As origens da nação na pintura de história: de Victor Meirelles
a Belmiro de Almeida e além
Guilherme
Frazão Conduru [1]
CONDURU, Guilherme Frazão. As origens da nação na pintura
de história: de Victor Meirelles a Belmiro de Almeida e além. 19&20, Rio
de Janeiro, v. XV, n. 1, jan.-jun. 2020. https://doi.org/10.52913/19e20.vXVi1.00007
* * *
1. Quando
Belmiro
de Almeida realizou Os descobridores [Figura 1], em 1899, já se haviam passado quase quatro
décadas da consagração de Victor Meirelles como pintor de história com a realização
da Primeira missa no Brasil [Figura 2] durante o período em que se encontrava em
Paris na condição de bolsista da Academia Imperial das Belas Artes. Por volta
de 1900, para um artista brasileiro pensar na representação visual dos
primeiros contatos entre portugueses e indígenas seria inescapável a referência
a Primeira missa no Brasil, obra já então considerada clássica. A tela,
concluída em 1860, logo se converteu em ícone visual do Segundo Reinado e se
inseriu no processo de construção de referenciais de identidade nacional como
demonstração da capacidade de expressão da pintura produzida no sistema acadêmico
imperial.
2. Primeiro
trabalho de artista brasileiro a ser exibido no salão parisiense, Primeira
missa no Brasil ocupa um lugar diferenciado na história da arte
brasileira, posição que se justifica, de um lado, por suas qualidades técnicas,
de outro, por conta da recepção e apropriação social desde sua criação. Desde o
século XIX, a obra tem sido reproduzida em inúmeras publicações, livros de
história, livros de arte, livros didáticos, revistas, cartazes, selos postais e
papel moeda, entre outros suportes, o que contribuiu para torná-la uma das mais
conhecidas pinturas brasileiras.
3. Neste
texto, pretende-se explorar possíveis conexões - e desconexões - entre Os
descobridores e a Primeira missa no Brasil. Embora produzidas em
contextos históricos e políticos distintos - respectivamente, a conjuntura de
estabilização da República ao final da turbulenta década de 1890 e a fase de
consolidação e apogeu do Segundo Reinado, anterior a Guerra do Paraguai
(1865-1870) e às crises que a sucederam -, ambas as pinturas enunciam
narrativas sobre as origens da nacionalidade. Ambas propõem, igualmente, pontos
de vistas para se pensar a nação e o significado da identidade nacional.
4. A
ideia de relacionar a Primeira missa no Brasil e Os descobridores
decorre do fato de que ambas são pinturas de história que trabalham com a
temática da representação dos primórdios da colonização portuguesa da América
e, portanto, com o problema da representação visual das origens da
nacionalidade brasileira. Se a escolha do momento histórico as aproxima - o
intervalo temporal entre as duas cenas representadas poderia ter sido de
algumas horas ou de poucos dias -, a composição pictórica e a concepção do mito
de origem do Brasil são contrastantes.
5. A Primeira
missa exibe uma grande quantidade de figurantes, uma natureza exuberante e,
ao mesmo tempo, acolhedora, sob luminosidade intensa numa atmosfera clara; já Os
descobridores apresenta a solidão de dois personagens numa paisagem
agreste, sob céu nublado e ar úmido. Na primeira, a solenidade de uma cerimônia
religiosa em espaço a céu aberto ambienta uma narrativa de comunhão e
integração de culturas: a missa coloca a religião na origem da nação e anuncia
a epopeia da catequese e da colonização.[2] A
tela de Belmiro, ao contrário, rejeita o tom épico e não atribui nenhuma
solenidade ao momento representado: numa subversão do caráter heroico, a
desolação e a melancolia marcam o momento da “descoberta.” No ponto de partida
da colonização habitam o castigo e a desesperança. Com Os descobridores,
Belmiro opera a inversão da épica inaugurada por Meirelles pela ironia de um
destino que fez dos degredados os colonizadores.
6. Para
desenvolver a ideia da Primeira missa como antecedente de Os descobridores,
seguem-se algumas reflexões em torno dessa obra seminal, ícone da história e da
arte brasileiras. Na primeira sessão desse artigo, tomando-se como referência a
ação e o pensamento de Manoel de Araújo Porto-alegre, diretor da Academia das
Belas Artes na época em que Meirelles estudava na Europa como bolsista,
discute-se como a Primeira missa participou do projeto de consolidação do
sistema de poder monárquico-constitucional, ao mesmo tempo, centralizador e
parlamentarista. Na segunda sessão, desenvolvem-se comentários em torno das
fontes historiográficas e iconográficas utilizadas por Meirelles. Na terceira e
quarta sessão relacionam-se fatos e obras que ilustram a recepção, a circulação
e a influência do modelo inaugurado pela Primeira missa. Como conclusão,
procura-se situar Os descobridores entre duas modalidades
distintas de representação dos primórdios da colonização praticadas por Victor
Meirelles: o modelo celebrador de tom épico da Primeira missa e o modelo
reflexivo de tom elegíaco da Moema.
Porto-alegre e
a construção historiográfica e visual de uma arte nacional brasileira
7. Vencedor
do concurso ao prêmio de viagem à Europa, Victor Meirelles partiu para a Itália
em 1853. No ano seguinte, assumia a direção da Academia das Belas Artes Manoel
de Araújo Porto-alegre, ex-aluno e ex-professor, discípulo de Jean-Baptiste
Debret, a quem acompanhara no seu retorno a França, e integrante do círculo
intelectual e político próximo ao jovem imperador.[3] Em
1856, o talento, a dedicação aos estudos e a operosidade de Meirelles
valeram-lhe uma primeira prorrogação da bolsa de estudos. Durante uma
permanência de mais de três anos em Roma, assimilou ensinamentos do mestre
Tommaso Minardi e de seu discípulo Nicola Consoni, adeptos do Purismo,[4] que,
segundo Jorge Coli, lhe atenuaram a frieza do desenho e suavizaram o colorido
do aprendizado neoclássico.[5] Com a
prorrogação, Meirelles instalou-se em Paris e, em 1857, matriculou-se na Ecole
des Beaux-Arts. Porto-alegre recomendara-lhe Paul Delaroche, mas esse
mestre falecera em novembro de 1856; Meirelles tornou-se então aluno de Léon
Cogniet. Em 1858, obteve uma segunda prorrogação da bolsa com vistas à
realização de uma grande composição histórica original, que coroasse seus anos
de estudos no exterior. Dos esforços de Meirelles resultou a Primeira missa
no Brasil, exposta no Salão de Paris de 1861 e na Exposição Geral de Belas
Artes (EGBA), no Rio de Janeiro, de 1862, quando o artista já retornara ao
Brasil.[6]
8. Se a
correspondência de Porto-alegre para Meirelles confirma a sugestão da leitura
da carta de Caminha, não há referência que retire do catarinense a iniciativa
da escolha do tema. Ou seja, a definição do tema da pintura - a missa - parece
ter sido decisão do próprio artista.
9. Porto-alegre
estivera em Paris na década de 1830.[7] Além
de pintor, arquiteto, cenógrafo e escritor, foi pioneiro da história e da
crítica de arte no Brasil. Em seus trabalhos como historiador e crítico transparece
a preocupação com a afirmação de uma arte que fosse brasileira, realizável pela
escolha de uma temática que representasse as características específicas da
geografia e da história do Brasil. Escrevia, em 1843: “A escola brasileira
principia a desenvolver-se; ela começa a desenvolver no reinado do sr. D. Pedro
II, e nós esperamos firmemente que em pouco tempo poderemos contar alguns
artistas de mérito real.”[8]
10. A
busca da identidade brasileira pela arte - ou, dito de outra forma, a busca da
especificidade da arte produzida no Brasil - não excluía, para Porto-alegre, a
inserção na tradição cultural europeia. Não haveria contradição entre a
expressão local, ou seja, a arte nacional e a participação no movimento
universal das ideias. Ao longo de mais de vinte anos, Porto-alegre produziu
textos que tinham por objetivo construir uma tradição de produção artística no
Brasil a partir dos recursos da história. Tanto na comunicação apresentada ao
Instituto Histórico de Paris, de c. 1834, reproduzida na obra de Debret,[9] como
na Memória sobre a antiga escola fluminense de pintura, publicada na
revista do IHGB em 1841, aparece a ideia de organizar um elenco de biografias
de artistas que indicasse a constituição de uma “escola.” A unidade entre os
artistas referenciados por Porto-alegre não se relaciona com os respectivos
estilos pessoais, mas com o fato de terem atuado no Rio de Janeiro e de ser
possível delinear uma filiação a partir de relações mestre-discípulo. A
caracterização de uma “antiga escola fluminense de pintura” foi o modo pelo
qual Porto-alegre procurou demonstrar que havia arte no Brasil antes da chegada
da corte portuguesa, em 1808, e dos artistas franceses, em 1816. Dessa maneira,
pensava legitimar, a partir de uma narrativa histórica, a produção artística
brasileira contemporânea.
11. No
mesmo tom, em Iconografia brasileira,[10] de
1856, a ideia dominante é a de apresentar uma sucessão de biografias de
artistas brasileiros. Por meio da história seria possível identificar uma
linhagem de artistas que atuaram na mesma região desde o século XVIII. O
discurso historiográfico cumpria, assim, a função de conferir antiguidade e
historicidade à arte nacional em formação. Justamente porque estava em
formação, a arte brasileira precisava ser caracterizada e definida.
Comprometidos com a consolidação do estado imperial e da nação brasileira, os
escritos de história da arte de Porto-alegre podem ser entendidos como uma
narrativa a serviço da construção da ideia de uma “arte nacional brasileira.”[11]
12. Na
obra historiográfica de Porto-alegre, porém, não estão explicitados quais
seriam os “traços de uma linguagem plástica reconhecível como peculiar aos
artistas brasileiros”; em outras palavras, não se encontra uma definição
objetiva do que seria uma arte com conteúdo nacional brasileiro.[12] A
“Ata da 2.ª Sessão Pública da Academia Imperial das Belas Artes, em 27 de
setembro de 1855” oferece, contudo, elementos que contribuem para a reflexão
sobre o tema. Numa experiência pioneira, o diretor apresentou à Congregação da
Academia trinta “teses” para que fossem discutidas pelos professores. A oitava
tese exprime a preocupação de Porto-alegre com a definição de uma arte
nacional:
13.
Para que o Brasil forme uma escola sua, que princípios
deverá adotar a Academia como cânones invariáveis para obter esse caráter
peculiar que mereça o nome de escola, sem, contudo precipitar-se no estilo
amaneirado?[13]
14. Para
Porto-alegre, portanto, a “escola brasileira” estava em construção, era uma
potencialidade. A realização dessa possibilidade residiria na construção de uma
tradição onde o conteúdo de uma arte nacional brasileira estaria presente mais
na temática do que na forma das obras produzidas no Brasil. Porto-alegre pensou
a identidade da arte brasileira não pela definição de um estilo específico, mas
a partir da escolha de temas históricos e da representação de elementos da
natureza brasileira.[14]
15. Como
diretor da Academia das Belas Artes entre 1854 e 1857, Araújo Porto-alegre
incentivou a constituição de uma cultura artística de cunho nacional. A
representação da originalidade da paisagem tropical e a reconstituição
pictórica dos acontecimentos históricos formadores da nacionalidade deveriam,
assim, constituir os motivos a partir dos quais os artistas produziriam uma
arte nacional brasileira. Para Porto-alegre, a representação pela pintura de
paisagem da natureza local e a reconstrução visual pela pintura de história de
acontecimentos relevantes do passado da coletividade nacional constituiriam os
caminhos que conduziriam à afirmação de uma arte brasileira. Assim, tanto a
pintura de história como a pintura de paisagem desempenhavam um papel chave no
sistema pedagógico concebido por Porto-alegre para a formação do artista
brasileiro. A busca da afirmação da identidade brasileira pela arte tem na
organização, na Academia Imperial, de uma biblioteca especializada e de um
“arquivo nacional” de estampas sobre temas brasileiros instrumentos
complementares que conduziriam os artistas brasileiros a formar uma “escola
nacional.”[15]
16. Exemplo
representativo do pensamento de Porto Alegre sobre o caminho a ser percorrido
para a constituição de uma “escola brasileira” encontra-se no ofício endereçado
ao ministro do Império no qual o diretor da AIBA defendia a organização de uma
biblioteca especializada, que incluiria uma coleção de estampas que
Porto-alegre pensava em doar para a instituição. Nesta coleção os trabalhos
estariam agrupados segundo 12 grupos temáticos:
17.
