Fé
e Modernidade: Arquitetura e Arte em Igreja Paulistana
RAMOS, Flávia Rudge. Fé e Modernidade: Arquitetura e
Arte em Igreja Paulistana. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 4, out. 2008.
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/igreja_sp.htm>. [English]
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LEOPOLDO PETTINI: Igreja Regina Pacis - Perspectiva, s.d.
Desenho, 18 X 23 cm.
1.
Fé
e modernidade são palavras contraditórias. Apesar disso, no final da década de 1930,
um arquiteto, um pintor e um escultor romperam os padrões vigentes e venceram
preconceitos para atender aos anseios de uma ordem de missionários e da
comunidade de imigrantes italianos. Construíram num
bairro operário uma igreja moderna - a Igreja Nossa Senhora da Paz [Figura 1] - que
representava ao mesmo tempo, a memória do país de origem e a esperança de
prosperidade. Eram eles: o arquiteto Leopoldo Pettini, o pintor Fulvio Pennacchi
e o escultor Galileo Emendabili.
A iniciativa da construção da igreja partiu do Padre Francesco Milini, superior provincial da Congregação Carlista, em 1937.[2] A obra contou com o empenho dos expoentes
da colônia italiana em São Paulo para angariar os recursos necessários.
2.
O
lugar escolhido foi o bairro do Glicério, na época um centro operário
localizado entre Cambuci, Moóca e Liberdade, cortado
pela rua General Glicério. Padre Milini,
com o dinheiro arrecadado, comprou um terreno de 10.000 m², que ocupava toda
uma quadra, próxima à fábrica de cigarros Sudan. O
projeto não se restringia apenas à construção da igreja, e sim de um verdadeiro
centro de convivência comunitária onde seria possível receber os imigrantes
recém-chegados e preservar a cultura italiana.[3]
3.
Bom
número de igrejas no Brasil era no estilo neogótico, mas independente disto, os
arquitetos eram instruídos de que a função básica da igreja era converter o
visitante num devoto, criando assim igrejas em que predominava uma atmosfera
mística. A partir da conferência realizada em Malines,
na Bélgica, em 1909, a finalidade primordial da construção de uma igreja passa
a ser puramente prática: dar abrigo à liturgia ou ao culto público.[4]
4.
Segundo
Carlos
Oswald, em artigo na revista Fede e Arte, publicada pelo Vaticano em
1954 [Figura 2],
o gosto moderno não era compreendido nem apreciado pela maior parte dos fiéis,
tampouco pelo Clero Católico. Por essa razão, são raras as igrejas de
arquitetura ou decoração artística modernas.
Entretanto a arte moderna, em suas várias formas e tendências, não era
hostilizada pela Igreja, que somente se opunha às deformações irreverentes e as
imagens insólitas ou incompreensíveis ao público.[5]
5.
Quando
a II Guerra já havia se iniciado e os imigrantes, fugindo do horror e da morte,
começaram a chegar aos milhares em São Paulo, a igreja se viu compelida a ampliar
seu papel dando a essa gente, além do conforto espiritual, o conforto físico.
No complexo da igreja [Figura
3], foram então projetados a casa paroquial, uma creche e na quadra
vizinha da rua Almirante Muriti, um albergue. Foram
construídas também salas para cursos profissionalizantes e de catequese para os
filhos de imigrantes e operários que trabalhavam nas indústrias das redondezas.
A Igreja Nossa Senhora da Paz, representou dessa forma, “a súplica continua da alma religiosa do povo
paulista pela paz mundial, em perene oração diante da Rainha da Paz, pedindo a
pacificação mundial”.[6]
6.
No
projeto, o arquiteto Leopoldo Pettini demonstra
erudição ao estabelecer um diálogo consistente com a tradição italiana e ao
mesmo tempo, ser moderno por não imitá-la. Leonardo Arroyo em seu livro Igrejas
de São Paulo, publicado em 1954, afirmou que a Igreja Nossa Senhora da Paz “é o mais original de todos os templos de São
Paulo.”
7.
