As esfíngicas Salomés: representações da figura feminina nas narrativas curtas de Gonzaga Duque

Liliane Machado [1]

MACHADO, Liliane. As esfíngicas Salomés: representações da figura feminina nas narrativas curtas de Gonzaga Duque. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 2, abr./jun. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/gd_salomes.htm>.

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E que gozo sentir-me em plena liberdade,

Longe do jugo atroz dos homens e da ronda

Da velha Sociedade

- a messalina hedionda

que, da vida no eterno carnaval

se exibe fantasiada de vestal.

(Gilka Machado)



Que venhas lá do céu ou do inferno, que importa,

Beleza! ó monstro ingênuo, gigantesco e horrendo!

Se teu olhar, teu riso, teus pés me abrem a porta

De um infinito que amo e que jamais desvendo?

De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,

Que importa, se és quem fazes - fada de olhos suaves,

Ó rainha de luz, perfume e ritmo cheia! -

Mais humano o universo e as horas menos graves?

(Baudelaire)

Gonzaga Duque, importante intelectual brasileiro do início do século XX, escreveu, além de seus conhecidos estudos de Artes Plásticas, uma série de contos enfeixados no volume Horto de mágoas, publicado postumamente em 1914, e que até hoje carece de uma observação mais detida da crítica, dado, sobretudo, o ostracismo em que caiu no seu tempo. Nos contos desse livro, de formas variadas, o autor promove profundas rupturas com os ditames estéticos e morais de uma sociedade em vias de transformação, mas ainda marcadamente passadista. Sua filiação ao Decadentismo é flagrante, posto que, além da oposição deliberada à perspectiva estética e ideológica realista/naturalista, nele percebemos a visão pessimista e desencantada do mundo, que leva ao desenvolvimento de narrativas centradas no subjetivismo e nas dimensões misteriosas da existência.

Nesse contexto, surge, como forte influência, a poética de Charles Baudelaire (1821-1867) e certamente de outros artistas como Verlaine (1844-1896), Mallarmé (1842-1898), Huysmans (1848-1907) e Wilde (1854-1900), cujas obras também haviam denunciado uma sociedade urbano-industrial impregnada por uma racionalidade científica e pragmática, própria do materialismo burguês, que despontava como algo abjeto. Havia a sensação de se viver uma época terminal, de ruína cultural e política, decadente, portanto - termo que depois foi adotado para autodenominar o sistema sentimental que definia o grupo.

Em relação às posturas sociais, os decadentistas combatiam a moral burguesa hipócrita, que impunha valores como trabalho alienante, casamento e puritanismo sexual. Desse combate, surge consequentemente o culto a figuras dissonantes desse padrão. Em relação ao homem, aparece a imagem do dândi excêntrico, que desfruta de uma existência aristocrática, mas desdenha dos princípios morais fundamentais da sociedade a que representa, exigindo seu direito à futilidade e ao artifício. Em relação à mulher, ganham contorno a prostituta, a lésbica e a femme-fatale, que desrespeitam os preceitos sociais, religiosos ou morais.

A femme-fatale é no Decadentismo representada, muitas vezes, pela imagem mítica de Salomé - mulher diabólica, fêmea fálica, dançarina de encantos delirantes, que introjeta uma nova erótica, e que aparece reincidentemente nas obras de Huysmans (Às avessas, de 1884), Wilde (Salomé, 1892) e nas telas de Gustave Moreau (L’apparition [Figura 1] e Salomé [Figura 2], de 1876). Aqui, no entanto, não figuram somente os elementos bíblicos ou clássicos da Salomé, mas constitui-se uma nova representação, acrescida de ingredientes que remetem à época nova em que se vivia.

Se a Salomé bíblica instigava, como modelo clássico, pelo teor de sedução, no Decadentismo, a ela se agrega o índice da ruptura com os preceitos morais arraigados, representativos do conservadorismo. Por isso, esse eterno-feminino parece evocar, na Salomé decadentista, a mulher livre que emerge com a modernidade, que sai às ruas e se deixa desejar pelos olhares cobiçosos dos transeuntes, como uma melindrosa, luxuosamente vestida, maquiada e perfumada, que, à semelhança da serpente, fascina e repele.

As Salomés de Gustave Moreau eram alvas como as deusas clássicas, mas calçavam sandálias com saltos, suas faces eram maquiadas e seus corpos adornados. Sua anatomia unia o ideal da beleza clássica, encarando o fascínio do artista simbolista e decadente pelos corpos ondulantes e olhos magnetizantes. (OLIVEIRA, 2008, p. 18)

No Brasil, essa nova representação do feminino, construída pelos decadentistas europeus, encontra claros ecos, tanto no plano das artes, quanto no plano da própria sociedade.

Em seu estudo sobre as representações pictóricas e discursivas da mulher nas revistas Fon-fon! e Para todos, do início do século XX, Cláudia Oliveira (2008) aponta aspectos interessantes que colocam tais representações no caminho da modernidade. Analisando ilustrações, fotos e textos literários (contos, crônicas e poemas), Oliveira vai nos mostrando o surgimento de uma nova imagem de mulher na cidade do Rio de Janeiro, que abandona os cuidados masculinos e a preservação da casa, para se lançar, emancipada, nas ruas, onde se expõe ao olhar coletivo e se deixa registrar pelas penas ou pelas lentes objetivas daqueles que militavam nas revistas literárias e mundanas de então.

Causam frisson, pela quebra de expectativa de suas rotinas; despertam o flirt, seduzindo, com seu caminhar autônomo, os observadores e, evidentemente, criam um novo paradigma: o da mulher moderna.

Essa criação se dá aos poucos e as primeiras mulheres a serem flagradas no ambiente urbano, onde circulavam sozinhas, sofrem a pressão da sociedade conservadora.

[...] moças “inocentes” e “de respeito” não podiam andar pelas ruas da cidade atraindo a atenção sobre si. Moças e mulheres “de respeito” também não podiam andar desacompanhadas e deveriam seguir regras estritas no caminhar [...]. Como moças elegantes, “decentes” e “discretas”, seus passos eram firmes e rápidos e seus olhos desviados da câmera do fotógrafo. Para não serem vistas como desejosas de participar da liberdade ocular da cidade moderna, não deixavam perceber qualquer sinal de prazer ao andar pela Avenida, pois no discurso conservador, hesitar, chamar a atenção e olhar eram características de uma feminilidade transgressora.(OLIVEIRA, 2008, p. 41)

Como veículo de uma nova ordem social, os periódicos do início do século XX colocam-se na vanguarda dessa representação moderna da mulher. Gonzaga Duque, um dos criadores da Fon-fon!, ajudou a conceber a revista como espaço de resistência ao convencionalismo e sempre buscou vincular o texto escrito à ilustração ou à fotografia, como amante das artes plásticas que era, materializando nas páginas da revista o corpo feminino que caminhava pelo bulevar.

