação ao universo feminino das fiéis da Igreja de Nossa Senhora da
Consolação e São João Batista. Nesse processo pedagógico proposto pela Capela
do Santíssimo, Santa Clara ocupa uma posição estratégica, por ser ela a
primeira a ser vista por quem ali entra e seu ensinamento e sua potência
envolvem o fiel, ao mesmo tempo em que o convidam a participar da Comunhão
Eucarística e da Ressurreição de Jesus, por seu triunfo sobre a morte.
Considerações
finais
88. O
presente estudo buscou apresentar, analisar e problematizar o ciclo religioso calixtiano da Capela do Santíssimo da Igreja de Nossa
Senhora da Consolação e São João Batista, executado no ano de 1918, a partir da
encomenda do primeiro arcebispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e Silva.
89. Partindo
da compreensão cronológica e histórica da construção da atual versão de
arquitetura revivalista/historicista Neorromânica do templo projetada pelo engenheiro
alemão Maximilian Emil Hehl, foi possível aprofundar
a análise historiográfica artística, teológica e litúrgica do conjunto que
parte de A Caminho de Emaús, iniciando e finalizando o ciclo ritual
eucarístico ali proposto.
90. Assim,
o estudo revelou que cada fiel que entra na Capela do Santíssimo não apenas
interage com as pinturas, como exerce suas atividades espirituais pela
Eucaristia e pela Adoração do Santíssimo. Cada pintura de Benedito Calixto ali
presente foi planejada de modo a ensinar, persuadir e revelar aspectos
teológicos, litúrgicos, históricos, histórico-artísticos e simbólicos aos
fiéis, a fim de que a doutrina cristã Ultramontana fosse incorporada a vida de
cada um deles, assim que saíssem da Igreja e voltassem para seus afazeres costumeiros.
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[1] PHILIPPOV, Karin. A
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[2] ALVES, Caleb Faria. Benedito
Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru, SP: EDUSC, 2003.
[3] TEIXEIRA, Milton. Benedito
Calixto Imortalidade. Santos, SP: Editora da UNICEB, 1992.
[4] MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Benedito Calixto como Documento:
sugestões para uma releitura histórica. In: SALA, Dalton et al. Benedito
Calixto: memória paulista. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1990.
[5] CHIARELLI, Tadeu.
Benedito Calixto: Um pesquisador que pinta! In: SOUZA, Marli Nunes de (coord.) Benedito
Calixto 150 Anos. CD-ROM. São Paulo, Santos: Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, 2003.
[6] ARROYO, Leonardo. Igrejas
de São Paulo: introdução ao estudo dos templos mais característicos de São
Paulo nas suas relações com a crônica da cidade. SP: Companhia Editora
Nacional, 1966, p. 199.
[7] Ibidem, p. 201.
[8] Ibidem, p. 202.
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] Idem.
[12] História da Paróquia
Nossa Senhora da Consolação São Paulo. Disponível em: https://www.igrejadaconsolacao.com.br/institucional/historia Acesso em: 12 out.
2021.
[13] JORGE, Clóvis de
Athayde. Consolação: uma reportagem histórica. Série: História dos
Bairros de São Paulo, volume 22, 1989, p.128. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/arquivo_historico/publicacoes/index.php?p=8313
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[14] SANTOS, Marcos Eduardo
Melo dos & SILVA, Susana Aparecida da. Igreja Nossa Senhora da Consolação
Por Maximilian Emil Hehl (1891-1916): ecletismo na
arquitetura sacra paulistana com predominância do neorromânico. Revista
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2021.
[15] A respeito de Edmundo Cagni, muito pouco se conhece. Sabe-se que foi responsável
por toda a decoração interna da Igreja de Nossa Senhora da Consolação e São
João Batista. Conforme Leonardo Arroyo (Op. cit., p. 205), “O templo é todo
decorado pelo pincel de Edmundo Cagni, que não poupou
detalhes.”