Pettini seguiu alguns fundamentos da arquitetura
moderna: ausência de ornamentos, funcionalidade, racionalismo e comprometimento
com os aspectos estruturais e econômicos. Ao mesmo tempo, interpreta com uma
linguagem formal moderna, diversos elementos históricos da arquitetura
greco-romana e italiana. Apesar da arquitetura inovadora e arrojada da Igreja
Nossa Senhora da Paz, na época nenhum teórico da arquitetura manifestou por
escrito suas impressões sobre esse projeto e a razão disso é que a arquitetura
modernista não aceitava concessões. Qualquer referência ao passado poderia ser
confundida como um retrocesso à arquitetura historicista, a qual era duramente
combatida pelos arquitetos modernistas.
8.
Por
outro lado, a modernidade do projeto gerou grande resistência tanto por parte
dos clérigos como por parte da sociedade. Quando a construção estava em seus
alicerces, chegou a notícia de uma denuncia às autoridades eclesiásticas
segundo a qual o Padre Mario Rimondi estava construindo um “monstrengo
modernista” no Glicério. Felizmente, tudo não passou de intriga e a Cúria
Metropolitana manteve firme apoio à iniciativa dos padres carlistas.[7]
9.
O
projeto arquitetônico é simples, imponente, simétrico, conciso, racional e
equilibrado entre a proporção e o estilo, a forma e a função. O espaço é
agradável, acolhedor e continua atraindo os fiéis [Figura 4]. A idéia inicial de Fulvio Pennacchi foi acatada pelo arquiteto, sendo então, a
arquitetura da basílica paleocristã uma referência no
projeto da Igreja Nossa Senhora da Paz. Em 313, quando o Imperador Constantino
permitiu que o Cristianismo fosse livremente professado, os cultos deixaram as
catacumbas, ganhando luz no espaço das primeiras basílicas. A intenção do
projeto é promover o retorno aos valores originais da fé cristã, expressos nas
linhas simples e austeras da igreja paleocristã.
10.
São
varias as semelhanças entre, por exemplo, a igreja de Santo Apolinário, erguida
em Ravena durante esse período [Figura 5], e a
Igreja projetada por Pettini. As duas igrejas têm
três naves, sendo a nave central mais alta. A basílica está apoiada sobre
arcos, sem transepto.[8]
Em ambas as igrejas, as janelas superiores, localizadas na altura entre o
telhado das naves laterais e o da nave central formam, juntamente com as
janelas inferiores, um eficiente sistema de iluminação e de ventilação,
utilizado com freqüência até os dias de hoje, que
funciona da seguinte maneira: o ar fresco que entra no interior da igreja pelas
janelas inferiores, ao se aquecer, torna-se mais leve que o ar frio, se eleva e
sai pelas janelas superiores. O ar em circulação se renova permanentemente,
mantendo a temperatura interna agradável, mesmo nos dias quentes.
11.
O
projeto arquitetônico estabelece diálogos também com a arquitetura de outros
períodos. A Nossa Senhora da Paz, assim como os templos gregos, é construída
sobre um patamar elevado com vários degraus. A fachada simétrica de tijolos
aparentes e totalmente despida de ornamentos possui cinco grandes arcos
de volta inteira, que unem seis colunas, formando o pronaos,[9]
um espaço de transição entre o espaço profano da rua e o espaço sagrado
do interior do templo.
12.
A
igreja tem altura de 18 m, 25 m de largura e 49 m de comprimento, ocupando uma
área de 1.225 m², com capacidade para 368 pessoas sentadas e 200 em pé.[10] O esguio e simples campanário tem 37,5 m
de altura.[11]
13.
A
planta da Nossa Senhora da Paz [Figura 6] é também muito semelhante à da Igreja
Santo Apolinário in Classe. A planta é longitudinal e simétrica, com o pastofório[12] formado no centro pela abside onde está
o altar, ladeado pela prótese e o diacônico
[13].
A planta busca atender ao programa do templo que é baseado na dinâmica da
liturgia católica e na movimentação dos fiéis.
14.
