Os descobridores (1899), de Belmiro de Almeida: uma reflexão
sobre as origens e o destino do Brasil
Guilherme
Frazão Conduru [1]
CONDURU, Guilherme Frazão. Os descobridores
(1899), de Belmiro de Almeida: uma reflexão sobre as origens e o destino do
Brasil. 19&20,
Rio de Janeiro, v. XVII, n. 1-2, jan-dez 2022. https://doi.org/10.52913/19e20.xvii12.02
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1. Este
texto tem como objeto a tela Os descobridores
[Figura 1], de Belmiro de
Almeida (1858-1935). Realizada em 1898 e 1899, a pintura pertence ao
Ministério das Relações Exteriores (MRE) e integra o acervo do Museu Histórico
e Diplomático do Itamaraty (MHD) no Rio de Janeiro.
2. O
artigo se divide em três partes. Na primeira, apresentam-se algumas informações
sobre a trajetória profissional do pintor, com referências às suas principais
obras e, em particular, sobre as raras investidas em pintura de história antes
de Os descobridores. Na segunda parte, oferecem-se uma descrição
iconográfica da tela, uma interpretação sobre seu significado - inclusive com
argumentos sobre a identificação dos personagens representados - e se
estabelecem correlações de Os descobridores com outras pinturas
de história contemporâneas, que permitem caracterizar seu pertencimento a
linhagens dissidentes das correntes predominantes na pintura de história. Na
terceira parte, discute-se como a tela foi adquirida pelo MRE a partir das
relações do artista com o ministro José Maria da Silva Paranhos do Rio Branco
(1845-1912) e com Domício da Gama (1860-1925), um de seus mais assíduos e
importantes colaboradores. As frequentes viagens de Belmiro de Almeida a
Europa, a partir de 1888, e fontes primárias permitem supor que ele teve
contato com Rio Branco e Domício da Gama em Paris, contatos que podem ter
favorecida uma amizade, que antecedeu e poderia explicar a aquisição da pintura
pela chancelaria brasileira. Como veremos, há fundamento documental para apoiar
a hipótese de que Os descobridores esteja em posse do Itamaraty
desde os primeiros meses da gestão do barão do Rio Branco, que assumiu o cargo
de ministro em dezembro de 1902.
3. Como
pintura de história, Os descobridores representa uma cena que
aconteceu - ou que poderia ter acontecido. Neste sentido, a situação
reconstituída na pintura - que resultou da passagem da esquadra de Pedro
Álvares Cabral pelo litoral da região que viria a ser Porto Seguro - obedece ao
princípio da verossimilhança. A imagem representada em Os descobridores
remete a uma reflexão sobre o sentido da colonização e, portanto, sobre o
significado da evolução histórica do Brasil. A obra põe em discussão as origens
da nacionalidade, a formação histórica e o futuro do Brasil.
4. Antecedentes
de Os descobridores na obra de Belmiro de Almeida
5. A
pintura de história não foi o gênero ao qual Belmiro de Almeida mais se
dedicou, mas é nessa categoria que se deve classificar Os descobridores.
Na virada do século, já passara o apogeu da pintura histórica de exaltação
nacional que acompanhou e se seguiu à Guerra do Paraguai (1865-1870), apogeu
que pode ser simbolicamente representado pela Exposição Geral de Belas de Artes
de 1879, quando foram expostas, lado a lado, as enormes Batalha do Avaí, de Pedro
Américo (1843-1905), e Batalha de Guararapes, de Victor
Meirelles (1832-1903). Por volta de 1900, a pintura de história já perdera
a hegemonia que exercera sobre os demais gêneros pictóricos. Num contexto de
busca de legitimação simbólica do novo regime político, a proclamação da
República em 1889 ensejou uma demanda por pintura histórica e pela modalidade
alegórica. Ao longo da Primeira República, continuou a existir um mercado
oficial para o gênero, que se ampliou com a valorização política das
identidades estaduais decorrente da federalização. A pintura de história ainda
constituiria uma importante oportunidade profissional para os pintores, mas já
não seria considerada um gênero superior aos demais.
6. Nascido
no Serro, Minas Gerais, Belmiro Barbosa de Almeida Júnior veio para o Rio de
Janeiro ainda menino. Em 1869, estudava no Liceu de Artes e Ofícios, aonde
posteriormente viria a lecionar desenho. Em 1874, aos 16 anos, matriculou-se na
Academia Imperial das Belas Artes (AIBA), onde teve como professores Agostinho
José da Mota (1824-1878), Francisco
Manuel Chaves Pinheiro (1822-1884), Victor Meirelles e João
Zeferino da Costa (1840-1915). Foi o começo de uma intensa relação que
durou por toda a vida e mesmo além, pois Belmiro deixou em testamento parte de
seus bens para a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), sucessora da Academia.
7. Conquistando
várias medalhas nos primeiros anos do curso, o desempenho de Belmiro como aluno
o colocava em boas condições para disputar o prêmio de viagem ao exterior.
Frequentador dos círculos intelectuais e boêmios da capital em tempos de
agitação política, quando as campanhas abolicionista e republicana ganhavam as
ruas, Belmiro interessou-se pela ilustração jornalística. Em 1877, assinou sua
primeira folha de rosto na Comédia Popular, o que marca o início de uma
trajetória professional como ilustrador para jornais e revistas do Rio de
Janeiro.[2]
8. A
partir da década de 1880, aproximadamente, a pintura de gênero com temas
extraídos da vida cotidiana passara a obter reconhecimento da Academia Imperial.
A boa aceitação da produção de José Ferraz
de Almeida Júnior (1850-1899), que estudou em Paris, entre 1876 e 1882, às
custas do Imperador, e de Rodolpho Amoedo (1857-1941), vencedor do prêmio de viagem
em 1878, são exemplos de que na AIBA se podiam perceber sinais de abertura para
novas abordagens pictóricas.[3] Era comum que artistas atuantes na
passagem do século XIX para o XX utilizassem diferentes estilos e
experimentassem numa diversidade de linguagens, adotando, ao longo da carreira,
uma postura eclética.[4] Ao mesmo tempo, como expressão da ampliação
do mercado de arte, começavam a surgir as primeiras galerias particulares, até
certo ponto improvisadas, criando um circuito independente em relação às
Exposições Gerais promovidas pela Academia e, depois de 1890, pela ENBA.
9. Recusando
a temática histórica - nacionalista, bíblica ou literária - e explorando a
pintura de gênero com imagens do cotidiano e da intimidade burguesa, Belmiro
realizou exposição na Casa De Wilde,[5] em agosto de 1887, quando apresentou Arrufos
[Figura 2], tela com cena doméstica de desentendimento
conjugal. A mostra, que recebeu a visita da princesa Isabel (1846-1921), então
regente do Império, teve boa repercussão, tendo sido noticiada em diversos
jornais da capital. A recepção positiva à exposição contribuiu para que Arrufos
fosse adquirido pela Academia.[6]
10. Ainda
em 1887, Belmiro disputou o concurso da AIBA para o prêmio de viagem à Europa,
cujo tema, definido por sorteio, foi a flagelação de Cristo. As provas dos
concursos para o prêmio de viagem ao exterior ou para o cargo de professor
exigiam dos candidatos a realização de pintura de história com tema bíblico ou
da antiguidade clássica, segundo cronograma pré-definido; em alguns casos os
temas reapareciam. Não se pode afirmar que Flagelação de Cristo [Figura 3] seja sua primeira experiência no gênero
histórico, mas não há registro de pintura de história anterior.
11. O
concurso para o prêmio de viagem não se realizava desde 1878. Belmiro de
Almeida disputou com outros seis candidatos.[7]
De acordo com parecer da comissão julgadora, aprovado pelo corpo acadêmico, o
prêmio foi concedido a Oscar Pereira da Silva (1867-1939), mas teve o voto
contrário de dois professores, João Zeferino da Costa e Rodolpho
Bernardelli (1852-1931), que discordaram do resultado e formalizaram
protesto contra a decisão, manifestando preferência pelo trabalho de Belmiro.
Os discordantes chegaram a escrever para a princesa Isabel, interpondo um
recurso não previsto nos estatutos da Academia.[8]
A polêmica acadêmica chegou às páginas dos jornais e atrasou em três anos a
viagem do vencedor.[9] Divergências de opinião e rivalidades
sempre existiram na Academia. Nesse caso, a novidade estava na forma de
expressão dessa divergência: a ousadia do questionamento à decisão do júri e a
tentativa de intervenção de autoridade superior à direção da escola e ao
ministério.
12. Rodolpho
Bernardelli, professor na AIBA, encabeçou mobilização para apoiar
financeiramente Belmiro.[10] Escreveu-lhe então para comunicar sua
iniciativa de apoio, em caráter privado, por cinco anos, junto com um grupo de
amigos, entre eles Angelo Agostini (1843-1910),
ilustrador e editor do semanário Revista Ilustrada.
13. Em julho
de 1888, o artista embarcava para a Itália.[11]
Durante sua permanência em Roma, Belmiro de Almeida realizou, em 1890, pintura
alegórica de exaltação da República intitulada Aurora do 15 de novembro,
almejando vendê-la para algum órgão estatal. Durante a confecção da obra, o
artista usou seus contatos na imprensa carioca para promover o trabalho.
Concluída e enviada para o Brasil, a tela ficou em exposição pública no salão
nobre da prefeitura municipal do Rio de Janeiro a partir de 10 de novembro de
1891.[12]
Hoje desaparecida, a alegoria de Belmiro não foi bem recebida pela crítica
contemporânea. Mesmo críticos simpáticos ao pintor, como Agostini, deploraram a
investida do artista no gênero da pintura alegórica: “O sr. Belmiro de Almeida
está deslocado em tal gênero de pintura. Não é aquela feição característica de
sua inteligência.”[13] Com o mesmo tom desabonador, outro
crítico, que escrevia na Gazeta de Notícias, afirmou que Belmiro, um
pintor “avesso a tudo quanto era convenção e rotina, [...] que se insurgiu
contra o academicismo,” numa ironia do destino, acabava por dedicar-se à
alegoria por necessidade de sobrevivência. Embora lamentando a adesão de
Belmiro ao que chamava de “idealismo” e augurando que fosse um último desvio de
sua índole, o crítico reconhecia qualidades na obra: “A composição é agradável,
tem uma linha bem ondulada e conduzida.”[14]
Ainda em novembro de 1891, o cronista Arthur Azevedo (1855-1908) também se exprime contra o que
considera um “aleijão decorativo, que é de uma indigência comovedora como
composição e como fatura”. Azevedo afirma que o artista tentara, sem sucesso,
expor a alegoria no Salon de Paris, fato pelo qual se rejubila, pois,
segundo ele, seria um péssimo exemplo como representação do Brasil. O cronista
ainda advertia: “Belmiro que se deixe de assuntos decorativos. Não torça a
esplêndida vocação que a natureza lhe concedeu para os quadrinhos de gênero.”[15]
14. Os
três comentaristas contemporâneos demonstravam desprezo pelo gênero alegórico,
considerado convencional, rotineiro, sem potencial para engendrar uma maneira
criativa, um gênero próprio para encomendas oficiais, portanto, limitador e
estéril. É curioso notar que a tela recebeu duas denominações diferentes: para
Agostini, Apoteose do 15 de novembro; para os outros dois, Aurora do
15 de novembro. Não se sabe por quanto tempo a alegoria de Belmiro
permaneceu exposta na prefeitura da capital da República. A referência à
submissão da tela ao rigoroso processo seletivo do Salon francês
indicaria que o artista buscava promover sua obra com vistas à comercialização.