[16] Técnica amplamente
utilizada a partir do século XIX na França e que consiste em colar pinturas em
óleo sobre tela diretamente sobre a alvenaria, dispensando o uso de chassis de
sustentação das pinturas.
[17] Evangelho de São Mateus
(7-13,14). In: Bíblia de Jerusalém. SP: Paulinas, 1987, p. 1850.
[18] ANDRADE, Mário de. A
Arte Religiosa no Brasil: crônicas publicadas na Revista do Brasil. SP:
Experimento: Giordano, 1993, p. 42-43.
[19] Emmanuel Guedes narra
uma experiência quase mística de Benedito Calixto ainda na Académie
Julian, quando “fez aparecer, com a sua assinatura, um painel religioso de uma
feitura tão perfeita, tão viva e tão harmoniosa, tão plena de alma e palpitante
de verdade, que Calixto não hesitou em afirmar que a feição espiritual do
mestre se havia modificado, o que, aliás, efetivamente, acontecera: o grande
artista havia se tornado um fervoroso católico. ‘Per dipingere
le cose di Christo - sentenciou Fra Angelico
- bisogna vivere col Christo’” (GUEDES, Emmanuel. A
Arte de Benedito Calixto. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 1946, p.
39)..
[20] MORGAN,
David. Visual Piety. California: University of California Press,
1998.
[21] CHEVALIER, Jean. Dicionário
de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números).
Tradução: Vera da Costa e Silva et al. 26ªed. RJ: José Olympio, 2012,
p.809-810.
[22] Ibidem, p. 652.
[23] Ibidem, p. 810.
[24] Idem.
[25] Evangelho de São Lucas
(24-13).
[26] Evangelho de São Lucas
(24-18).
[27] Idem.
[28] Idem.
[29] GIEBELHAUSEN,
Michaela. Painting the Bible Representation and Belief in Mid-Victorian
Britain. Burlington:
Ashgate, 2006.
[30] A via purgativa se dá
no momento em que o fiel adentra a Igreja pela porta principal, é batizado na
Pia Batismal ou se purga na pia de água benta, localizada no nártex da Igreja. A seguir, adentra a nave para participar
da missa e a via iluminativa inicia. Sentado na nave, é iluminado pela Palavra
e pelas imagens ali presentes. Com isso, une-se a Deus pela via unitiva.
[31] CATANEO, Pietro di Giacomo. Libro Terzo di Architettura. In: I Quattro Primi Libri
di Architettura di Pietro Cataneo Senese. Vinegia [Veneza]: Casa de Figliuoli
di Aldo, 1554.
[32] CHEVALIER, op. cit., p.
341.
[33] Ibidem, p. 250.
[34] Ibidem, p. 10.
[35] Idem.
[36] Idem.
[37] A esse respeito o Museu
Paulista possui, em sua coleção fotográfica, uma grande quantidade de
fotografias e negativos de vidro retratando tanto Benedito Calixto, quanto seus
familiares e amigos. O artista utiliza esse mesmo terraço para fazer suas
composições pictóricas. Disponível em: http://acervo.mp.usp.br/IconografiaV2.aspx# Acesso em: 11 out.
2021.
[38] POLETINI, Moisés. Um
Estudo das Obras Sacras de Benedito Calixto. 2003. Dissertação (Mestrado em
História da Arte) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas. Campinas, 2003, p. 41.
[39] Evangelho de São Lucas
(24-31).
[40] CHEVALIER, op. cit., p.
341.
[41] Evangelho de São Mateus
(7-13,14).
[42] Iconografia Como
identificar as vestes do clero regular. Disponível em: https://citaliarestauro.com/iconografia-clero-regular/ Acesso em: 12 out.
2021.
[43] Eclesiastes (39-14). In:
Bíblia de Jerusalém. SP: Paulinas, 1987, p. 1304.
[44] GONÇALVES, Joaquim
Cerqueira. São Boaventura Mestre da Vida espiritual. Didaskalia,
(IV), 1974, p. 267. Disponível em: https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/12377/1/V00402-265-276.pdf Acesso em: 12 out.
2021.
