Os descobridores (1899), de Belmiro de Almeida: uma reflexão sobre as origens e o destino do Brasil

Guilherme Frazão Conduru [1]

CONDURU, Guilherme Frazão. Os descobridores (1899), de Belmiro de Almeida: uma reflexão sobre as origens e o destino do Brasil. 19&20, Rio de Janeiro, v. XVII, n. 1-2, jan-dez 2022. https://doi.org/10.52913/19e20.xvii12.02 

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1.      Este texto tem como objeto a tela Os descobridores [Figura 1], de Belmiro de Almeida (1858-1935). Realizada em 1898 e 1899, a pintura pertence ao Ministério das Relações Exteriores (MRE) e integra o acervo do Museu Histórico e Diplomático do Itamaraty (MHD) no Rio de Janeiro.

2.      O artigo se divide em três partes. Na primeira, apresentam-se algumas informações sobre a trajetória profissional do pintor, com referências às suas principais obras e, em particular, sobre as raras investidas em pintura de história antes de Os descobridores. Na segunda parte, oferecem-se uma descrição iconográfica da tela, uma interpretação sobre seu significado - inclusive com argumentos sobre a identificação dos personagens representados - e se estabelecem correlações de Os descobridores com outras pinturas de história contemporâneas, que permitem caracterizar seu pertencimento a linhagens dissidentes das correntes predominantes na pintura de história. Na terceira parte, discute-se como a tela foi adquirida pelo MRE a partir das relações do artista com o ministro José Maria da Silva Paranhos do Rio Branco (1845-1912) e com Domício da Gama (1860-1925), um de seus mais assíduos e importantes colaboradores. As frequentes viagens de Belmiro de Almeida a Europa, a partir de 1888, e fontes primárias permitem supor que ele teve contato com Rio Branco e Domício da Gama em Paris, contatos que podem ter favorecida uma amizade, que antecedeu e poderia explicar a aquisição da pintura pela chancelaria brasileira. Como veremos, há fundamento documental para apoiar a hipótese de que Os descobridores esteja em posse do Itamaraty desde os primeiros meses da gestão do barão do Rio Branco, que assumiu o cargo de ministro em dezembro de 1902.

3.      Como pintura de história, Os descobridores representa uma cena que aconteceu - ou que poderia ter acontecido. Neste sentido, a situação reconstituída na pintura - que resultou da passagem da esquadra de Pedro Álvares Cabral pelo litoral da região que viria a ser Porto Seguro - obedece ao princípio da verossimilhança. A imagem representada em Os descobridores remete a uma reflexão sobre o sentido da colonização e, portanto, sobre o significado da evolução histórica do Brasil. A obra põe em discussão as origens da nacionalidade, a formação histórica e o futuro do Brasil.

4.      Antecedentes de Os descobridores na obra de Belmiro de Almeida

5.      A pintura de história não foi o gênero ao qual Belmiro de Almeida mais se dedicou, mas é nessa categoria que se deve classificar Os descobridores. Na virada do século, já passara o apogeu da pintura histórica de exaltação nacional que acompanhou e se seguiu à Guerra do Paraguai (1865-1870), apogeu que pode ser simbolicamente representado pela Exposição Geral de Belas de Artes de 1879, quando foram expostas, lado a lado, as enormes Batalha do Avaí, de Pedro Américo (1843-1905), e Batalha de Guararapes, de Victor Meirelles (1832-1903). Por volta de 1900, a pintura de história já perdera a hegemonia que exercera sobre os demais gêneros pictóricos. Num contexto de busca de legitimação simbólica do novo regime político, a proclamação da República em 1889 ensejou uma demanda por pintura histórica e pela modalidade alegórica. Ao longo da Primeira República, continuou a existir um mercado oficial para o gênero, que se ampliou com a valorização política das identidades estaduais decorrente da federalização. A pintura de história ainda constituiria uma importante oportunidade profissional para os pintores, mas já não seria considerada um gênero superior aos demais.

6.      Nascido no Serro, Minas Gerais, Belmiro Barbosa de Almeida Júnior veio para o Rio de Janeiro ainda menino. Em 1869, estudava no Liceu de Artes e Ofícios, aonde posteriormente viria a lecionar desenho. Em 1874, aos 16 anos, matriculou-se na Academia Imperial das Belas Artes (AIBA), onde teve como professores Agostinho José da Mota (1824-1878), Francisco Manuel Chaves Pinheiro (1822-1884), Victor Meirelles e João Zeferino da Costa (1840-1915). Foi o começo de uma intensa relação que durou por toda a vida e mesmo além, pois Belmiro deixou em testamento parte de seus bens para a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), sucessora da Academia.

7.      Conquistando várias medalhas nos primeiros anos do curso, o desempenho de Belmiro como aluno o colocava em boas condições para disputar o prêmio de viagem ao exterior. Frequentador dos círculos intelectuais e boêmios da capital em tempos de agitação política, quando as campanhas abolicionista e republicana ganhavam as ruas, Belmiro interessou-se pela ilustração jornalística. Em 1877, assinou sua primeira folha de rosto na Comédia Popular, o que marca o início de uma trajetória professional como ilustrador para jornais e revistas do Rio de Janeiro.[2]

8.      A partir da década de 1880, aproximadamente, a pintura de gênero com temas extraídos da vida cotidiana passara a obter reconhecimento da Academia Imperial. A boa aceitação da produção de José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899), que estudou em Paris, entre 1876 e 1882, às custas do Imperador, e de Rodolpho Amoedo (1857-1941), vencedor do prêmio de viagem em 1878, são exemplos de que na AIBA se podiam perceber sinais de abertura para novas abordagens pictóricas.[3] Era comum que artistas atuantes na passagem do século XIX para o XX utilizassem diferentes estilos e experimentassem numa diversidade de linguagens, adotando, ao longo da carreira, uma postura eclética.[4] Ao mesmo tempo, como expressão da ampliação do mercado de arte, começavam a surgir as primeiras galerias particulares, até certo ponto improvisadas, criando um circuito independente em relação às Exposições Gerais promovidas pela Academia e, depois de 1890, pela ENBA.

9.      Recusando a temática histórica - nacionalista, bíblica ou literária - e explorando a pintura de gênero com imagens do cotidiano e da intimidade burguesa, Belmiro realizou exposição na Casa De Wilde,[5] em agosto de 1887, quando apresentou Arrufos [Figura 2], tela com cena doméstica de desentendimento conjugal. A mostra, que recebeu a visita da princesa Isabel (1846-1921), então regente do Império, teve boa repercussão, tendo sido noticiada em diversos jornais da capital. A recepção positiva à exposição contribuiu para que Arrufos fosse adquirido pela Academia.[6] 

10.    Ainda em 1887, Belmiro disputou o concurso da AIBA para o prêmio de viagem à Europa, cujo tema, definido por sorteio, foi a flagelação de Cristo. As provas dos concursos para o prêmio de viagem ao exterior ou para o cargo de professor exigiam dos candidatos a realização de pintura de história com tema bíblico ou da antiguidade clássica, segundo cronograma pré-definido; em alguns casos os temas reapareciam. Não se pode afirmar que Flagelação de Cristo [Figura 3] seja sua primeira experiência no gênero histórico, mas não há registro de pintura de história anterior.

11.    O concurso para o prêmio de viagem não se realizava desde 1878. Belmiro de Almeida disputou com outros seis candidatos.[7] De acordo com parecer da comissão julgadora, aprovado pelo corpo acadêmico, o prêmio foi concedido a Oscar Pereira da Silva (1867-1939), mas teve o voto contrário de dois professores, João Zeferino da Costa e Rodolpho Bernardelli (1852-1931), que discordaram do resultado e formalizaram protesto contra a decisão, manifestando preferência pelo trabalho de Belmiro. Os discordantes chegaram a escrever para a princesa Isabel, interpondo um recurso não previsto nos estatutos da Academia.[8] A polêmica acadêmica chegou às páginas dos jornais e atrasou em três anos a viagem do vencedor.[9] Divergências de opinião e rivalidades sempre existiram na Academia. Nesse caso, a novidade estava na forma de expressão dessa divergência: a ousadia do questionamento à decisão do júri e a tentativa de intervenção de autoridade superior à direção da escola e ao ministério.

12.    Rodolpho Bernardelli, professor na AIBA, encabeçou mobilização para apoiar financeiramente Belmiro.[10] Escreveu-lhe então para comunicar sua iniciativa de apoio, em caráter privado, por cinco anos, junto com um grupo de amigos, entre eles Angelo Agostini (1843-1910), ilustrador e editor do semanário Revista Ilustrada.

13.    Em julho de 1888, o artista embarcava para a Itália.[11] Durante sua permanência em Roma, Belmiro de Almeida realizou, em 1890, pintura alegórica de exaltação da República intitulada Aurora do 15 de novembro, almejando vendê-la para algum órgão estatal. Durante a confecção da obra, o artista usou seus contatos na imprensa carioca para promover o trabalho. Concluída e enviada para o Brasil, a tela ficou em exposição pública no salão nobre da prefeitura municipal do Rio de Janeiro a partir de 10 de novembro de 1891.[12] Hoje desaparecida, a alegoria de Belmiro não foi bem recebida pela crítica contemporânea. Mesmo críticos simpáticos ao pintor, como Agostini, deploraram a investida do artista no gênero da pintura alegórica: “O sr. Belmiro de Almeida está deslocado em tal gênero de pintura. Não é aquela feição característica de sua inteligência.”[13] Com o mesmo tom desabonador, outro crítico, que escrevia na Gazeta de Notícias, afirmou que Belmiro, um pintor “avesso a tudo quanto era convenção e rotina, [...] que se insurgiu contra o academicismo,” numa ironia do destino, acabava por dedicar-se à alegoria por necessidade de sobrevivência. Embora lamentando a adesão de Belmiro ao que chamava de “idealismo” e augurando que fosse um último desvio de sua índole, o crítico reconhecia qualidades na obra: “A composição é agradável, tem uma linha bem ondulada e conduzida.”[14] Ainda em novembro de 1891, o cronista Arthur Azevedo (1855-1908) também se exprime contra o que considera um “aleijão decorativo, que é de uma indigência comovedora como composição e como fatura”. Azevedo afirma que o artista tentara, sem sucesso, expor a alegoria no Salon de Paris, fato pelo qual se rejubila, pois, segundo ele, seria um péssimo exemplo como representação do Brasil. O cronista ainda advertia: “Belmiro que se deixe de assuntos decorativos. Não torça a esplêndida vocação que a natureza lhe concedeu para os quadrinhos de gênero.”[15]

14.    Os três comentaristas contemporâneos demonstravam desprezo pelo gênero alegórico, considerado convencional, rotineiro, sem potencial para engendrar uma maneira criativa, um gênero próprio para encomendas oficiais, portanto, limitador e estéril. É curioso notar que a tela recebeu duas denominações diferentes: para Agostini, Apoteose do 15 de novembro; para os outros dois, Aurora do 15 de novembro. Não se sabe por quanto tempo a alegoria de Belmiro permaneceu exposta na prefeitura da capital da República. A referência à submissão da tela ao rigoroso processo seletivo do Salon francês indicaria que o artista buscava promover sua obra com vistas à comercialização.