1º - Retratos históricos de todas as épocas do Brasil. 2º -
Retratos das notabilidades do país. 3º - Estampas gravadas e litografadas no
Brasil. 4º - Desenhos originais de brasileiros ou sobre o Brasil. 5º - Usos e
costumes desde os tempos coloniais. 6º - Estudos sobre os nossos indígenas. 7º
- Vistas do Brasil. 8º - Usos e costumes das províncias. 9º - Festas nacionais.
10º - Quadros históricos. 11º Fantasias de artistas brasileiros. 12º Flores e
animais do Brasil.[16]
18. Dessa
perspectiva, Porto-alegre recomendou ao bolsista Meirelles a leitura da carta
de Pero Vaz de Caminha. Não seria possível afirmar mais do que isso quanto ao
papel de Porto-alegre na escolha do tema da “primeira missa.” A partir da
leitura de Caminha, Meirelles chegou à escolha do seu tema.[17]
19. Uma
interpretação sobre o significado político da Primeira missa poderá
identificar na obra-prima de Victor Meirelles a afirmação da presença e da
autoridade do estado no nascimento da nação - reunindo as dimensões política,
militar e religiosa e garantindo a adesão e a unidade dos grupos sociais em
torno da cruz. A imagem fala tanto dos primórdios da colonização como de seu próprio
tempo, tempo de consolidação da centralização política e da legitimação do
exercício dinástico do poder: o povo - ou os indígenas - acompanha de perto,
mas como coadjuvante, a liturgia do cerimonial religioso e monárquico. Neste
sentido, a Primeira missa participa do projeto político bragantino
ocultando a realidade escravocrata e representando um modelo “liberal” de
sociedade, baseado nos princípios da convivência social “pacífica” e da
comunhão pela fé, os quais, transplantados para os meados do século XIX, podem
ser assimilados ao sistema representativo parlamentarista e à monarquia
católica.
As
fontes historiográficas e iconográficas da Primeira missa no Brasil
20. Para
Porto-alegre, a pintura de história, ao descrever de forma pictórica eventos
considerados importantes para a formação da nacionalidade, exerceria uma função
civilizadora, pois demonstraria a contribuição do passado para a construção do
futuro. Ao mesmo tempo, considerando que a História deve narrar os atos
memoráveis praticados por indivíduos notáveis, cujas biografias devem ser
contadas para instruir as gerações vindouras, a pintura de história serviria
também para inculcar valores, como o respeito pelo passado, pela tradição e
pelos grandes vultos. Nesse sentido, a pintura de história cumpriria a função
de cultuar os heróis da nação, “notabilidades” que se destacaram como
formadores da nacionalidade.
21. A
construção de símbolos que fossem apropriados pela sociedade como referenciais
de identidade nacional requeria o reconhecimento de uma tradição. Da mesma
forma, o enunciado historiográfico de uma tradição, como o que fez
Porto-alegre, contribuiria para o reconhecimento de referenciais identitários
da nacionalidade. Ao reverenciar uma tradição, estabelecem-se vínculos entre
aqueles que encomendam obras no presente e aqueles representados no exercício
de posições de poder.
22. As
instruções e conselhos de Porto-alegre para Victor Meirelles testemunham essa
valorização da pintura de história como meio de expressão de uma arte nacional.
O tratamento conferido por Meirelles ao tema da missa assim como a escolha dos
elementos da composição, no entanto, não privilegiou de forma direta o culto
aos heróis do passado nacional ou protonacional. Victor Meirelles não optou
pela glorificação dos protagonistas oficiais do “descobrimento,” fossem o
monarca, o comandante da frota ou o mediador religioso; sobre a dimensão
individual, fez prevalecer a dimensão social do fato representado: é a missa o
verdadeiro protagonista da composição, ato coletivo e agregador. A centralidade
ocupada pelo grupo constituído pela cruz, frei Henrique e seu auxiliar
relativiza o protagonismo do oficiante do culto. Recusando-se a cultuar de
maneira explícita os vultos do passado, o artista privilegiou a dimensão
espiritual conferida pela solenidade religiosa mediada - e não protagonizada -
por frei Henrique de Coimbra.
23. O
“resumo”, espécie de memória descritiva, referente à obra constante do catálogo
da Exposição Geral de 1862 traz informações históricas para contextualizar o
acontecimento idealizado e enfatiza algumas opções do artista para a
representação da cruz, dos trajes e de um velho índio:
24.
Pedro Alvares Cabral, tendo sido desviado de sua derrota na
viagem da Índia, para a qual partira de Lisboa em 9 de março de 1500, descobriu
terras do Brasil, até então desconhecidas, no dia 21 do mês seguinte, e
desembarcou depois em um lugar que denominou Porto Seguro, demorando-se aí por
alguns dias não só para reconhecer o país, como para refrescar e refazer-se de
lenha. Querendo deixar antes de prosseguir sua viagem um sinal de posse que
tomava dessa nova terra para o rei de Portugal, ordenou que se arvorasse em
terra uma cruz, devendo-se celebrar na mesma ocasião o santo sacrifício da
missa.
25.
Conforme refere Vaz de Caminha, no dia 1º de maio de manhã
muito cedo foram todos à terra ricamente vestidos e armados, e depois de ter o
almirante escolhido um lugar próprio para que pudesse ser bem vista a cruz, que
na véspera haviam feito e deixado no mato, dirigiram-se a esse sítio e
tomando-a, caminharam em procissão levando erguida a bandeira de Cristo,
entoando seus salmos os religiosos que acompanhavam a expedição da Índia.
Plantada a cruz com as armas e divisas do rei d. Manoel, deu Cabral à nova
terra o nome de Vera Cruz, e foi então celebrada a missa por fr. Henrique, no
altar erguido junto à cruz.
26.
Refere ainda Vaz de Caminha que os selvagens (tribo
tupiniquim) correram em grande número ao lugar da solenidade e ali mostrara dar
grande atenção à cerimônia sagrada, fazendo-se notar entre eles um velho, que
parecia compreender e explicar aos outros a santidade daquele ato.[18]
27. Jorge
Coli observa que o recurso ao relato de Caminha como fonte para a reconstituição
do “nascimento” da nacionalidade conferia caráter de verdade à cena tal como
representada por Meirelles. Com efeito, a descrição da missa e de sua
preparação constitui o objeto principal da narrativa de Caminha. De acordo com
o relato do escrivão da frota, o evento congregou de forma pacífica europeus e
ameríndios: “Assim, sob a égide católica, associam-se, numa cena de elevação
espiritual, as duas culturas. Criava-se, ali, o ato de batismo da nação
brasileira. Momento prenhe de significados, que o projeto de construção de um
passado histórico para o Brasil, ocorrido no século XIX, saberia explorar.¨[19]
28. Na
gênese da Primeira missa, Coli chama atenção, ainda, para as duas faces
de um mesmo processo: de um lado, a combinação entre as aspirações do
Romantismo quanto à afirmação de um passado nacional e, de outro, o projeto de
construção institucional e identitária do estado durante o Segundo Reinado.
Nesse processo, a associação e a cumplicidade entre o conhecimento histórico e
o fazer artístico acabaram por dar forma a uma imagem de grande força
persuasiva, inscrita no imaginário brasileiro como representação “verdadeira”
da origem da nação, como um mito de origem ainda em vigor nos dias atuais.[20]
29. Além
de apoiar-se na cuidadosa descrição de Caminha, fonte primária escrita por
testemunha direta do acontecimento, Meirelles tinha à disposição referências
visuais que podem ter lhe servido para a reconstrução visual da missa. Conforme
assinalado acima, Porto-alegre recomendou a Victor Meirelles a leitura da carta
de Caminha. Se a narrativa do primeiro cronista tem como objeto principal a
descrição da missa, isto não significa que o pintor, inspirado na Carta,
tivesse que necessariamente representá-la, pois outros acontecimentos ou
incidentes sucedidos durante a “semana de Vera Cruz” poderiam ter sido objeto
de sua escolha. Sobre a motivação que levou Meirelles a escolher a
representação da missa como seu tema pode-se somente conjecturar.
30. É
plausível a hipótese de que antes da execução da tela Meirelles tenha tido
contato com o livro de Hippolyte Taunay e Ferdinand Denis sobre o Brasil - Le
Brésil ou Histoire, moeurs, usages et coutumes des habitans de ce royaume
-, obra na qual uma ilustração de Taunay representa de forma esquemática a
primeira missa [Figura 3].
Publicado em Paris, em 1822, o livro contém a primeira referência e a primeira
reprodução em língua francesa de trechos da carta de Pero Vaz de Caminha.[21] Antes
dessa edição, a carta ao rei Manoel I havia sido reproduzida apenas uma vez, na
Corografia brasílica, do padre Aires de Casal, publicada no Rio
de Janeiro, em 1817.
31. Meirelles
pode ter tido conhecimento da obra antes ou durante sua permanência na Europa.
Em Paris, é possível que tenha conhecido pessoalmente Ferdinand Denis, que
poderia ter lhe apresentado o livro. Denis, que viveu no Brasil entre 1816 e
1820, exerceu por vários anos o cargo de bibliotecário chefe da biblioteca de Sainte
Génèvieve, local de consulta obrigatório para estudiosos sobre o Brasil
na França. Interessa-nos neste momento a gravura feita a partir do desenho de
Taunay, cujo original é desconhecido.
32. Ao
descrevê-lo como “esquemático,” a intenção foi a de sublinhar o caráter
ilustrativo do desenho, subsidiário ao texto. Podem ser discernidas cerca de 23
figuras no desenho: à esquerda, em primeiro plano, três indígenas ajoelhados,
um dos quais repousa o arco e flecha no chão; atrás deles, em segundo plano,
sete indígenas em pé, todos voltados para o padre, que celebra a missa de
braços abertos, em posição frontal em relação ao observador. Atrás do oficiante
aparece o altar improvisado, com crucifixo, e, atrás desse, uma frondosa
árvore. Sob o braço direito do padre, um colaborador, sob o esquerdo, uma
figura ajoelhada e de costas. Mais à direita, no centro do desenho, vê-se
personagem ajoelhado, que poderia representar um religioso ou o próprio
comandante, voltado para o exterior do desenho. Em torno dele dispõe-se grupo
de cerca de nove europeus em trajes militares, sete de joelhos e dois em pé
segurando estandartes. Na extremidade direita do desenho, em primeiro plano, um
marinheiro europeu em pé, empunhando remo com as duas mãos aproxima um escaler
da praia. Uma diagonal na parte inferior da composição separa a areia do mar;
em sentido oposto, outra diagonal atrás do marinheiro permite entrever a baía
utilizada como abrigo pela frota, na qual se distinguem três naus e um escaler.
Ao fundo, a linha do relevo permite discernir um morro, possivelmente
representativo do Monte Pascoal.
33. Flora
Sussekind assinala que as duas interpretações visuais da primeira missa - a de
Taunay e a de Meirelles - são concebidas a partir da narrativa de Pero Vaz de
Caminha. Aponta com propriedade uma importante diferença entre as duas:
enquanto o ponto de vista de Taunay para o enquadramento da cena situa-se sobre
o mar, ou seja, seria uma perspectiva “de fora,” do litoral para o continente,
Meirelles posiciona o observador em terra, no interior do território, de onde
lança sobre a cena um olhar “de dentro,” do interior para o litoral.[22]
34. A
versão gráfica de Taunay para a primeira missa pode ter servido a Victor
Meirelles mais como sugestão para a escolha do tema do que como modelo de
composição. Outra fonte iconográfica sobre a qual se apoiou Meirelles para a
composição do grupo principal encontra-se na obra Primeira missa em Kabila
[Figura 4], do pintor de história francês Horace Vernet,
exposta no Salon de 1855. Episódio da expansão colonial francesa na
Argélia, o fato representado por Vernet ocorrera em 1853. O artista tomara
parte da campanha militar na qual o exército francês impôs-se à resistência de
tribos kabilas. Vernet não só presenciara a cena, como também montara o cenário
da missa, que, fixada na tela, simbolizava a afirmação do domínio do Segundo
Império francês sobre uma população não-católica e não-europeia.