Com esse espírito, as revistas ilustradas construíam uma feminilidade urbana carioca que era sinônimo de mistério e fascínio. O olhar daqueles que a registravam, tanto nas ilustrações e fotos, quanto nos contos e crônicas, fazia-o ressaltando uma espécie de “erotismo moderno”, ligado a uma publicidade do corpo feminino ainda não experimentada antes do século XX e opondo-se ao conservadorismo daqueles que condenavam a emancipação da mulher como a passante soberana da avenida e como sujeito de seu próprio corpo.

Sobre essa tomada de posição ideológica dos narradores, pictóricos ou não, das revistas ilustradas daquele tempo, Claudia Oliveira registra o seguinte:

No olhar do narrador, as novas avenidas pareciam ter sido feitas para ela, porque era nas calçadas que se oferecia a possibilidade de um olhar furtivo sobre suas meias de seda. [...] Assim, as revistas iniciam uma exploração da imagem da mulher, dividida entre o narrador, o fotógrafo e o ilustrador, que caracterizava uma verdadeira perseguição visual. (OLIVEIRA, 2008, p. 37)

Ou ainda:

As mulheres pareciam querer se mostrar sedutoras aos olhos do narrador, através da utilização de uma linguagem corporal que partia do domínio do recato e do pudor, mas rompia e, de certo modo, violava os códigos de uma sociedade falsamente puritana. (OLIVEIRA, 2008, p. 39)

Em Horto de mágoas, Gonzaga Duque discute ficcionalmente a temática da feminilidade em pelo menos três contos: “Aquela mulher...”, “Miss Fatalidade” e “Agonia por semelhança”. Nos três, de modos distintos, deparamo-nos com figuras de mulher que encarnam o mito salomélico e matizam, em complexas nuances, a relação entre o masculino e o feminino.

Dentre eles, aquele em que os elementos que a modernidade forjava para a nova imagem feminina foram centralmente enfocados é “Aquela mulher...”. Seu enredo apresenta dois momentos básicos: o primeiro deles, mais curto, corresponde ao flagrante da passagem pela rua da mulher a que o título se refere; o segundo momento, em tensão com o primeiro, é o da reclusão da figura feminina ao ambiente privado.

No primeiro momento do enredo, colaborando para a construção da imagem feminina mencionada, o conto nos revela sua protagonista como um espécime da Salomé moderna, que adere a atitudes anticonvencionais. O texto inicia-se apresentando “Ela”, uma figura singularíssima de mulher em seu passeio pelas ruas da cidade. Elegantemente vestida, de pele alva e rubras cabeleiras, “Ela” passa despertando comentários e desejos em homens e mulheres que, dentro da dubiedade de atitudes que marca a Salomé, finge não ouvir e perceber. O conto registra, como crônica de costumes que de certa forma é em seus primeiros parágrafos, o curioso momento do cotidiano carioca do início do século XX e do ainda tíbio processo de emancipação feminina, ligado intimamente ao movimento de urbanização.

O conto parte da mesma imagem amplamente registrada pelas revistas literárias e mundanas da Belle Époque carioca, como a Fon-fon!, a princípio, através dos pincéis de ilustradores, como J. Carlos, e, posteriormente, pelas lentes dos fotógrafos [Figura 3]. As mulheres saem às ruas e delas passam às capas e às páginas dos periódicos para o deleite dos voyeurs.

“Ela” é o protótipo da mulher moderna, que ganha o espaço público sozinha, caminhando a passos firmes e apresentando-se como modelo da moda urbana, ao mesmo tempo em que é, paradoxalmente, censurada pela própria cidade. Ninguém lhe faz companhia nesse passeio pela rua, o que acentua sua independência, mas causa também a maledicência. “Ela” vacila entre os pólos da admiração e da inveja, da exaltação e da condenação. Nesse vacilar, apresenta-se a hipocrisia da sociedade burguesa, que fez das ruas espaço por excelência de exibição pessoal, mas que cobra o preço da saída do privado para o público, de acordo com uma moral que já não combina com o movimento alucinado dos grandes centros.

Às três horas, pelas ruas d’exibições, Ela surgia impressionantemente fantasmagórica, no seu passo firme e lançado de pernalta, tecidos ricos amortalhando seu esqueleto bizarro, trescalante de aromas mornos de que se enchia o ar no movimento de sua marcha. Os dandinados vadios, que se preparavam para os hospícios e para os cárceres, lapidavam-na com pilhérias ultrajantes, que Ela não ouvia ou fingia não ouvir; os senis e os parvos, enfronhados no respeito conselheiral de suas sobrecasacas ou com estudados desdéns de acadêmicos, chasqueavam-lhe ao bater dos tacões; e as velutinadas bonecas de elegância crispavam-lhe os lábios com desprezos ofensivos, invejando-lhe, porém, os panos do vestuário, o requinte dos utensílios mundanos [...] (DUQUE, 1995, p. 93)

A passagem anterior demonstra a ironia crítica do narrador em relação ao julgamento coletivo. Dândis jovens, velhos acadêmicos e “bonecas de elegância”, tão distintos entre si na palheta que compõe o todo social, igualmente se juntam no preconceito em relação à mulher que passa, com sua excentricidade e autonomia. Sua solidão não se limita à do passeio, mas abrange a própria condição de mulher diferente, inesperada e, por isso, incompreendida e condenada.

Ao mesmo tempo em que “Ela” representa a típica mulher do início do século XX, e, portanto, adequa-se a um padrão a se firmar futuramente, também encarna a individualidade feminina em oposição ao juízo do senso comum, integrando um movimento que se opõe ao masculino, ao racional e ao autoritário, à ciência e ao poder.