15.    Em setembro de 1894, o artista expôs vinte e sete quadros numa individual na ENBA, não sem antes enfrentar a resistência do diretor interino, Rodolfo Amoedo, contemporâneo dos tempos de estudante na antiga Academia. Logo seguiu-se a Exposição Geral, onde Belmiro fez-se representar com nove telas. Alguns dos trabalhos apresentados - como Efeito de sol [Figura 4] - exibiam a técnica pontilhista, difundida a partir da obra de Georges Seurat (1859-1891) e novidade na capital brasileira.[16] A abertura e a disposição para conhecer e experimentar novos estilos e técnicas pode ser referida como uma característica da trajetória de Belmiro, que também produziu obras como experiências futuristas e cubistas, a exemplo de Maternidade em círculos [Figura 5].

16.    No ano seguinte, em 1895, o comentarista Fantasio afirmava, com ou sem fundamento, que a alegoria da República estaria para ser adquirida pela Câmara dos Deputados. No que era mais uma crônica política do que uma crítica de arte, Fantasio descreve o conteúdo da tela - na qual uma exuberante personificação feminina da Aurora aparecia sobre um leão empunhando a bandeira nacional, simbolizando, segundo ele, o domínio da lei sobre a força - com o objetivo de criticar as sucessivas declarações de estado de sítio do governo de Floriano Peixoto (1839-1895).

17.    Em 1897, o Minas Geraes, órgão oficial, noticiou que o artista oferecera ao governo daquele estado sua tela alegórica em homenagem à instalação da República.[17] Para contextualizar a doação, vale mencionar que, três meses antes, em setembro de 1897, Belmiro fizera publicar no mesmo jornal, sob o título “Pela arte em Minas,” carta aberta ao presidente do estado, na qual chamava atenção para a necessidade de incentivo para as artes e oferecia seus serviços como artista pintor.[18] Em outubro, o governo autorizava a aquisição de Má notícia [Figura 6], tela de Belmiro que ficara exposta no salão do Liceu de Artes e Ofícios de Ouro Preto juntamente com o esboço de quadro sobre episódio histórico não identificado. Em atenção a requerimento do pintor, notícia foi adquirida por dez mil réis, pagos com os recursos destinados às despesas com a mudança da capital.[19]

18.    Pode-se ver na doação da Aurora do 15 de novembro antes um movimento autopromocional do que uma generosidade do artista. Além disso, é possível conjecturar que Belmiro, ao agradecer a compra da tela de gênero com a doação da pintura alegórica, aproveitara para se desvencilhar desta última, que, desde 1890, “encalhara” e cuja conservação, muito provavelmente, causava-lhe ônus logístico e financeiro, conforme posteriormente comentou Domício da Gama (1862-1925), escritor, crítico e diplomata.[20]

19.    Na mesma edição do anúncio da doação, o Minas Geraes publicou artigo de Armínio de Mello Franco que, pelo teor apologético, contrasta com as críticas de 1891 à pintura alegórica de Belmiro: “A coloração geral do quadro, rutilante de luz, é fina e variada, leve e transparente [...]. A fatura é franca e bem conduzida, vê-se que o pincel caminhou desassombrado acompanhando a imaginação do artista.” Ao congratular-se com o governo de Minas Gerais pelas aquisições das telas de Belmiro - “vai se formando a galeria artística de nosso estado” -, Mello Franco estimava que a alegoria media quatro metros de altura por dois de largura.[21]

20.    As mencionadas referências na imprensa à tela Aurora do 15 de novembro permitem identificar, num exercício de reconstituição pictórica, tanto os protagonistas como outros elementos presentes na composição. Flutuando no céu, a personificação feminina da República, aureolada por um esplendor, sobre o dorso de um leão domesticado, empunhando a bandeira nacional que lhe envolve as formas, dirige-se para a figura de um indígena - alegoria do Brasil ou do povo brasileiro -, recostado sobre pele de onça, sob a luz violácea da aurora. A imagem do encontro da personificação da República com a alegoria do povo poderia significar a legitimação interna do novo regime. Em torno do conjunto principal, foram mencionados alguns coadjuvantes: querubins ou gênios e personificações das Ciências, das Artes e do Progresso, além do ramo de oliveira, que simboliza a Paz, e da espada da Justiça. A cena pairava sobre paisagem da baía de Guanabara, na qual se distinguia o perfil do Pão de Açúcar. Segundo Domício da Gama, a realização dessa alegoria correspondia à aspiração do artista de realizar uma grande obra, ainda nos moldes do grand genre, uma “máquina” que consagraria seu talento: “esse quadro decorativo, em que o artista consumira um ano de trabalho e que posteriormente o fez criar cabelos brancos por dentro, ainda lhe foi útil, porque [...] matou em Belmiro a gana que tem todo pintor de pintar o seu quadro grande.”[22]

21.    Domício da Gama informa, ainda, que, durante sua temporada romana, Belmiro de Almeida fez duas excursões a Paris, em 1889 e em 1891, onde tivera contato com obras de Puvis de Chavannes (1824-1898)[23], que o influenciaram no sentido do clareamento da palheta. A influência de Puvis Chavannes foi apontada tanto por comentaristas contemporâneos, como por historiadores acadêmicos.[24].

22.    Em Paris, entre 1896 e 1899, Belmiro frequentou a Académie Julian, escola privada, procurada por franceses e estrangeiros como preparação para o concurso de admissão da École des Beaux-Arts, que contava com um corpo docente rigoroso e disciplinador, afinado com o sistema acadêmico oficial.[25] Belmiro teve aulas com Jules Lefebvre (1836-1911), conceituado retratista, e Tony Robert-Fleury (1837-1912), pintor de história. Foi durante essa temporada parisiense que o artista realizou Os descobridores.

23.    A efeméride dos “400 anos,” em 1900, favoreceu o crescimento da demanda oficial por obras de arte comemorativas, históricas ou alegóricas; pintores de história tiveram então oportunidade para apresentar trabalhos e receber encomendas. A título de exemplo, cumpre mencionar que a temática do “descobrimento” foi objeto de concurso de pintura promovido pela Associação para as Comemorações do 4º Centenário do Descobrimento do Brasil, entidade não oficial, cujo edital foi publicado em 20 de julho de 1899. A reprodução de Os descobridores na Revista Moderna junto ao citado artigo de Domício da Gama, em fevereiro de 1899, desmonta a hipótese de que Belmiro a realizara para disputar o concurso, na medida em que a tela estava pronta antes da publicação do edital, que previa a apresentação de esboceto sob pseudônimo, ou seja, sem identificação de autoria, presumindo-se que cada pintura concorrente tivesse caráter inédito.[26]

24.    Entre as obras contemporâneas de Os descobridores que também trabalharam com o tema da conquista - e colonização - do território “descoberto” em 1500, participantes ou não do concurso da Associação, se podem mencionar: O descobrimento do Brasil (1900) de Aurélio de Figueiredo (1854-1916) [Figura 7]; A Providência guia Cabral (1899), de Eliseu Visconti (1866-1944) [Figura 8]; Primeiro desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro (1900) de Oscar Pereira da Silva [Figura 9]; A chegada (1900) e A partida (1902) [Figura 10], de Antônio Parreiras (1860-1937); e, ainda, um esboço sem data e sem título de Rodolpho Amoedo, guardado na reserva técnica do MNBA.[27] Seja como for, a rememoração coletiva dos acontecimentos e personagens de 1500 ensejou um crescimento da demanda por pinturas de história. E a aquisição de Os descobridores pelo Ministério das Relações Exteriores, provavelmente em 1903, como veremos adiante, constitui um desdobramento dessas possibilidades abertas pela comemoração dos “400 anos.”

Problematizando a colonização: leituras semânticas de Os descobridores

25.    Em Os descobridores [Figura 1], sobre uma elevação próxima ao mar, com paisagem litorânea ao fundo, duas figuras masculinas protagonizam a cena. Um terceiro protagonista ergue-se entre eles: uma árvore, cujo tronco imponente centraliza a composição. Uma das figuras está em estado de prostração, sentada no chão com as pernas estiradas, recostada à árvore, com o pé esquerdo enfaixado para proteger ferimento, mãos sobre as coxas; tem os cabelos negros repartidos ao meio, longos até a altura dos ombros, e barba espessa; a sua direita, uma espécie de agave. A postura e o olhar perdido transparecem exaustão, perplexidade e desalento. A outra figura aparece de costas, à direita da árvore; está de pé a fitar o oceano ao longe, descalço, sem camisa, braços ao longo do corpo; o perfil permite discernir uma barba rala que sugere uma aparência jovem. Ainda que seu rosto não esteja inteiramente visível, a pose e a direção do olhar para a vastidão do mar denotam melancolia e desânimo.

26.    No primeiríssimo plano, sobre a terra nua, jazem folhas secas caídas da árvore dominante, que parece em fase de desfolhamento. Logo acima, os dois personagens e a árvore, que sobe até a extremidade superior da imagem, com galhos retorcidos e folhagem rala, que não geram sombra, pois prevalece uma luz difusa e uniforme. É provável que o artista não tenha se preocupado em reproduzir uma espécie real, utilizando a representação da árvore como estruturadora da composição.