15. Em
setembro de 1894, o artista expôs vinte e sete quadros numa individual na ENBA,
não sem antes enfrentar a resistência do diretor interino, Rodolfo Amoedo,
contemporâneo dos tempos de estudante na antiga Academia. Logo seguiu-se a
Exposição Geral, onde Belmiro fez-se representar com nove telas. Alguns dos
trabalhos apresentados - como Efeito de sol [Figura 4] - exibiam a técnica pontilhista,
difundida a partir da obra de Georges Seurat
(1859-1891) e novidade na capital brasileira.[16]
A abertura e a disposição para conhecer e experimentar novos estilos e técnicas
pode ser referida como uma característica da trajetória de Belmiro, que também
produziu obras como experiências futuristas e cubistas, a exemplo de Maternidade
em círculos [Figura 5].
16. No ano
seguinte, em 1895, o comentarista Fantasio afirmava, com ou sem fundamento,
que a alegoria da República estaria para ser adquirida pela Câmara dos
Deputados. No que era mais uma crônica política do que uma crítica de arte, Fantasio
descreve o conteúdo da tela - na qual uma exuberante personificação feminina da
Aurora aparecia sobre um leão empunhando a bandeira nacional, simbolizando,
segundo ele, o domínio da lei sobre a força - com o objetivo de criticar as
sucessivas declarações de estado de sítio do governo de Floriano Peixoto
(1839-1895).
17. Em
1897, o Minas Geraes, órgão oficial, noticiou que o artista oferecera ao
governo daquele estado sua tela alegórica em homenagem à instalação da
República.[17] Para contextualizar a doação, vale
mencionar que, três meses antes, em setembro de 1897, Belmiro fizera publicar
no mesmo jornal, sob o título “Pela arte em Minas,” carta aberta ao presidente
do estado, na qual chamava atenção para a necessidade de incentivo para as
artes e oferecia seus serviços como artista pintor.[18]
Em outubro, o governo autorizava a aquisição de Má notícia [Figura 6], tela de Belmiro que ficara exposta no salão
do Liceu de Artes e Ofícios de Ouro Preto juntamente com o esboço de quadro
sobre episódio histórico não identificado. Em atenção a requerimento do pintor,
Má notícia foi adquirida por dez mil réis, pagos com os recursos
destinados às despesas com a mudança da capital.[19]
18. Pode-se
ver na doação da Aurora do 15 de novembro antes um movimento
autopromocional do que uma generosidade do artista. Além disso, é possível
conjecturar que Belmiro, ao agradecer a compra da tela de gênero com a doação
da pintura alegórica, aproveitara para se desvencilhar desta última, que, desde
1890, “encalhara” e cuja conservação, muito provavelmente, causava-lhe ônus
logístico e financeiro, conforme posteriormente comentou Domício da Gama
(1862-1925), escritor, crítico e diplomata.[20]
19. Na
mesma edição do anúncio da doação, o Minas Geraes publicou artigo de Armínio
de Mello Franco que, pelo teor apologético, contrasta com as críticas de
1891 à pintura alegórica de Belmiro: “A coloração geral do quadro, rutilante de
luz, é fina e variada, leve e transparente [...]. A fatura é franca e bem
conduzida, vê-se que o pincel caminhou desassombrado acompanhando a imaginação
do artista.” Ao congratular-se com o governo de Minas Gerais pelas aquisições
das telas de Belmiro - “vai se formando a galeria artística de nosso estado” -,
Mello Franco estimava que a alegoria media quatro
metros de altura por dois de largura.[21]
20. As
mencionadas referências na imprensa à tela Aurora do 15 de novembro
permitem identificar, num exercício de reconstituição pictórica, tanto os
protagonistas como outros elementos presentes na composição. Flutuando no céu,
a personificação feminina da República, aureolada por um esplendor, sobre o
dorso de um leão domesticado, empunhando a bandeira nacional que lhe envolve as
formas, dirige-se para a figura de um indígena - alegoria do Brasil ou do povo
brasileiro -, recostado sobre pele de onça, sob a luz violácea da aurora. A
imagem do encontro da personificação da República com a alegoria do povo
poderia significar a legitimação interna do novo regime. Em torno do conjunto
principal, foram mencionados alguns coadjuvantes: querubins ou gênios e personificações
das Ciências, das Artes e do Progresso, além do ramo de oliveira, que simboliza
a Paz, e da espada da Justiça. A cena pairava sobre paisagem da baía de
Guanabara, na qual se distinguia o perfil do Pão de Açúcar. Segundo Domício da
Gama, a realização dessa alegoria correspondia à aspiração do artista de
realizar uma grande obra, ainda nos moldes do grand
genre, uma “máquina” que consagraria seu talento:
“esse quadro decorativo, em que o artista consumira um ano de trabalho e que
posteriormente o fez criar cabelos brancos por dentro, ainda lhe foi útil,
porque [...] matou em Belmiro a gana que tem todo pintor de pintar o seu quadro
grande.”[22]
21. Domício
da Gama informa, ainda, que, durante sua temporada romana, Belmiro de Almeida
fez duas excursões a Paris, em 1889 e em 1891, onde tivera contato com obras de
Puvis de Chavannes
(1824-1898)[23], que o influenciaram no sentido do
clareamento da palheta. A influência de Puvis Chavannes foi apontada tanto por comentaristas
contemporâneos, como por historiadores acadêmicos.[24].
22. Em
Paris, entre 1896 e 1899, Belmiro frequentou a Académie
Julian, escola privada, procurada por franceses e estrangeiros como
preparação para o concurso de admissão da École des
Beaux-Arts, que contava com um corpo docente
rigoroso e disciplinador, afinado com o sistema acadêmico oficial.[25]
Belmiro teve aulas com Jules Lefebvre (1836-1911), conceituado retratista, e
Tony Robert-Fleury (1837-1912), pintor de história. Foi durante essa temporada
parisiense que o artista realizou Os descobridores.
23. A
efeméride dos “400 anos,” em 1900, favoreceu o crescimento da demanda oficial
por obras de arte comemorativas, históricas ou alegóricas; pintores de história
tiveram então oportunidade para apresentar trabalhos e receber encomendas. A
título de exemplo, cumpre mencionar que a temática do “descobrimento” foi
objeto de concurso de pintura promovido pela Associação para as Comemorações do
4º Centenário do Descobrimento do Brasil, entidade não oficial, cujo edital foi
publicado em 20 de julho de 1899. A reprodução de Os descobridores
na Revista Moderna junto ao citado artigo de Domício da Gama, em
fevereiro de 1899, desmonta a hipótese de que Belmiro a realizara para disputar
o concurso, na medida em que a tela estava pronta antes da publicação do
edital, que previa a apresentação de esboceto sob pseudônimo, ou seja, sem
identificação de autoria, presumindo-se que cada pintura concorrente tivesse
caráter inédito.[26]
24. Entre
as obras contemporâneas de Os descobridores que também trabalharam com o
tema da conquista - e colonização - do território “descoberto” em 1500,
participantes ou não do concurso da Associação, se podem mencionar: O
descobrimento do Brasil (1900) de Aurélio de
Figueiredo (1854-1916) [Figura 7]; A Providência guia Cabral (1899), de Eliseu Visconti
(1866-1944) [Figura 8]; Primeiro desembarque de Pedro Álvares
Cabral em Porto Seguro (1900) de Oscar Pereira da Silva [Figura 9]; A chegada (1900) e A partida
(1902) [Figura
10], de Antônio Parreiras (1860-1937); e, ainda, um esboço sem data
e sem título de Rodolpho Amoedo, guardado na reserva técnica do MNBA.[27]
Seja como for, a rememoração coletiva dos acontecimentos e personagens de 1500
ensejou um crescimento da demanda por pinturas de história. E a aquisição de Os
descobridores pelo Ministério das Relações Exteriores, provavelmente em
1903, como veremos adiante, constitui um desdobramento dessas possibilidades
abertas pela comemoração dos “400 anos.”
Problematizando
a colonização: leituras semânticas de Os descobridores
25. Em Os
descobridores [Figura 1], sobre uma elevação próxima ao mar, com
paisagem litorânea ao fundo, duas figuras masculinas protagonizam a cena. Um
terceiro protagonista ergue-se entre eles: uma árvore, cujo tronco imponente
centraliza a composição. Uma das figuras está em estado de prostração, sentada
no chão com as pernas estiradas, recostada à árvore, com o pé esquerdo
enfaixado para proteger ferimento, mãos sobre as coxas; tem os cabelos negros
repartidos ao meio, longos até a altura dos ombros, e barba espessa; a sua
direita, uma espécie de agave. A postura e o olhar perdido transparecem
exaustão, perplexidade e desalento. A outra figura aparece de costas, à direita
da árvore; está de pé a fitar o oceano ao longe, descalço, sem camisa, braços
ao longo do corpo; o perfil permite discernir uma barba rala que sugere uma
aparência jovem. Ainda que seu rosto não esteja inteiramente visível, a pose e
a direção do olhar para a vastidão do mar denotam melancolia e desânimo.
26. No
primeiríssimo plano, sobre a terra nua, jazem folhas secas caídas da árvore
dominante, que parece em fase de desfolhamento. Logo acima, os dois personagens
e a árvore, que sobe até a extremidade superior da imagem, com galhos
retorcidos e folhagem rala, que não geram sombra, pois prevalece uma luz difusa
e uniforme. É provável que o artista não tenha se preocupado em reproduzir uma
espécie real, utilizando a representação da árvore como estruturadora da
composição.