[45] POLETINI, op. cit., p. 40-41.
[46] SOUZA, Marli Nunes de et al. A Pintura Sacra de Benedito Calixto. Santos, SP: Fundação
Pinacoteca Benedicto Calixto, 2004.
[47] Telas de Benedito
Calixto. Santo Antonio de Pádua. Disponível em: http://www.novomilenio.inf.br/santos/calixtnm.htm Acesso em: 12 out. 2021.
[48] SOUZA, Marli Nunes de
(coord.). Benedito Calixto 150 Anos. CD-ROM. Santo, SP: Fundação
Pinacoteca Benedicto Calixto, 2004.
[49] SANTOS, op. cit., p.
157.
[50] ARROYO, op. cit., p.
205.
[51] PHILIPPOV, 2017.
p.156-164.
[52] PEREIRA, Pe. José
Roberto. Paróquia Nossa Senhora da Consolação Guia Cultural. SP: Mitra
Arquidiocesana de São Paulo, s/d.
[53] GONÇALVES, , op. cit.
[54] SILVA, Dom Duarte
Leopoldo E. Pastoraes. SP: Escolas Profissionaes do Lyceu Salesiano
S. Coração de Jesus, 1921.
[55] Acervo iconográfico do
Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Disponível em: http://acervo.mp.usp.br/IconografiaV2.aspx# Acesso em: 11 out.
2021.
[56] Tradução da autora.
[57] “Thomas, você escreveu
bem sobre mim, como eu poderia ser pago pelo trabalho? E ele respondeu: Só vós
senhor!". Tradução da autora. COLLEDGE, Edmund. A Lenda de St. Tomás de
Aquino. AQUINATE, n. 25 (2014), 2-20, p.14. Disponível em: https://www.aquinate.com.br/textos/a-lenda-de-st-tomas-de-aquino/
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[58] Idem.
[59] Idem.
[60] Idem.
[61] Paraíso Teologia de
São Tomás de Aquino. Disponível em: https://digilander.libero.it/monast/paradiso/porto/tommaso.htm Acesso em: 19 nov.
2021.
[62] COLLEDGE, op. cit.
[63] A propósito do martírio
por apedrejamento, também conhecido por lapidação, etimologicamente falando,
lapidar vem do latim lapidare, que significa
extrair a pedra preciosa da pedra bruta. Quem apedreja ou lapida São Tarcísio
está extraindo dele aquilo que possui de mais precioso, constituído por sua fé
inabalável e sua pureza, pois ele é hagiograficamente
definido como criança ou muito jovem quando é martirizado. Dicionário online
de português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/lapidar/ Acesso em 24 nov.
2021.
[64] “Quem era São Tarcísio?
Nós não temos muita informação sobre ele. Nós estamos lidando com os primeiros
séculos da História da Igreja ou, para ser mais preciso, com o século III. É
dito que ele era um menino que vinha regularmente para as Catacumbas de São
Calisto aqui em Roma e que levava seus especiais deveres cristãos muito a
sério. Ele tinha um grande amor pela Eucaristia e várias pistas nos levam a
concluir que ele, presumivelmente, era um acólito, ou seja, um coroinha do
altar. Aqueles foram anos nos quais o Imperador Valeriano estava perseguindo
cristãos severamente, que eram forçados a se encontrarem secretamente em casas privadas ou, às vezes, também em catacumbas, para ouvirem a
palavra de Deus, para rezar e celebrar a Missa Sagrada. Até o costume de levar
a Eucaristia aos prisioneiros e doentes se tornou crescentemente perigoso. Um
dia, quando, como era seu hábito, o padre perguntou sobre quem estava preparado
para levar a Eucaristia aos outros irmãos e irmãs que estavam esperando por
ela, o jovem Tarcísio se levantou e disse: ‘envie-me!’. Este menino parecia
jovem demais para tal serviço exigente! ‘Minha juventude’, disse Tarcísio,
‘será o melhor escudo para a Eucaristia’. Convencido, o padre confiou a ele o
precioso Pão, dizendo: ‘Tarcísio, lembre-se de que um tesouro celestial foi-lhe
confiado em suas mãos frágeis. Evite ruas cheias de gente e não se esqueça de