27.    No plano de fundo, estende-se uma vista de praia deserta, com vegetação costeira densa e trecho de litoral, no qual se distinguem duas ou três pontas, o mar à esquerda e parte de uma montanha à direita. Da praia para o interior, pode-se discernir um rio correndo paralelo ao litoral.

28.    A cena está cercada por borda pintada sobre a própria tela com arabescos de ramos curvilíneos que se entrelaçam e formam volutas, entremeadas de folhas. Nesse caso, tampouco parece ter-se preocupado o artista em reproduzir uma espécie vegetal específica. Ao emoldurar a cena com motivos vegetais, Belmiro de Almeida apropriou-se de solução difundida na década de 1890, influência possivelmente de origem pré-rafaelita, cujo emprego exprimiria a valorização da função decorativa da pintura e a apropriação de formas compositivas próprias da tapeçaria.

29.    Em cada lateral da borda pintada, na altura da metade da tela, brilha uma estrela dourada de cinco pontas. Na parte inferior, em cartela igualmente pintada, aparecem inscritos em maiúsculas o título do quadro e os seguintes versos em latim: “Multus que per anos errabant acti fatis maria omnia circum,”[28] com a indicação de que foram extraídos do poema épico Eneida, de Virgílio (70-19 a.C.), que narra as desventuras de Enéas e demais sobreviventes troianos da Guerra de Tróia até aportarem no litoral do Lácio, onde se estabeleceriam e seus descendentes fundariam o povoado que se tornaria Roma.

30.    A composição tem poucos elementos, distribuídos de forma equilibrada: os dois personagens separados pela grande árvore no plano principal e a paisagem litorânea no plano de fundo com a praia virgem e a costa em suave diagonal à esquerda acima da metade da tela. No terço superior da tela, acima do horizonte, de cada lado da árvore estão representados, à esquerda, o céu e galhos com poucas folhas e, à direita, montanhas.

31.    O dia parece nublado, não há representação do sol nem de seus raios; o calor, a umidade e a luz tropical sobre o branco da areia da praia esmaecem a coloração do mar e do azul do céu. Uma atmosfera quente e úmida parece envolver os dois personagens num clima de abandono e desolação, reforçado pela paisagem deserta e pouco acolhedora. A amplitude da vista a cavaleiro e o agreste da paisagem conseguem transmitir tanto a grandiosidade como a dimensão inóspita da natureza tropical. O desenho é bem definido e as linhas de contorno das figuras humanas, da árvore e do litoral ao fundo são deixadas suavemente aparentes.

32.    Quanto ao colorido, a tela apresenta paleta restrita, com pouca variação de cor, sem fortes contrastes. Há predominância de tons terrosos. Prevalece no quadro o marrom: tanto nas vestimentas como na carnação dos personagens, no tronco da árvore, na vegetação, no litoral visível além da praia. O mar mal se distingue do céu, ambos de um azul pálido. O personagem de pé, que parece o mais jovem, veste apenas um calção de cor marrom claro. O que aparece sentado enverga camisa branca, calção e colete marrom escuro.

33.    Para enfatizar o contraste da obra com outras representações dos primeiros contatos dos europeus com o território e seus habitantes, parece-nos relevante identificar algumas notáveis ausências na tela de Belmiro. Não há heróis com gestos grandiloquentes: nem sinal de Pedro Álvares Cabral (1467-1520) ou de qualquer outro comandante, de Pero Vaz de Caminha (1450-1500) ou de frei Henrique de Coimbra (1465-1532); somente o desalento dos dois protagonistas. Não há naus ou caravelas - símbolos da tenacidade e da intrepidez dos portugueses da época das grandes navegações - ou qualquer outra embarcação; no mar, o mar somente. Não há indígenas, seja como inimigos ameaçadores, seja como gentio acolhedor, nem como figurantes curiosos, nem como escravos; somente a natureza imensa e hostil. A data do acontecimento representado dispensaria a representação de negros.

Sobre a identidade dos “descobridores” e a citação de Virgílio na tela

34.    Para fundamentar uma leitura semântica de Os descobridores, importa identificar os personagens representados. Quem seriam aquelas duas figuras? Numa primeira aproximação, já sobressai o contraponto entre o título e a cena: dois homens maltrapilhos e desolados qualificados como descobridores, anti-heróis da saga colonizadora. Numa segunda aproximação, a temática do “descobrimento” remete às escassas fontes primárias sobre a chegada dos portugueses ao litoral do que se tornou Brasil. Assim, será oportuno reproduzir, a seguir, alguns trechos dessas fontes em que há referência aos degredados.

35.    Na carta que endereçou ao rei de Portugal, após descrever a visita à nau capitânia realizada por dois tupinambás, que nela pernoitaram, Pero Vaz de Caminha assinalou que o capitão dera instruções para que Nicolau Coelho (c. 1460-1504) e Bartolomeu Dias (c. 1450-1500), experientes navegadores, desembarcassem com os dois nativos em terra: “E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de dom João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras.” Ao sublinhar o que considerava uma predisposição dos indígenas para a aceitação da fé cristã, pois não demonstravam praticar crença religiosa, Caminha comentou ao rei que “[...] se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam.” Antes de anunciar a partida da Ilha de Vera Cruz na manhã seguinte, Caminha informou que “com estes dois degredados ficam mais dois grumetes que esta noite se saíram desta nau, no esquife, fugidos para a terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui [...].”[29].

36.    Há também referência aos dois degredados na chamada Relação do piloto (ou do português) anônimo, documento escrito por integrante da esquadra de Cabral, originalmente publicado em italiano em 1507:

37.                                  Nos dias que aqui estivemos, determinou Pedro Álvares fazer saber ao nosso sereníssimo rei o descobrimento desta terra, e deixar nela dois homens condenados à morte, que trazíamos na armada para este efeito. [...] saiu o capitão em terra, mandou fazer uma cruz de madeira muito grande e a plantou na praia, deixando, como já disse, os dois degredados neste mesmo lugar; os quais começaram a chorar e foram animados pelos naturais do país, que mostravam ter piedade deles.[30]

38.    Durante a fase de expansão comercial e marítima, nos séculos XIV, XV e XVI, o degredo foi utilizado pelos portugueses como instrumento da conquista e colonização de territórios habitados por povos considerados selvagens ou de um nível de civilização inferior ao dos europeus. Criminosos condenados eram deixados em litorais inexplorados com o objetivo de que se misturassem com a população local para conhecer seus costumes - “saber do seu viver e maneiras” - e, em especial, para aprender a língua com vistas a futuras intermediações para os portugueses.[31]

39.    A Carta e a Relação do piloto anônimo não constituem provas documentais de que Belmiro de Almeida tenha retratado os degredados. Seria, no entanto, difícil supor que Belmiro desconhecesse a Carta de Caminha, fonte já utilizada por outros pintores como Victor Meirelles e seu discípulo Pedro Peres (1850-1923).

40.    Forte indício a favor da hipótese dos degredados é a constatação de que Belmiro, após expor Os descobridores e tentar vendê-la em Belo Horizonte, expôs na mesma cidade, em novembro de 1899, um esboço de retrato de Afonso Ribeiro, hoje perdido. Conforme noticiava o Minas Geraes, o presidente do estado visitou a exposição organizada na assembleia local e congratulou o artista pela obra. Belmiro tomou como tema a passagem da Carta na qual Caminha nomeia o personagem. À semelhança de Os descobridores, o retrato era circundado por uma borda decorativa, que, em vez de arabescos fitomorfos, ostentava a coroa real, esferas armilares nos cantos e, nas laterais, escudos com os nomes dos comandantes da frota de Cabral. O esboço representava o degredado “no meio de vegetação opulenta e cercado de gentílicos que se sentem maravilhados com os objetos que lhes apresenta.”[32] A presença de indígenas no retrato de Afonso Ribeiro contrasta com sua invisibilidade em Os descobridores.

41.    De acordo com a passagem da Carta de Caminha, Afonso Riberio seria um “mancebo,”,ou seja, um jovem, não um homem maduro. Os estudos de Belmiro para os personagens de Os descobridores, reproduzidos junto ao artigo de Domício da Gama na Revista Moderna, não deixam dúvidas: o personagem sentado de pernas estiradas e recostado à arvore foi concebido como um homem maduro, com mais de quarenta anos. É possível que sucessivas intervenções restauradoras na tela possam ter comprometido detalhes pictóricos que alteraram a fisionomia original dos personagens. Apesar disso, pode-se afirmar que o personagem histórico Afonso Ribeiro somente poderia ser identificado ao personagem que está de pé em Os descobridores.

42.    Não se localizou referência contemporânea da obra que associasse os “descobridores” aos degredados. Reis Filho, em 1984, os reconheceu como tal.[33] Essa leitura da identidade dos dois personagens afasta a hipótese de que fossem aventureiros, como sugeriu o crítico contemporâneo Fialho d’Almeida, ou náufragos, como se referiu a historiadora Ana Simioni.[34]

43.    Ao identificar os degredados de Cabral como “descobridores,” que mensagem o pintor desejava transmitir? Uma primeira hipótese remete a uma postura pessimista quanto à natureza e ao futuro do Brasil e dos brasileiros, que poderia ser condensada na seguinte fórmula: “um país descoberto/colonizado por criminosos não poderia dar certo.” A ironia da pintura - expressa na aparente contradição entre o título do quadro e a cena representada - favorece essa interpretação cética e fatalista.

44.    Outra hipótese seria a de que os degredados, como homens do povo, teriam sido os colonizadores da América portuguesa. Seguindo esta linha interpretativa, para o pintor quem, de fato, colonizou o Brasil foi o povo - e não a série de comandantes, capitães-generais, governadores e vice-reis cujos nomes ficaram inscritos na história da administração colonial, os quais Belmiro - ao contrário de Aurélio de Figueiredo, Oscar Pereira da Silva e Eliseu Visconti, entre outros - recusou-se a retratar. A inversão iconográfica operada pela figuração de dois seres desalentados a cumprir a pena do degredo, elevados, pela mediação do título da obra, à condição de heróis colonizadores, exprimiria também uma inversão historiográfica ao negar protagonismo aos heróis tradicionais da história factual.