35. Conforme
assinala Coli, a apropriação por Meirelles de elementos de uma composição
pictórica contemporânea que tinha como objeto a celebração de uma missa que
reunia populações europeias e não-europeias, “em terra de infiéis,” operava
como instrumento de legitimação de sua própria obra. Além disso, esclarece o
autor, o procedimento por citações era considerado não apenas legítimo, mas
também demonstrativo do domínio do artista sobre as referências da história da
arte. A apropriação de figurações preexistentes não significava falta de
imaginação do artista. A pintura de história não priorizava a originalidade,
mas a capacidade de articular uma multiplicidade de imagens consideradas como
referências legadas pelos mestres do passado. Nesse contexto, o recurso a uma
experiência visual contemporânea, cujo objeto poderia ser considerado análogo
ao evento principal da semana de Vera Cruz, era legítimo e contribuiria para
reforçar a verossimilhança de uma reconstrução visual do passado.[23]
36. Apesar
da proximidade temática entre as missas de Vernet e de Meirelles, das
“afinidades transistóricas” compartilhadas pelos dois acontecimentos - uma
cerimônia oficiada por religioso católico num território d’além-mar, não
europeu, em meio a uma população pagã, na presença de autoridades civis,
religiosas e militares europeias - e, ainda, da semelhança formal dos
respectivos grupos principais, a concepção e o efeito produzido pelas duas
pinturas são distintos. Vernet aproxima a cena principal do espectador,
confere-lhe uma teatralidade por meio da verticalização da tela com as nuvens e
as montanhas no alto e, além disso, descreve em tom pitoresco e anedótico os
detalhes da encenação. Meirelles, por sua vez, afasta a cena principal,
conseguindo um clima espiritualizado, onde a cruz é o eixo da composição, com o
horizonte marinho como um “instrumento de serenidade,” integrando os
personagens numa organização em que prevalece a horizontalidade. Também no
tratamento da paisagem, que se converte em templo a céu aberto, a diferença
entre as duas obras é evidente: as montanhas ásperas da África do Norte
favorecem a ideia de “um triunfo cristão em terra hostil” e de uma justaposição
dos grupos com a imposição da vontade dos vencedores; já na paisagem tropical,
as suaves passagens de tons, o encadeamento e a harmonização das figuras dão a
ideia de uma fusão dos grupos num “útero fecundador,” que engendraria uma nova
nação a partir da integração dos dois povos.[24]
Recepção
e circulação da Primeira missa no Império
37. A
julgar pela expectativa depositada pela direção da AIBA na capacidade de
produção do bolsista catarinense, a exibição da Primeira missa no salão
parisiense foi celebrada como um triunfo nacional. Fortalecia a autoestima da
Academia e sinalizava um grau de maturidade do ensino artístico no Império.
Como demonstração de reconhecimento do valor do artista, Pedro II condecorou
Victor Meirelles, em 1861, como cavaleiro da imperial Ordem da Rosa. Depois de
o esboceto original da Primeira missa no Brasil ter sido exposto
nas exposições gerais de 1859 e de 1860,[25] a
tela definitiva foi exibida no Brasil pela primeira vez na EGBA de 1862, quando
foi objeto de críticas.
38. Ao
lado do Combate naval do Riachuelo e da Passagem de Humaitá,
obras do catarinense, Primeira missa no Brasil foi selecionada
para integrar o conjunto de obras que representou o Brasil na Feira Universal
da Filadélfia, organizada, em 1876, para celebrar o centenário da independência
dos Estados Unidos da América. A participação na exposição valeu ao artista um
dos poucos prêmios dedicados à pintura.
39. Na
EGBA de 1879, dominada pela apresentação lado a lado das imensas A Batalha
do Avaí e Batalha de Guararapes, de Pedro
Américo (1843-1905) e Victor Meirelles, respectivamente, foi exposto um
conjunto de obras que recebeu o nome de “coleção de quadros nacionais formando
a escola brasileira”. Organizada por João
Maximiano Mafra, secretário da Academia Imperial desde 1854, a “coleção”
materializava a ideia de reunir obras representativas da produção artística
brasileira realizadas desde antes da criação da Academia, em 1826. Formada por
83 pinturas que incluíam retratos, paisagens, pinturas de história de temática
bíblica, mitológica e nacional, a coleção pretendia reunir o que de melhor
havia sido produzido no Brasil até então.
40. A
ideia de “escola” estava presente no pensamento de Porto-alegre e de
antecessores na direção da AIBA, como Félix
Émile Taunay e Joachim Lebreton. Apesar das críticas que recebeu,[26] a
realização da mostra concretizava a ideia de uma “escola brasileira” no sentido
de que a intenção e o enunciado já seriam suficientes - ao menos no pensamento
dos organizadores - para significar o conteúdo de uma “brasilidade,”
independentemente do estilo ou das características plásticas das obras
reunidas.
41. A
partir da obra do abade italiano Luigi Lanzi, Storia Pittorica della
Italia, publicada em 1788, e da reorganização da coleção da Pinacoteca do
Palácio Belvedere, em Viena, promovida pelo conservador Christian van Menchel,
na década de 1780, a ideia de escolas nacionais ou regionais de pintura começou
a consolidar-se como categoria chave da história e da crítica de arte. Por “escola
artística” entendia-se - e ainda hoje pode-se entender - uma maneira, um estilo
ou uma preocupação característica de um grupo de artistas que produzem num
determinado território e que seria transmitida de mestres a discípulos.
Privilegiando o conteúdo pedagógico, próprio do Iluminismo, o critério
expositivo baseado em “escolas” disseminou-se pela Europa no final do século
XVIII e ao longo do XIX, em paralelo com a abertura e a popularização dos
museus. Antes da constituição da Academia Imperial, portanto, a classificação
dos artistas por escolas regionais ou nacionais já se tornara o princípio
ordenador das exposições de arte na Europa. Além da função didática que o
conceito de “escola” desempenhava como critério organizador da pinacoteca
acadêmica, por meio do qual os alunos apreendiam a história da arte, para os
diretores e professores da AIBA a noção de “escola brasileira” implicava tanto
a afirmação de uma identidade própria como o atingimento de certo padrão
artístico.
42. Dos
dezoito artistas cujos trabalhos integraram a “coleção escola brasileira” de
1879, Victor Meirelles foi aquele que teve mais obras selecionadas. De um total
de 83 pinturas, Meirelles apresentou 31,[27] o que
demonstra o alto conceito de que desfrutava no seio da Academia. Além de
dezenove estudos de trajes e seis cabeças, de Meirelles também foram expostas
pinturas de história de temática bíblica (São João Batista no cárcere, Degolação
de São João Batista e A flagelação de Jesus Cristo), mitológica (Uma
bacante) e de exaltação nacionalista (Passagem de Humaitá). Do
conjunto dos trabalhos de Meirelles, distinguia-se a Primeira Missa,
obra consagrada, nada menos do que a principal obra do principal artista
escolhido para participar da coleção.[28]
43. Organizada
cronologicamente, privilegiando os trabalhos de ex-diretores, ex-professores,
professores e alunos da Academia, a coleção na sua totalidade era formada por
telas que integravam a pinacoteca da Academia, onde haviam ingressado como
envios de pensionistas, obras vencedoras de concursos para pensionato no
exterior ou para a contratação de professores ou premiadas nas exposições
gerais. Com base no catálogo ilustrado da EGBA de 1879, Letícia Squeff sugere
que a coleção escola brasileira fora exibida num espaço especial. Embora os
temas fossem heterogêneos, o sentido da exposição do conjunto consistia em
afirmar as realizações e o progresso do ensino artístico na capital do Império,
que permitiriam que se falasse em “escola brasileira.”
44. Na
seção seguinte, ainda sobre a recepção e circulação da Primeira missa,
serão brevemente analisados trabalhos de artistas brasileiros diretamente
influenciados pela pintura de Victor Meirelles.
Um
modelo de representação das origens: do Império à República
45. A
partir da República e da adoção do sistema federativo, uma crescente demanda
por narrativas fundacionais do poder local ou regional explica o
desenvolvimento de um discurso pictórico em torno da reconstituição de
acontecimentos históricos de importância local ou regional em detrimento da
retórica de exaltação nacional, que predominou na pintura de história praticada
durante o Segundo Reinado.
46. Relacionam-se,
a seguir, uma série de pinturas de história que reproduziram elementos da
estrutura narrativa e compositiva da obra seminal de Meirelles. Entre os
motivos e arranjos que se repetem nesta série, podem-se mencionar:
representação de momento solene, que congrega autoridades militares e
religiosas; cena de convívio pacífico entre europeus e indígenas com expressão
de comunhão religiosa; friso de figuras, europeus e/ou indígenas, no primeiro
plano, em poses variadas; horizonte marítimo, com maior ou menor amplidão, e
presença de embarcações; vegetação natural como cenário; luminosidade tropical.
Das nove pinturas, sete foram produzidas entre 1877 e 1908 e revelam a
apropriação, em algum grau, da fórmula compositiva em tom de celebração e
exaltação da obra de 1860. Acrescentam-se ao conjunto analisado duas pinturas
de meados do século XX, que testemunham, de um lado, a permanência da pintura
de história de temática nacionalista e dos motivos relacionados com os
primórdios da colonização, e, de outro, a continuada influência exercida pela Primeira
missa de Victor Meirelles, quase um século após sua confecção.
47. Na
mesma Exposição Geral em que foi apresentada a coleção escola brasileira, em
1879, foi exibida a tela Elevação da cruz em Porto Seguro [Figura 5], de Pedro José
Pinto Peres, discípulo de Victor Meirelles na Academia. Bem recebida, a
obra lhe valeu uma condecoração como cavaleiro da imperial Ordem da Rosa. A
tela apresenta como tema principal, no segundo plano, a elevação e fixação da
cruz momentos antes da celebração da missa. Apesar da boa aceitação, Gonzaga
Duque a considerou obra de iniciante: “Nada tem de notável, senão a
qualidade de ser prova de aplicação ao estudo.”[29]
48. Inspirada
na Carta de Caminha como a Primeira missa, a composição de Pedro
Peres reproduz alguns dos elementos compositivos presentes na obra de
Meirelles: encadeamento de indígenas e europeus em poses diversas no primeiro
plano; distribuição ampla de luz com foco no grupo principal; natureza tropical
como cenário; representação de trecho de praia e do mar, com apenas um escaler
visível. Esses mesmos elementos se repetirão, como se verá, em outras
representações dos primórdios da colonização da América portuguesa. Ao
contrário da ampla circulação que conheceu a obra de Meirelles - evocativa de
uma espiritualidade, que, mediada pela religião católica, permanece, ainda
hoje, de alguma forma associada à identidade cultural brasileira -, o
tratamento “anedótico” que Pedro Peres conferiu à Elevação da cruz,
meramente ilustrativo, apegado à descrição do acontecimento histórico, não
favoreceu sua apropriação como ícone artístico nacional.
49. Outra
obra que seguiu, em grande medida, a receita temática e compositiva da Primeira
missa no Brasil foi Fundação da cidade do Rio de Janeiro, de Antônio
Firmino Monteiro, realizada em 1881 [Figura 6]. Como Pedro Peres, Firmino Monteiro foi aluno
de Meirelles; como Pedro Américo e José Ferraz
de Almeida Júnior, estudou na Europa a expensas do imperador. Esse apoio
imperial veio após a exibição na Exposição Geral de 1879 de Exéquias de
Camorim (óleo sobre tela, 100 x 157 cm, 1879, MNBA), na qual o pintor
aproveitou um tema indianista para construir uma pintura de paisagem.