Por isso, na construção de sentido do conto, o narrador prefere marcá-la com signos da diferença a apresentá-la como uma tendência geral, observada nas grandes cidades que se modernizavam. Um dos eixos da narrativa é justamente o da oposição entre a figura feminina e o grupo social, com suas convenções morais:

Entretanto, a estranha criatura, que excitava hostilidades e fecundava invejas, atraindo o olhar da multidão sem se inquietar com ele, indiferente às normas e rompendo com a firmeza duma Evidência a teia visgosa dos comentários da Hipocrisia, era um ser delicado, espiritualmente meigo e bem diverso em tudo dessa aparência de ironia lúgubre de Rops com requintes de atriz famosa. (DUQUE, 1995, p. 94)

A figura feminina é representação do comportamento destoante, da tomada de atitude anticonvencional e, portanto, especula a própria imagem do intelectual decadentista ou simbolista. Não é à toa que no conto vai-se delineando uma forte oposição entre a aparência e a essência. Se aparentemente “Ela” encarna o protótipo da mulher moderna, podendo-se confundir com o próprio processo de modernização contra o qual decadentistas se colocavam, essencialmente “Ela” que passa na rua é só simulacro da verdadeira, que se dá a conhecer na intimidade de sua casa, sob a providencial mediação da fruição artística, como nos mostra o segundo momento do enredo.

Nessa oposição, no entanto, a liberdade protagonizada pela figura feminina que sai às ruas, não é discutida, do ponto de vista da enunciação narrativa, sendo reconhecida como elemento positivo, mas relativiza-se do ponto de vista social. Ou seja, embora a dicotomia entre aparência e essência pudesse polarizar também o externo e o interno, o público e o privado, levando a um julgamento condenatório da emancipação feminina, isso não ocorre. A perspectiva do narrador é a de valorizar o caminhar impetuoso e libertário da mulher pelas ruas da cidade, mas também de ressaltar que essa impetuosidade somente se expressa de maneira original e verdadeira no recolhimento ao privado. As razões encontram-se justamente no descompasso entre a mulher ousada que encarna a mundividência simbolista/decadentista e a sociedade do início do século XX, que, embora seja historicamente responsável pelo surgimento desse novo papel feminino, não o aceita.

Corria, pela bisbilhotice das calçadas, que Ela, essa perambulante caricatura da Morte em alto chic de season e polvilhos perfumados, era a múmia bem-querida à excentricidade de um lord milionário, que vagamundeava seu spleen por países de sol e terras virgens. (DUQUE, 1995, p. 44)

Percebemos com nitidez que o narrador não critica, em seu discurso, a liberdade sexual que a mulher que sai livre às ruas poderia ter. Não há julgamentos morais quanto às relações entre “Ela” e seus pretensos amantes. O que se condena é a “bisbilhotice”, é a postura maledicente daqueles que a viam passar pelas calçadas tão dona de si, é, em última análise, a hipocrisia dominante.

A sexualidade feminina assumida, inclusive, é um dos pontos fundamentais trabalhados no conto. No plano do enredo, da mulher sensual que desperta a luxúria nas ruas, passamos a outra com um erotismo ainda mais complexo e completo à medida que a podemos observar mais de perto. Tal erotismo intenso derrama-se pela narrativa na representação da figura feminina sedutora que “Ela” vai encarnando, de modo intencional e consciente, quando entregue à música e à literatura em sua casa. A noção de corpo feminino amplia-se no texto, como um espaço de prazer, mas de um prazer misto e totalizante, em que o físico e o espiritual se encontram, ou melhor, fundem-se.

Em sua privacidade, “Ela” revela ao olhar de um narrador embevecido, aquilo que na rua se pode apenas intuir, a verdadeira femme-fatale. Se na rua ela desfilava sua antevista sensualidade, despertando invejas e desejos, via-se lá só a ponta de um iceberg, cuja base se espraiaria totalmente quando “surpreendida na sua intimidade”. Na rua, “Ela” era um corpo desejado, a imagem apenas da mulher sem a marca da individualidade, já em seu recanto, desdobrava-se em matéria e espírito, ambos igualmente tomados por um erotismo novo e imprevisto que unia as duas pontas do mesmo ser.

Por isso, o lugar privado constrói-se de modo especial, como um ambiente único, composto por aquilo que contradiz a rua, símbolo do progresso e da urbanização, mas também da pasteurização humana e da pulverização do sujeito. Dessa construção fazem parte primordial as inúmeras referências artísticas, importantes tanto para o estabelecimento da atmosfera que suscita a erotização feminina, quanto para a tomada de postura ideológica e para a discussão estética explícita a que o conto se propõe ao final, como veremos.

Ao ambiente urbano das bisbilhotices e das massas anônimas e amorfas, opõe-se, assim, uma “locanda de vilegiatura”, em que natureza e arte se entrosam perfeitamente.

Surpreendida na sua intimidade, nos aposentos duma English Pension alcandorada nos barrocais dum monte, paredes brancas entre vergadas mangueiras velhas e pouco distante de fragas musgosas, enfestoadas de avencas, por onde cantava uma estreita faixa d’água nascente, aí surpreendida nessa locanda de vilegiatura a que seu entendimento de arte e o seu educado gosto de peregrina das civilizações deram o encanto dum pequeno Corot pendente sobre o divã, e um rutilante ocaso marinho de Turner, enchendo três palmos do muro junto ao qual mandara colocar o piano para desfastio de suas leituras, é que se admirava em todo o seu valor de mulher, como os inapreciáveis exotismos duma flora fantástica sob os vidros das estufas. (DUQUE, 1995, p. 94, grifos nossos)

O bucolismo evidente do ambiente de isolamento a que “Ela” se recolhe apresenta-se como reação tipicamente decadentista à urbanização que avilta o caráter essencial do ser humano. Mas não é somente a nostalgia da natureza recuperada na habitação de férias encrustada na montanha, entre mangueiras e fontes d’água, que favorece o resplandecer do “valor de mulher” em sua plenitude. Somada a isso temos a arte, presente em várias das suas manifestações. O narrador apresenta-nos uma personagem de forte sensibilidade artística, que frui a obra não só com seu espírito, mas, principalmente com seu corpo erótico.