45.    Sendo os degredados homens comuns, condenados, em geral, por crimes que hoje seriam considerados menores, haveria, assim, em Os descobridores, ainda que talvez de forma não consciente, a valorização da multidão de anônimos que cruzou o mar oceano em busca de riquezas, glórias, aventuras ou simplesmente em busca de uma vida melhor. Os degredados como descobridores são figuras do povo e, nessa qualidade, são agentes da História. Essa interpretação “invertida” da História do Brasil suscita outro tipo de problematização, mais além da identificação dos personagens, que pode ser sintetizada na pergunta: como poderia dar certo um país colonizado por degredados, ou seja, por criminosos? A própria tela apresenta elementos que ajudam a explorar essa vertente interpretativa.

46.    Uma das particularidades de Os descobridores, conforme mencionado, consiste na moldura fitomorfa pintada em torno da cena, que na parte inferior ostenta uma cartela com o título da pintura e a citação de Virgílio: “Multusque per annos errabant acti fatis maria omnia circum” (I, 32-33). Os versos imediatamente anteriores e posteriores aos reproduzidos na tela permitem uma compreensão mais abrangente do significado da citação:

47.                                  Satúrnia, [...] lembrada da antiga guerra que dirigira, como primeira das deusas, junto de Tróia, a favor de seus caros argivos, e também por que as causas da ira e os cruéis ressentimentos ainda não tinham abandonado sua memória, mas permaneciam gravados no fundo do coração o juízo de Páris e a afronta da sua beleza desprezada [...]; inflamada por esses ultrajes, afastava para longe do Lácio os troianos, joguetes do mar imenso, resto do furor dos dânaos e do implacável Aquiles, e, impelidos pelos fados, andavam errantes, há longos anos, ao redor de todos os mares. Tanto era pesada a tarefa de fundar a nação romana.[35]

48.    Os valorosos sobreviventes da Guerra de Tróia, após aventuras e desventuras, aportaram em terra, no Lácio, onde seus descendentes construiriam Roma, a “cidade eterna,” o império que praticamente dominou a totalidade do mundo conhecido de então, ao qual impôs, pela guerra, sua lei e sua paz. E Saturnia (Juno) os perseguira, pois queria obstruir a fundação de Roma e sua consequente expansão. O destino, porém, quis que os herdeiros dos troianos dessem origem a Roma. Nas origens da cidade e na sua fundação encontra-se a pré-condição da ideia de construção de um império. Considerar os degredados, criminosos condenados, como descobridores e atribuir-lhes o papel de colonizadores e portadores da civilização pode parecer um contrassenso; no mesmo sentido, a analogia do Brasil com Roma e com o Império Romano pode parecer destituída de sentido, se não absurda. Se tornaria o Brasil um império e conquistaria o resto do mundo? O que o degredado Afonso Ribeiro poderia ter em comum com o herói troiano Enéas? Da ironia ao deboche, a passagem pode ser tênue.

49.    Além de converter degredados em descobridores, a chave irônica da problematização de Belmiro levaria, assim, a associar uma representação visual do mito de origem do Brasil - o “descobrimento” - ao mito de origem de Roma, aludido pela citação em latim. Supondo que não haveria em Belmiro uma nostalgia do Império bragantino, a analogia com o mito de Roma pode ser interpretada como uma visão otimista com relação ao futuro da República, proclamada dez anos antes da pintura, um futuro de realizações e glórias, como teria sido a trajetória histórica de Roma. Ao elaborar sua versão crítica da história em tom de ironia e com citação latina, articulando pares aparentemente contraditórios - degredados-civilizadores e Brasil-Roma -, o pintor construiu, sob uma perspectiva otimista, um pequeno enigma sobre o sentido da colonização, da Independência e do futuro do Brasil.

50.    Luciano Migliaccio percebe a ambiguidade do discurso de Belmiro, “uma meditação sobre o valor da ação humana na qual se obtém a força para imaginar o futuro,”[36] que permite, a despeito da ironia, identificar uma dimensão otimista na pintura por meio da alusão à fundação de Roma. A possibilidade de um futuro de grandeza sugerida pelos versos de Virgílio permitiria falar-se em otimismo quanto ao futuro do Brasil.

Linhagens dissidentes: Os descobridores e outras pinturas contemporâneas

51.    Em Os descobridores não há exaltação da ação heroica: os dois protagonistas não têm a postura nem a indumentária muito menos o ânimo de heróis. Aparecem antes como derrotados, perdidos, abandonados. Mas o título da obra os eleva à condição de “descobridores” -  o que não os confunde com os “conquistadores”, mas os aproxima dos “colonizadores”.

52.    Para representar o mito de origem da nação, ao invés de retratar comandantes militares junto a chefes religiosos assépticos em trajes alinhados e pose garbosa, Belmiro preferiu retratar degredados, ou seja, gente do povo, apenados, em geral, de origem popular. Ao invés de encenar gestos heroicos, que expressassem impetuosidade ou coragem, os protagonistas exprimem perplexidade, exaustão e desconsolo. Se há monumentalidade, é aquela derivada da grandiosidade da natureza tropical, não idílica, mas inóspita. No lugar da glorificação, há uma inversão do papel do herói.

53.    Segundo Maraliz Christo, a recusa a celebrar o heroísmo seria uma característica compartilhada por Os descobridores com Os bandeirantes (1889) [Figura 11], de Henrique Bernardelli (1858-1936), e Tiradentes esquartejado (1893) [Figura 12], de Pedro Américo, trabalhos que subvertem a imagem do herói, representado nas três telas como vencido, numa posição fragilizada ou visualmente fragmentada.[37] Na França, a partir, aproximadamente da década de 1860, a pintura de história sofre um lento, porém irreversível processo de esgotamento e declínio. Uma das manifestações desse desprestígio reside justamente no esvaziamento do ato heroico e consequente enfraquecimento do herói a partir da problematização do seu papel.[38] Exibindo o corpo esquartejado de Tiradentes, a tela de Pedro Américo participava dessa tendência internacional e, ao mesmo tempo, problematizava a temática. A tela de Bernardelli oferece uma visão crítica sobre o papel dos bandeirantes na formação da nação: dois bandeirantes aparecem, estirados no chão, bebendo água de um regado sem usar as mãos, como bestas, enquanto um indígena, de mãos amarradas, assiste à cena com postura altiva, embora aprisionado. Bernardelli operava, assim, uma inversão iconográfica, na qual o vencido aparece representado como superior ao vencedor, que está aos seus pés.[39]

54.    O trabalho de Belmiro se insere nesta nova tradição que recusa o culto aos heróis, que lança um olhar crítico sobre acontecimentos e personagens formadores da nação, olhar que se posiciona distante da exaltação e próximo de um revisionismo historiográfico. Como características compartilhadas entre Os descobridores, Os bandeirantes e Tiradentes esquartejado Maraliz Christo identifica, de um lado, a representação fragilizada do herói e, de outro, a renúncia a qualquer intenção celebrativa. Em comum, os três quadros apresentam versões não edificantes e não celebrativas de episódios simbólicos na formação da nacionalidade: (1) o “descobrimento” ou a chegada dos europeus; (2) a colonização e a escravização dos indígenas; e (3) o sacrifício em nome da luta pela liberdade contra o jugo colonial. O conspirador derrotado e o colono embrutecido, moralmente inferior ao indígena altivo, embora prisioneiro, seriam os heróis sem glamour de uma história cruenta que teve início com o drama dos degredados exauridos e sem alento retratados por Belmiro. Nas três pinturas, os heróis brancos não ostentam grandeza, altivez, elegância ou eloquência, atributos dos heróis consagrados no diapasão romântico-nacionalista. Em conjunto, as três pinturas formam uma linhagem dissidente da corrente predominante de exaltação nacionalista e laudatória da colonização.

55.    Luciano Migliaccio apontou para uma inversão adicional operada por Belmiro de Almeida que consiste na ressignificação da paisagem tropical. O artista teria descontruído o mito da paisagem tropical paradisíaca, dócil ou idílica, sobre o qual se apoiava a ideia de erigir o gênero da paisagem histórica como “o gênero nacional.” No lugar onde a tradição do academicismo oitocentista figurou a exuberância da natureza tropical, sugerindo grandiosidade e fertilidade, Belmiro acentuou o aspecto selvagem, inculto, inóspito, invertendo os lugares-comuns associados aos trópicos, que de acolhedores converteram-se em aterradores. Assim, além da inversão iconográfica do herói, Os descobridores ostentariam uma inversão iconográfica do naturalismo histórico.[40]

56.    Sob uma outra perspectiva, Maraliz Christo identifica o questionamento sobre as vicissitudes do destino humano como um ponto em comum entre Os descobridores, Tiradentes esquartejado e Caipira picando fumo (1893) [Figura 13], de Almeida Júnior:

57.                                  Quadros diferentes, personagens diferentes, mas igual indagação sobre o destino humano. É um contato imprevisível entre artistas símbolos de tempos diferentes: Pedro Américo, costumeiramente ligado ao acadêmico, no que o termo possui de mais pejorativo, e Almeida Jr., incensado pela crítica modernista. [...] Indagação também presente no quadro de Belmiro de Almeida, Os descobridores, de 1899.[41]

58.    As três pinturas compartem a expressão de uma consciência da condição humana como “joguete do destino,” tal como expresso no verso de Virgílio: “Joguetes do destino, erraram, durante muitos anos, por todos os mares.”[42] Personagens diferentes, mas, de alguma forma, unidos na percepção da vulnerabilidade: os degredados entregues a seu destino em terras desconhecidas; o Tiradentes derrotado, esquartejado e santificado; o caipira na imobilidade interiorana pré-industrial. As três obras apresentam os personagens, localizados no tempo e no espaço, como alegorias da identidade brasileira, como referências identitárias da nacionalidade submetidas ao longo do século XX e ainda hoje a processos distintos de apropriação social e historiográfica. Considerá-las como pinturas precursoras da modernidade, porém, seria atribuir-lhes um conteúdo que lhes é exterior, uma essência prefigurada de um momento futuro, numa operação de finalismo histórico própria de uma concepção teleológica da história da arte, que supõe um sentido evolutivo, uma ideia de progresso.[43]

59.    Com relação à temática do “descobrimento,” o trabalho de Belmiro destoa da linhagem inaugurada pel’A Primeira Missa no Brasil (1860), de Victor Meirelles, que, mesmo sem omitir contradições, cultua a colonização a partir de uma ideia de fusão de povos distintos sob a égide do cristianismo.[44] Pinturas de história de grandes dimensões como O levantamento da cruz (1879), de Pedro Peres, Fundação do Rio de Janeiro (1881) de Antônio Firmino Monteiro (1855-1888), Fundação de São Vicente (1900), de Benedito Calixto (1853-1927), Fundação de São Paulo (1907), de Oscar Pereira da Silva, A conquista do Amazonas (1907), de Antônio Parreiras e Fundação de Belém do Pará (1908), de Teodoro Braga (1872-1953) tomam como objeto momentos fundacionais do processo colonizador, que, apesar dos conflitos em alguns casos latentes, simbolizam a integração de colonos e indígenas, sob a chefia de militares e religiosos portugueses.[45] É de se notar que essa opção por temas dos primórdios da colonização facilitou aos artistas evadirem-se da discussão sobre a escravidão negra, como também fez Belmiro de Almeida.