O
interior do templo, encimado por uma abóbada de berço, possui
nas duas naves laterais, oito capelas. A nave central é formada por um vasto
espaço longitudinal na extremidade da qual está o altar-mor elevado, tendo por
trás uma abside, ladeado por dois púlpitos revestidos de mármore, de formas
aerodinâmicas, concebidos de acordo com as linhas puras e geométricas do Art-Déco; no alto, por dois coros elevados
que se comunicam com a nave por estreitas janelas arqueadas.
15.
Sobre
a arquitetura da igreja, o jornalista Daniel Linguanotto,
escreveu em 1949, em reportagem para a revista O Globo:
16.
O fundamental na arquitetura é o arco, que se repete
em centenas de vezes, em diversas proporções interna e externamente, dando uma
impressão de leveza celeste, de enormidade quando ela é pequena e íntima. Fina
e macia definiriam essa impressão. Os arcos projetando as paredes para além do
espaço figurado abastecem a ilusão de amplidão sem limites, suave, esgarçante como se as nuvens confinassem o templo, ilusão
essa ampliada pelos tons azuis dos afrescos.
17.
As
capelas laterais são compostas cada uma, com altar dedicado a um santo para
atender as exigências de devoção dos fiéis e a adoração de determinados santos.
A decoração do interior da igreja com seus afrescos e esculturas foi planejada
juntamente com a arquitetura, como demonstram os estudos para decoração [Figura 7], assim
como a maquete interna. Segundo Menotti del
Picchia, “não há solistas nessa
execução sinfônica. O todo - a unidade concepcional - domina as partes.”[14]
18.
Os
santos representados na igreja são modelos de virtudes que a igreja pretende
disseminar. As pinturas e esculturas seguem um plano didático-moral, que começa
no altar-mor com o nascimento da Virgem e vai descrevendo em círculo, o
nascimento do menino Jesus [Figura
8], passando para as capelas laterais onde se narram eventos da vida
dos santos, fechando com os murais do juízo final [Figura 9a e Figura 9b]. [15]
19.
Em
cada capela lateral da igreja Nossa Senhora da Paz [Figura 10], o santo
esculpido por Emendabili esta estático ao centro,
enquanto ao fundo, dois afrescos de Fulvio Pennacchi se movimentam para narrar episódios
de sua história. Os artistas nos chamam a testemunhar os eventos como se eles
estivessem sendo representados num palco. Nessas capelas as representações das
figuras são em escala natural, mas para obter um efeito de profundidade no
conjunto, as esculturas de santos possuem altura um pouco maior que as figuras
da pintura. O altar-mor apresenta uma escala maior: A escultura de Nossa
Senhora com o menino Jesus tem 3,5 m de altura e as
figuras dos afrescos, três metros. Ao centro da abside, separando os dois afrescos, está a pintura monumental do Cristo Crucificado
com cerca de sete metros de altura [Figura 11].
20.
Fulvio Pennacchi e Galileo Emendabili apresentam nos
afrescos e nas esculturas dessa igreja uma unidade de linguagem estética. Como
imigrantes italianos não abandonam nem renegam as tradições de seu país de
origem, pelo contrário, as introduzem, combinando-as na circulação de idéias da arte brasileira. Nesse sentido trabalham a partir
da absorção de duas tendências antagônicas: o Novecento,
movimento surgido na Itália, ligado ao fascismo, que defendia um “retorno à
ordem” e uma revalorização dos ideais clássicos na arte; e movimentos que
surgiram na Europa entre o final do século XIX e as três primeiras décadas do
século XX, sobretudo a Escola de Paris, que defendiam uma ruptura com os
postulados tradicionais da arte defendidos pela academia.[16]
Observa-se também nos afrescos, uma clara influência da pintura narrativa de Giotto [Figura
12], pintor italiano, que no séc. XIV cobriu as paredes de uma pequena
igreja em Pádua (Itália setentrional) com afrescos que narram histórias
inspiradas na vida de Cristo e da Virgem Maria.
21.