Da pintura, surgem referências a Rops (1833-1898), a Corot (1796-1875) e a Turner (1775-1851). São quadros dos dois últimos que adornam a casa de “Ela”. Da música, são citados Schubert (1797-1828) e Beethoven (1770-1827), tocados em êxtase ao piano. Da literatura, escolhe-se Wilde, Mallarmé e Samain (1859-1900), cujos versos criam o ambiente afrodisíaco em que “Ela” se revela inteiramente. Essas referências indicam claramente uma opção estética. As notas são românticas, simbolistas, decadentistas e tocam a alma e o corpo de “Ela”. Como chaves, abrem as portas do prazer sensorial da mulher e do homem que a observa.

Aí sim; aí tinha-se o ameaço, a aura da vertigem, de uma temulência prazerosa, ouvindo-se-lhe a voz clara e acre, tal devera ser a das Nixes, acaso falassem elas, porque havia nessa boca o frescor salobro de uma vaga que espadana ao sol do meio-dia canicular. (DUQUE, 1995, p. 94)

A escolha lexical carregadamente sensual faz a Salomé que passeava seu corpo impessoal pelas ruas da cidade acentuar-se em erotismo e sedução não só corpóreos, mas também anímicos. Aos poucos, essa atmosfera vai-se desenvolvendo. A princípio é apenas a cantiga que “Ela” entoa, como uma nixe, que atordoa a presença masculina constituída no narrador. Em seguida, vão-se somando outros elementos - os versos, o piano. De dentro da mulher, de sua alma exposta pela intermediação da arte, surge um fogo obviamente erótico que toma seu corpo, agora personalizado.

E já ela toda se mostrava.

Vinha-lhe à boca os versos de Wilde como um revólver de pérolas que saíssem dum coração sangrando; sonetos de Malllarmé serenos e misteriosos como deuses de pedra na sombra roxa dum bosque; quadras de Samain que parecem escritas sobre veludo negro como estilete de ouro candente... Uma emoção, esmerilhenta de fino pó de rubis triturados, ruborizava, em lavis d’aquarela, a brancura ártica de sua pele... Flamavam-lhe os cabelos num calor de fornalhas, havia não sei quê de delirante e iluminado no seu olhar. Ela ardia! Assim vibrada lembrava uma criação infernal, nervosa Vênus dos histerismos esculpida em mármore e vivificada pelo Fiat de um gesto maldito. (DUQUE, 1995, p. 95, grifos nossos)

O narrador procede, a partir dessa transformação a que parece assistir de perto, a uma descrição minuciosa do processo lento de revelação dessa feminilidade erótica, fazendo-nos, também, observadores privilegiados. Tal descrição apela para todos os sentidos humanos, numa festa sensorial que busca registrar as impressões mais íntimas que o cantar, o declamar, o tocar e o mover-se da figura feminina despertam nela mesma, agente seguro do seu erotismo, e em quem a vigia. A satisfação é sinestésica, feita de referências pictóricas, táteis, sonoras, explicitadas no jogo entre o branco de sua pele a revelar-se e o vermelho sensual de seu sangue aquecido e de seus cabelos ruivos, em seus tons vocais delirantes, no piano que vibra músicas cheias de volúpia, nas palavras da poesia decadentista. Trata-se de uma fruição artística e sexual.

A narrativa constroi assim um movimento de excitação contínua de que participam “Ela” e seu parceiro, mas que “Ela” protagoniza. Há um embate entre a permissão e a proibição, entre um certo recato angelical e uma voluptuosidade satânica, delicadamente conduzido por “Ela”, que promove uma erotização profunda e crescente, apresentada por um narrador tomado de desejo sexual incontido.

Na desenvoltura do movimento escapavam-se-lhe alguns botões do roupão e, favorecido pela trama das guipuras, ia-se o nosso olhar bisbilhoteando nudezas, lambendo a carne excitante da sua gorja, ‘té a suavíssima curva dos miúdos seios de estéril, mais claros e mais macios que a nata fresca de uma queijaria do Tirol.

Ela apercebia-se admirada e desejada, mas sabia ter a nimiedade da excitação: não consentia aos olhos mais do que o necessário para prejulgar, nem ao desejo senão o bastante para adivinhar. (DUQUE, 1995, p. 96, grifos nossos)

As imagens eróticas prescindem de comentários. A ousadia da sexualidade defendida pela narrativa é flagrante, mas não explícita. Se Mallarmé acreditava que “nomear um objeto equivale a suprimir os três quartos de prazer da poesia, que é feito de adivinhar pouco a pouco: sugeri-lo, eis o sonho”, o prazer sensual também assim se alcança. E é exato isso que percebemos nas linhas que se seguem às destacadas anteriormente. De modo preciso, a narrativa vai-se encaminhando para a exacerbação do desejo erótico, alcançado pela sugestão permanente, que se satisfaz em ficar, tantricamente, com sua culminância suspensa. A aproximação entre a fruição artística e a relação sexual vai-se mostrando inequívoca. “Ela”, como sujeito erótico, com suas “garras de amor”, toca o teclado do piano, imagem do masculino, levado a um êxtase que é também sexual.

Esquecia os botões escapados, a meia discrição das rendas, a mesquinha nudez do colo; e, indolente, desprezando cobiças, menosprezando tentativas, passava, corria os seus lindos dedos pelo teclado que estremecia em arrepios sensuais, ao afrodisíaco, terrível contacto dessas pequeninas garras de amor... (DUQUE, 1995, p. 96)

Da ação erótica da mulher passa-se a um orgasmo corpóreo e anímico que se esboça apenas, envolvendo-os todos, sem, porém, concretizar-se inteiramente, esgarçando as sensações de deleite até onde pudessem ir:

E eram suspiros desabrochados entre esperanças e desenganos, cicios segredantes de rogos e promessas, surdos choques de beijos cheios de amor e gratidão, ou gritos violentos, arrebatamentos indômitos, uivos de crises passionais, que volteiavam pela sala, a enchiam, a animavam com a palpitação intensa de uma forte vida humana, e compelia à expansão do instinto sofreado, instigando-o, inflamando-o.