60.    Conforme indicado, na reserva técnica do MNBA, há um esboço de pintura decorativa de Rodolpho Amoedo, sem data, que retrata os degredados [Figura 14]. Não se conhece obra definitiva sobre o tema.[46] O esboço de pequenas dimensões apresenta os degredados sobre promontório junto ao mar em torno da cruz erguida por ordem de Cabral. Amoedo optou por representar o símbolo utilizado para a celebração da cerimônia religiosa que formalizaria, segundo a perspectiva portuguesa, a posse do território. Há elementos compositivos que, mesmo diferentes, aproximam o esboço de Amoedo de Os descobridores: os personagens estão separados pela cruz descentralizada (e não pela árvore centralizada); um deles está sentado, recostado à base da cruz, cabisbaixo, de pernas recolhidas (e não estendidas), o outro protagonista contempla o mar. À diferença da tela de Belmiro, Amoedo representou duas caravelas. Terá servido o esboço de referência para Belmiro? Ou será que Rodolpho Amoedo pretendeu redirecionar a reflexão de Belmiro sobre os degredados? Pode-se conjecturar que Amoedo participou do concurso da Associação do 4º Centenário?

61.    Antônio Parreiras também representou os degredados na referida tela que realizou para o Supremo Tribunal Federal, em 1902, intitulada A partida [Figura 10]. A obra faz parte de encomenda que incluiu outras duas pinturas: A chegada e Suplício de Tiradentes. Em A partida, embora apareçam miniaturizados, sem feições identificáveis, os dois personagens estão próximos à cruz, que lhes serviria como um frágil consolo espiritual diante da condição de abandono em que foram deixados, e se voltam para os navios da frota cabralina, praticamente invisíveis na linha do horizonte. Por um lado, é possível perceber a impregnação da obra de Belmiro na versão de Parreiras, seja pela ambientação melancólica, seja pelo predomínio de tons terrosos; por outro, os personagens junto à cruz aproximam a composição de Parreiras do esboço de Amoedo.

Belmiro de Almeida e o Itamaraty: relações com Rio Branco e Domício da Gama

62.    Cumpre averiguar como e quando a pintura histórica de Belmiro de Almeida foi adquirida pelo Ministério das Relações Exteriores. A correspondência passiva de Rio Branco com interlocutores brasileiros e estrangeiros encontra-se catalogada e arquivada em dezenas de pastas no Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI) no Rio de Janeiro. Alguns pintores brasileiros figuram entre os correspondentes de Rio Branco: Victor Meirelles, Pedro Américo, Aurélio de Figueiredo e Belmiro de Almeida. Desse último, há somente uma carta e nela não há referência à tela Os descobridores.

63.    A carta é datada de 17 de abril de 1903 e, além de antecipar votos pelo natalício, que Rio Branco cumpriria no dia 20, comunica a próxima partida do artista para a Europa, acompanhado de sua esposa Palmyra:

64.                                  Caminhando o nosso correio com a velocidade do [desenho de um cágado] e querendo eu que esta lhe chegue às mãos, segunda-feira próxima, dia do seu aniversário natalício, escrevo-a agora. | Palmyra e eu fazemos votos para que V. E. continue feliz por muitos anos, para bem de sua família e da Pátria brasileira de quem V. E. é glorioso filho. | Aproveito também o ensejo de participar que partimos na quarta-feira, 22 do corrente, pelo Cordillère para a Europa, onde V. E. terá como sempre, um criado e amigo a seu dispor. | Palmyra envia saudades a Mademoiselle Hortênsia. | Seu, muito seu, | Belmiro de Almeida.[47]

65.    Uma curiosidade da carta consiste na pequena graça feita pelo artista ao incluir o desenho de uma tartaruga no texto, para simbolizar a lerdeza do serviço dos correios. Apesar do tom respeitoso e do uso reiterado do pronome de tratamento “vossa excelência,” a brincadeira de Belmiro seria indicativa de que gozava de alguma abertura com o Barão. Na mesma linha, a saudação da esposa Palmyra à filha de Rio Branco, Hortênsia, permite supor que Belmiro mantinha algum grau de intimidade com o ministro.

66.    Essa impressão de proximidade é reforçada pelo fecho: “seu, muito seu,” que pode traduzir uma relação senão íntima, pelo menos próxima entre os dois correspondentes. Além disso - e mais importante para a formulação de uma hipótese sobre a incorporação de Os descobridores ao acervo do MRE - o fecho parece indicar uma postura de reverente gratidão do artista em relação a Rio Branco, que teria decidido adquirir a tela. A pintura leva a data de 1899; teria ficado de posse do artista desde sua finalização até 1903, quando Belmiro retornou à Europa, não sem antes dar conhecimento de sua partida, em abril, ao chanceler. Rio Branco foi nomeado ministro no final de 1902; teria tido cerca de quatro meses apenas para fazer a aquisição da tela, segundo essa hipótese.

67.    Não foi possível localizar na correspondência particular de Rio Branco depositada no AHI documentos que permitam adensar o que se sabe sobre sua relação com Belmiro de Almeida. Os documentos relacionados com a gestão Rio Branco (1902-1912) constituem rico e variado manancial de informações sobre o patrono da diplomacia brasileira; não é impossível, portanto, que novos documentos venham à luz para esclarecer de que maneira Os descobridores foi incorporado ao patrimônio do MRE.

68.    É possível supor que Belmiro de Almeida, Domício da Gama e Rio Branco tenham tido contato em Paris a partir da frequência comum a um círculo intelectual luso-brasileiro. Há registro de que os três compareceram ao funeral do crítico e literato português, Guilherme Moniz Barreto (1863-1896) e que Belmiro e Domício ofereceram juntos uma coroa de flores em homenagem ao falecido.[48] Havia, portanto, uma interseção entre os meios em que circulavam os três brasileiros - um, pintor; o outro, jornalista, escritor e diplomata; e o terceiro, historiador, cônsul e diplomata. Rio Branco e Belmiro compartilhavam um histórico de boemia e inserção no meio jornalístico do Rio de Janeiro durante as respectivas juventudes, não contemporâneas aliás: quando Rio Branco partiu para a Europa para assumir o cargo de cônsul geral do Brasil em Liverpool, em 1875, Belmiro tinha apenas 17 anos.

69.    Um manuscrito de Rio Branco sobre folha de papel azulado, maior que ofício, utilizada para rascunhos na Secretaria de Estado, solta entre uns poucos documentos da subpasta “desenhos e plantas” do arquivo particular do Barão, comprova que Os descobridores fazia parte do acervo artístico do Itamaraty naqueles tempos. A folha ostenta o título de quatro pinturas de história e de seus respectivos autores e datas de realização, cada um deles cercado pelo que parece ser um modelo de plaqueta de identificação. O documento não é datado, mas a autenticidade da caligrafia de Rio Branco é indiscutível.

70.    A relação de quatro pinturas numa mesma folha de papel nos parece indicação de que Rio Branco concebeu uma narrativa visual sobre a história do Brasil com as obras que tinha disponíveis na Secretaria de Estado: além do trabalho de Belmiro, Proclamação da Independência (1888) [Figura 15] e Pax et Concordia (1902) [Figura 16] - pintura alegórica que havia sido adquirido há pouco e na qual o próprio Rio Branco aparece figurado -, ambas de Pedro Américo; e Visita do presidente Roca ao presidente Campos Salles (1899) [Figura 17], de Beniamino Parlagreco (1856-1902). Os eventos representados nas quatro pinturas sugerem uma evolução que vai do “descobrimento,” com a presença dos degredados colonizadores, passa pela Independência, proclamada pelo herdeiro dinástico português, e chega aos tempos contemporâneos com o ingresso do Brasil, como República, na “civilização” e a celebração da amizade entre o Brasil e a Argentina. Nessa série de pinturas temos o nascimento do estado soberano, o ingresso da República no sistema internacional dos países “civilizados” e a exibição de relações amistosas com o histórico rival do Prata.