50. Na
pintura de história de 1881, a cena representada é, segundo descrição de
Gonzaga Duque, a apresentação pelo governador Mem de Sá das chaves da cidade ao
alcaide-mor no alto do morro que veio a se chamar do Castelo, sítio para onde
foi transferida a primitiva povoação, originalmente instalada na praia entre o
Morro Cara de Cão e o Pão de Açúcar. À esquerda do observador, Mem de Sá indica
com o braço direito as portas da cidade, ao lado da qual se aglomera uma “massa
popular.” Atrás dos dois protagonistas, um grupo de mais de dez personagens
representa os membros do Senado da Câmara. À direita do observador, um grupo de
seis religiosos de pé sobre tapete vermelho - entre eles, os jesuítas Manuel da
Nóbrega e José de Anchieta, além do bispo D. Leitão - acompanha a cena após a
celebração de missa; atrás desse grupo se podem ver o altar, com meia dúzia de
longas velas litúrgicas ainda acessas, e a cruz.[30]
51. O
posicionamento lateral das autoridades religiosas reforça o protagonismo do
chefe militar e político. No primeiro plano - figurados em escala
significativamente maior do que a dos grupos do governador, representantes do
povo e religiosos - um grupo de soldados portugueses, de armaduras, dispõe-se
ao lado de um grupo de índios formando um friso de figuras que termina em
Arariboia, chefe dos temiminós - povo com o qual os portugueses se aliaram na
luta pela expulsão dos franceses da região da baía de Guanabara. Martim Afonso,
nome que Arariboia adotou após o batismo cristão, enverga pele de onça e
indumentária à europeia; sua figura de pé, encostado numa pedra, está
posicionada na parte inferior, logo abaixo da cena principal no centro da tela.
Ao fundo, vegetação tropical, relevo e a baía, destacando-se, à direita, o
perfil do Pão de Açúcar.
52. A tela
reproduz alguns elementos presentes na Primeira missa: cena principal em
segundo plano, com autoridades militares, religiosas e civis; uma série de
figurantes no primeiro plano em poses variadas; cenário ao ar livre com
luminosidade tropical; presença de altar e cruz como expressão da solenidade
religiosa celebrada para oficializar a posse do território; horizonte marítimo
com embarcações e linha do relevo ao fundo. Na Fundação da cidade do Rio
Janeiro, Firmino Monteiro mantém tanto o caráter solene como o tom de
exaltação observados na Primeira missa, reafirmados pela fumaça que
envolve as embarcações na baía, que acabaram de disparar seus canhões para
celebrar a refundação da cidade.
53. A
temática fundacional poderia ser considerada apenas regional, não fosse o Rio
de Janeiro a capital imperial, depois de ter sido capital do vice-reino. A cena
representa, portanto, a refundação, em 1567, da cidade que se tornaria sede do
país independente. Nesse sentido, o fato histórico representado possui uma
dimensão nacional. Após a exibição da tela, iniciou-se campanha, inclusive na
imprensa, a favor da aquisição da tela por alguma instituição pública. A Câmara
Municipal adquiriu a pintura.[31]
54. Giovanna
Loos Moreira chama atenção para um detalhe que pode significar um contraponto à
visão positiva sobre a colonização: em frente a Arariboia, um índio nu sentado
sobre uma pedra troca olhares com o chefe temiminó. Essa troca de olhares
exprimiria uma desconfiança em relação aos brancos e seu empreendimento
colonial, à diferença da naturalidade e da comunhão identificáveis na Primeira
missa no Brasil, de Meirelles. Com efeito, a pose insolente do índio não
era a de quem aceitava passivamente a imposição cultural a que se via submetido.[32]
55. Pode-se
considerar que a iconografia do elogio da colonização fora inaugurada por José Correia de Lima, quando realizou Magnanimidade de
Vieira, exibida na segunda Exposição Geral, em 1841, considerada a primeira
pintura de história brasileira com temática nacionalista, numa apropriação
nacionalizante da construção simbólica nativista da perspectiva de Pernambuco.
A mesma tradição heroica da colonização foi seguida por Manuel Joaquim de Melo Corte Real com Nóbrega e seus
companheiros (1843, 222 x 323 cm, óleo sobre tela, MNBA). A mestria de
Meirelles aplicada na Primeira missa elevou o gênero da pintura
histórica com elogio da colonização ao patamar mais elevado.
56. A
Guerra do Paraguai foi dos temas mais visitados pela pintura histórica
nacionalista, que em muitos casos explorou a oposição entre civilização e
barbárie. Analisando as obras apresentadas nas Exposições Gerais, Maraliz
Christo elencou dezesseis trabalhos, realizados entre 1865 e 1884, dedicados
aos sucessos da guerra. Na diversidade de representações, prevalece o tom de
exaltação das virtudes cívicas e guerreiras, associado à solenidade da
dedicação à pátria.[33]
57. As
duas vertentes mencionadas da tradição laudatória e solene conheceram um desvio
sutilmente dissonante na obra de Firmino Monteiro, que lançou um olhar crítico
sobre a história do Brasil e, nesse sentido, pode ser associado a Belmiro de
Almeida de Os descobridores. Na Fundação do Rio de Janeiro, a
figura do índio interlocutor do Arariboia desmancha o consenso sobre o sentido
positivo da colonização. Enquanto Arariboia simboliza o índio aculturado, seu
interlocutor simboliza a resistência, a desconfiança em relação à presença
europeia. Moreira identifica o viés crítico de Firmino em relação à colonização
já nas Exéquias de Camorim, cena do poema de Gonçalves de Magalhães, na
qual os nativos enterram uma vítima da ação predatória dos portugueses
caçadores de escravos.
58. Mais
de quarenta anos depois da pintura de Firmino Monteiro, em 1923, Rodolfo
Amoedo realizou painel com a mesma temática da tela da segunda fundação do
Rio de Janeiro, e, mais do que isso, utilizou composição semelhante [Figura 7]. A pintura de
Amoedo atendia encomenda da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, cuja nova sede
foi inaugurada naquele ano. A tela mural de Amoedo passou a ocupar lugar nobre
na sala do plenário, atrás da mesa da presidência da Câmara. À diferença da
tela de Firmino Monteiro, não se vê a entrada da baía e o perfil do Pão de
Açúcar, mas o perfil da Serra dos Órgãos, com destaque para o pico do Dedo de
Deus. No ano anterior, o Morro do Castelo, elevação onde fora refundada a
cidade e que continha os vestígios históricos mais antigos da colonização portuguesa
na região da baía da Guanabara, fora arrasado para dar lugar à ampla esplanada.
59. A
ideia de registrar os momentos marcantes do empreendimento colonizador foi
retomada por outros artistas depois de Meirelles, Pedro Peres e Firmino
Monteiro. Ainda durante a década de 1880, que pode ser considerada uma década
de crise também para as artes, a julgar pela quantidade de exposições gerais
organizadas - apenas uma -, a pintura de história conheceu pelo menos uma
produção que se tornou icônica e se inscreveu no imaginário coletivo brasileiro
de forma tão profunda como a Primeira missa: O grito do
Ipiranga ou Independência ou morte, de Pedro Américo.
60. Na
Europa, ao longo do século XIX, prevaleceu a tendência ao esvaziamento da ideia
da pintura de história como gênero superior aos demais. A pintura de gênero com
representações da vida cotidiana, do mundo do trabalho e da intimidade passou a
oferecer um modo de expressão cada vez mais procurado pelos artistas em
detrimento dos temas bíblicos, mitológicos e nacionalistas dos grandes painéis
históricos. No Brasil, esta tendência se fez sentir com maior intensidade na
última década da monarquia. Um dos fatores que contribuíram para esse declínio
da pintura de história residia nos altos custos envolvidos na produção das
grandes “máquinas” de temática nacionalista: poucos artistas teriam condições
de realizar o investimento. Era quase sempre necessária a encomenda. Sem ela, a
pintura de história tinha dificuldades para prosperar.
61. A
partir da adoção da forma de governo republicana, os novos detentores do poder
depararam-se com a necessidade de recriar símbolos nacionais, novos
referenciais de identidade que legitimassem no plano simbólico o novo regime. A
descentralização jurídico-administrativo que se seguiu à queda da monarquia e o
fortalecimento das antigas províncias do Império, renomeadas “estados,” cujos
presidentes passaram a concentrar maior poder político, ensejaram o crescimento
de um mercado para obras de arte que celebrassem as origens das respectivas
unidades da federação, os fastos gloriosos de um passado local ou regional. A
crescente demanda oficial por pintura de história com temática regional ou
nativista foi, assim, a expressão simbólica dessa descentralização política.[34]
62. A
fórmula compositiva da Primeira missa no Brasil continuou a influenciar,
durante a Primeira República, algumas obras que tomaram como objeto momentos
fundacionais da colonização portuguesa da América, acontecimentos que foram
apropriados pela história e pela arte como marcos de identidade na formação da
nacionalidade. No lugar de se dedicar ao processo de independência ou aos
grandes triunfos militares do Império, a pintura de história sobreviveria
durante essas décadas com encenações visuais da fundação de cidades importantes
ou com a celebração de fatos ou movimentos que assinalavam a especificidade da
formação local ou regional - o bandeirantismo e os movimentos de cunho
nativista ou separatista, que desafiaram a autoridade colonial ou imperial,
como a Conjuração Mineira (1789), a Confederação do Equador (1823) ou a
Farroupilha (1835-1845).
63. No
conjunto da obra de Belmiro de Almeida não há muitos trabalhos de pintura de
história. O croqui para jornal do monumento a Tiradentes em Ouro Preto (1893),
o retrato histórico de Bárbara Heliodora e o desenho do Tiradentes visionário
(1929) têm em comum a representação de personagens da Conjuração Mineira,
acontecimento que a historiografia significou como precursor da independência
política do país e da forma de governo republicana. São exemplos na obra do
artista mineiro que podem testemunhar a existência de uma demanda por pinturas
de história de temática regional.
64. Benedito
Calixto, Antônio Parreiras e Oscar
Pereira da Silva distinguem-se como artistas que, sob a influência de
Meirelles, investiram nesse caminho. Ao realizar mais de uma obra sob a
influência direta da Primeira missa, cada um dos mencionados artistas
explorou esse filão da pintura de história de temática regional. Antes de
comentar uma obra de cada um desses artistas que se insere na linhagem da Primeira
missa, não se pode deixar de examinar um marco da pintura de história da
transição para o século XX, que, em alguma medida, inaugura a representação
pictórica da saga bandeirante.
65. No
Salão Nacional de 1898, Almeida Júnior apresentou Partida de monção [Figura 8], tela que revela uma aproximação da pintura
de história à pintura de gênero, representando uma tradição do período colonial
de aprestamento de expedições fluviais que partiam em direção aos sertões para
explorar as riquezas da terra, afirmar a soberania portuguesa e garantir a posse
do território. Localizado no tempo e no espaço, o fenômeno das monções, como
eram conhecidas essas expedições, repetiu-se com regularidade nas margens do
rio Tietê ao longo do século XVIII. O tema escolhido introduz na narrativa
visual da construção da nacionalidade a exploração, conquista e povoamento do
interior, que constituem dimensões complementares do processo de formação
territorial dos domínios portugueses na América, que passariam a integrar o
território do Brasil após a Independência.
66. A representação
de costumes e cenas do cotidiano de épocas passadas constituiu uma tendência
que a pintura de história europeia explorou a partir de meados do século XIX.
Pelas dimensões e pela temática, Partida de monção pode ser considerada
uma “máquina,” como as pinturas de história nacionalistas de Meirelles e Pedro
Américo, com as quais compartilha grandes dimensões, intenção moral e pretensão
de expressar uma dimensão do sentimento nacional. Almeida Júnior pouco se
dedicou à pintura de história, ainda menos que Belmiro de Almeida. Segundo o
texto do pintor que acompanhou a referência à tela no catálogo do salão de
1898,
67.
As [monções] de que se trata eram organizadas simplesmente
por destemidos e ousados sertanejos, que, inspirados pelo amor do desconhecido,
descoberta das minas e civilização dos bugres, em toscos batelões cobertos de
palha e simples canoas, partiam conscientes de que iam arrostar com sacrifícios
inauditos toda a sorte de aventuras, constituindo-se por isso uma tradição
gloriosa para os paulistas.
68.
O quadro que ofereço a apreciação do público representa a
partida desses heróis, que, depois da missa na igreja N. S. Mãe dos Homens,
acompanhados do padre e do capitão-mor na ocasião solene da partida.[35]
69. A cena
é solene e a ausência de um protagonista não implica o esvaziamento da intenção
moralmente edificante de afirmação de uma tradição local, no caso, o espírito
civilizador que caracterizaria o colono paulista. A solenidade do momento
representado é um traço que aproxima Partida de monção da Primeira
missa, de Meirelles. Sem protagonistas, não há clima heroico, prevalecendo
o sentimento de comunidade e a dimensão coletiva sobre a individual - outro
ponto em comum com a Primeira missa. O sentido geral da grande
composição histórica seria, portanto, o de valorizar o papel do colono paulista
na formação da nação brasileira.