que coisas sagradas nunca devem ser jogadas a cachorros, nem pérolas jogadas
aos porcos. Você guardará os Mistérios sagrados fiel e seguramente?’. ‘Eu
morreria’, Tarcísio respondeu com determinação, ‘ao invés de deixá-los
perderem-se’. Enquanto percorria seu caminho encontrou com alguns amigos que se
aproximaram dele e o chamaram para se unir a eles. Como pagãos, eles se
tornaram suspeitos e insistiram diante de sua recusa e perceberam que ele
apertava algo contra seu peito e que parecia estar protegendo. Eles tentaram
tirá-lo dele, mas em vão; a luta se tornou mais feroz, especialmente quando
eles perceberam que Tarcísio era um cristão. Eles o chutaram, eles jogaram
pedras nele, mas ele não se rendeu. Enquanto Tarcísio estava morrendo, um
guarda Pretoriano chamado Quadratus, que também
tinha, secretamente, se tornado cristão, carregou-o ao padre. Tarcísio já
estava morto quando eles chegaram, mas ainda apertava contra seu peito uma
pequena bolsa de linho contendo a Eucaristia. Ele foi enterrado imediatamente
nas catacumbas de São Calisto. Papa Damásio mandou entalhar uma inscrição no
túmulo de São Tarcísio; diz que o menino morreu em 257. O Martirológio Romano
fixou a data como 15 de agosto e, no mesmo Martirológio uma bonita tradição
oral também está gravada. Ela reivindica que o Mais Abençoado Sacramento não
foi encontrado no corpo de São Tarcísio, nem em suas mãos, nem em suas roupas.
Ele explica que a Hóstia consagrada com a qual o pequeno Mártir havia defendido
com sua vida, havia se tornado carne e de sua carne formou, assim, uma única
Hóstia imaculada oferecida a Deus.” Tradução da autora. Papa Bento XIV,
Homilia para a Audiência Geral, 04 de agosto de 2010. Disponível em: https://sansilvestroincapite.org/saint-tarcisius Acesso em: 21 nov.
2021.
[65] Tradução
da autora. “‘Whoever
you are who reads this’, that as the prize of martyrdom was granted to the
deacon Saint Stephen, who died by stoning, so might it be accorded to Tarsicius, who, though wounded, chose death rather than
betray into the hands of ‘rabid dogs’ the Precious Body he was carrying. In
small letters at the end of this inscription are the words: ex antiquis manuscriptis, meaning
‘taken from an old manuscript’.”Saint Tarcisius or Tarcisius. Disponível
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[66] WISEMAN, Cardinal
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Catacombs, 1886. Disponível em: https://archive.org/search.php?query=church%20of%20the%20catacombs Acesso em: 24 nov.
2021.
[67] Idem.
[68] Véu usado para cobrir objetos
sagrados. Dicionário Online de Português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/acitara/ Acesso em: 23 nov.
2021.
[69] TOGNON, Marcos.
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[70] CHEVALIER, op. cit., p.
250.
[71] PAPA Bento XVI. Santa
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[72] CHEVALIER, op. cit.,
p.592.
[73] Evangelho de São Lucas
(23-46).
[74] Fundação de São Vicente,
1900, óleo sobre tela, 385 x 192 cm. Acervo Museu Paulista da Universidade de
São Paulo. Disponível em: http://www.novomilenio.inf.br/santos/calixtnm.htm Acesso em 28 nov. 2021.
[75] PARREIRAS, Aloísio. Santa
Clara de Assis. Arquidiocese de Brasília. Disponível em: https://arqbrasilia.com.br/santa-clara-de-assis/ Acesso em: 25 nov.
2021.
[76] PAPA Bento XVI.
Catequese em 15 de setembro de 2010. Disponível em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2010/documents/hf_ben-xvi_aud_20100915.html Acesso em: 25 nov.
2021.