27. No
plano de fundo, estende-se uma vista de praia deserta, com vegetação costeira
densa e trecho de litoral, no qual se distinguem duas ou três pontas, o mar à
esquerda e parte de uma montanha à direita. Da praia para o interior, pode-se
discernir um rio correndo paralelo ao litoral.
28. A cena
está cercada por borda pintada sobre a própria tela com arabescos de ramos
curvilíneos que se entrelaçam e formam volutas, entremeadas de folhas. Nesse
caso, tampouco parece ter-se preocupado o artista em reproduzir uma espécie
vegetal específica. Ao emoldurar a cena com motivos vegetais, Belmiro de
Almeida apropriou-se de solução difundida na década de 1890, influência
possivelmente de origem pré-rafaelita, cujo emprego exprimiria a valorização da
função decorativa da pintura e a apropriação de formas compositivas próprias da
tapeçaria.
29. Em
cada lateral da borda pintada, na altura da metade da tela, brilha uma estrela
dourada de cinco pontas. Na parte inferior, em cartela igualmente pintada,
aparecem inscritos em maiúsculas o título do quadro e os seguintes versos em
latim: “Multus que per anos errabant
acti fatis maria omnia circum,”[28]
com a indicação de que foram extraídos do poema épico Eneida, de
Virgílio (70-19 a.C.), que narra as desventuras de Enéas e demais sobreviventes
troianos da Guerra de Tróia até aportarem no litoral do Lácio, onde se
estabeleceriam e seus descendentes fundariam o povoado que se tornaria Roma.
30. A
composição tem poucos elementos, distribuídos de forma equilibrada: os dois
personagens separados pela grande árvore no plano principal e a paisagem
litorânea no plano de fundo com a praia virgem e a costa em suave diagonal à
esquerda acima da metade da tela. No terço superior da tela, acima do
horizonte, de cada lado da árvore estão representados, à esquerda, o céu e
galhos com poucas folhas e, à direita, montanhas.
31. O dia
parece nublado, não há representação do sol nem de seus raios; o calor, a
umidade e a luz tropical sobre o branco da areia da praia esmaecem a coloração
do mar e do azul do céu. Uma atmosfera quente e úmida parece envolver os dois
personagens num clima de abandono e desolação, reforçado pela paisagem deserta
e pouco acolhedora. A amplitude da vista a cavaleiro e o agreste da paisagem
conseguem transmitir tanto a grandiosidade como a dimensão inóspita da natureza
tropical. O desenho é bem definido e as linhas de contorno das figuras humanas,
da árvore e do litoral ao fundo são deixadas suavemente aparentes.
32. Quanto
ao colorido, a tela apresenta paleta restrita, com pouca variação de cor, sem
fortes contrastes. Há predominância de tons terrosos. Prevalece no quadro o
marrom: tanto nas vestimentas como na carnação dos personagens, no tronco da
árvore, na vegetação, no litoral visível além da praia. O mar mal se distingue
do céu, ambos de um azul pálido. O personagem de pé, que parece o mais jovem,
veste apenas um calção de cor marrom claro. O que aparece sentado enverga
camisa branca, calção e colete marrom escuro.
33. Para
enfatizar o contraste da obra com outras representações dos primeiros contatos
dos europeus com o território e seus habitantes, parece-nos relevante identificar
algumas notáveis ausências na tela de Belmiro. Não há heróis com gestos
grandiloquentes: nem sinal de Pedro Álvares Cabral (1467-1520) ou de qualquer
outro comandante, de Pero Vaz de Caminha (1450-1500) ou de frei Henrique de
Coimbra (1465-1532); somente o desalento dos dois protagonistas. Não há naus ou
caravelas - símbolos da tenacidade e da intrepidez dos portugueses da época das
grandes navegações - ou qualquer outra embarcação; no mar, o mar somente. Não
há indígenas, seja como inimigos ameaçadores, seja como gentio acolhedor, nem
como figurantes curiosos, nem como escravos; somente a natureza imensa e
hostil. A data do acontecimento representado dispensaria a representação de
negros.
Sobre
a identidade dos “descobridores” e a citação de Virgílio na tela
34. Para
fundamentar uma leitura semântica de Os descobridores, importa
identificar os personagens representados. Quem seriam aquelas duas figuras?
Numa primeira aproximação, já sobressai o contraponto entre o título e a cena:
dois homens maltrapilhos e desolados qualificados como descobridores,
anti-heróis da saga colonizadora. Numa segunda aproximação, a temática do
“descobrimento” remete às escassas fontes primárias sobre a chegada dos
portugueses ao litoral do que se tornou Brasil. Assim, será oportuno
reproduzir, a seguir, alguns trechos dessas fontes em que há referência aos
degredados.
35. Na carta
que endereçou ao rei de Portugal, após descrever a visita à nau capitânia
realizada por dois tupinambás, que nela pernoitaram, Pero Vaz de Caminha
assinalou que o capitão dera instruções para que Nicolau Coelho (c. 1460-1504)
e Bartolomeu Dias (c. 1450-1500), experientes navegadores, desembarcassem com
os dois nativos em terra: “E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo
degredado, criado de dom João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar
com eles e saber de seu viver e maneiras.” Ao sublinhar o que considerava uma
predisposição dos indígenas para a aceitação da fé cristã, pois não
demonstravam praticar crença religiosa, Caminha comentou ao rei que “[...] se
alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então
terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles
ficam.” Antes de anunciar a partida da Ilha de Vera Cruz na manhã seguinte,
Caminha informou que “com estes dois degredados ficam mais dois grumetes que
esta noite se saíram desta nau, no esquife, fugidos para a terra. Não vieram
mais. E cremos que ficarão aqui [...].”[29].
36. Há
também referência aos dois degredados na chamada Relação do piloto (ou do
português) anônimo, documento escrito por integrante da esquadra de Cabral,
originalmente publicado em italiano em 1507:
37.
Nos dias que aqui estivemos, determinou
Pedro Álvares fazer saber ao nosso sereníssimo rei o descobrimento desta terra,
e deixar nela dois homens condenados à morte, que trazíamos na armada para este
efeito. [...] saiu o capitão em terra, mandou fazer uma cruz de madeira muito
grande e a plantou na praia, deixando, como já disse, os dois degredados neste
mesmo lugar; os quais começaram a chorar e foram animados pelos naturais do
país, que mostravam ter piedade deles.[30]
38. Durante
a fase de expansão comercial e marítima, nos séculos XIV, XV e XVI, o degredo
foi utilizado pelos portugueses como instrumento da conquista e colonização de
territórios habitados por povos considerados selvagens ou de um nível de
civilização inferior ao dos europeus. Criminosos condenados eram deixados em
litorais inexplorados com o objetivo de que se misturassem com a população
local para conhecer seus costumes - “saber do seu viver e maneiras” - e, em
especial, para aprender a língua com vistas a futuras intermediações para os
portugueses.[31]
39. A Carta
e a Relação do piloto anônimo não constituem provas documentais de que
Belmiro de Almeida tenha retratado os degredados. Seria, no entanto, difícil
supor que Belmiro desconhecesse a Carta de Caminha, fonte já utilizada
por outros pintores como Victor Meirelles e seu discípulo Pedro Peres
(1850-1923).
40. Forte
indício a favor da hipótese dos degredados é a constatação de que Belmiro, após
expor Os descobridores e tentar vendê-la em Belo Horizonte, expôs
na mesma cidade, em novembro de 1899, um esboço de retrato de Afonso Ribeiro,
hoje perdido. Conforme noticiava o Minas Geraes, o presidente do estado
visitou a exposição organizada na assembleia local e congratulou o artista pela
obra. Belmiro tomou como tema a passagem da Carta na qual Caminha nomeia
o personagem. À semelhança de Os descobridores, o retrato era
circundado por uma borda decorativa, que, em vez de arabescos fitomorfos,
ostentava a coroa real, esferas armilares nos cantos e, nas laterais, escudos
com os nomes dos comandantes da frota de Cabral. O esboço representava o
degredado “no meio de vegetação opulenta e cercado de gentílicos que se sentem
maravilhados com os objetos que lhes apresenta.”[32]
A presença de indígenas no retrato de Afonso Ribeiro contrasta com sua
invisibilidade em Os descobridores.
41. De
acordo com a passagem da Carta de Caminha, Afonso Riberio seria um “mancebo,”,ou seja, um jovem, não um homem maduro. Os
estudos de Belmiro para os personagens de Os descobridores,
reproduzidos junto ao artigo de Domício da Gama na Revista Moderna, não
deixam dúvidas: o personagem sentado de pernas estiradas e recostado à arvore
foi concebido como um homem maduro, com mais de quarenta anos. É possível que
sucessivas intervenções restauradoras na tela possam ter comprometido detalhes
pictóricos que alteraram a fisionomia original dos personagens. Apesar disso,
pode-se afirmar que o personagem histórico Afonso Ribeiro somente poderia ser
identificado ao personagem que está de pé em Os descobridores.
42. Não se
localizou referência contemporânea da obra que associasse os “descobridores”
aos degredados. Reis Filho, em 1984, os reconheceu como tal.[33]
Essa leitura da identidade dos dois personagens afasta a hipótese de que fossem
aventureiros, como sugeriu o crítico contemporâneo Fialho d’Almeida, ou náufragos, como se referiu a
historiadora Ana Simioni.[34]
43. Ao
identificar os degredados de Cabral como “descobridores,” que mensagem o pintor
desejava transmitir? Uma primeira hipótese remete a uma postura pessimista
quanto à natureza e ao futuro do Brasil e dos brasileiros, que poderia ser
condensada na seguinte fórmula: “um país descoberto/colonizado por criminosos
não poderia dar certo.” A ironia da pintura - expressa na aparente contradição
entre o título do quadro e a cena representada - favorece essa interpretação
cética e fatalista.
44. Outra
hipótese seria a de que os degredados, como homens do povo, teriam sido os
colonizadores da América portuguesa. Seguindo esta linha interpretativa, para o
pintor quem, de fato, colonizou o Brasil foi o povo - e não a série de
comandantes, capitães-generais, governadores e vice-reis cujos nomes ficaram inscritos
na história da administração colonial, os quais Belmiro - ao contrário de
Aurélio de Figueiredo, Oscar Pereira da Silva e Eliseu Visconti, entre outros -
recusou-se a retratar. A inversão iconográfica operada pela figuração de dois
seres desalentados a cumprir a pena do degredo, elevados, pela mediação do
título da obra, à condição de heróis colonizadores, exprimiria também uma
inversão historiográfica ao negar protagonismo aos heróis tradicionais da
história factual.