70. Embora
não haja comprovação de que tenha sido encomendada pelo governo do estado de
São Paulo, a obra pode ter sido concebida para ser incorporada ao Museu
Paulista, inaugurado em 1895 no Monumento do Ipiranga e no qual passou a ser
exibida a partir de 1901. Antes do Salão de 1898, a pintura ficara em
exposição, mediante cobrança de ingresso, num barracão alugado pelo pintor, em
São Paulo.[36]
71. Segundo
depoimento de Ataliba Florence, o pintor ituano teria se baseado em desenhos de
Hercule
Florence para compor a cena.[37] O
artista escolheu como motivo a representação do momento da “benção das barcas.”
A partir da articulação de narrativas centradas em pequenos grupos de figuras,
construiu um painel evocativo desse processo de penetração do interior como uma
grande cena de gênero. Por um lado, a solenidade da “benção das barcas,” como a
Primeira missa, é de natureza religiosa. Almeida Júnior, ao contrário de
Meirelles, envolveu-a de um clima melancólico de despedida, com a separação de
maridos e esposas, pais e filhos, tensionado pela consciência da possibilidade
de não haver regresso. Por outro lado, a recusa da exaltação heroica e esse
clima melancólico são características que Partida da monção compartilha
com Os descobridores.
72. Como
fonte historiográfica para a composição, Almeida Júnior recorreu ao texto
“Porto Feliz e as monções para Cuiabá,” publicado no Almanach Litterario
de S. Paulo em 1884, de autoria do médico ituano Cesário Motta Júnior,
conterrâneo e amigo do artista. Motta Júnior fora secretário estadual do
interior entre 1894 e 1895; a tela parece ter sido informalmente encomendada.
Após algumas frustradas tentativas de venda, a compra pelo governo do estado de
São Paulo somente foi consumada em 1901, após a morte do pintor. Fernanda Pitta
nota a opção de Almeida Junior por omitir elementos que poderiam ser
considerados perturbadores, embora fossem referidos na narrativa de Motta
Júnior: não há figuração de prisioneiros, forçados ou escravos, que viajavam
acorrentados, nem de mulheres, que também participavam das expedições
embarcando com os maridos.[38]
73. A
preocupação de Almeida Júnior com a adequação da obra terminada a uma estrutura
arquitetônica e, portanto, com o satisfatório desempenho de sua função
decorativa sugeriu a um crítico contemporâneo a comparação com as pinturas
decorativas de Puvis de Chavannes.[39]
Sérgio Milliet foi enfático ao negar a possibilidade de cotejo entre o ituano e
Puvis de Chavannes, que considera “um místico, um estilista despreocupado com a
realidade do objeto de sua pintura e muito mais ainda com o pormenor. Almeida
Júnior, pelo contrário, é um naturalista, um amante da verdade de expressão, da
forma representativa, do parecido.”[40] Num
sentido oposto, Fernanda Pitta aponta semelhanças formais entre algumas figuras
da Partida de monção e o painel L’enfance de Sainte Geneviève,
de Puvis de Chavannes no Pantheon, em Paris. Além do clareamento da
palheta, assinala alguns pontos de contato entre a obra dos dois artistas, como
“o sentido de ordem, de equilíbrio, contenção e solidez da composição.”[41]
74. Com a Partida
de monção, o foco da representação histórica dos primórdios da
nacionalidade deslocou-se dos conquistadores quinhentistas e retornou ao
colono, como havido sido a opção de Correia de Lima, em 1841, e de Corte Leal,
em 1843. Se Meirelles construiu um núcleo espiritual gregário, irradiador de
civilização e integrador de culturas, Almeida Júnior posicionou o colono, já
resultante desse processo de integração, como empreendedor audaz, na vanguarda
da formação da sociedade brasileira, levando consigo a religião e a civilização
ao embrenhar-se nos sertões.[42]
75. Fundação
de São Vicente, de Benedito Calixto [Figura 9], constitui mais
um exemplo de pintura de história de temática regional que se apoiou no modelo
da Primeira missa de Victor Meirelles. A composição se organiza em três
faixas horizontais desiguais: o céu parcialmente nublado, o mar azul calmo e a
terra, onde se desenrola a cena. A separação entre indígenas e portugueses é
mais nítida nesta obra do que no trabalho de Meirelles, como a assinalar os
limites da integração das culturas. No primeiro plano, à esquerda, em frente a
uma barraca, dois soldados, junto a outros, um deles com arma desembainhada,
observam grupos de indígenas, que, à direita, em poses variadas, uns com alguma
agitação, outros com indiferença, assistem à cerimônia da fundação.
76. A
variedade de atitudes dos europeus e indígenas no primeiro plano - observada
nessa pintura assim como na Primeira missa e nas outras telas sob
análise nesta seção - remete ao princípio defendido por Leon Batista Alberti em
seu tratado Da pintura, publicado em 1435, de valorizar a diversidade de
poses. Conforme assinala Ana Tavares Cavalcanti, Victor Meirelles teria seguido
a recomendação de Alberti no sentido de evitar a repetição de poses e gestos e
buscar representar figuras com expressões diferenciadas. Enunciado no século
XV, esse princípio ainda tinha vigência no século XIX.[43] Na
esteira de Meirelles, os seguidores do modelo inaugurado com a Primeira
missa mantiveram a aplicação desse princípio na narração em friso para
evitar a repetição na composição.
77. No
segundo plano, à esquerda do centro da tela, a cavaleiro da praia, a solenidade
da fundação, com poucos religiosos identificáveis em meio a várias autoridades
civis e militares. Um suave declive em direção à praia, que parece corresponder
à foz de um riacho, conduz ao exuberante azul do mar, ao fundo, onde quatro
embarcações estão ancoradas. O horizonte aparece riscado na altura do meio da
tela. Próxima à praia, à esquerda, uma cruz erguida, plantada e cercada. A
densa vegetação aparece apenas nas extremidades laterais da tela e nos
promontórios ou ilhas que daquele ângulo fecham a enseada, o que torna a cena
mais aberta do que na Primeira missa ou na Elevação da cruz.
78. Duas
obras de Oscar Pereira da Silva também podem ser consideradas exemplos que têm
a Primeira missa como referência temática e compositiva. Associando a
origem do estado e da nação à presença física da autoridade no território, O
primeiro desembarque de Pedro Álvares Cabral (1900, óleo sobre tela, 190 x
330 cm, MP/USP) pode ter sido concebida para disputar o concurso de pintura
promovido por ocasião das comemorações do quarto centenário do “descobrimento.”
Já Fundação de São Paulo, de 1907, retoma o tema da solenidade religiosa
que congrega indígenas e europeus [Figura 10]. Em 1887, Pereira da Silva vencera o prêmio
de viagem à Europa competindo com Belmiro de Almeida; ao retornar ao Brasil, em
1896, estabeleceu-se em São Paulo. A realização da Fundação de São Paulo,
tela de grandes proporções, implicou alguma dose de risco para o pintor, que
investiu recursos financeiros na sua produção e divulgação. Com a escolha do
tema da fundação de São Paulo, ocorrida em 1554, Oscar Pereira da Silva
oferecia uma narrativa pictórica sobre o heroico passado paulista e, dessa
forma, participava da construção do mito da identidade bandeirante. Tencionava,
ainda, consagrar-se como pintor de história no promissor mercado de arte do
estado que vivia um surto de crescimento econômico provocado pela exploração do
café.[44]
79. A
composição retoma o modelo instituído por Victor Meirelles representando uma
cerimônia religiosa para marcar um momento fundacional. Nos dois casos, a
integração de índios e europeus se opera sob a cruz, simbolizando a comunhão na
fé cristã, que, com o oficiante do ato religioso, ocupa posição central. No
primeiro plano, repete-se a fórmula do friso de figuras de índios em poses
variadas, entre curiosos e reverentes. No segundo plano, indígenas, religiosos
e portugueses assistem o padre Manoel Paiva abençoando o terreno onde se
ergueria o colégio dos jesuítas. Presentes, os jesuítas Manoel de Nóbrega e
José de Anchieta e os caciques Tibiriçá e Caiubi. Ao fundo, um altar
improvisado. À diferença da Primeira missa, não há paisagem litorânea.
80. Os
jesuítas assumem papel protagonista enquanto os colonos e os indígenas aparecem
como meros assistentes da cerimônia. Sob essa perspectiva, Pereira da Silva
retoma Melo Corte Real e seu elogio da catequese com Nóbrega e seus
companheiros. A submissão dos indígenas ao ritual religioso dos europeus
fortalece essa valorização do papel dos jesuítas - em detrimento do papel do
colono.[45]
81. O
protagonismo dos jesuítas comprometeu, segundo Michelli Monteiro, as
possibilidades de venda da obra para o governo estadual. A representação do
colono no desempenho de um papel coadjuvante não interessava à versão em
construção do mito bandeirante como herói civilizador, empreendedor responsável
pelo desbravamento e conquista dos sertões. Somente após duas frustradas tentativas,
quando o artista oferecera por petição a pintura para a aquisição pelo governo
do estado pensando em integrá-la na exposição histórica do Museu Paulista,
Pereira da Silva logrou enfim seu objetivo em 1909. Com base em parecer
favorável do secretário do interior, o governo estadual paulista aprovou a
aquisição e destinou a obra para Pinacoteca, reconhecendo seu valor artístico.
A exibição da tela na Pinacoteca alavancou a carreira de Pereira da Silva, que
a partir de então obteve várias encomendas de quadros históricos para prédios
públicos.[46]
82. Ao
longo de sua carreira, Antônio Parreiras realizou diversas pinturas de história
de temática nacional e regional, tendo conseguido obter encomendas de vários
governos estaduais e municipais, do Rio Grande do Sul ao Amazonas, entre 1898 e
1934.[47] A
primeira encomenda de pintura de história decorativa, feita pelo presidente
Campos Sales, foram os painéis destinados ao antigo prédio do Supremo Tribunal
Federal, no Rio de Janeiro, entregues em 1902: A chegada e A partida,
par de telas, orginalmente denominado Os desterrados,[48] que
desenvolvem o tema do “descobrimento” sob a perspectiva dramática dos nativos e
dos degredados, esta última já trabalhada por Belmiro de Almeida em Os
descobridores, de três anos antes.
83. A
conquista do Amazonas [Figura 11], concluída em 1907, fora encomendada em 1905
pelo presidente do estado do Pará, Augusto Montenegro, para decorar o palácio
do governo. Para construir uma cena ribeirinha, e não à beira-mar, o artista
utilizou elementos do esquema compositivo da Primeira missa no Brasil. A
partir de esboços realizados em Manaus, a tela foi produzida em Paris. Antes de
ser enviada para o Pará, A conquista do Amazonas foi colocada em
exposição, em dezembro de 1907, no Rio de Janeiro, o que contou com a presença
do presidente Afonso Pena. A variação sobre o modelo de Meirelles, apesar de
evitar a ênfase na dimensão religiosa, não implicou escapar do tom solene e
exaltador do empreendimento colonizador. De forma mais explícita que o mestre
catarinense, Parreiras registrou o potencial de conflito que a conquista e a
colonização encerravam.[49]
84. Organizada
durante o período em que Portugal estava sob o domínio dos espanhóis, a
expedição fluvial sob a chefia de Pedro Teixeira subiria os rios Amazonas e
Solimões até Quito. A iniciativa foi de grande importância para Portugal, que,
nas negociações com a Espanha sobre a definição de limites territoriais na
América do Sul - que resultaram na celebração do Tratado de Madri, de 1750, que
anularia o de Tordesilhas, de 1498 -, pode reivindicar a posse do território e
assim legitimar juridicamente sua soberania sobre a imensa região da bacia
amazônica.
85. Ao
contrário do modelo de Meirelles, a cena principal não representa cerimônia de
cunho religioso. Padres e missionários assistem ao ato civil-militar em posição
de coadjuvantes, assim como os indígenas. A cena se passa na aldeia dos
franciscanos. No primeiro plano, à esquerda do observador, em torno de
imponente tronco, à sombra, religiosos e militares, europeus e índios, alguns
sentados, observam a solenidade que marcou, em 1637, a partida da expedição.