Mas, quando o gesto nos completava o pensamento, ainda que fosse no embaraço súplice de uma carícia, no arquear tímido de um pretendido e meigo abraço, Ela paralisava a ação e anulava o arrojo com o simples enrestar de um olhar nos olhos de quem a cobiçasse [...] (DUQUE, 1995, p. 96-97)

Na narrativa, a sexualidade ganha foros legítimos, pois nasce daquilo que a mundividência simbolista/decadentista mais valoriza: a essência anímica do ser. Ao contrário da sublimação do desejo, de sua anulação para purgar a culpa do pecado sexual, o erotismo impõe-se, no conto, como necessidade genuinamente humana. A arte aqui não apareceu como mecanismo de canalização dos desejos a serem frustrados sublimadamente, mas como instrumento mesmo de erotização, já que a partir dela a alma se expande em um movimento de fruição/excitação que, finalmente, materializa-se no corpo de modo orgásmico. Ela - a arte - desperta o desejo sexual, faz vibrar a alma e o corpo, tocados ambos por um prazer erótico intenso e prolongado. Embora o toque seja substituído pela sugestão, o gozo se dá inteiramente.

No fim do conto, o enredo é interrompido para a introdução de um comentário do narrador, que evidencia a simbologia meta-artística e autorreflexiva da narrativa. Embora a leitura aqui proposta do conto seja procedente, o parágrafo final abre novas possibilidades interpretativas, já insinuadas em algumas passagens anteriores. “Ela”, sintomaticamente apresentada por um dêitico, ainda que grafado com maiúscula, pode-se preencher semanticamente com outro valor: a Estrofe Decadente.

Bem lhe coube, àquela mulher estranha, a singular alcunha com que o risonho espiritualismo dos Delicados a aclamou: Ela foi a esfíngica, lavorada Estrofe Decadente. De fato, isso foi, por sua perturbante originalidade e por seu incomparável espírito...  (DUQUE, 1995, p. 97)

Com isso, toda a narrativa ressignifica-se: a experiência sensual/sensorial referir-se-ia ao modo particular como a relação entre a arte e o público deve ser estabelecida, o gozo sugestivo de corpo e alma é o seu resultado. Mas, principalmente, a posição marginal de “Ela” demonstraria o lugar estético reservado àquela poética que ousa diferençar-se.

Ah! estúpido olhar da Convenção, tu não sabias quanto era formosa essa mulher que julgavas feia! Não compreendeste sua beleza, porque a Sanção fez da tua visualidade um aparelho estreito e mediocremente sensível, onde só se refletem as imagens posadas segundo os ditames de velhas regras e de usadas teorias. O que é estranho, novo, nobre e grandioso, foge à tua apreensão - tu fitas sem entender, tu percebes sem sentir, tal o olhar do ignorante com os mundos siderais, que ele confunde numa só forma e num mesmo brilho. (DUQUE, 1995,  p. 97)

Como Vera Lins (1991) já nos tinha perfeitamente revelado, Gonzaga Duque, tomando a voz narrativa, configura-se como o franco-atirador, o intelectual combativo, ciente do estigma a que estavam fadados ele e sua estética, ininteligíveis aos olhares viciados da “Sanção” e da “Convenção”. O conto, com suas múltiplas plataformas de leitura, torna-se, assim, exemplo contundente do quanto pode ser engajada a narrativa simbolista/decadentista, se observarmos o mundo (social ou artístico) a partir de seu ponto de vista. Tanto na apresentação da figura feminina libertária social e sexualmente, quanto na sua interface literária opositora em relação ao estabelecido, longe estamos aqui da pecha de alienado e de nefelibata que sempre caiu, preconceituosa e pesadamente, sobre os ombros do estilo.

A questão feminina, como já dissemos, transforma-se em Horto de mágoas, em um claro eixo temático que discute as sutilezas das relações não só sociais como subjetivas entre o homem e a mulher. Nessa linha de discussão, a imagem da femme-fatale, da Salomé decadentista, também aparece em “Miss Fatalidade”, embora em outra perspectiva, comprovando a versatilidade do autor na abordagem da matéria narrativa decadentista. Seu título já nos remete de pronto ao imaginário que cerca a sedutora mulher que personifica a própria “Fatalidade”, ou seja, aquela sob o jugo de quem ficam os homens, sem escapatória. Mais do que em “Aquela mulher...”, em “Miss Fatalidade”, o mito decadentista da voluptuosa Salomé se concretiza com “angulações de uma beleza perversa, de encanto contaminador, cujo surto motiva espasmos de prazer e terror”, como nos diz Luiz Edmundo Bouças Coutinho (2002, p. 142). A figura feminina é aqui tributária legítima do processo de apropriação e transformação que o Decadentismo fez do mito bíblico, acrescentando-lhe a necessária perversidade erótica, tão cara a esse estilo. Sobre essa apropriação, exemplificada pelo conto que ora estudamos, leiamos as palavras de Paula Mourão (1997):

O mito de Salomé, ao longo da história das suas ocorrências textuais, cada vez se afasta mais da glosa do texto matricial dos Evangelistas, e progressivamente se encaminha para a miscigenação com diversas figuras mitológicas que se estruturam segundo um mesmo paradigma disfórico, de sexo representado como ritual violento, angustiante, provocador de ruínas, morte e destruição. (MOURÃO, 1997, p. 116)

Tal representação é seguida, com exatidão, na construção da imagem de mulher apresentada nesta narrativa de Gonzaga Duque, que, como a Salomé pintada por Gustave Moreau e analisada por Latuf Mucci (2002), constitui-se na própria encarnação da Luxúria:

Salomé emblema, absolutamente, a deidade simbólica da indestrutível Luxúria, a deusa da imortal Histeria, a beleza maldita entre todas pela catalepsia, que lhe inteiriça as carnes e lhe enrija os músculos, a Besta monstruosa, indiferente, irresponsável, insensível, a envenenar, como a Helena antiga, tudo quanto dela se aproxima, tudo quanto a vê, tudo quanto a toca. (MUCCI, 2002, p. 17)

De forma análoga, em “Miss Fatalidade”, o relato dos acontecimentos nos apresenta essa Salomé destrutiva, ícone polimorfo do amor e da morte, que leva todos seus inúmeros amantes à ruína.

Esse conto é o que, em Horto de mágoas, melhor apropria-se do paradigma da narrativa convencional, em que os elementos estruturais como enredo, tempo e espaço encontram-se bastante bem definidos. Da mesma forma, a linguagem utilizada no conto afasta-se flagrantemente do burilamento estilístico que vimos ser a marca do discurso do autor nos outros textos estudados; aqui ela ganha certa naturalidade incomum à obra, além do uso bem mais evidente e produtivo do discurso direto. Creditamos essa diferença na construção narrativa à intenção deliberada do autor de justamente colocar, em primeiro plano, a história em si, a fabulação, os acontecimentos, para os quais se volta exclusivamente a atenção do leitor, que se depara com a aparição da inacreditável Salomé.