45. Sendo
os degredados homens comuns, condenados, em geral, por crimes que hoje seriam
considerados menores, haveria, assim, em Os descobridores, ainda que
talvez de forma não consciente, a valorização da multidão de anônimos que
cruzou o mar oceano em busca de riquezas, glórias, aventuras ou simplesmente em
busca de uma vida melhor. Os degredados como descobridores são figuras
do povo e, nessa qualidade, são agentes da História. Essa interpretação
“invertida” da História do Brasil suscita outro tipo de problematização, mais
além da identificação dos personagens, que pode ser sintetizada na pergunta:
como poderia dar certo um país colonizado por degredados, ou seja, por
criminosos? A própria tela apresenta elementos que ajudam a explorar essa
vertente interpretativa.
46. Uma
das particularidades de Os descobridores, conforme mencionado,
consiste na moldura fitomorfa pintada em torno da cena, que na parte inferior
ostenta uma cartela com o título da pintura e a citação de Virgílio: “Multusque per annos errabant acti fatis
maria omnia circum” (I,
32-33). Os versos imediatamente anteriores e posteriores aos reproduzidos na
tela permitem uma compreensão mais abrangente do significado da citação:
47.
Satúrnia, [...]
lembrada da antiga guerra que dirigira, como primeira das deusas, junto de
Tróia, a favor de seus caros argivos, e também por que as causas da ira e os
cruéis ressentimentos ainda não tinham abandonado sua memória, mas permaneciam
gravados no fundo do coração o juízo de Páris e a
afronta da sua beleza desprezada [...]; inflamada por esses ultrajes, afastava
para longe do Lácio os troianos, joguetes do mar imenso, resto do furor dos dânaos e do implacável Aquiles, e, impelidos pelos fados,
andavam errantes, há longos anos, ao redor de todos os mares. Tanto era pesada
a tarefa de fundar a nação romana.[35]
48. Os
valorosos sobreviventes da Guerra de Tróia, após aventuras e desventuras,
aportaram em terra, no Lácio, onde seus descendentes construiriam Roma, a
“cidade eterna,” o império que praticamente dominou a totalidade do mundo
conhecido de então, ao qual impôs, pela guerra, sua lei e sua paz. E Saturnia (Juno) os perseguira, pois queria obstruir a
fundação de Roma e sua consequente expansão. O destino, porém, quis que os
herdeiros dos troianos dessem origem a Roma. Nas origens da cidade e na sua
fundação encontra-se a pré-condição da ideia de construção de um império.
Considerar os degredados, criminosos condenados, como descobridores e
atribuir-lhes o papel de colonizadores e portadores da civilização pode parecer
um contrassenso; no mesmo sentido, a analogia do Brasil com Roma e com o
Império Romano pode parecer destituída de sentido, se não absurda. Se tornaria
o Brasil um império e conquistaria o resto do mundo? O que o degredado Afonso
Ribeiro poderia ter em comum com o herói troiano Enéas? Da ironia ao deboche, a
passagem pode ser tênue.
49. Além
de converter degredados em descobridores, a chave irônica da problematização de
Belmiro levaria, assim, a associar uma representação visual do mito de origem
do Brasil - o “descobrimento” - ao mito de origem de Roma, aludido pela citação
em latim. Supondo que não haveria em Belmiro uma nostalgia do Império
bragantino, a analogia com o mito de Roma pode ser interpretada como uma visão
otimista com relação ao futuro da República, proclamada dez anos antes da
pintura, um futuro de realizações e glórias, como teria sido a trajetória
histórica de Roma. Ao elaborar sua versão crítica da história em tom de ironia
e com citação latina, articulando pares aparentemente contraditórios -
degredados-civilizadores e Brasil-Roma -, o pintor construiu, sob uma
perspectiva otimista, um pequeno enigma sobre o sentido da colonização, da
Independência e do futuro do Brasil.
50. Luciano
Migliaccio percebe a ambiguidade do discurso de Belmiro, “uma meditação sobre o
valor da ação humana na qual se obtém a força para imaginar o futuro,”[36]
que permite, a despeito da ironia, identificar uma dimensão otimista na pintura
por meio da alusão à fundação de Roma. A possibilidade de um futuro de grandeza
sugerida pelos versos de Virgílio permitiria falar-se em otimismo quanto ao
futuro do Brasil.
Linhagens
dissidentes: Os descobridores e outras pinturas contemporâneas
51. Em Os
descobridores não há exaltação da ação heroica: os dois protagonistas não
têm a postura nem a indumentária muito menos o ânimo de heróis. Aparecem antes
como derrotados, perdidos, abandonados. Mas o título da obra os eleva à
condição de “descobridores” - o que não
os confunde com os “conquistadores”, mas os aproxima dos “colonizadores”.
52. Para
representar o mito de origem da nação, ao invés de retratar comandantes
militares junto a chefes religiosos assépticos em trajes alinhados e pose
garbosa, Belmiro preferiu retratar degredados, ou seja, gente do povo,
apenados, em geral, de origem popular. Ao invés de encenar gestos heroicos, que
expressassem impetuosidade ou coragem, os protagonistas exprimem perplexidade,
exaustão e desconsolo. Se há monumentalidade, é aquela derivada da
grandiosidade da natureza tropical, não idílica, mas inóspita. No lugar da
glorificação, há uma inversão do papel do herói.
53. Segundo
Maraliz Christo, a recusa a
celebrar o heroísmo seria uma característica compartilhada por Os
descobridores com Os bandeirantes (1889) [Figura 11], de Henrique
Bernardelli (1858-1936), e Tiradentes esquartejado (1893) [Figura 12], de Pedro Américo, trabalhos que subvertem a
imagem do herói, representado nas três telas como vencido, numa posição
fragilizada ou visualmente fragmentada.[37] Na França, a partir, aproximadamente da
década de 1860, a pintura de história sofre um lento, porém irreversível
processo de esgotamento e declínio. Uma das manifestações desse desprestígio
reside justamente no esvaziamento do ato heroico e consequente enfraquecimento
do herói a partir da problematização do seu papel.[38]
Exibindo o corpo esquartejado de Tiradentes, a tela de Pedro Américo
participava dessa tendência internacional e, ao mesmo tempo, problematizava a
temática. A tela de Bernardelli oferece uma visão crítica sobre o papel dos
bandeirantes na formação da nação: dois bandeirantes aparecem, estirados no
chão, bebendo água de um regado sem usar as mãos, como bestas, enquanto um
indígena, de mãos amarradas, assiste à cena com postura altiva, embora
aprisionado. Bernardelli operava, assim, uma inversão iconográfica, na qual o
vencido aparece representado como superior ao vencedor, que está aos seus pés.[39]
54. O
trabalho de Belmiro se insere nesta nova tradição que recusa o culto aos
heróis, que lança um olhar crítico sobre acontecimentos e personagens
formadores da nação, olhar que se posiciona distante da exaltação e próximo de
um revisionismo historiográfico. Como características compartilhadas entre Os
descobridores, Os bandeirantes e Tiradentes esquartejado Maraliz Christo identifica, de um
lado, a representação fragilizada do herói e, de outro, a renúncia a qualquer
intenção celebrativa. Em comum, os três quadros apresentam versões não
edificantes e não celebrativas de episódios simbólicos na formação da
nacionalidade: (1) o “descobrimento” ou a chegada dos europeus; (2) a
colonização e a escravização dos indígenas; e (3) o sacrifício em nome da luta
pela liberdade contra o jugo colonial. O conspirador derrotado e o colono
embrutecido, moralmente inferior ao indígena altivo, embora prisioneiro, seriam
os heróis sem glamour de uma história cruenta que teve início com o
drama dos degredados exauridos e sem alento retratados por Belmiro. Nas três pinturas,
os heróis brancos não ostentam grandeza, altivez, elegância ou eloquência,
atributos dos heróis consagrados no diapasão romântico-nacionalista. Em
conjunto, as três pinturas formam uma linhagem dissidente da corrente
predominante de exaltação nacionalista e laudatória da colonização.
55. Luciano
Migliaccio apontou para uma inversão adicional operada por Belmiro de Almeida
que consiste na ressignificação da paisagem tropical. O artista teria
descontruído o mito da paisagem tropical paradisíaca, dócil ou idílica, sobre o
qual se apoiava a ideia de erigir o gênero da paisagem histórica como “o gênero
nacional.” No lugar onde a tradição do academicismo oitocentista figurou a
exuberância da natureza tropical, sugerindo grandiosidade e fertilidade,
Belmiro acentuou o aspecto selvagem, inculto, inóspito, invertendo os
lugares-comuns associados aos trópicos, que de acolhedores converteram-se em
aterradores. Assim, além da inversão iconográfica do herói, Os descobridores
ostentariam uma inversão iconográfica do naturalismo histórico.[40]
56. Sob
uma outra perspectiva, Maraliz Christo
identifica o questionamento sobre as vicissitudes do destino humano como um
ponto em comum entre Os descobridores, Tiradentes esquartejado
e Caipira picando fumo (1893) [Figura 13], de Almeida Júnior:
57.
Quadros diferentes, personagens diferentes,
mas igual indagação sobre o destino humano. É um contato imprevisível entre
artistas símbolos de tempos diferentes: Pedro Américo, costumeiramente ligado
ao acadêmico, no que o termo possui de mais pejorativo, e Almeida Jr.,
incensado pela crítica modernista. [...] Indagação também presente no quadro de
Belmiro de Almeida, Os descobridores, de 1899.[41]
58. As
três pinturas compartem a expressão de uma consciência da condição humana como
“joguete do destino,” tal como expresso no verso de Virgílio: “Joguetes do
destino, erraram, durante muitos anos, por todos os mares.”[42]
Personagens diferentes, mas, de alguma forma, unidos na percepção da
vulnerabilidade: os degredados entregues a seu destino em terras desconhecidas;
o Tiradentes derrotado, esquartejado e santificado; o caipira na imobilidade
interiorana pré-industrial. As três obras apresentam os personagens,
localizados no tempo e no espaço, como alegorias da identidade brasileira, como
referências identitárias da nacionalidade submetidas ao longo do século XX e
ainda hoje a processos distintos de apropriação social e historiográfica.