71.    Segundo o pensamento de Rio Branco, qual seria nessa narrativa o lugar de Os descobridores - pintura de história em tom irônico sobre as origens do Brasil? Como o ministro interpretava o significado da composição? Ao contrário do que ocorre com Pax et Concordia e Visita do presidente Roca ao presidente Campos Salles, não foram localizados, até o momento, registros escritos ou de imagem da época que indiquem onde a obra ficava exposta no Palácio Itamaraty.[49] Além da crítica velada ao processo de colonização, o tom irônico e enigmático do trabalho de Belmiro de Almeida poderia comprometer uma leitura oficial da evolução histórica do estado brasileiro, que procuraria valorizar a antiguidade e a estabilidade institucional. Entende-se, de qualquer modo, que Rio Branco imaginou uma narrativa da história do Brasil com as obras de arte que integravam o acervo da Secretaria de Estado. Até que ponto essa ideia teve condições de se materializar nos espaços do Palácio é difícil precisar. Essa narrativa visual se constituiria como discurso “curatorial” da exposição de pinturas de história na chancelaria brasileira e, como tal, participava do discurso diplomático.[50]

72.    Além de Os descobridores, outras obras de Belmiro estão guardadas no Itamaraty. Os plenipotenciários, óleo de 1920, representa os delegados brasileiros à Conferência de Paz de Versalhes enfileirados para assinar o tratado que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. Os demais trabalhos são retratos, mas nenhum é pintura: um retrato satírico de Domício da Gama, que se tornou diplomata e principal assessor de Rio Branco, reproduzido em jornal, além de três retratos originais a crayon de Joaquim Caetano da Silva (1810-1873), Euclides da Cunha (1866-1909) e José Cândido Guillobel (1843-1925). Estas obras podem trazer alguma informação sobre a relação do artista com Rio Branco, mas pouco esclarecem sobre a aquisição ou sobre a colocação de Os descobridores no Palácio Itamaraty.

73.    O retrato a crayon do almirante José Cândido Guillobel, fardado e com condecorações, assinado no canto superior esquerdo e datado de 1925, encontra-se na seção de Iconografia da Mapoteca do Itamaraty. Guillobel integrara, entre 1893 e 1895, a delegação brasileira junto ao governo dos EUA, cujo presidente fora escolhido como árbitro do contencioso territorial entre o Brasil e a Argentina sobre a região de Palmas, no oeste de Santa Catarina. Após a morte do primeiro plenipotenciário, o barão do Rio Branco foi designado pelo presidente Floriano Peixoto para chefiar a delegação e obteve, então, sua primeira grande vitória diplomática. A data do retrato coincidente com o ano de morte do almirante, o que parece indicar que o retrato seria uma homenagem póstuma realizada a partir de fotografia.

74.    Dois retratos a crayon, que ficaram durante longos anos na sala de consulta da Biblioteca do Itamaraty e hoje estão na reserva técnica do MHD, têm como objeto figuras caras a Rio Branco: Joaquim Caetano da Silva e Euclides da Cunha. O retrato de Euclides da Cunha leva a data de 1910. Parece também ter sido uma encomenda de Rio Branco para Belmiro. Seria uma homenagem do ministro ao colaborador tragicamente falecido no ano anterior. A semelhança das molduras, provavelmente contemporâneas, da fatura, e da técnica constituem indícios de que ambos os retratos foram realizados na mesma época. No retrato de Caetano da Silva, há dedicatória a Rio Branco e deve ter sido realizado a pedido, como uma homenagem a seu ídolo nos assuntos relativos à fronteira norte. Tanta era a admiração de Rio Branco por Caetano da Silva que seu livro L’Oyapok et l’Amazone, publicado em dois volumes em 1861, foi integralmente incorporado à memória apresentada ao presidente do Conselho Federal suíço, árbitro do contencioso de fronteira entre o Brasil e a França, em 1899. Para realizar o retrato, Belmiro deve ter tido acesso a uma carte de visite do próprio, que possivelmente pertencera ao visconde de Rio Branco e fora herdada pelo filho. Nos três trabalhos o artista exibe refinada técnica como desenhista.

75.    Guardado no AHI, entre os recortes de jornais, que somam mais de 120 volumes encadernados, inclusive centenas de caricaturas, há um retrato satírico de Domício da Gama assinado por Belmiro, publicado na edição de 23 de abril de 1903 de Tagarela, na seção Poetas e Águias [Figura 18]. O retrato - onde uma cobrinha parece sair do bigode de Domício - vem acompanhado dos seguintes versos, assinados por Biógrafo, com referência explícita à relação entre de Domício e Rio Branco: “Ao seu laurel brilhante e precioso | De esplêndido escritor, - Domício alia | O mérito de ser o companheiro | De Rio Branco - heroico brasileiro, | Que não o deixa e muito o aprecia.”[51]

76.    Domício trabalhara como correspondente e crítico em Paris na década de 1890; por esse tempo, tornou-se próximo de Rio Branco e possivelmente de Belmiro. Foi convidado pelo diplomata para integrar, como secretário, as delegações do Brasil junto aos governos dos EUA e da Suíça nos arbitramentos relativos aos diferendos territoriais com a Argentina e com a França, cujos desfechos foram retumbantes vitórias brasileiras, que fizeram as primeiras glórias diplomáticas de Rio Branco, ainda antes de assumir o ministério. Não parece coincidência a proximidade entre as datas da caricatura de Domício publicada no Tagarela e da carta de Belmiro para Rio Branco, conservada no AHI, ambas de abril de 1903.

77.    Em 30 de março de 1899, o pintor retornava da Europa com Os descobridores na bagagem. Talvez com a ideia de repetir o feito de 1897, quando logrou vender para o governo mineiro a tela Má notícia e doou Aurora do 15 de novembro, Belmiro viajou para Belo Horizonte, onde chegou em 15 de setembro, para expor a pintura. A exposição da tela contou com a presença de autoridades locais, inclusive do presidente do estado, Silviano Brandão (1848-1902).[52] Estudantes da capital mineira deram início a uma campanha de levantamentos de fundos com vistas a comprar Os descobridores e oferecer ao governo estadual a fim de que a peça figurasse na exposição comemorativa do 4º Centenário.[53] A iniciativa não teve êxito. Em 6 de novembro, o Minas Geraes registra um requerimento de prestação de serviço de Belmiro de Almeida não atendido pelo secretário de Finanças por falta de verbas, “segundo informação do diretor de Imprensa.” Apesar de a compra de Má notícia ter resultado de um requerimento do artista, não há elementos para afirmar com segurança que o requerimento não atendido fosse para a aquisição de Os descobridores. Poucos dias depois, foi inaugurada a exposição do esboço do retrato de Afonso Ribeiro, elogiado pelo presidente do estado. Entre novembro de 1899 e janeiro de 1900, o artista foi recebido em palácio por Silviano Brandão em três oportunidades. Teria ido oferecer a pintura de história e/ou o retrato histórico?[54]

78.    Seja como for, os indícios apontam no sentido de que Os descobridores entrou para o acervo do MRE por meio das relações do artista com Rio Branco e Domício da Gama. Mais próximo de idade do artista, é provável que Domício da Gama tivesse maior intimidade com Belmiro do que Rio Branco. Considerando a matéria sobre o pintor publicada na Revista Moderna, em fevereiro de 1899, na qual a obra está reproduzida assim como estudos sobre os protagonistas, é possível imaginar que tenha sido Domício quem sugeriu ao ministro a aquisição para o ministério.

79.    As dificuldades financeiras enfrentadas pelos artistas para se manterem como profissionais tem um exemplo anedótico numa tirada bem-humorada de Belmiro em resposta à consulta sobre as condições de trabalho em Paris. Em 1926, quando o pintor da “velha guarda” já atingira 68 anos de idade, o escritor e jornalista Gastão Penalva (1887-1944) aproximou-se de Belmiro para uma conversa informal. Na coluna “O mundo da Arte” do Jornal do Brasil, sob o título “O ilustre pintor patrício Belmiro de Almeida diz-nos um pouco da arte parisiense e da arte nacional” (equivocadamente, a edição do jornal legendou a fotografia de Belmiro como sendo de Décio Vilares), Penalva reproduz diálogo em que o artista fala sobre o zelo com que os pintores consagrados se dedicavam a manter suas reputações; sobre o ridículo do futurismo – “corrente idiota, que não pode durar muito, porque não exprime coisa alguma” -; sobre a antiga modelo que pousou para Nu de mulher - “cheia de carnes decadentes” -; sobre uma tela satírica que decidiu não apresentar ao Salão dos Independentes. O artista comentou ainda que estaria voltando para Europa em alguns dias e que lá vivia muito bem: “sou conhecido, trabalho, passeio na mais completa independência”. Perguntado se, como artista, teria algum ideal, Belmiro respondeu: “Como artista? Desejaria muito ser auxiliar do consulado em Paris.”[55]

Considerações finais

80.    Três chaves podem abrir caminhos interpretativos não necessariamente excludentes sobre Os descobridores: (1) numa leitura “popular” da História do Brasil - que procura privilegiar a perspectiva dos vencidos e socialmente oprimidos, e rever as versões oficiais que defendem e justificam o ponto de vista dos vencedores -, os degredados, gente do povo, foram “os descobridores”, pois foram eles os verdadeiros colonizadores do território e construtores da nação; (2) numa leitura crítica e pessimista, coube a criminosos - os degredados - a “descoberta,” entendida como colonização do Brasil, o que, portanto, explicaria o atraso ou as dificuldades para se conseguir o progresso nacional; (3) numa leitura crítica, porém otimista, a analogia do “descobrimento” do Brasil com a fundação de Roma, concretizada após grandes desventuras e dificuldades, permitiria vislumbrar que “os descobridores,” “perseguidos pelo destino,” superariam os percalços e lograriam construir uma grande nação.

81.    Representar o episódio do “descobrimento” com o elenco e o cenário escolhidos por Belmiro de Almeida seria, portanto, a expressão de uma reflexão crítica sobre os destinos da sociedade que se desenvolveu na terra que, no momento figurado, acabava de ser descoberta pelo olhar europeu e logo seria explorada como colônia. Essa linha interpretativa se fortalece quando se atenta para os versos da Eneida de Virgílio, que, inscritos no quadro, associam à fundação de Roma a epopeia do “descobrimento,” da colonização e da construção do Brasil.

82.    De um lado, a ironia - que se manifesta através da confrontação entre o título da obra e seu conteúdo ou objeto, os desolados degredados – é utilizada pelo artista como recurso para chamar a atenção para o drama das origens da nação e, quem sabe, para o desamparo e a desilusão do povo após dez anos de República. De outro, a erudição da citação latina, insinuando um otimismo em relação ao futuro do Brasil via analogia com Roma, junto com a identificação do povo como agente da história poderiam ser consideradas pelo artista elementos que qualificariam a pintura para decorar algum ambiente em edifício de órgão estatal. Seriam suficientes para neutralizar em Rio Branco o impacto potencialmente negativo que a contemplação dos degredados como descobridores - e colonizadores - poderia provocar?