A narrativa se organiza em dois momentos distintos: o primeiro, que corresponde a um passado remoto, apresenta-nos os principais personagens do conto - o narrador, Hortência e seu amante - e o segundo, que se passa em um passado mais recente, desdobra-se em dois outros planos - o do reencontro entre o narrador e o amante de Hortência e o do relato do amante sobre as desventuras causadas nele e em outros homens por Hortência, a própria encarnação da “Miss Fatalidade”.

No primeiro momento do conto, cria-se já uma atmosfera que em muito lembra o dandismo decadentista: o narrador e seu fino amigo João Carlos jantam no elegante salão da British Pension, conversando sobre as “intimidades de boemia literária com Harold Swan” (DUQUE, 1995, p. 113), quando percebem a presença de uma mulher excepcional, que se faz notar antes mesmo de ser vista, pelo perfume sedutor que exala:

Procurei instintivamente donde vinha o hálito dessa flor dos luares e fui esbarrar com os olhos numa radiosa rapariga loira, que tomara lugar em mesa fronteira à nossa, com o busto contornado pela carícia fresca de cassas brancas e rendas caras, perfumada e florida como uma deusa em festa.  (DUQUE, 1995, p. 113)

O deslumbramento que essa Salomé provoca está sendo apenas esboçado. O narrador perde-se na beleza da mulher, embevece-se de maneira explícita, revelando um desnorteamento que só o desenrolar do conto provará de que intensidade poderia ser.

Não sei dizer o estremação que me abalou nem de que modo me portei, mas sei que João Carlos suspendeu o volutear bizarro da sua frase e fixou nos meus olhos as suas rútilas pupilas negras. Compreendi então o alvoroço que essa senhora me causara, e sorrindo, a disfarçar o efeito do relâmpago emotivo, volvi-me para João Carlos:

É uma mulher fulminante, João. No gênero nada há de melhor; mata ao primeiro choque. (DUQUE, 1995, p. 113)

Ainda que não saiba dos fatos que mais tarde ser-lhes-ão revelados pelo relato do amante, no segundo momento do conto, o narrador indicia a história com sua profética fala. Nesse ponto do enredo, a aparente normalidade dos fatos logra o leitor de Gonzaga Duque, acostumado a outro universo ficcional. No entanto, esse estado de coisas vai sendo corroído com pequenos outros indícios, a se somarem à fala destacada do narrador, preparando o insólito que irromperá no segundo momento da narrativa.

A começar pelo inescapável magnetismo que a figura feminina exerce sobre o narrador de forma a tirar sua autonomia de sujeito, seu poder de decisão:

[...] eu não mais pude desprender da fascinação dessa mulher. Amiúde entre o espaço duma sílaba vocalizada e de dois segundos passados, iam-se-me com os olhos os desejos para ela. E de instantes a instantes, apesar da distância, descobria-lhe belezas componentes da harmonia perfeita.  (DUQUE, 1995, 113)

E seguem vários períodos de descrição exaustiva da estonteante beleza física da mulher, intensificando seu poder. A sedução exercida é tão potente que promove em torno da figura feminina uma tal anulação dos demais elementos da realidade, que assim nos é apresentado, porque assim percebido pelo narrador enfeitiçado, o amante que a acompanha:

Mas, um momento, reparei o que quer que fosse, que se lhe aproximara. Intrigado, perguntei a João Carlos:

- Dize-me tu que é que ela tem ali, quase no ombro esquerdo?

João examinou. E enviesando a boca de nojo:

- Se não é um carrapato deve ser o amante (DUQUE, 1995, p. 114)

A opção esdrúxula de reificar o amante justifica-se, portanto, como estratégia discursiva para acentuar a força atrativa que nossa “Miss Fatalidade” exerce sobre o inadvertido narrador.

O aparente prosaísmo das cenas até aqui apresentadas e que fazem, desse momento inicial do conto, uma narrativa bastante distinta das que já estudamos é posto em dúvida pelo seguinte fragmento:

Uma tristeza obscura me acabrunhou. Donde viria ela? Por que me assaltava? Saudade, certo que não era. João Carlos foi o meu íntimo desde a adolescência, mas havia uns vinte anos que habitava Londres, raramente aparecendo no Rio, e ainda assim por semanas, à pressa e nauseado. Eu me habituava aos seus demorados eclipses. Saudade de o deixar, pois, não era. Nada sei. Foi, no entanto, uma tristeza que me abafou a alma... (DUQUE, 1995, p. 114-115)

Essa passagem, em que o narrador apresenta-se tomado por sentimentos incompreendidos, revelados pelas interrogações retóricas, fará a transição para o segundo momento narrativo, em que o relato ganhará as tintas do insólito e no qual a Salomé decadentista tomará forma completa.

Ocorre um corte temporal - a passagem de dois anos - e encontramos o narrador em uma estação termal, conversando com um homem que se apresenta como o amante que acompanhava a estonteante mulher, naquela noite na British Pension, cujos acontecimentos foram relatados no primeiro momento do conto. Depois de breve diálogo entre os dois, a voz narrativa é cedida ao amante, que se encontra em situação de total desespero. Somos, finalmente, apresentados à Salomé diabólica, representada por Hortência, a “Miss Fatalidade”. Conhecemos que, ao lado de Hortência, o amante rico e bem sucedido, encontrou a falência, em uma série irreal de infortúnios. O relato do pobre homem não deixa dúvida, porém, sobre sua posição ainda apaixonada, mesmo diante das evidências, que o conto depois nos dará de forma irrefutável, acerca das causas dos fracassos experimentados: a figura feminina.

E em vinte quatro horas perdi o dinheiro empregado! O meu desespero foi inarrável. Temi enlouquecer. Com o novo fracasso tive a apreensão de perder Hortência, porque era ela, só ela, unicamente ela o que eu queria! Apavorado, roído pelo insucesso, perseguido por pensamentos maus, corri a quantos conhecia rogando-lhes o apoio, pedindo quantias emprestadas para tentar outra vez a sorte. Nada encontrei... Nada!... (DUQUE, 1995, p. 116)

Para a personagem, o drama que o dilacera não é da ordem dos fatos objetivos, da corrosão da fortuna, da sorte financeira que o abandonou, mas resultado do temor de perder aquela que passou a lhe dar sentido à existência. O discernimento racional do personagem fora embotado pelo processo de encantamento promovido pela “Miss Fatalidade”, a Salomé que opera sua dança sedutora, símbolo da beleza maldita, que instaura simultaneamente a excitação sensorial e o engano. Ela certamente encarna a oposição à heroína romântica, aplacando a sede decadentista pelo novo e pelo proibido.