Considerá-las como pinturas precursoras da modernidade, porém, seria
atribuir-lhes um conteúdo que lhes é exterior, uma essência prefigurada de um
momento futuro, numa operação de finalismo histórico própria de uma concepção
teleológica da história da arte, que supõe um sentido evolutivo, uma ideia de
progresso.[43]
59. Com relação
à temática do “descobrimento,” o trabalho de Belmiro destoa da linhagem
inaugurada pel’A Primeira Missa no Brasil (1860), de Victor
Meirelles, que, mesmo sem omitir contradições, cultua a colonização a partir de
uma ideia de fusão de povos distintos sob a égide do cristianismo.[44]
Pinturas de história de grandes dimensões como O levantamento da cruz (1879), de Pedro Peres, Fundação
do Rio de Janeiro (1881) de Antônio
Firmino Monteiro (1855-1888), Fundação
de São Vicente (1900), de Benedito
Calixto (1853-1927), Fundação de São Paulo (1907), de Oscar Pereira
da Silva, A conquista do Amazonas (1907), de Antônio Parreiras e Fundação de Belém do Pará (1908), de Teodoro
Braga (1872-1953) tomam como objeto momentos fundacionais do processo
colonizador, que, apesar dos conflitos em alguns casos latentes, simbolizam a
integração de colonos e indígenas, sob a chefia de militares e religiosos
portugueses.[45] É de se notar que essa opção por temas
dos primórdios da colonização facilitou aos artistas evadirem-se da discussão
sobre a escravidão negra, como também fez Belmiro de Almeida.
60. Conforme
indicado, na reserva técnica do MNBA, há um esboço de pintura decorativa de
Rodolpho Amoedo, sem data, que retrata os degredados [Figura 14].
Não se conhece obra definitiva sobre o tema.[46]
O esboço de pequenas dimensões apresenta os degredados sobre promontório junto
ao mar em torno da cruz erguida por ordem de Cabral. Amoedo optou por
representar o símbolo utilizado para a celebração da cerimônia religiosa que
formalizaria, segundo a perspectiva portuguesa, a posse do território. Há
elementos compositivos que, mesmo diferentes, aproximam o esboço de Amoedo de Os
descobridores: os personagens estão separados pela cruz descentralizada (e
não pela árvore centralizada); um deles está sentado, recostado à base da cruz,
cabisbaixo, de pernas recolhidas (e não estendidas), o outro protagonista
contempla o mar. À diferença da tela de Belmiro, Amoedo representou duas
caravelas. Terá servido o esboço de referência para Belmiro? Ou será que
Rodolpho Amoedo pretendeu redirecionar a reflexão de Belmiro sobre os
degredados? Pode-se conjecturar que Amoedo participou do concurso da Associação
do 4º Centenário?
61. Antônio
Parreiras também representou os degredados na referida tela que realizou para o
Supremo Tribunal Federal, em 1902, intitulada A partida [Figura 10].
A obra faz parte de encomenda que incluiu outras duas pinturas: A chegada e Suplício de Tiradentes. Em A
partida, embora apareçam miniaturizados, sem feições identificáveis, os
dois personagens estão próximos à cruz, que lhes serviria como um frágil
consolo espiritual diante da condição de abandono em que foram deixados, e se
voltam para os navios da frota cabralina, praticamente invisíveis na linha do
horizonte. Por um lado, é possível perceber a impregnação da obra de Belmiro na
versão de Parreiras, seja pela ambientação melancólica, seja pelo predomínio de
tons terrosos; por outro, os personagens junto à cruz aproximam a composição de
Parreiras do esboço de Amoedo.
Belmiro
de Almeida e o Itamaraty: relações com Rio Branco e Domício da Gama
62. Cumpre
averiguar como e quando a pintura histórica de Belmiro de Almeida foi adquirida
pelo Ministério das Relações Exteriores. A correspondência passiva de Rio
Branco com interlocutores brasileiros e estrangeiros encontra-se catalogada e
arquivada em dezenas de pastas no Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI) no Rio
de Janeiro. Alguns pintores brasileiros figuram entre os correspondentes de Rio
Branco: Victor Meirelles, Pedro Américo, Aurélio de Figueiredo e Belmiro de
Almeida. Desse último, há somente uma carta e nela não há referência à tela Os
descobridores.
63. A
carta é datada de 17 de abril de 1903 e, além de antecipar votos pelo
natalício, que Rio Branco cumpriria no dia 20, comunica a próxima partida do
artista para a Europa, acompanhado de sua esposa Palmyra:
64.
Caminhando o nosso correio com a
velocidade do [desenho de um cágado] e querendo eu que esta
lhe chegue às mãos, segunda-feira próxima, dia do seu aniversário natalício,
escrevo-a agora. | Palmyra e eu fazemos votos para
que V. E. continue feliz por muitos anos, para bem de sua família e da Pátria
brasileira de quem V. E. é glorioso filho. |
Aproveito também o ensejo de participar que partimos na quarta-feira, 22 do
corrente, pelo Cordillère para a Europa, onde
V. E. terá como sempre, um criado e amigo a seu dispor. | Palmyra
envia saudades a Mademoiselle Hortênsia. | Seu, muito seu, | Belmiro de Almeida.[47]
65. Uma
curiosidade da carta consiste na pequena graça feita pelo artista ao incluir o
desenho de uma tartaruga no texto, para simbolizar a lerdeza do serviço dos
correios. Apesar do tom respeitoso e do uso reiterado do pronome de tratamento
“vossa excelência,” a brincadeira de Belmiro seria indicativa de que gozava de
alguma abertura com o Barão. Na mesma linha, a saudação da esposa Palmyra à filha de Rio Branco, Hortênsia, permite supor que
Belmiro mantinha algum grau de intimidade com o ministro.
66. Essa
impressão de proximidade é reforçada pelo fecho: “seu, muito seu,” que pode
traduzir uma relação senão íntima, pelo menos próxima entre os dois correspondentes.
Além disso - e mais importante para a formulação de uma hipótese sobre a
incorporação de Os descobridores ao acervo do MRE - o fecho
parece indicar uma postura de reverente gratidão do artista em relação a Rio
Branco, que teria decidido adquirir a tela. A pintura leva a data de 1899;
teria ficado de posse do artista desde sua finalização até 1903, quando Belmiro
retornou à Europa, não sem antes dar conhecimento de sua partida, em abril, ao
chanceler. Rio Branco foi nomeado ministro no final de 1902; teria tido cerca
de quatro meses apenas para fazer a aquisição da tela, segundo essa hipótese.
67. Não
foi possível localizar na correspondência particular de Rio Branco depositada
no AHI documentos que permitam adensar o que se sabe sobre sua relação com
Belmiro de Almeida. Os documentos relacionados com a gestão Rio Branco
(1902-1912) constituem rico e variado manancial de informações sobre o patrono
da diplomacia brasileira; não é impossível, portanto, que novos documentos
venham à luz para esclarecer de que maneira Os descobridores foi
incorporado ao patrimônio do MRE.
68. É
possível supor que Belmiro de Almeida, Domício da Gama e Rio Branco tenham tido
contato em Paris a partir da frequência comum a um círculo intelectual
luso-brasileiro. Há registro de que os três compareceram ao funeral do crítico
e literato português, Guilherme Moniz Barreto (1863-1896) e que Belmiro e
Domício ofereceram juntos uma coroa de flores em homenagem ao falecido.[48]
Havia, portanto, uma interseção entre os meios em que circulavam os três
brasileiros - um, pintor; o outro, jornalista, escritor e diplomata; e o
terceiro, historiador, cônsul e diplomata. Rio Branco e Belmiro compartilhavam
um histórico de boemia e inserção no meio jornalístico do Rio de Janeiro
durante as respectivas juventudes, não contemporâneas aliás: quando Rio Branco
partiu para a Europa para assumir o cargo de cônsul geral do Brasil em
Liverpool, em 1875, Belmiro tinha apenas 17 anos.
69. Um
manuscrito de Rio Branco sobre folha de papel azulado, maior que ofício,
utilizada para rascunhos na Secretaria de Estado, solta entre uns poucos
documentos da subpasta “desenhos e plantas” do arquivo particular do Barão,
comprova que Os descobridores fazia parte do acervo artístico do
Itamaraty naqueles tempos. A folha ostenta o título de quatro pinturas de
história e de seus respectivos autores e datas de realização, cada um deles
cercado pelo que parece ser um modelo de plaqueta de identificação. O documento
não é datado, mas a autenticidade da caligrafia de Rio Branco é indiscutível.
70. A
relação de quatro pinturas numa mesma folha de papel nos parece indicação de
que Rio Branco concebeu uma narrativa visual sobre a história do Brasil com as
obras que tinha disponíveis na Secretaria de Estado: além do trabalho de
Belmiro, Proclamação da Independência (1888) [Figura 15]
e Pax et Concordia (1902) [Figura 16]
- pintura alegórica que havia sido adquirido há pouco e na qual o próprio Rio
Branco aparece figurado -, ambas de Pedro Américo; e Visita do presidente
Roca ao presidente Campos Salles (1899) [Figura 17],
de Beniamino Parlagreco
(1856-1902). Os eventos representados nas quatro pinturas sugerem uma evolução
que vai do “descobrimento,” com a presença dos degredados colonizadores, passa
pela Independência, proclamada pelo herdeiro dinástico português, e chega aos
tempos contemporâneos com o ingresso do Brasil, como República, na
“civilização” e a celebração da amizade entre o Brasil e a Argentina. Nessa
série de pinturas temos o nascimento do estado soberano, o ingresso da
República no sistema internacional dos países “civilizados” e a exibição de
relações amistosas com o histórico rival do Prata.
71. Segundo
o pensamento de Rio Branco, qual seria nessa narrativa o lugar de Os descobridores
- pintura de história em tom irônico sobre as origens do Brasil? Como o
ministro interpretava o significado da composição? Ao contrário do que ocorre
com Pax et Concordia e Visita do presidente Roca ao presidente Campos
Salles, não foram localizados, até o momento, registros escritos ou de
imagem da época que indiquem onde a obra ficava exposta no Palácio Itamaraty.[49]
Além da crítica velada ao processo de colonização, o tom irônico e enigmático
do trabalho de Belmiro de Almeida poderia comprometer uma leitura oficial da
evolução histórica do estado brasileiro, que procuraria valorizar a antiguidade
e a estabilidade institucional. Entende-se, de qualquer modo, que Rio Branco
imaginou uma narrativa da história do Brasil com as obras de arte que
integravam o acervo da Secretaria de Estado. Até que ponto essa ideia teve
condições de se materializar nos espaços do Palácio é difícil precisar. Essa
narrativa visual se constituiria como discurso “curatorial” da exposição de
pinturas de história na chancelaria brasileira e, como tal, participava do
discurso diplomático.[50]
72. Além
de Os descobridores, outras obras de Belmiro estão guardadas no
Itamaraty. Os plenipotenciários, óleo de 1920, representa os delegados
brasileiros à Conferência de Paz de Versalhes enfileirados para assinar o
tratado que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. Os demais trabalhos são
retratos, mas nenhum é pintura: um retrato satírico de Domício da Gama, que se
tornou diplomata e principal assessor de Rio Branco, reproduzido em jornal,
além de três retratos originais a crayon de Joaquim Caetano da Silva
(1810-1873), Euclides da Cunha (1866-1909) e José Cândido Guillobel
(1843-1925). Estas obras podem trazer alguma informação sobre a relação do
artista com Rio Branco, mas pouco esclarecem sobre a aquisição ou sobre a
colocação de Os descobridores no Palácio Itamaraty.