Mais uma vez, repete-se a fórmula da narração em friso com figuras em poses
diversas; à direita, as proas de três pirogas. Em texto manuscrito preservado
no Museu que leva seu nome, o pintor oferece comentários sobre suas pinturas de
história e descreve quem está figurado no friso:
86.
No primeiro plano, índios, entre os quais um velho, tendo
ao lado setas partidas, que indicam o seu aniquilamento. Ao lado, um índio
moço, altivo, que, pelo contrário, parece confiar na revindicta. Entre os
índios está Bento Rodrigues, que os protegia.[50]
87. Em
segundo plano, no centro da tela, sob a luz do sol, a leitura pelo escrivão
João Gomes de Andrade do ato de posse sobre o território. Imediatamente atrás
do grupo de cinco homens que forma a cena principal (além de Pedro Teixeira,
seu auxiliar Pedro Farilla e Gomes de Andrade, mais dois personagens), uma
linha de três religiosos no meio de um semicírculo formado por meia dúzia de
figuras que parecem ser os subcomandantes da expedição; atrás desses, na
extremidade direita, curiosa figura de franciscano de costas para a cena
principal parece rezar lendo missal ou as escrituras. Parreiras menciona a
presença do cronista da expedição, Christovão da Cunha, entre os padres
missionários e franciscanos.[51] No
lado oposto da tela, ainda sob a luz, três índias nuas, duas sentadas na relva
e outra recostada em árvore, observam de perto a leitura. Ao fundo, um trecho
do rio e a densa e escura vegetação em tom azulado; à direita, em perspectiva,
o velame das embarcações.
88. Em
1908, Teodoro
Braga entregou à Câmara Municipal de
Belém, sua cidade natal, a tela Fundação da cidade de Nossa Senhora de Belém
do Grão Pará [Figura 12]. Na Escola Nacional de Belas Artes fora
aluno de Belmiro de Almeida e de Zeferino da
Costa. Ganhou o prêmio de viagem à Europa em 1899. Em Paris, estudou com
Jean-Paul Laurens, o que favoreceu sua formação como pintor de história.
89. A
pintura está dividida em duas partes de tamanhos iguais, separadas por duas
grandes árvores que, sobre faixa de terra, dividem uma enseada do grande rio em
dois braços, em cujas margens desenvolvem-se atividades de embarque e
desembarque de troncos e mercadorias. No primeiro plano, à esquerda do centro,
o comandante e governador geral, ladeado por missionário franciscano, braço
direito estendido, dá instruções aos demais oficiais. No segundo plano, à
esquerda algumas edificações em construção estão visíveis, como a muralha e uma
igreja. À direita, índios se aglomeram na margem para carregar canoas. Ao
fundo, três embarcações ancoradas, o largo rio e o céu parcialmente nublado; a
outra margem do rio corresponde à linha do horizonte.
90. O
artista logrou transmitir a ideia de movimento e de trabalho, o que diminuiu a
dimensão protocolar e solene do ato fundacional, aspecto dominante nas outras
telas examinadas. Repetem-se alguns motivos derivados da Primeira missa:
convívio pacífico entre europeus e indígenas, presença de militares e
religiosos; representação de embarcações; reconstituição da vegetação e da
luminosidade dos trópicos. Mais do que pela fé, apesar da cruz fincada em
frente à edificação, no canto superior esquerdo, a integração entre as culturas
europeia e indígena se realiza, neste caso, pelo trabalho, livre ou
compulsório.
91. A
descendência da Primeira missa de Meirelles prolongou-se além da
Primeira República. O papel de representação visual verdadeira do episódio
histórico foi reforçado com sua reconstituição cinematográfica por Humberto
Mauro no filme O descobrimento do Brasil, de 1937. A missa idealizada
por Victor Meirelles é reencenada no cinema, dentro de um roteiro que, como a
pintura, se baseia na Carta de Caminha. Segundo Jorge Coli, seria um
prolongamento ideológico do mito de origem criado nos tempos do Império: na
onda nacionalista dos anos 1930, a redefinição da identidade nacional retorna
ao ícone imperial para legitimar um novo regime político num processo em que
camadas de ressignificação simbólica se justapõem sobre a pintura de história.[52]
92. O tema
da missa fundadora da nacionalidade reaparece na Primeira missa no Brasil
[Figura 13],
pintada por Candido Portinari, em 1948, atendendo encomenda do Banco Boavista
para sua nova sede, no Rio de Janeiro. Em crítica publicada em 1948, Mario
Pedrosa considerou a obra como “uma das realizações mais pujantes da arte
brasileira de todos os tempos.” Descartando “pseudoproblemas pictóricos” como a
reconstituição da realidade histórica com rigor arqueológico e a reprodução
realista da luz e da paisagem, Portinari concentrou-se no objeto. Com a luz
artificial, “distribuída pelo soberano arbítrio do artista,” a composição
assumiu, de acordo com Pedrosa, um caráter cenográfico, antirrealismo que
contrasta com o naturalismo da tela de Meirelles. A representação da missa,
montada como num palco, sem preocupação com a reprodução do ambiente tropical,
seria, segundo o crítico contemporâneo da obra, um recurso empregado pelo artista
para reforçar o caráter antinatural da cerimônia religiosa, “coisa de brancos,”
estranha ao “Brasil intacto, selvagem, fetichista, pagão.” Nessa crítica,
Pedrosa explica a ausência de índios como a expressão pictórica de uma recusa
ideológica, pois a missa é um “ato de conquista cultural.”[53]
93. Ao
situar a Primeira missa entre as obras monumentais de Portinari,
Annateresa Fabris vincula esse tipo de produção do artista com o seu pensamento
sobre a função social da arte e sobre o sentido pedagógico da pintura mural.[54] Sobre
a representação de Portinari do momento fundador, a autora chama atenção para
uma segunda análise de Pedrosa, escrita em 1957, na qual o crítico manifesta
seu desapontamento com a explicação dada por Portinari para a ausência dos
índios no painel. Segundo versão de diálogo reproduzida por Fernando Sabino,
Portinari teria declarado a respeito da obra de Meirelles que “aquela porção de
índios deitados e trepados nas árvores é uma besteira. [...] Os índios fugiram
assustados com aquela gente toda que vinha dos navios [...]; os índios caíram
no mato,” desacreditando, assim, do relato de Caminha. Para Pedrosa, a visão do
pintor revelava, além de desinformação histórica, desconhecimento da
importância da dimensão espiritual para os indígenas e para os povos de
“mentalidade primitiva.” “Meirelles andou mais perto da realidade histórica do
que Portinari, que baniu de sua missa os índios.”[55]
94. Jorge
Coli nota que Portinari, numa “gramática visual tardo-cubista,” retomou alguns
dos arranjos propostos por Meirelles ao manter o núcleo central, com o
oficiante e seu assistente no momento da elevação do cálice diante de um altar
cúbico, e o cenário ao ar livre, onde se organizam os diferentes grupos da
assistência de fiéis em torno do grupo principal. O contraste entre as duas
primeiras missas se expressaria na ausência de indígenas da representação de
Portinari - ponto em comum com Os descobridores, de Belmiro de
Almeida. Na linha de análise proposta por Pedrosa em 1948, ao contrário do
catarinense, Portinari rejeitava a ideia de integração de culturas como origem
da nação. Para manifestar essa recusa ideológica em aceitar a colonização como
uma fusão cultural, Portinari teria evitado representar os indígenas. A segunda
crítica de Pedrosa, de 1957, não desqualifica necessariamente essa
interpretação. Seja como for, o tom épico derivado das grandes dimensões, a
grandiosidade da composição e a representação de gestos de fé e de fervor
religioso sobrepõem-se, segundo Coli, a qualquer possível intenção crítica do
artista.[56]
95. Mesmo
que a ausência dos índios da primeira missa nada tenha a ver com uma
desconstrução deliberada do mito da convivência pacífica, no conjunto da obra
de Portinari há outra narrativa sobre o primeiro encontro entre europeus e
indígenas que aponta nesse sentido: Descobrimento [Figura 14], de 1956. A
tela oferece uma interpretação a partir da perspectiva dos índios. Trata-se,
com efeito, de uma representação da primeira reação dos índios diante da visão
das naus portuguesas no horizonte. Surpresa, incompreensão, indignação e medo
são alguns dos sentimentos que emanam das figuras dos ameríndios representados,
inclusive uma criança que dá as costas para o mar e leva as mãos ao rosto.
96. A
ausência dos índios da Primeira missa de Portinari tem como compensação
essa representação da reação dos ameríndios ao avistarem pela primeira vez os
europeus, seus conquistadores. Em Descobrimento, Portinari
explicita o choque cultural e anuncia o esmagamento das culturas indígenas pela
conquista e colonização, discussão que as telas comentadas nesta seção sequer
insinuavam ou apenas esboçavam, posto que prioritariamente comprometidas com a
exaltação da colonização como empreendimento civilizatório em tom épico e
laudatório, próprio de uma pintura de história contada do ponto de vista dos
vencedores.
97. A
inversão de perspectiva trazida pelo Descobrimento de Portinari permite
contrastar essa obra com o modelo de integração cultural inaugurado pela Primeira
missa no Brasil de Meirelles e relacioná-la com um modelo alternativo de
tom elegíaco, também inaugurado pelo mestre catarinense: a Moema, que expõe
o destino trágico e a impossibilidade de sobrevivência das culturas indígenas.
Além
da epopeia e da elegia: Primeira missa, Moema e Os
descobridores
98. Embora
a ideia predominante que a Primeira missa transmite seja a de harmonia
entre índios e portugueses no momento solene do nascimento simbólico da
nacionalidade brasileira, Meirelles também desejou registrar a possibilidade de
conflitos ao representar alguns nativos receosos e outros com expressão de espanto
e estranhamento.[57]
Predomina, contudo, a sensação de coesão social, reforçada por uma
circularidade da composição que converge para a cerimônia religiosa.
99. Enquanto
a Primeira missa inaugura um modelo exaltador de uma integração
cultural, Moema [Figura 15], de 1866, inaugura uma segunda matriz de
representação das origens da nacionalidade, não de inspiração historiográfica,
mas literária. Sem desviar-se de um fundo nacionalista, na medida em que se
insere no indianismo romântico e no processo de construção de símbolos de
identidade nacional, Moema abre outra tendência na pintura de história.
A idealização da figura do indígena operada pela literatura romântica impregnou
as artes visuais e revigorou a tendência da pintura história de temática
literária.
100. O tema
é inspirado em Caramuru, poema épico do descobrimento da Bahia, do frei
Santa Rita Durão, publicado, em Lisboa, em 1781, que narra os sucessos dos
primórdios da colonização na Bahia. O protagonista, Diogo Álvarez Correia, de
alcunha Caramuru, português náufrago ou degredado que viveu por muitos anos
entre os tupiniquins do litoral da região próxima à baía que veio a ser a de Todos
os Santos, retorna a Lisboa, acompanhado de Paraguaçu, a escolhida entre suas
esposas, deixando em terra suas outras parceiras indígenas, com as quais se
juntara para estabelecer alianças com os chefes locais. Moema, uma das
preteridas, a mais bela e mais apaixonada, nada até a nau que transportava
Caramuru e Paraguaçu e falece absorvida pelas ondas não sem antes externar ao
amado a mágoa enfurecida de um amor não correspondido. Meirelles investe no
gênero clássico da paisagem histórica ou mitológica marcada pelo elemento
erótico do nu feminino para oferecer uma nova reflexão sobre o significado da
colonização no Brasil.
101. Para a
escolha do tema, Victor Meirelles opta por um momento posterior à morte da
heroína, um momento que não consta do poema: a aparição do cadáver nu da índia
na beira mar. Ao fundo, a paisagem do litoral em perspectiva; um pequeno ponto
no horizonte alto é a embarcação que leva o Caramuru e sua escolhida, enquanto
um grupo de figuras miniaturizadas da praia acena em vão para o navio; são as
esposas preteridas. Outro grupo, mais próximo do corpo de Moema, parece ter
acabado de avistá-lo.[58]
102. Se
para encontrar uma fonte iconográfica da Primeira missa Meirelles
recorreu a Horace Vernet, para Moema a fonte poderia ser encontrada em O
nascimento de Vênus [Figura 16], de Alexandre Cabanel, exibida no Salon
de 1863, quando foi consagrada pela aquisição por Napoleão III. Nas duas
pinturas o corpo feminino nu aparece em primeiro plano, dominando a composição.