Conhecemos também a maldição que acompanha Hortência. A personagem relata ao narrador e aos leitores os sucessivos casos que comprovam a relação de causalidade estabelecida entre o amor inevitável despertado por essa Salomé e a destruição dos amantes. Foram dizimados, pela femme-fatale, em oito anos, um banqueiro russo, um barão austríaco, dois oficiais vienenses, um rapaz de uma ilustre família italiana e a personagem, que tentava, inutilmente, livrar-se da ascendência da amada havia dois anos.

Um terror acompanha-lhe os passos; os que a veem e se apaixonam têm-lhe medo; ela própria aterroriza-se com o Amor. Faz-se em torno de sua divina beleza uma atmosfera de pressentimentos, comparam-na, talvez impropriamente, à mancenilheira; houve mesmo quem a chamasse amorfófala fatal do amor... Uma tolice! (DUQUE, 1995, p. 117)

A exclamação final demonstra que, apesar de a personagem estar reclusa e distante de Hortência, e de ela mesma expor em detalhes os fatos que parecem irrefutáveis, estabelecendo a insólita relação de causalidade que já citamos, ainda encontra-se sob a influência maléfica de Salomé. A total impossibilidade de fugir aos engenhos diabólicos dessa mulher é tragicamente exposta pelo personagem.

Eu sou o primeiro a considerar o meu ridículo, porque diante do que expus, toda a queixa é ridícula. Mas, que hei de fazer, se a amo? Amo-a, sim, amo-a com toda a minha alma; amo-a, sim, através do meu terror. (DUQUE, 1995, p. 118)

A relação paradoxal entre o amor e o terror causados no sujeito, aqui revelada com clareza, marca o conto como representante típico do universo decadentista, no qual há a atração incondicional pelos estados lúgubres e mórbidos da existência, vistos como estados de satisfação e de gozo. A femme-fatale, nesse contexto, é figura exaltada, buscada, que consome o imaginário atormentado do homem, mais que lhe dá o prazer supremo.

Se me viesse às mãos outra fortuna voltaria para Hortênia; iria de bom grado entregar-me ao seu ambiente maléfico. Às vezes, chego a crer que o Diabo, vendo-a tão formosa, opôs à perfeição de Deus o ardil do seu engenho. Ah!.... O senhor não a conhece, o senhor simplesmente viu-a... [...]

O seu afeto é delicado e enorme, só ela sabe amar; enfeitiça, seduz, prende, escraviza com a sua ternura, que não tem semelhante na terra! O seu espírito... Deus meu! Nem sei a que a comparar! Atrai e encanta. Ouvi-la é amá-la, porque a música da sua voz traduz todas as belezas dum cérebro de artista... E a sua distinção, a sua elegância, o seu fino, perfeito bom-gosto!... Não há corpo que melhor se vista, não há mãos mais bem feitas nem unhas tão bem tratadas, nem epiderme mais fresca e mais cheirosa, nem cabelos mais quentes!... Que força malvada, que poder diabólico a perseguem?... (DUQUE, 1995, p. 118)

Como uma medusa, uma sereia, uma Salomé cujo corpo sensual executa sua dança, pedindo a cabeça de João Batista, Hortência domina totalmente a personagem masculina, cujo fim não pode ser outro que não a morte, vindo coroar a relação como uma espécie de orgasmo macabro. Desprovido dos sentidos, ele põe “termo à sua angustiosa paixão com um tiro certeiro de revólver no ouvido...” (DUQUE, 1995, p. 119). Dá-se a vitória da transgressora feminilidade, ou como diria Baudelaire: “a mulher tem fome e quer comer. Sede e quer beber. No cio quer ser comida. Que glória!” (apud: OLIVEIRA, 2008, p. 20).

A relação entre a imagem feminina e a transgressão, que nos remete diretamente ao ideário decadentista, ganha contornos inusitados em outro conto de Horto de mágoas: “Agonia por semelhança”. Nele, em vez de termos a mulher materializada em um ser sedutor que subjuga eroticamente o homem - como ocorre em “Aquela mulher!...” e em “Miss Fatalidade” - somos levados a algo ainda mais corrosivo, a uma espécie de arquétipo feminino sobre o qual se curvam todos os sentidos masculinos, excitando os desejos mais recônditos e proibidos.

O conto apresenta um enredo de cunho absolutamente psicológico. Não há propriamente ações. Toda história narrada passa-se na mente do protagonista - Paulo - obsessivamente tomada por uma imagem de mulher que lhe surge e a qual ele quer e precisa desvendar, como a uma esfinge. No entanto, apesar da ausência de fatos convencionais, temos um encadeamento temporal exato, que, embora não marcado cronologicamente, revela a progressão dos acontecimentos da reconstituição da memória. O narrador esforça-se em elucidar detalhadamente o jogo do relembrar a que se entrega a personagem, evidenciando o processo doloroso das idéias que se associam, em busca de uma reminiscência passada, por alguma razão obliterada. Revela em minúcias a agonia da procura na lembrança, a angústia em identificar, entre o que ficou retido do passado, o referente da imagem que assombra como um fantasma o personagem.

Todo esse estado de coisas mental tem início também por um fenômeno psicológico: a associação de idéias como reveladora de estratos inconscientes do sujeito. No primeiro parágrafo do conto, Paulo, que lia Panteu (1892), de Joséphin Péladan (1858-1918) - escritor ocultista francês -, para a leitura e, ao acaso, observa um lenço negro sobre o mármore de um toucador. Essa visão é o estopim para a observação dos processos da mente humana a que o conto se dedica. O lenço negro desperta na alma de Paulo uma “saudade” que vai ganhando, aos pouco, a forma esvaecida de um corpo de mulher.