73. O
retrato a crayon do almirante José Cândido Guillobel,
fardado e com condecorações, assinado no canto superior esquerdo e datado de
1925, encontra-se na seção de Iconografia da Mapoteca do Itamaraty. Guillobel integrara, entre 1893 e 1895, a delegação
brasileira junto ao governo dos EUA, cujo presidente fora escolhido como árbitro
do contencioso territorial entre o Brasil e a Argentina sobre a região de
Palmas, no oeste de Santa Catarina. Após a morte do primeiro plenipotenciário,
o barão do Rio Branco foi designado pelo presidente Floriano Peixoto para
chefiar a delegação e obteve, então, sua primeira grande vitória diplomática. A
data do retrato coincidente com o ano de morte do almirante, o que parece
indicar que o retrato seria uma homenagem póstuma realizada a partir de
fotografia.
74. Dois
retratos a crayon, que ficaram durante longos anos na sala de consulta da
Biblioteca do Itamaraty e hoje estão na reserva técnica do MHD, têm como objeto
figuras caras a Rio Branco: Joaquim Caetano da Silva e Euclides da Cunha. O
retrato de Euclides da Cunha leva a data de 1910. Parece também ter sido uma
encomenda de Rio Branco para Belmiro. Seria uma homenagem do ministro ao
colaborador tragicamente falecido no ano anterior. A semelhança das molduras,
provavelmente contemporâneas, da fatura, e da técnica constituem indícios de
que ambos os retratos foram realizados na mesma época. No retrato de Caetano da
Silva, há dedicatória a Rio Branco e deve ter sido realizado a pedido, como uma
homenagem a seu ídolo nos assuntos relativos à fronteira norte. Tanta era a
admiração de Rio Branco por Caetano da Silva que seu livro L’Oyapok
et l’Amazone, publicado em dois volumes em
1861, foi integralmente incorporado à memória apresentada ao presidente do
Conselho Federal suíço, árbitro do contencioso de fronteira entre o Brasil e a
França, em 1899. Para realizar o retrato, Belmiro deve ter tido acesso a uma carte
de visite do próprio, que possivelmente pertencera ao visconde de Rio
Branco e fora herdada pelo filho. Nos três trabalhos o artista exibe refinada
técnica como desenhista.
75. Guardado
no AHI, entre os recortes de jornais, que somam mais de 120 volumes
encadernados, inclusive centenas de caricaturas, há um retrato satírico de
Domício da Gama assinado por Belmiro, publicado na edição de 23 de abril de
1903 de Tagarela, na seção Poetas e Águias [Figura 18].
O retrato - onde uma cobrinha parece sair do bigode de Domício - vem
acompanhado dos seguintes versos, assinados por Biógrafo, com referência
explícita à relação entre de Domício e Rio Branco: “Ao seu laurel brilhante e
precioso | De esplêndido escritor, - Domício alia | O mérito de ser o
companheiro | De Rio Branco - heroico brasileiro, | Que não o deixa e muito o
aprecia.”[51]
76. Domício
trabalhara como correspondente e crítico em Paris na década de 1890; por esse
tempo, tornou-se próximo de Rio Branco e possivelmente de Belmiro. Foi
convidado pelo diplomata para integrar, como secretário, as delegações do
Brasil junto aos governos dos EUA e da Suíça nos arbitramentos relativos aos
diferendos territoriais com a Argentina e com a França, cujos desfechos foram
retumbantes vitórias brasileiras, que fizeram as primeiras glórias diplomáticas
de Rio Branco, ainda antes de assumir o ministério. Não parece coincidência a
proximidade entre as datas da caricatura de Domício publicada no Tagarela
e da carta de Belmiro para Rio Branco, conservada no AHI, ambas de abril de
1903.
77. Em 30 de
março de 1899, o pintor retornava da Europa com Os descobridores na
bagagem. Talvez com a ideia de repetir o feito de 1897, quando logrou vender
para o governo mineiro a tela Má notícia e doou Aurora do 15 de
novembro, Belmiro viajou para Belo Horizonte, onde chegou em 15 de
setembro, para expor a pintura. A exposição da tela contou com a presença de
autoridades locais, inclusive do presidente do estado, Silviano Brandão
(1848-1902).[52] Estudantes da capital mineira deram início
a uma campanha de levantamentos de fundos com vistas a comprar Os descobridores
e oferecer ao governo estadual a fim de que a peça figurasse na exposição
comemorativa do 4º Centenário.[53] A iniciativa não teve êxito. Em 6 de
novembro, o Minas Geraes registra um requerimento de prestação de
serviço de Belmiro de Almeida não atendido pelo secretário de Finanças por
falta de verbas, “segundo informação do diretor de Imprensa.” Apesar de a
compra de Má notícia ter resultado de um requerimento do artista, não há
elementos para afirmar com segurança que o requerimento não atendido fosse para
a aquisição de Os descobridores. Poucos dias depois, foi
inaugurada a exposição do esboço do retrato de Afonso Ribeiro, elogiado pelo
presidente do estado. Entre novembro de 1899 e janeiro de 1900, o artista foi
recebido em palácio por Silviano Brandão em três oportunidades. Teria ido
oferecer a pintura de história e/ou o retrato histórico?[54]
78. Seja
como for, os indícios apontam no sentido de que Os descobridores
entrou para o acervo do MRE por meio das relações do artista com Rio Branco e
Domício da Gama. Mais próximo de idade do artista, é provável que Domício da
Gama tivesse maior intimidade com Belmiro do que Rio Branco. Considerando a
matéria sobre o pintor publicada na Revista Moderna, em fevereiro de
1899, na qual a obra está reproduzida assim como estudos sobre os
protagonistas, é possível imaginar que tenha sido Domício quem sugeriu ao
ministro a aquisição para o ministério.
79. As
dificuldades financeiras enfrentadas pelos artistas para se manterem como
profissionais tem um exemplo anedótico numa tirada bem-humorada de Belmiro em resposta
à consulta sobre as condições de trabalho em Paris. Em 1926, quando o pintor da
“velha guarda” já atingira 68 anos de idade, o escritor e jornalista Gastão
Penalva (1887-1944) aproximou-se de Belmiro para uma conversa informal. Na
coluna “O mundo da Arte” do Jornal do Brasil, sob o título “O ilustre
pintor patrício Belmiro de Almeida diz-nos um pouco da arte parisiense e da
arte nacional” (equivocadamente, a edição do jornal legendou a fotografia de
Belmiro como sendo de Décio Vilares), Penalva reproduz
diálogo em que o artista fala sobre o zelo com que os pintores consagrados se
dedicavam a manter suas reputações; sobre o ridículo do futurismo – “corrente
idiota, que não pode durar muito, porque não exprime coisa alguma” -; sobre a
antiga modelo que pousou para Nu de mulher - “cheia de carnes
decadentes” -; sobre uma tela satírica que decidiu não apresentar ao Salão dos
Independentes. O artista comentou ainda que estaria voltando para Europa em
alguns dias e que lá vivia muito bem: “sou conhecido, trabalho, passeio na mais
completa independência”. Perguntado se, como artista, teria algum ideal,
Belmiro respondeu: “Como artista? Desejaria muito ser auxiliar do consulado em
Paris.”[55]
Considerações
finais
80. Três
chaves podem abrir caminhos interpretativos não necessariamente excludentes
sobre Os descobridores: (1) numa leitura “popular” da História do Brasil
- que procura privilegiar a perspectiva dos vencidos e socialmente oprimidos, e
rever as versões oficiais que defendem e justificam o ponto de vista dos
vencedores -, os degredados, gente do povo, foram “os descobridores”, pois
foram eles os verdadeiros colonizadores do território e construtores da nação;
(2) numa leitura crítica e pessimista, coube a criminosos - os degredados - a
“descoberta,” entendida como colonização do Brasil, o que, portanto, explicaria
o atraso ou as dificuldades para se conseguir o progresso nacional; (3) numa
leitura crítica, porém otimista, a analogia do “descobrimento” do Brasil com a
fundação de Roma, concretizada após grandes desventuras e dificuldades,
permitiria vislumbrar que “os descobridores,” “perseguidos pelo destino,”
superariam os percalços e lograriam construir uma grande nação.
81. Representar
o episódio do “descobrimento” com o elenco e o cenário escolhidos por Belmiro
de Almeida seria, portanto, a expressão de uma reflexão crítica sobre os
destinos da sociedade que se desenvolveu na terra que, no momento figurado,
acabava de ser descoberta pelo olhar europeu e logo seria explorada como colônia.
Essa linha interpretativa se fortalece quando se atenta para os versos da Eneida
de Virgílio, que, inscritos no quadro, associam à fundação de Roma a epopeia do
“descobrimento,” da colonização e da construção do Brasil.
82. De um
lado, a ironia - que se manifesta através da confrontação entre o título da
obra e seu conteúdo ou objeto, os desolados degredados – é utilizada pelo
artista como recurso para chamar a atenção para o drama das origens da nação e,
quem sabe, para o desamparo e a desilusão do povo após dez anos de República.
De outro, a erudição da citação latina, insinuando um otimismo em relação ao
futuro do Brasil via analogia com Roma, junto com a identificação do povo como
agente da história poderiam ser consideradas pelo artista elementos que
qualificariam a pintura para decorar algum ambiente em edifício de órgão
estatal. Seriam suficientes para neutralizar em Rio Branco o impacto
potencialmente negativo que a contemplação dos degredados como descobridores -
e colonizadores - poderia provocar?