Na alegoria de Cabanel, o tema extraído da mitologia antiga assume uma dimensão
sensual e realista que o insere no moderno culto do erotismo. A heroína de
Meirelles, por sua vez, combina beleza e repulsa: cadáver exposto, protagonista
de uma tragédia amorosa.[59]
103. O
desfecho trágico do amor de Moema é, segundo Luciano Migliaccio, a
metáfora do desencontro: “do supremo desencontro entre duas civilizações que
não podem se comunicar de verdade.” Nesse sentido, no conjunto da produção de
Victor Meirelles, Moema seria um contraponto à Primeira missa no
Brasil, pois no lugar do convívio pacífico e da integração de culturas, da
comunhão na fé e do elogio da colonização, expõe a morte, a solidão, a ausência
de diálogo. A impossibilidade do amor de Moema representaria, assim, a
impossibilidade de sobrevivência das culturas indígenas. Uma das parceiras do
Caramuru foi escolhida e com ele seguiu para a Europa, num ato de cooptação
civilizacional, o que implica a renúncia de sua cultura ou, pelo menos, a
aceitação e a submissão à cultura do marido, que de náufrago ou degredado,
tornou-se colonizador, como os protagonistas de Os descobridores, de
Belmiro de Almeida.
104. O
modelo de Moema inaugurou uma tradição na pintura brasileira que terá
seguidores diretos no longo “ciclo indianista” com temática de origem
literária, carregada de paixão, solidão, dor e tristeza. São exemplos que se
tornaram clássicos dessa tradição de elegias visuais: O último tamoio [Figura 17], de Rodolfo Amoedo, inspirado no poema
histórico de Gonçalves de Magalhães sobre a ocupação portuguesa da região da
baía de Guanabara; as Marabás, inspiradas em poema de Gonçalves Dias, de
Rodolfo Amoedo [Figura 18] e de João
Batista da Costa [Figura
19]; e as Iracemas, baseadas no romance homônimo de José de
Alencar, de José Maria de Medeiros [Figura 20] e de Antônio Parreiras [Figura 21].
105. Esta
chave interpretativa permite estabelecer uma associação entre Moema e Os
descobridores: por caminhos distintos - o da índia, esposa preterida, que
prefere a morte à submissão ao destino, e o dos degredados, abandonados em
terras desconhecidas, destinados a colonizar -, as origens da nação se turvam
no desespero, na solidão e no conflito desigual. Nos dois casos, os primórdios
da colonização não anunciam tempos felizes nem para os colonos conquistadores,
nem para os colonizados.
106. A Primeira
missa no Brasil de Victor Meirelles inscreveu-se no imaginário coletivo dos
brasileiros como a representação visual verdadeira do nascimento simbólico da
nacionalidade. Na transposição para a tela do episódio que significou a tomada
de posse das novas terras pelos súditos portugueses, o artista não teve como se
desvencilhar do tom culturalmente superior e condescendente em relação aos
ameríndios perceptível na narrativa de Caminha. Ao mesmo tempo, conseguiu
transmitir o deslumbramento e a esperança dos portugueses em relação às
possibilidades de expansão da fé católica entre a população local e de
prosperidade econômica que a exploração do novo território propiciaria. Como
base desse futuro promissor, a Primeira missa retrata a integração -
real ou imaginada, desejada ou inevitável - de dois povos culturalmente
distintos, tornada possível pela comunhão na fé católica. Nesse sentido, a tela
de Meirelles faz o elogio da colonização portuguesa e da catequização dos
ameríndios como origem histórica do povo brasileiro. A Primeira missa no
Brasil apresenta o “fardo do homem branco” como o desafio de levar a
civilização aos “selvagens” por meio da expansão da fé católica; omite, como a
maioria de seus seguidores, o genocídio secular das populações locais. A Primeira
missa coloca os poderes da arte a serviço da fabricação da história bem
como da construção de mitos de origem da nação.
107. O
modelo da Primeira missa impregnou a pintura de história brasileira e
influenciou uma série de obras, conforme se pretendeu demonstrar na série de
pinturas apresentadas ao longo do texto. Os exemplos referidos permitem pensar
uma tradição de representação visual dos momentos considerados formadores da
nacionalidade, tradição que os caracteriza com solenidade, religiosidade,
espiritualidade, convivência pacífica e afirmação da autoridade. Com efeito,
todos os exemplos brevemente discutidos, com exceção do Descobrimento de
Portinari, expressam visualmente um momento de afirmação e de legitimação da
autoridade estatal pelos colonizadores, que se manifesta, com variada ênfase,
nas dimensões militar, religiosa e civil.
108. Ao
recusar-se a expressar a autoridade e desconsiderar a integração de culturas,
Belmiro de Almeida com Os descobridores rejeita esse modelo de
representação das origens. Belmiro parece insurgir-se contra a crença na
possibilidade de comunhão na fé e de prosperidade econômica. Os indígenas não
participam da celebração da “descoberta,” que, aliás, longe fica de uma
“celebração.” Os “descobridores” europeus reduzem-se a dois miseráveis e
desconsolados personagens, mais próximos do desespero do que da esperança. Como
degredados, cabe-lhes cumprir a pena à qual foram condenados em terra estranha,
inóspita e hostil. Belmiro não representa o indígena nos momentos iniciais da
colonização, assim como Portinari se recusará a fazê-lo meio século mais tarde.
Numa inversão da epopeia colonizadora anunciada por Meirelles na Primeira
missa, a colonização para Belmiro sucede ao “descobrimento” como castigo.
Se a “descoberta” só é possível como um castigo, a colonização que lhe segue,
em que poderia resultar?
109. A
composição de Os descobridores difere bastante da Primeira missa,
a começar pela verticalidade. Também pela quantidade de figuras e cores: são
apenas dois personagens num pedaço de litoral inóspito; palheta restrita a
variações de marrons, amarelos e azuis. Ao invés de, como Meirelles e
seguidores, recriar um ambiente gregário, uma natureza exuberante e acolhedora
e retratar a convivência pacífica entre europeus e ameríndios, Belmiro escolhe
expor o desconforto e a solidão dos personagens, a hostilidade selvagem da
natureza tropical e, ainda, opta pela exclusão do índio.
110. Conforme
assinalado, a exposição da solidão e da paisagem selvagem numa ambientação em
que domina a melancolia são características compositivas que aproximam Os
descobridores de Moema, a obra de Meirelles que dá início ao
ciclo indianista na pintura brasileira. Sem recorrer à sensualidade mórbida da Moema,
Belmiro expõe em Os descobridores o desespero sem saída - e, por isso,
conformado - do colonizador, que deverá dominar a natureza e o que nela se
esconde e o ameaça: as culturas indígenas.
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p. 64-70.
______________________________
[1] Historiador; doutor em
História e Crítica da Arte pelo PPGAV/EBA/UFRJ, onde defendeu a tese Alegorias
em confronto: Os descobridores, de Belmiro de Almeida, e Paz e
Concórdia, de Pedro Américo: a construção da nação pela pintura de
história, sob a orientação da prof. dra. Sônia Gomes Pereira. O presente texto
corresponde a um subcapítulo da tese, com adaptações.
[2] Para uma interpretação
da Primeira missa no Brasil, ver: COLI, Jorge. Primeira missa e invenção
da descoberta. Em: NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo.
São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 107-121; ver também SQUEFF, Letícia, Uma
galeria para o Império: a Coleção Escola Brasileira e as origens do Museu
Nacional de Belas Artes. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2012, Pintura
história: a colonização justificada, p. 163-172.
[3] Porto-alegre fora
encarregado da organização das festas de coroação de Pedro II, em 1840, quando
projetou o pavilhão de madeira construído no Largo do Paço. Esse tipo de
encomenda somente seria possível para quem mantinha boas relações com altos
funcionários da monarquia, como Paulo Barbosa da Silva (1790-1868), mordomo da
casa real. Sobre as relações de Porto-alegre como o “grupo áulico” ou “da
Joana”, ver SQUEFF, Letícia, O Brasil nas letras de um pintor: Manuel de
Araújo Porto Alegre (1806-1879). Campinas: ed. da UNICAMP, 2004, capítulo
2, O pintor do Paço, p. 71-78.
[4] Movimento que se
desenvolveu na Itália entre as décadas de 1820 e 1850. Em Roma seu principal
expoente foi Tommaso Minardi, que, influenciado pelos Nazarenos alemães,
rejeitava o Neoclassicismo e sustentava um retorno aos valores espirituais e à
expressividade que caracterizariam os mestres italianos dos séculos XIV e XV,
em particular Giotto, Fra Angelico e o primeiro Rafael. Os puristas
privilegiavam temas religiosos ou místicos apresentados num estilo preciso e
linear. Sua valorização de uma tradição artística local ia ao encontro dos ideais
contemporâneos a favor da unificação italiana. O termo derivava de uma
tendência literária do século XVIII, a qual defendia a pureza do idioma a
partir do estudo e imitação de escritores italianos do século XIV. Cf.: CALINGAERT, E. G., verbete em TURNER, J. (org.). From
Renaissance to Impressionism: styles and movements in Western art, 1400-1900
(The Grove Dictionary of art). Nova York: Groveart, 2000, p. 264-265.
[5] COLI, Primeira missa e
invenção da descoberta, 1998, op. cit., p. 117.
[6] Cf. MELLO JR. Donato. Temas
históricos, em ROSA, Ângelo de Proença et al. Victor Meirelles de Lima
(1832-1903), Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982, p. 55-102. Consultar também
a Cronologia, de BAUER, Letícia, em TURAZZI, Maria Inez (org.) Victor
Meirelles: novas leituras. Florianópolis, Museu Victor Meirelles, São
Paulo: Studio Nobel, 2009, p. 163-175.
[7] Durante a permanência
na capital francesa, Porto-alegre editara, em 1836, com Domingos José Gonçalves
de Magalhães (1811-1882), Francisco Sales Torres Homem (1812-1876) e E.
Monglave, a revista Nitheroy, que, junto com o livro de poemas Suspiros
poéticos e saudade, de Gonçalves de Magalhães, são considerados
manifestações pioneiras do romantismo nativista na literatura brasileira.
[8] Manoel de Araújo
Porto-alegre, “Exposição pública: primeiro artigo”, em Minerva Brasiliense,
n. 4, vol. I, 15 de dezembro de 1843, p. 118, apud Squeff, 2012, p.
120.
[9] DEBRET,
Jean-Baptiste, Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris:
Imprimerie Nationale, 2014, Resumé de l’histoire de la littérature,
des sciences e des arts au Brésil, p. 390-394.
[10] Trabalho publicado na Revista
do IHGB, tomo XIX, 3.º trimestre de 1856, p. 330-378. Porto-alegre
ingressou no IHGB logo após a sua fundação, em 1838; entre 1843 e 1855, exerceu
o cargo de orador do Instituto.
[11] SQUEFF, 2004, op. cit.,
p. 129-167, capítulo 4, A arte é palco da história.
[12] PEREIRA, Sônia Gomes. Arte,
ensino e academia: estudos e ensaios sobre a Academia de Belas Artes. Rio
de Janeiro: Mauad, 2016, Manuel de Araújo Porto Alegre e a discussão da arte
brasileira, p. 89.
[13] Apud GALVÃO, Alfredo.
Manuel de Araújo Porto Alegre: sua influência na Academia Imperial das Belas
Artes e no meio artístico do Rio de Janeiro. Revista do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, n.º 14, Rio de Janeiro, DPHAN, p. 19-120, 1959, p.
58.
[14] SQUEFF, 2012, op. cit.,
p. 119-123; PEREIRA, 2016, op. cit., p. 80-91.
[15] SQUEFF, 2004, op. cit.,
capítulo 6, As cores da nação, p. 220.
[16] Apud GALVÃO, 1959, op.
cit., p. 79.
[17] MELLO
JR., 1982, op. cit. p. 60; COLI, 1998, p. 110-111.
[18] “Notícia do Palácio da
Academia Imperial das Belas Artes do Rio de Janeiro e da Exposição de 1862”, p.
64-65, reproduzida por SILVA, Ângela Maria Pinto da, Victor Meirelles nas
Exposições da Academia Imperial de Belas Artes (1846-1884). In:
TURAZZI (org.), Victor Meirelles: novas leituras, 2009, p. 177-207, p.
182-183.
[19] COLI,
1998, op. cit., p. 110.