Questionado
sobre quais seriam suas referências na representação dos santos, Pennacchi deu o seguinte depoimento à revista O Globo: “Sabe, para pintar afresco, a gente
precisa ter alguma coisa dentro da gente, não pode haver modelo. Eles estavam
dentro da minha cabeça. Fui tirando e pintando depressa, antes que secasse a
argamassa, é isso.”
22.
A
igreja, em sua concepção arquitetônica e artística, busca uma conciliação
entre o passado e o futuro, o céu e a terra. Como é possível observar, Pettini, Pennacchi e Emendabili, utilizam um vasto repertório do passado para
conceber uma igreja nova e moderna.
23.
A
Igreja Nossa Senhora da Paz, cuja sagração ocorreu em 1954, foi a única de São
Paulo escolhida pela comissão nacional para participar da Exposição
Internacional de Arte Sacra do Ano Santo, realizada em 1950 em Roma.[17] Quatro anos depois, o trabalho realizado
por Pettini, Pennacchi e Emendabili, foi destaque no referido artigo Arte Sacra Contemporanea in Brasile da
revista publicada pelo Vaticano Fede e Arte. As igrejas Nossa Senhora da
Paz e Santa Teresa, projeto do arquiteto Archimedes Memória no Rio de Janeiro,
são os únicos exemplos de arquitetura moderna apresentados.
Segundo o autor do artigo, Carlos Oswald, os dois templos representam o louvável
esforço de harmonizar os elementos formais e construtivos modernos com as
exigências litúrgicas e canônicas. O artigo mostra também fotografias de dois
afrescos de Pennacchi e do cálice de prata desenhado
por Emendabili [Figura 13].
_________________________
[1] Doutoranda em
Artes Visuais, Mestre em Estética e História da Arte pelo Programa de
Pós-Graduação em Estética e História da Arte USPDocente da Faculdade de Design da Fundação
Instituto para Ensino de Osasco.
[2] GALLO, Revista
O Mensageiro da Paz, 1950, nº 135.
[3] Idem.
[4] A IGREJA através
dos tempos, Informativo A Relíquia, setembro de 2005, nº 91, p. 24.
[5] Fede e Arte
- Rivista Internazionale di
Arte Sacra, Vaticano nº 6, p. 180.
[6] IGREJA Nossa
Senhora da Paz - A sagração do Altar Mor e a inauguração da Capela Mor do
novo templo construído pelos padres da Pia Sociedade dos Missionários de
S. Carlos, A Gazeta, S. Paulo, 27/03/1943.
[7] LINGUANOTTO,
Daniel, Nossa Senhora da Paz: A mais ‘moderna’ construção sacra do continente
depois da Igreja da Pampulha, Revista do Globo, 15 out.1949, p. 27.
[8] Transepto: parte
de um edifício de uma ou mais naves, que atravessa perpendicularmente o seu
corpo principal.
[9] Pronaos: do grego pro, à frente, e naos templo. Parte frontal de um templo da
Antiguidade greco-romana.
[10] Segundo o projeto
arquitetônico e a planta atualizada fornecida pela paróquia.
[11] Pastofório: a parte posterior de uma igreja paleo-cristã.
[12] Abside: Recinto
abobadado com planta semicircular, onde fica o altar-mor.
[13] Prótese e o diacônico: locais reservados aos diáconos e aos
paramentos sacros.
[14] Estão
fazendo uma obra de Arte, in O Mensageiro da Paz, Orgão
mensal da Pia Sociedade dos Missionários de S. Carlos Borromeu,
nº 135, dez. 1950.
[15] LINGUANOTTO,
Daniel, Nossa Senhora da Paz: A mais ‘moderna’ construção sacra do continente
depois da Igreja da Pampulha, Revista do Globo, 15 out.1949, p. 71.
[16] CHIARELLI, Tadeu,
in catálogo da exposição de Galileu Emendabili no
Conjunto Cultural da Caixa, São Paulo, 2005.
[17] LINGUANOTTO,
Daniel, Nossa Senhora da Paz: A mais ‘moderna’ construção sacra do continente
depois da Igreja da Pampulha, Revista do Globo, 15 out.1949, p. 26.