83. Em
síntese, Belmiro de Almeida propôs com Os descobridores uma reflexão
crítica sobre a colonização e, portanto, sobre a história do Brasil, uma
narrativa que conta “outra” história, diferente daquela consagrada pela versão
tradicional, legitimadora do exercício do poder político, criadora e cultora de
heróis. Com Os descobridores, Belmiro de Almeida ofereceu uma leitura
crítica da história nacional em tom irônico e, ao mesmo tempo, com perspectiva
otimista.
84. No ano
em que se celebra o bicentenário da Independência política - efeméride que deve
ser aproveitada para, uma vez mais, pensar e repensar o país, para discutir
seus desafios sociais, políticos, ambientais, entre tantos, e para debater o
significado da identidade nacional – a atualidade de Os descobridores
afirma-se com veemência. Uma reflexão sobre as origens e sobre o futuro do
Brasil, como a que propôs Belmiro de Almeida, é sempre oportuna, como um
projeto permanente de pesquisa - nem que seja apenas para ajudar a identificar
erros e apontar caminhos. Seriam a exaustão, a perplexidade e a melancolia de
João de Thomar e Afonso Ribeiro – os degredados de
Cabral figurados por Belmiro - expressões premonitórias da deriva da sociedade
brasileira contemporânea? Que horizonte de otimismo vislumbrar na paisagem
agreste?
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______________________________
[1] Historiador e
diplomata. Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História e Crítica de Arte
da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGAV/EBA/UFRJ), onde defendeu sob orientação da professora doutora Sônia
Gomes Pereira, em agosto de 2019, a tese de doutoramento Alegorias em
confronto: Os descobridores, de Belmiro de Almeida, e Paz e
Concórdia, de Pedro Américo: A construção da nação pela pintura de
história. O presente texto toma como base um dos capítulos da tese.
[2] REIS JÚNIOR, José Maria
dos. Belmiro de Almeida (1858-1935). Rio de Janeiro: Pinakotheke,
1984, p. 18-19. Esse livro, de 120 páginas, contém 75 ilustrações, das quais 65
reproduzem pinturas, desenhos, trabalhos gráficos e esculturas do artista. O
ano de publicação coincidiu, não por acaso, com exposição de trabalhos de
Belmiro de Almeida na Galeria Acervo, no Rio de Janeiro.
[3] “[...] não se deve
tomar o conceito de acadêmico como sinônimo de neoclássico, como ocorreu
frequentemente na historiografia da arte brasileira. Tanto na Europa como no
Brasil, a produção acadêmica ao longo do século XIX partiu de uma postura
inicial neoclássica, mas posteriormente incorporou ideias e valores de
movimentos posteriores, como o romantismo, o realismo, o impressionismo e o
simbolismo. Na academização desses movimentos, foram
sempre expurgados destas linguagens os elementos mais audaciosos - tanto
formais quanto temáticos [...].” PEREIRA, Sonia Gomes. Arte brasileira no
século XIX. Belo Horizonte: C / Arte, 2008, p. 17-18.
[4] “[...] a versatilidade
estilística dos artistas desse período tem origem num fato [...]: a importância
das tipologias, isto é, as soluções de compromisso entre tema e forma [...].
Assim, do ponto de vista da prática artística [...], as escolhas dos artistas
eram muito mais tipológicas do que estilísticas. Isto explicaria por que os
artistas dessa geração apresentam esse comportamento eclético: o estilo seria
escolhido em função da sua adequação ao tema e à função [...].” (PEREIRA, 2008,
op. cit., p. 70).
[5] A Casa De Wilde, no
centro do Rio de Janeiro, especializada em material para pintura e desenho, era
propriedade do belga Laurent de Wilde (que editara o catálogo da Exposição
Geral de 1884, o primeiro ilustrado). A loja funcionava como um espaço de
comercialização de obras de arte e, ao mesmo tempo, de sociabilidade para
artistas, jornalistas, escritores e intelectuais. Integrava um circuito
paralelo às exposições de Belas Artes juntamente com outros estabelecimentos
comerciais como Glace Elegante, Casa Vieitas, Casa Cambiaso,
Galeria Cruzeiro e Galeria Rezende, nas quais também se organizavam mostras.
Cf. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 23 de maio de 1886, ano II, n.
349; Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 9 de março de 1893, n. 68, p.
2, primeira aparição da seção “Notas sobre arte”.
[6] “A visita da Princesa
teria encorajado Belmiro a oferecer o quadro ao Estado? O que sabemos é que o
parecer dos professores da Academia foi favorável à aquisição [...]. Rodolfo
Bernardelli propôs como justo o valor de dois contos de réis. Submetida à
aprovação esta proposta, assim como o “parecer”, foram ambos aprovados”.
CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. Belmiro de Almeida (1858-1935), Oscar Pereira da
Silva (1867-1939) e o polêmico concurso para Prêmio de Viagem de 1887. In:
RIBEIRO, M. A.; RIBEIRO, M. I. Blanco (orgs.) Anais
do XXVI Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte (São Paulo,
2006). Belo Horizonte: C/ Arte, 2007, p, 261-269.
[7] Jornal do Commercio,
Rio de Janeiro, 7 de outubro de 1887, n. 277, p. 2.
[8] Ata da sessão de 8 de
novembro de 1887, p. 43, verso. Arquivo MDJVI/EBA/UFRJ, apud CAVALCANTI, 2007,
op. cit., p. 263-265.
[9] Revista Ilustrada,
Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1887, ano 12, n. 471, p. 6.
[10] Cf. Um acto de Rodolpho Bernardelli. Revista Ilustrada, Rio
de Janeiro, 7 de abril de 1888, ano 13, edição n. 492, p. 3.
[11] Gazeta de Notícias,
Rio de Janeiro, 29 de julho de 1888, p. 3.
[12] Gazeta de Notícias,
Rio de Janeiro, 4 de maio de 1890, n. 124, p. 1. Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro, 9 de novembro de 1891, ano I, n. 215.
[13] Revista Ilustrada,
novembro de 1891, p. 7, apud REIS JÚNIOR, 1984, op. cit., p. 34-35.
[14] Gazeta de Notícias,
Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1891, p. 2.
[15] Diário de Notícias,
Rio de Janeiro, domingo, 15 de novembro de 1891, ano VII, n. 2 318, p. 1.
[16] GIANETTI, Ricardo
(org.). “Notícias Artísticas”, por Armínio de Melo Franco: comentário sobre a
exposição de pinturas de Belmiro de Almeida realizada na Escola Nacional de
Belas Artes em setembro de 1894. 19&20,
Rio de Janeiro, v. V, n.4, out./dez. 2010. Disponível em http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/amfranco1.htm
[17] Minas Geraes: órgão
oficial dos poderes do estado, Ouro Preto, 6 de dezembro de 1897, n. 325,
p. 2.
[18] Minas Geraes: órgão
oficial dos poderes do estado, Ouro Preto, 30 setembro de 1897, n. 261, p.
2-3.
[19] Minas Geraes: órgão
oficial dos poderes do estado, Ouro Preto, 17 de outubro de 1897, n. 271,
p. 1.
[20] GAMA, Domício. Belmiro
de Almeida. Revista Moderna: magazine literário e artístico,
Paris/Rio de Janeiro, ano III, n. 28, fevereiro de 1899, p.13-16.
[21] Minas Geraes: órgão
oficial dos poderes do estado. Ouro Preto, 6 de dezembro de 1897, n. 325,
p. 1.
[22] GAMA, Domício. Belmiro
de Almeida. Revista Moderna: magazine literário e artístico. Paris/Rio
de Janeiro, ano III, n. 28, fevereiro de 1899, p.13-16.
[23] Pierre Puvis de Chavannes foi na sua
época um dos mais bem sucedidos pintores franceses, a julgar pela quantidade de
encomendas de obras decorativas que executou bem como pelo respeito que lhe era
devotado no meio artístico. É considerado um dos grandes pintores das décadas
de 1870 e 1880 por ter conseguido conciliar a tradição acadêmica clássica com
as inovações praticadas pelos impressionistas e pós-impressionistas. Puvis de Chavannes realizou
pinturas murais para decorar diversos prédios públicos na França, como o
Panteão (1876-1898), a Sorbonne (1887) e o Hotel de Ville
(1891-1892), e nos Estados Unidos, como a Biblioteca Pública de Boston
(1894-1898). As cores pálidas das telas afixadas à parede, segundo a técnica da
marouflage, imitavam os efeitos do afresco.
[24] Entre os críticos e
comentaristas contemporâneos do artista, Armínio de Mello Franco e Fialho
d’Almeida, além de Domício da Gama, mencionam a influência de Puvis de Chavannes sobre Belmiro.
Entre os historiadores em atividade, podemos citar Ana Paula Simioni, que
aponta características formais compartilhadas por Os descobridores e Le
pauvre pêcheur (1876,
Paris, Museu D’Orsay), e Arthur Valle, que identifica a influência de Chavannes na “pintura decorativa” produzida no Brasil por
Almeida Júnior (A partida de monção, 1897), Belmiro (Os descobridores,
1899) e Antônio Parreiras (A chegada, 1900 e A partida, 1902).
Cf. SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. A viagem a Paris de artistas brasileiros no
final do século XIX. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São
Paulo, vol. 17, 2005, n.º 1, p. 343-366. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0103-20702005000100015
Acessado em 28 de fevereiro de 2022; VALLE, Arthur. Pintura decorativa na 1ª
República: Formas e Funções.19&20, Rio de Janeiro, v. II,
n. 4, out. 2007. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_pint_dec.htm Acessado em 28 de
fevereiro de 2022.
[25] Cf. SIMIONI, 2005, op.
cit. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0103-20702005000100015 Acessado em
28 de fevereiro de 2022.
[26] O concurso foi vencido
por Aurélio de Figueiredo com O descobrimento do Brasil (1900. Cf.
ASSOCIAÇÃO para as Comemorações do 4º Centenário (org.). Livro do Centenário,
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900, vol. 1, p. 127-131.
[27] Agradeço ao professor
doutor Arthur Valle, da UFRRJ, membro da banca examinadora da tese mencionada
na nota 1, a referência e a reprodução do esboço de Rodolfo Amoedo com os
degredados como tema, assim como seus comentários e críticas durante a defesa.
[28] Tradução de acordo com
Reis Júnior (op. cit., 1984, p. 52): “e por muitos anos, perseguidos pelo
destino, erravam através de todos os mares”; cf.. Tassilo
Orpheu Spalding oferece a seguinte versão: “e, impelidos pelos fados, andavam
errantes, há longos anos, ao redor de todos os mares” (VIRGÍLIO, Eneida,
São Paulo: Abril Cultural, 1983, tradução, textos introdutórios e notas de Tassilo Orpheu Spalding, p. 19-20).