83.    Em síntese, Belmiro de Almeida propôs com Os descobridores uma reflexão crítica sobre a colonização e, portanto, sobre a história do Brasil, uma narrativa que conta “outra” história, diferente daquela consagrada pela versão tradicional, legitimadora do exercício do poder político, criadora e cultora de heróis. Com Os descobridores, Belmiro de Almeida ofereceu uma leitura crítica da história nacional em tom irônico e, ao mesmo tempo, com perspectiva otimista.

84.    No ano em que se celebra o bicentenário da Independência política - efeméride que deve ser aproveitada para, uma vez mais, pensar e repensar o país, para discutir seus desafios sociais, políticos, ambientais, entre tantos, e para debater o significado da identidade nacional – a atualidade de Os descobridores afirma-se com veemência. Uma reflexão sobre as origens e sobre o futuro do Brasil, como a que propôs Belmiro de Almeida, é sempre oportuna, como um projeto permanente de pesquisa - nem que seja apenas para ajudar a identificar erros e apontar caminhos. Seriam a exaustão, a perplexidade e a melancolia de João de Thomar e Afonso Ribeiro – os degredados de Cabral figurados por Belmiro - expressões premonitórias da deriva da sociedade brasileira contemporânea? Que horizonte de otimismo vislumbrar na paisagem agreste?

Referências bibliográficas

ASSOCIAÇÃO para as Comemorações do 4º Centenário (org.). Livro do Centenário. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900, vol. 1.

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[1] Historiador e diplomata. Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História e Crítica de Arte da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAV/EBA/UFRJ), onde defendeu sob orientação da professora doutora Sônia Gomes Pereira, em agosto de 2019, a tese de doutoramento Alegorias em confronto: Os descobridores, de Belmiro de Almeida, e Paz e Concórdia, de Pedro Américo: A construção da nação pela pintura de história. O presente texto toma como base um dos capítulos da tese.

[2] REIS JÚNIOR, José Maria dos. Belmiro de Almeida (1858-1935). Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1984, p. 18-19. Esse livro, de 120 páginas, contém 75 ilustrações, das quais 65 reproduzem pinturas, desenhos, trabalhos gráficos e esculturas do artista. O ano de publicação coincidiu, não por acaso, com exposição de trabalhos de Belmiro de Almeida na Galeria Acervo, no Rio de Janeiro.

[3] “[...] não se deve tomar o conceito de acadêmico como sinônimo de neoclássico, como ocorreu frequentemente na historiografia da arte brasileira. Tanto na Europa como no Brasil, a produção acadêmica ao longo do século XIX partiu de uma postura inicial neoclássica, mas posteriormente incorporou ideias e valores de movimentos posteriores, como o romantismo, o realismo, o impressionismo e o simbolismo. Na academização desses movimentos, foram sempre expurgados destas linguagens os elementos mais audaciosos - tanto formais quanto temáticos [...].” PEREIRA, Sonia Gomes. Arte brasileira no século XIX. Belo Horizonte: C / Arte, 2008, p. 17-18.

[4] “[...] a versatilidade estilística dos artistas desse período tem origem num fato [...]: a importância das tipologias, isto é, as soluções de compromisso entre tema e forma [...]. Assim, do ponto de vista da prática artística [...], as escolhas dos artistas eram muito mais tipológicas do que estilísticas. Isto explicaria por que os artistas dessa geração apresentam esse comportamento eclético: o estilo seria escolhido em função da sua adequação ao tema e à função [...].” (PEREIRA, 2008, op. cit., p. 70).

[5] A Casa De Wilde, no centro do Rio de Janeiro, especializada em material para pintura e desenho, era propriedade do belga Laurent de Wilde (que editara o catálogo da Exposição Geral de 1884, o primeiro ilustrado). A loja funcionava como um espaço de comercialização de obras de arte e, ao mesmo tempo, de sociabilidade para artistas, jornalistas, escritores e intelectuais. Integrava um circuito paralelo às exposições de Belas Artes juntamente com outros estabelecimentos comerciais como Glace Elegante, Casa Vieitas, Casa Cambiaso, Galeria Cruzeiro e Galeria Rezende, nas quais também se organizavam mostras. Cf. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 23 de maio de 1886, ano II, n. 349; Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 9 de março de 1893, n. 68, p. 2, primeira aparição da seção “Notas sobre arte”.

[6] “A visita da Princesa teria encorajado Belmiro a oferecer o quadro ao Estado? O que sabemos é que o parecer dos professores da Academia foi favorável à aquisição [...]. Rodolfo Bernardelli propôs como justo o valor de dois contos de réis. Submetida à aprovação esta proposta, assim como o “parecer”, foram ambos aprovados”. CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. Belmiro de Almeida (1858-1935), Oscar Pereira da Silva (1867-1939) e o polêmico concurso para Prêmio de Viagem de 1887. In: RIBEIRO, M. A.; RIBEIRO, M. I. Blanco (orgs.) Anais do XXVI Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte (São Paulo, 2006). Belo Horizonte: C/ Arte, 2007, p, 261-269.

[7] Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 7 de outubro de 1887, n. 277, p. 2.

[8] Ata da sessão de 8 de novembro de 1887, p. 43, verso. Arquivo MDJVI/EBA/UFRJ, apud CAVALCANTI, 2007, op. cit., p. 263-265.

[9] Revista Ilustrada, Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1887, ano 12, n. 471, p. 6.

[10] Cf. Um acto de Rodolpho Bernardelli. Revista Ilustrada, Rio de Janeiro, 7 de abril de 1888, ano 13, edição n. 492, p. 3.

[11] Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 29 de julho de 1888, p. 3.

[12] Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 4 de maio de 1890, n. 124, p. 1. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9 de novembro de 1891, ano I, n. 215.

[13] Revista Ilustrada, novembro de 1891, p. 7, apud REIS JÚNIOR, 1984, op. cit., p. 34-35.

[14] Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1891, p. 2.

[15] Diário de Notícias, Rio de Janeiro, domingo, 15 de novembro de 1891, ano VII, n. 2 318, p. 1.

[16] GIANETTI, Ricardo (org.). “Notícias Artísticas”, por Armínio de Melo Franco: comentário sobre a exposição de pinturas de Belmiro de Almeida realizada na Escola Nacional de Belas Artes em setembro de 1894. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n.4, out./dez. 2010. Disponível em http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/amfranco1.htm

[17] Minas Geraes: órgão oficial dos poderes do estado, Ouro Preto, 6 de dezembro de 1897, n. 325, p. 2.

[18] Minas Geraes: órgão oficial dos poderes do estado, Ouro Preto, 30 setembro de 1897, n. 261, p. 2-3.

[19] Minas Geraes: órgão oficial dos poderes do estado, Ouro Preto, 17 de outubro de 1897, n. 271, p. 1.

[20] GAMA, Domício. Belmiro de Almeida. Revista Moderna: magazine literário e artístico, Paris/Rio de Janeiro, ano III, n. 28, fevereiro de 1899, p.13-16.

[21] Minas Geraes: órgão oficial dos poderes do estado. Ouro Preto, 6 de dezembro de 1897, n. 325, p. 1.

[22] GAMA, Domício. Belmiro de Almeida. Revista Moderna: magazine literário e artístico. Paris/Rio de Janeiro, ano III, n. 28, fevereiro de 1899, p.13-16.

[23] Pierre Puvis de Chavannes foi na sua época um dos mais bem sucedidos pintores franceses, a julgar pela quantidade de encomendas de obras decorativas que executou bem como pelo respeito que lhe era devotado no meio artístico. É considerado um dos grandes pintores das décadas de 1870 e 1880 por ter conseguido conciliar a tradição acadêmica clássica com as inovações praticadas pelos impressionistas e pós-impressionistas. Puvis de Chavannes realizou pinturas murais para decorar diversos prédios públicos na França, como o Panteão (1876-1898), a Sorbonne (1887) e o Hotel de Ville (1891-1892), e nos Estados Unidos, como a Biblioteca Pública de Boston (1894-1898). As cores pálidas das telas afixadas à parede, segundo a técnica da marouflage, imitavam os efeitos do afresco.

[24] Entre os críticos e comentaristas contemporâneos do artista, Armínio de Mello Franco e Fialho d’Almeida, além de Domício da Gama, mencionam a influência de Puvis de Chavannes sobre Belmiro. Entre os historiadores em atividade, podemos citar Ana Paula Simioni, que aponta características formais compartilhadas por Os descobridores e Le pauvre pêcheur (1876, Paris, Museu D’Orsay), e Arthur Valle, que identifica a influência de Chavannes na “pintura decorativa” produzida no Brasil por Almeida Júnior (A partida de monção, 1897), Belmiro (Os descobridores, 1899) e Antônio Parreiras (A chegada, 1900 e A partida, 1902). Cf. SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. A viagem a Paris de artistas brasileiros no final do século XIX. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, vol. 17, 2005, n.º 1, p. 343-366. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0103-20702005000100015 Acessado em 28 de fevereiro de 2022; VALLE, Arthur. Pintura decorativa na 1ª República: Formas e Funções.19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out. 2007. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_pint_dec.htm Acessado em 28 de fevereiro de 2022.

[25] Cf. SIMIONI, 2005, op. cit. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0103-20702005000100015 Acessado em 28 de fevereiro de 2022.

[26] O concurso foi vencido por Aurélio de Figueiredo com O descobrimento do Brasil (1900. Cf. ASSOCIAÇÃO para as Comemorações do 4º Centenário (org.). Livro do Centenário, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900, vol. 1, p. 127-131.

[27] Agradeço ao professor doutor Arthur Valle, da UFRRJ, membro da banca examinadora da tese mencionada na nota 1, a referência e a reprodução do esboço de Rodolfo Amoedo com os degredados como tema, assim como seus comentários e críticas durante a defesa.