[20] COLI,
1998, op. cit., p. 107-109.
[21] Publicada em seis
volumes, todos estão integralmente digitalizados e disponíveis no portal da
Biblioteca Nacional da França, na Gallica: http://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb314368683, acessado
em 14/10/2018.
Taunay realizou os desenhos para as dezenas de gravuras reproduzidas nos seis
volumes.
[22] SUSSEKIND, Flora. Sob o
olhar dos outros, em Revista do Brasil, Rio de Janeiro:
PCRJ/RioArte/Fundação Rio, ano 4, 1989, número especial dedicado o centenário
da República no Brasil, p. 64-70.
[23] “O procedimento por
citações, dentro da pintura de história, era um instrumento legítimo à natureza
do gênero. Os achados insignes voltavam nas obras mais ilustres, incorporados:
a cultura visual mostrava-se tão importante quanto a invenção. [...] A arte do
século passado – e não apenas a dita pompier – mantinha um diálogo denso
com a história da arte, mais antiga ou mais recente” (COLI, 1998, op. cit., Digressão
sobre o plágio, p. 112).
[24] “Entre a anedota
pitoresca contada por Vernet e o sentimento elevado obtido por Meirelles há um
abismo separando duas concepções artísticas” (COLI, 1998, op. cit., Missas
comparadas, p. 113-115).
[25] SILVA, “Notícia do
Palácio da Academia Imperial das Belas Artes”, 2009, op. cit., p. 181-183.
[26] “Quando falo na escola
brasileira, é simplesmente para ir de acordo com o que escreveu o sr. Mafra no
catálogo da exposição atual, porque até hoje eu conhecia as escolas romana,
flamenga, holandesa, espanhola, francesa e outras entre as quais nunca ouvira
nomear a brasileira” (A. Gil, Rio de Janeiro, 3 de maio de 1879, Revista
Ilustrada, n. 159, maio 1879, p. 2-3, apud SQUEFF, 2012, op. cit., p.
112-113).
[27] SQUEFF, 2012, op. cit.,
O catálogo de 1879 e a coleção escola brasileira, p. 40-44.
[28] SILVA,
2009, op. cit., p. 193-197; SQUEFF, 2012, op. cit., p. 31-81.
[29] ESTRADA, Luiz Gonzaga
Duque. A
arte brasileira
(introdução e notas de Tadeu Chiarelli), Campinas: Mercado de Letras, 1995
[1888], p. 206.
[30] Gonzaga Duque, No
atelier de Firmino Monteiro, em Gazetinha, 16 de fevereiro de 1882,
p. 3, apud MOREIRA, Giovanna Loos. A construção da história nacional pelo
pintor Antônio Firmino Monteiro entre 1879 e 1884. Dissertação de mestrado
defendida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de
Juiz de Fora, 2016, p. 82-85.
[31] MOREIRA, 2016, op.
cit., p. 76.
[32] “O índio sentado sugere
uma recusa ao projeto português, expondo assim a perspectiva avessa ao projeto
de colonização”. Segundo a autora, o referido personagem “levanta suspeitas
sobre a aceitação da cultura portuguesa”. “Há na tela velada crítica ao processo
de colonização e a reformulação da posição do índio frente à imposição cultural
que sofria, não sendo, portanto, passivo ao projeto português. [...] Há em sua
produção sutil crítica à atuação portuguesa no processo de colonização, onde o
índio fora tido como passivo à ação civilizatória” (MOREIRA, 2016, op. cit., p.
89-90 e 92).
[33] MOREIRA, 2016, op.
cit., nota 139, p. 106.
[34] “[...] reformas de
adaptação e novas edificações ocorreram também em palácios de governos
estaduais e prefeituras, nos quais uma espécie de culto à história regional e
aos seus heróis veio igualmente encontrar expressão na decoração de paredes e
tetos. [...] Os governos estaduais, como instâncias regionais de poder dentro
de um regime progressivamente federalista, se empenhariam nessa iniciativa de
sentido pedagógico. [...] Nesse discurso [historiográfico], as imagens cumprem
um papel importantíssimo [...], assumindo um pouco a função que a escola
[pública primária] viria a assumir mais tarde no trabalho da memória seletiva
na construção de mitos e heróis”. (SALGUEIRO, Valéria. A arte de construir a
nação: pintura de história e a Primeira República. Estudos históricos,
Rio de Janeiro, v.2, nº 30, p. 3-22, maio de 2003, p. 5-6).
[35] Reproduzido em PITTA,
Fernanda. A pintura de costumes como pintura de história: A partida de
monção, de José Ferraz de Almeida Júnior. In: Coleções em
diálogo: Museu Paulista e Pinacoteca de São Paulo/curadoria Valéria Piccoli
e Fernanda Pitta; textos Valéria Piccoli et al. São Paulo: Pinacoteca de São
Paulo, 2017, p. 93-111.
[36] Cf. PITTA, 2017, op.
cit., p. 101.
[37] Cf. verbete sobre
Almeida Júnior em LEITE, 1988, op. cit., p. 389.
[38] Cf. PITTA, 2017, op.
cit., A história figurada: as relações entre a tela de Almeida Júnior e o
texto de Cesário Motta Júnior, p. 96-103.
[39] Jornal do Commercio,13
de setembro de 1898, apud SIGH JR., Oséas, Partida de monção: tema
histórico em Almeida Júnior, dissertação de mestrado, Campinas: Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas, 2004, p. 202.
[40] Cf. MILLIET, Sérgio.
Almeida Júnior, em MILLIET, Sérgio. Pintura quase sempre. Porto Alegre:
Livraria do Globo, 1944, p. 246-252.
[41] Segundo Fernanda Pitta,
“a palheta clareada, “as cores planas”, os efeitos de luz em “grisaille”, a
abolição do claro-escuro marcado, a grandeza das figuras, a composição em
friso, a simplicidade construída são evidentes pontos de contato entre a tela
de Almeida Júnior e a pintura decorativa de Puvis de Chavannes”. E acrescenta:
“a importância conferida por Almeida Júnior ao equilíbrio, à solidez da
composição, aproxima-o de Chavannes” (PITTA, 2017, op. cit., Decorativismo e
a questão Puvis de Chavannes, p. 103-106).
[42] Para Pitta, Almeida
Júnior interpretava as monções como “uma lenta marcha, a da civilização,
entendida como uma grande, mas silenciosa epopeia sem heróis, ou de heróis
comuns, sem nenhum acento épico”. Para a autora, “em Almeida Júnior parece se
esboçar uma compreensão da nacionalidade como um processo difícil de junção das
vontades individuais, que lentamente se configuram numa vontade coletiva”
(PITTA, 2017, op. cit., Uma tradição gloriosa?, p. 108-110).
[43] “[...] é agradável a
pintura em que os corpos e suas poses sejam bem diferenciados [...]. Desejo que
em toda história [...] haja um esforço para que não se repitam gestos e poses”.
ALBERTI, Leon Battista. Da pintura. Campinas: Editora da Unicamp, 1999,
p. 121, apud CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. A “Primeira missa” de Victor
Meirelles e mais três pinturas no Salão de Paris em 1861. In: Anais
do XXXII Colóquio do CBHA: direções e sentido da história da arte.
Campinas: CBHA, 2013, p. 437-456.
[44] Cf. MONTEIRO, Michelli
C. Scapol, Fundação de São Paulo, de Oscar Pereira da Silva: entre a
Pinacoteca e o Museu Paulista, em Coleções em diálogo: Museu Paulista e
Pinacoteca de São Paulo/curadoria Valéria Piccoli e Fernanda Pitta; textos
Valéria Piccoli et al. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2017, p. 147-157.
[45] Em 1913, o prefeito da
capital bandeirante, Raimundo Duprat, encomendou a Antônio Parreiras uma pintura
sobre o mesmo tema da fundação de São Paulo. Na versão de Parreiras, a postura
do chefe indígena Tibiriçá não é a de submissão. Ao contrário, assiste ao ato
religioso com postura altiva, sem se ajoelhar, como faz João Ramalho a seu lado
(MONTEIRO, 2017, op. cit., História ou arte: implicações de escolhas formais,
p. 150-153).
[46] Cf. MONTEIRO, 2017, op.
cit., Trânsitos, p. 154.
[47] Valéria Salgueiro
identifica os temas mais visitados por Antônio Parreiras nas suas pinturas de
história: fundação de cidades, representação da natureza e rebeliões coloniais,
“exaltando sua orientação republicana e antilusitana”. Para uma relação das
pinturas históricas de Parreiras, ver SALGUEIRO, 2003, op. cit., Antônio
Parreiras e a visualidade republicana, p. 9-13.
[48] Cf. LEVY, Carlos
Roberto Maciel. Antônio Parreiras: pintor de paisagem, gênero e história.
Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1981, p. 40.
[49] Sobre a atitude de
Parreiras em relação à pintura de história, afirma LEVY: “De certo que, com o
próprio nascimento da pintura histórica na obra de Parreiras, aparece a sua
forte determinação de construí-la como um veículo independente para sua visão
de mundo nacionalista e revoltada contra a dominação colonial” (LEVY, 1981, op.
cit., p. 42; Ver também PARREIRAS, Antônio. História de um pintor contada
por ele mesmo: Brasil-França (1881-1936). Niterói: Niterói Livros, 3ª ed.,
1999 [1936]).
[50] Cf. SALGUEIRO, Valéria
(org.). Antônio Parreiras: notas e críticas, discursos e contos:
coletânea de textos de um pintor paisagista. Niterói: EdUFF, 2000, p. 91-92.
[51] SALGUEIRO (org.), 2000,
op. cit., p. 92.
[52] “O nacionalismo dos
tempos de Getúlio Vargas vai continuar os mitos do século XIX numa prolongação
ideológica que se quer verdade da história” (COLI, 1998, op. cit., O ícone e
seu futuro, p. 116).
[53] “Resolutamente, ele
suprimiu uma série de problemas falsos, como o da luz natural, da realidade
histórica etc. Foi mais longe, e suprimiu a natureza do tema que devia transpor
para a tela. Era seu direito, E apresentou a sua solução de modo magistral”
(PEDROSA, Mário. A missa de Portinari. In: PEDROSA, Mário. Dos murais
de Portinari aos espaços de Brasília (organização Aracy Amaral). São Paulo:
Perspectiva, 1981, p. 27-34).
[54] Cf. FABRIS, Annateresa,
Cândido Portinari, São Paulo: Edusp, 1996, A pintura monumental,
p. 124.
[55] PEDROSA, Mario. Hoje,
Primeira missa. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 de abril de 1957,
1º caderno, p. 8, apud FABRIS, 1996, op. cit., p. 190.
[56] “A eliminação dos
índios permitiu a leitura mais radical de Mario Pedrosa [da crítica de 1948],
embora a imagem oferecida permaneça ambígua, negando a clareza proposta pela
interpretação” (COLI, 1998, op. cit., p. 116).
[57] “Comenta-se que a
“primeira missa” foi escolhida como tema desse quadro por representar o
encontro harmonioso entre índios e portugueses. Contudo, olhando com atenção,
vemos que ali já se apresentam conflitos latentes. Parece que o pintor declara
algo por escrito e diz outra coisa na tela. [...] se o que interessava ao
artista era simplesmente evitar a repetição, por que dar expressões de medo às
figuras?”. Cf. CAVALCANTI, Ana. “Primeira missa” de Victor Meirelles e mais
três pinturas no Salão de Paris em 1861. In: Anais do XXXII Colóquio
do CBHA: direções e sentido da história da arte. Campinas: CBHA, 2013, op.
cit., p. 441-443.
[58] MIGLIACCIO, Luciano.
Moema cujo amor as ondas não apagaram: a Moema de Rodolfo Bernardelli: história
de uma imagem. In: PALHARES, Taisa Helena P. (org.) Arte Brasileira
na Pinacoteca do Estado de São Paulo. São Paulo: Cosac Naify/Imprensa
Oficial/Pinacoteca, 2009, p. 60-71.
[59] “[...] esse tema
simbólico do erotismo moderno em Meirelles se apresenta como horror e como tema
fúnebre e elegíaco, quer dizer, de lamentação sobre o destino trágico de um
amor. [...] A combinação de beleza e horror é justamente a característica do
quadro de Meirelles” ( MIGLIACCIO, 2009, op. cit., p. 66).