[29] CORTESÃO, Jaime. A
Carta de Pêro Vaz de Caminha – adaptação à linguagem atual, em A Carta de
Pêro Vaz de Caminha. Lisboa: Portugalia, 1967b,
p. 213-257, citações respectivamente às páginas 229 e 255.
[30] CORTESÃO, Jaime. A
expedição de Pedro Álvares Cabral e o descobrimento do Brasil. Lisboa: Portugalia, 1967, p. 231-232.
[31] Jaime Cortesão afirma:
“Somos de opinião que alguns dos novos dados etnográficos da Mundus Novus [carta
de Américo Vespúcio, publicada pela primeira vez em 1504] foram fornecidos, em
fins de 1501, a Vespúcio pelos dois degredados, e, em, especial, por Afonso
Ribeiro, deixados por Cabral em Porto Seguro.” A carta, de autenticidade
discutida, foi traduzida em várias línguas e contribuiu para popularizar
informações sobre o novo continente descoberto, que acabou por receber sua
designação a partir do nome do florentino. Ronaldo Vainfas
agrega que Afonso Ribeiro e seu companheiro - talvez um certo João de Thomar - podem ter sido resgatados pela expedição de
Gonçalo Coelho, em 1501-1502; considera especulação ter os respectivos relatos
embasado a carta de Vespúcio. Cf. CORTESÃO, op. cit., 1967b, p. 129, e VAINFAS,
Ronaldo. Afonso Ribeiro, verbete em VAINFAS, R. (org.). Dicionário do Brasil
colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 19-20.
[32] Minas Geraes: órgão
oficial dos poderes do estado, Minas, 10 de novembro de 1899, n. 297, p. 2.
[33] “A natural mordacidade
do artista não é atraída pelo aspecto brilhante do evento, mas pela trágica
odisseia dos degredados, abandonados na nova terra por Cabral, gesto com que
pôs à mostra a melancólica pequenez da alma humana” (REIS FILHO, 1984, op.
cit., p. 51).
[34] “Apenas duas figuras,
dois aventureiros portugueses, deixados na terra de Santa Cruz, em princípios
do século XVI, à procura de descobertas”. Cf. Jornal do Commercio, Rio
de Janeiro, 27 de abril de 1899, coluna “Notas sobre arte”, por Fialho
d’Almeida. E ainda “Na tela estão figurados dois homens perdidos em meio a uma
natureza exuberante e selvagem. Trata-se de dois náufragos que desembarcaram em
terras novas, desconhecidas até então pela civilização europeia. [...] O pintor
representou o “marco inaugural” da nação como um momento de abandono,
involuntário, de dois homens fragilizados, desprotegidos diante de uma natureza
assustadora” (SIMIONI, 2005, op. cit., p. 360-361).
[35] VIRGÍLIO, Eneida
(tradução, textos introdutórios e notas de Tassilo
Orpheu Spalding, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 19-20.
[36] MIGLIACCIO, Luciano. A
recepção dos gêneros europeus na pintura brasileira. In: CAVALCANTI,
Ana; DAZZI, Camila; VALLE, Arthur (orgs.). Oitocentos:
arte brasileira do Império à Primeira República. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ/DezenoveVinte, 2008, p. 26-31. Disponível em academia.edu
[37] Cf. CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Pintura, história e heróis no
século XIX: Pedro Américo e Tiradentes esquartejado. Tese de
Doutoramento apresentada no Departamento de História do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas da Unicamp sob a orientação do Prof. Dr. Jorge Sidney Coli
Junior, Campinas, novembro de 2005, p. 15 e subcapítulo “A subversão da imagem
do herói no Brasil, um caso paralelo: os bandeirantes na pintura de Henrique
Bernardelli”, p. 169-186.
[38] Sobre a banalização do
fato histórico e o esgotamento da pintura de história, afirma Jorge Coli: “Não
é preciso insistir sobre o esvaziamento da grande pintura heroica e oficial
durante o correr do século XIX. Manet denunciara seu caráter constituído de
convenções ocas, desmontando a História dos grandes feitos com seu A
execução de Maximiliano (1867), onde o episódio, dramático e recente, vê-se
destituído de qualquer aspecto positivo ou grandioso. [...] o acontecimento
excepcional deixa de sê-lo, para nivelar-se ao corriqueiro” (COLI, Jorge. Como
estudar a arte brasileira do século XIX? São Paulo: Editora Senac, 2005, p.
86).
[39] “Apesar de situar-se no
gênero da pintura histórica, a tela esvazia o personagem de seu heroísmo,
mostrando-o em ação corriqueira, reveladora de sua fragilidade. […] O quadro
revela uma inversão iconográfica: o vencedor é representado aos pés do
vencido”. Ver: CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira.
Bandeirantes ao chão. Em: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 30,
2002, p. 33-55, p. 34 e 46. Disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2174/1313
Acessado em 28 de fevereiro de 2022.
[40] MIGLIACCIO, 2008, op.
cit., p. 30-31.
[41] CHRISTO, 2005, op.
cit., p. 15.
[42] VIRGÍLIO, Eneida:
(Cantos I, II, III e IV), traduzido por Domingos Paschoal Cegalla,
Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, p. 12.
[43] A respeito da
interpretação das obras do século XIX com critérios que lhe são exteriores,
sustenta Coli (2005, p. 18): “O antefixo ‘pré’, por exemplo, encerra armadilhas por vezes
definitivas. Porque raramente designa apenas uma anterioridade: ele faz com que
um conjunto de obras e de acontecimentos deixem de adquirir sentido em si
próprios para definirem-se através do futuro. [...] É legítimo buscar nas obras
e nos momentos artísticos o seu passado: os criadores dos quais eles derivam
lhes servem de raízes. É, ao contrário, enganoso construir para eles um futuro,
adivinhar neles aquilo que não podiam prever.”
[44] Segundo Coli, a tela de
Meirelles teria como projeto “instaurar um momento harmônico e espiritual, onde
se concertavam mundos opostos”: “[...] sob a égide católica, associam-se numa
cena de elevação espiritual, as duas culturas. Criava-se ali o ato de batismo
da nação brasileira. Momento prenhe de significados, que o projeto de
construção de um passado histórico para o Brasil, ocorrido no século XIX, soube
explorar”. Inserido no processo de construção de uma natureza nacional
constitutiva de uma arte nacional, Meirelles erigiu um “[...] templo natural
[...] [que] reúne os participantes numa fusão, torna-se uma espécie de útero
fecundador”. COLI, Jorge. Primeira missa e invenção da descoberta, em NOVAES,
Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Cia. das
Letras, 1998, p. 107-121, 2005, citações às páginas 117, 114 e 110,
respectivamente.
[45] “Ao invés de, como
Meirelles e seguidores, recriar um ambiente gregário, uma natureza exuberante e
acolhedora e retratar a convivência pacífica entre europeus e ameríndios,
Belmiro escolhe expor o desconforto e a solidão dos personagens, a hostilidade
selvagem da natureza tropical e, ainda, opta pela exclusão do índio”. Para uma
visão a respeito da ruptura que Os descobridores representa
frente à linhagem de representações das origens da nação que valoriza o papel
da Igreja e faz o elogio da colonização ver: CONDURU, Guilherme Frazão. As
origens da nação na pintura de história: de Victor Meirelles a Belmiro de
Almeida e além. 19&20, Rio de Janeiro, v. XV, n. 1, jan.-jun. 2020,
§ 109. Disponível em https://doi.org/10.52913/19e20.vXVi1.00007
[46] No catálogo do MNBA,
sob o número 422, consta como obra de Rodolpho Amoedo a seguinte entrada: “Cena
histórica (época do Descobrimento), guache/papel - 0,442 x 0,292, n. inv. 445”.
Existe grande probabilidade de que se trate do esboço com os degradados
figurados. Cf. PEIXOTO, Elza Ramos (org.). Catálogo geral da pintura
brasileira. Rio de Janeiro: MNBA, 1968, p. 37.
[47] Carta de Belmiro de
Almeida para o barão do Rio Branco, do Rio de Janeiro, em 17 de abril de 1903.
Arquivo particular do barão do Rio Branco, subpasta Belmiro de Almeida, AHI,
812/1/7.
[48] Jornal do Commercio,
Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1897, ano 77, n. 22, p. 1.
[49] Há registros
fotográficos de Visita do presidente Roca ao presidente Campos Salles em
sala lateral na frente do Palácio Itamaraty e de Pax et Concordia no
Salão de Honra, ambos na publicação de WRIGHT, Marie Robinson. The new Brazil: its resources and
attractions - historical, descriptive and industrial. - 2 ed. - Filadélfia: George Barrie & sons, 1907, p. 115 e 116.
[50] “A narrativa visual de
Rio Branco oferece [...] uma síntese da história do Brasil. Constitui um
exemplo de apropriação da pintura de história para uso político por meio de sua
integração ao discurso diplomático, pontuando valores que caracterizariam a
História do Brasil e de sua política externa [...].” Sobre o tema, ver:
CONDURU, Guilherme Frazão. Pinturas de história como discurso diplomático: uma
narrativa visual da História do Brasil no Itamaraty. Anais do Museu
Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 53, 2020, p. 191-219.
[51] Tagarela, Rio de
Janeiro, 23 de abril de 1903. Cf. Arquivo do barão do Rio Branco, coleção de
recortes de jornal, AHI 386/2/8.
[52] Jornal do Commercio,
Rio de Janeiro, 31 de março de 1899, ano 79, n. 90, p. 2; Minas Geraes:
órgão oficial dos poderes do estado, Minas, 5 de abril de 1899, n. 86, p.
3; 16 e 17 de setembro de 1899, n. 245, p. 8; 23 de setembro de 1899, n. 251,
p. 7.
[53] Minas Geraes: órgão
oficial dos poderes do estado, Minas, 6 de outubro de 1899, n. 264, p. 2; Jornal
do Commercio, Rio de Janeiro, 13 de novembro de 1899, ano 79, n. 316, p. 2.
[54] Minas Geraes: órgão
oficial dos poderes do estado, Minas, 6 de novembro de 1899, n. 293, p. 1;
10 de novembro de 1899, n. 297, p. 2; 26 de novembro de 1899, n. 312, p.2; 14
de janeiro de 1900, n. 12, p. 11; e 23 de janeiro de 1900, n. 25, p. 2.
[55] Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, 7 de julho de 1926, n. 160, p. 6, “No mundo da Arte”.