[28] Tradução de acordo com Reis Júnior (op. cit., 1984, p. 52): “e por muitos anos, perseguidos pelo destino, erravam através de todos os mares”; cf.. Tassilo Orpheu Spalding oferece a seguinte versão: “e, impelidos pelos fados, andavam errantes, há longos anos, ao redor de todos os mares” (VIRGÍLIO, Eneida, São Paulo: Abril Cultural, 1983, tradução, textos introdutórios e notas de Tassilo Orpheu Spalding, p. 19-20).

[29] CORTESÃO, Jaime. A Carta de Pêro Vaz de Caminha – adaptação à linguagem atual, em A Carta de Pêro Vaz de Caminha. Lisboa: Portugalia, 1967b, p. 213-257, citações respectivamente às páginas 229 e 255.

[30] CORTESÃO, Jaime. A expedição de Pedro Álvares Cabral e o descobrimento do Brasil. Lisboa: Portugalia, 1967, p. 231-232.

[31] Jaime Cortesão afirma: “Somos de opinião que alguns dos novos dados etnográficos da Mundus Novus [carta de Américo Vespúcio, publicada pela primeira vez em 1504] foram fornecidos, em fins de 1501, a Vespúcio pelos dois degredados, e, em, especial, por Afonso Ribeiro, deixados por Cabral em Porto Seguro.” A carta, de autenticidade discutida, foi traduzida em várias línguas e contribuiu para popularizar informações sobre o novo continente descoberto, que acabou por receber sua designação a partir do nome do florentino. Ronaldo Vainfas agrega que Afonso Ribeiro e seu companheiro - talvez um certo João de Thomar - podem ter sido resgatados pela expedição de Gonçalo Coelho, em 1501-1502; considera especulação ter os respectivos relatos embasado a carta de Vespúcio. Cf. CORTESÃO, op. cit., 1967b, p. 129, e VAINFAS, Ronaldo. Afonso Ribeiro, verbete em VAINFAS, R. (org.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 19-20.

[32] Minas Geraes: órgão oficial dos poderes do estado, Minas, 10 de novembro de 1899, n. 297, p. 2.

[33] “A natural mordacidade do artista não é atraída pelo aspecto brilhante do evento, mas pela trágica odisseia dos degredados, abandonados na nova terra por Cabral, gesto com que pôs à mostra a melancólica pequenez da alma humana” (REIS FILHO, 1984, op. cit., p. 51).

[34] “Apenas duas figuras, dois aventureiros portugueses, deixados na terra de Santa Cruz, em princípios do século XVI, à procura de descobertas”. Cf. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 27 de abril de 1899, coluna “Notas sobre arte”, por Fialho d’Almeida. E ainda “Na tela estão figurados dois homens perdidos em meio a uma natureza exuberante e selvagem. Trata-se de dois náufragos que desembarcaram em terras novas, desconhecidas até então pela civilização europeia. [...] O pintor representou o “marco inaugural” da nação como um momento de abandono, involuntário, de dois homens fragilizados, desprotegidos diante de uma natureza assustadora” (SIMIONI, 2005, op. cit., p. 360-361).

[35] VIRGÍLIO, Eneida (tradução, textos introdutórios e notas de Tassilo Orpheu Spalding, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 19-20.

[36] MIGLIACCIO, Luciano. A recepção dos gêneros europeus na pintura brasileira. In: CAVALCANTI, Ana; DAZZI, Camila; VALLE, Arthur (orgs.). Oitocentos: arte brasileira do Império à Primeira República. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ/DezenoveVinte, 2008, p. 26-31. Disponível em academia.edu

[37] Cf. CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Pintura, história e heróis no século XIX: Pedro Américo e Tiradentes esquartejado. Tese de Doutoramento apresentada no Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp sob a orientação do Prof. Dr. Jorge Sidney Coli Junior, Campinas, novembro de 2005, p. 15 e subcapítulo “A subversão da imagem do herói no Brasil, um caso paralelo: os bandeirantes na pintura de Henrique Bernardelli”, p. 169-186.

[38] Sobre a banalização do fato histórico e o esgotamento da pintura de história, afirma Jorge Coli: “Não é preciso insistir sobre o esvaziamento da grande pintura heroica e oficial durante o correr do século XIX. Manet denunciara seu caráter constituído de convenções ocas, desmontando a História dos grandes feitos com seu A execução de Maximiliano (1867), onde o episódio, dramático e recente, vê-se destituído de qualquer aspecto positivo ou grandioso. [...] o acontecimento excepcional deixa de sê-lo, para nivelar-se ao corriqueiro” (COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira do século XIX? São Paulo: Editora Senac, 2005, p. 86).

[39] “Apesar de situar-se no gênero da pintura histórica, a tela esvazia o personagem de seu heroísmo, mostrando-o em ação corriqueira, reveladora de sua fragilidade. […] O quadro revela uma inversão iconográfica: o vencedor é representado aos pés do vencido”. Ver: CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Bandeirantes ao chão. Em: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 30, 2002, p. 33-55, p. 34 e 46. Disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2174/1313 Acessado em 28 de fevereiro de 2022.

[40] MIGLIACCIO, 2008, op. cit., p. 30-31.

[41] CHRISTO, 2005, op. cit., p. 15.

[42] VIRGÍLIO, Eneida: (Cantos I, II, III e IV), traduzido por Domingos Paschoal Cegalla, Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, p. 12.

[43] A respeito da interpretação das obras do século XIX com critérios que lhe são exteriores, sustenta Coli (2005, p. 18): “O antefixopré’, por exemplo, encerra armadilhas por vezes definitivas. Porque raramente designa apenas uma anterioridade: ele faz com que um conjunto de obras e de acontecimentos deixem de adquirir sentido em si próprios para definirem-se através do futuro. [...] É legítimo buscar nas obras e nos momentos artísticos o seu passado: os criadores dos quais eles derivam lhes servem de raízes. É, ao contrário, enganoso construir para eles um futuro, adivinhar neles aquilo que não podiam prever.”

[44] Segundo Coli, a tela de Meirelles teria como projeto “instaurar um momento harmônico e espiritual, onde se concertavam mundos opostos”: “[...] sob a égide católica, associam-se numa cena de elevação espiritual, as duas culturas. Criava-se ali o ato de batismo da nação brasileira. Momento prenhe de significados, que o projeto de construção de um passado histórico para o Brasil, ocorrido no século XIX, soube explorar”. Inserido no processo de construção de uma natureza nacional constitutiva de uma arte nacional, Meirelles erigiu um “[...] templo natural [...] [que] reúne os participantes numa fusão, torna-se uma espécie de útero fecundador”. COLI, Jorge. Primeira missa e invenção da descoberta, em NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 107-121, 2005, citações às páginas 117, 114 e 110, respectivamente.

[45] “Ao invés de, como Meirelles e seguidores, recriar um ambiente gregário, uma natureza exuberante e acolhedora e retratar a convivência pacífica entre europeus e ameríndios, Belmiro escolhe expor o desconforto e a solidão dos personagens, a hostilidade selvagem da natureza tropical e, ainda, opta pela exclusão do índio”. Para uma visão a respeito da ruptura que Os descobridores representa frente à linhagem de representações das origens da nação que valoriza o papel da Igreja e faz o elogio da colonização ver: CONDURU, Guilherme Frazão. As origens da nação na pintura de história: de Victor Meirelles a Belmiro de Almeida e além. 19&20, Rio de Janeiro, v. XV, n. 1, jan.-jun. 2020, § 109. Disponível em https://doi.org/10.52913/19e20.vXVi1.00007

[46] No catálogo do MNBA, sob o número 422, consta como obra de Rodolpho Amoedo a seguinte entrada: “Cena histórica (época do Descobrimento), guache/papel - 0,442 x 0,292, n. inv. 445”. Existe grande probabilidade de que se trate do esboço com os degradados figurados. Cf. PEIXOTO, Elza Ramos (org.). Catálogo geral da pintura brasileira. Rio de Janeiro: MNBA, 1968, p. 37.

[47] Carta de Belmiro de Almeida para o barão do Rio Branco, do Rio de Janeiro, em 17 de abril de 1903. Arquivo particular do barão do Rio Branco, subpasta Belmiro de Almeida, AHI, 812/1/7.

[48] Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1897, ano 77, n. 22, p. 1.

[49] Há registros fotográficos de Visita do presidente Roca ao presidente Campos Salles em sala lateral na frente do Palácio Itamaraty e de Pax et Concordia no Salão de Honra, ambos na publicação de WRIGHT, Marie Robinson. The new Brazil: its resources and attractions - historical, descriptive and industrial. - 2 ed. - Filadélfia: George Barrie & sons, 1907, p. 115 e 116.

[50] “A narrativa visual de Rio Branco oferece [...] uma síntese da história do Brasil. Constitui um exemplo de apropriação da pintura de história para uso político por meio de sua integração ao discurso diplomático, pontuando valores que caracterizariam a História do Brasil e de sua política externa [...].” Sobre o tema, ver: CONDURU, Guilherme Frazão. Pinturas de história como discurso diplomático: uma narrativa visual da História do Brasil no Itamaraty. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 53, 2020, p. 191-219.

[51] Tagarela, Rio de Janeiro, 23 de abril de 1903. Cf. Arquivo do barão do Rio Branco, coleção de recortes de jornal, AHI 386/2/8.

[52] Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 31 de março de 1899, ano 79, n. 90, p. 2; Minas Geraes: órgão oficial dos poderes do estado, Minas, 5 de abril de 1899, n. 86, p. 3; 16 e 17 de setembro de 1899, n. 245, p. 8; 23 de setembro de 1899, n. 251, p. 7.

[53] Minas Geraes: órgão oficial dos poderes do estado, Minas, 6 de outubro de 1899, n. 264, p. 2; Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 13 de novembro de 1899, ano 79, n. 316, p. 2.

[54] Minas Geraes: órgão oficial dos poderes do estado, Minas, 6 de novembro de 1899, n. 293, p. 1; 10 de novembro de 1899, n. 297, p. 2; 26 de novembro de 1899, n. 312, p.2; 14 de janeiro de 1900, n. 12, p. 11; e 23 de janeiro de 1900, n. 25, p. 2.

[55] Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 de julho de 1926, n. 160, p. 6, “No mundo da Arte”.