[...] esta mancha negra e imóvel veio dominá-lo, a encontrar com as flocosidades baixantes de seu íntimo, atormentado sempre nas indagações e dúvidas hamléticas de uma psicopatia escandinava, brumosa como os horizontes hibernais dos mares longínquos do extremo norte. E quando se fundiram as duas nebulosidades - a ressalta da objetividade febril do lenço negro, a expelida pela subjetividade febril do seu espírito agônico -, uma forma se condensou na fusão extrema, forma rubenesca de mulher veripotente, sadia da idade produtiva, com alvores lácteos em cristais palidamente sanguíneos, trevores caliginosos de olhos incendidos e uma severidade fantástica do paládium de luar boreal sobre toda a cabeça, toucando de velhice o que era palpitantemente moço, palpitantemente forte, palpitantemente desejável. (DUQUE, 1995, p. 49-50)

O surgimento dessa “forma rubenesca de mulher”, a partir da fusão do lenço com os nebulosos pensamentos do protagonista, acompanha-se de uma forte erotização, revelada de modo emblemático pelo discurso narrativo. Embora a forma feminina, a princípio, somente exista na mente da personagem, o narrador a torna concreta pela enfática utilização de referências plásticas a descreverem essa imagem renitente. Aparece o corpo feminino como um elemento paradoxalmente latente e físico, decomposto em partes evidentemente sensuais.

A memória, por uma razão ainda não apresentada, mas antevista, não recupera o referente da imagem prontamente, mas o fragmenta em abdômen, quadril, coxas, músculos, seduzindo a personagem e a abandonando totalmente à obsessão de evocar esse corpo. Novamente, a mulher, como uma fêmea a dominar o macho, cerca por completo o homem, exercendo seu poder de modo ainda mais forte do que o visto nos outros contos, porque dessa vez prescinde de sua presença material, avançando, devastadora e simbolicamente, sobre o pensamento masculino por ela obcecado.

Paulo quedou repará-la, calcando com a investigação o amplo desenho do corpo, como se decalcasse do original uma cópia fidelíssima de pinacoteca, seguindo, amoroso e lento, a flexibilidade angular do suporte abdominal aberto em bifurcação esquemática de um caule afrodisíaco e fecundo - descendo empós, lento e amoroso, ao rígido delineamento das coxas, serenamente lançado numa pureza apaixonada de molhagem Ática, túmida de tendões, dura de músculos, com as pletóricas academias flamengas, apoteose épica de carnalidade apolentada das mulheres robustas d’Anvers e da Flandres. (DUQUE, 1995, p. 50)

A seleção vocabular não deixa dúvida sobre o intenso erotismo da imagem projetada na mente de Paulo e a que, à revelia da abstração, observa com rigor objetivo. A ambiguidade entre a descrição detalhada de aspectos físicos sensuais e o fato de essa ser somente a imaginação da personagem torna mais complexo o jogo de dominação do feminino, como já dissemos, pois desfaz a oposição natural entre a subjetividade e a objetividade. A Salomé ressurge de forma imagética e, por isso, ainda mais potente. Ela não se manifesta externamente ao homem, mas constituiu-se em parte dele, de seus pensamentos obsessivos. Se desejarem saber mais a respeito da feminilidade, indaguem da própria experiência da vida dos senhores.” (FREUD, 1996, p. 134). Por ela, a personagem enreda-se em suas próprias lembranças, a fim de decodificá-la.

Já na rede memorativa, tinha-se-lhe intumescido uma célula reminiscente, associando a visão a uma fugitiva, apagada lembrança de corpo semelhante que se esbatia, se difundia em resíduos sepiosos de abandonada fusilagem secular, e seu espírito febricitava no desejo de evocá-lo desse passado que lhe ficara em retalhos no amontoado das recordações, desprezado entre sensações gozadas. (DUQUE, 1995, p. 50)

O conto vai assim discutindo dois elementos básicos - por um lado, a complexidade das relações entre a memória e o sujeito, relações essas capazes de revelar o inconsciente, como se verá mais à frente, e, por outro, a subordinação do homem ao eterno-feminino, aqui representado arquetipicamente por essa mulher enigmática que acorda e domina o erotismo masculino somente com sua imagem.

Paulo tem a certeza íntima de que essa visão sedutora de mulher refere-se a alguém que efetivamente conheceu e que lhe despertou, na verdade, no mundo da experiência física, os desejos carnais agora excitados pela simples imaginação. Sua luta interior corresponde ao enveredar pelos caminhos muitas vezes inóspitos da memória, para trazer à tona essa mulher esquecida.

Mas teimava na doentia procura da recordação, forçando a memória para coordenar uma imagem igual, uma esquecida já, talvez inexistente imagem, se não fora a persistência desta visão que se lhe antojara sempre e se lhe antojara hoje, mais viva do que nunca, mais remitente, mais lúcida, perseguindo-o como um remorso, espectro vingativo de quem quer que fosse, obstinando em se fazer saudoso como sombra sonâmbula, deslizante e melancólica de esposa morta no esfalfamento sonhador de um nupcial de uma noite e que ele agora desejava reconstituir, chamar a si, recompô-la, revivê-la com toda a intensidade de vida que tivera... Ia recordando aos poucos, aos poucos ia relembrando; ia refazendo, ia remodelando aos poucos e aos poucos... e lentamente, e vagarosamente, parecia-lhe distinguir, muito longe, alguém semelhante a quem ele procurava pacientemente, dolorosamente... (DUQUE, 1995, p. 50-51)

Na passagem transcrita anteriormente, percebemos a reincidência com que essa imagem sedutora e enigmática de mulher primordial “lhe antojara sempre”, perseguindo-o como uma sombra, uma vingança, um remorso - elementos que indiciam a identificação final, no inconsciente de Paulo, da mulher que o seduz. No entanto, as tentativas de rememoração parecem travadas pela barreira do esquecimento. A imagem não encontra seu duplo, que permanece oculto em alguma parte da psique do protagonista. Desesperado por encontrar a resposta para essa fixação sedutora, Paulo esforça-se em lembrar-se da mulher que representa a visão que o acompanha. Pensa em amantes do passado, mas nenhuma lembrança concreta parece corresponder à imagem obsessiva da Salomé que lhe devora as entranhas.

E procurava aflitivo, retrocedendo ao passado, aos tropeços por escombros de recordações, perdendo-se no reconhecimento de formas exumadas, pálidos escaveiramentos de gozos extintos, que serravam a dentuça na algidez desesperada do olvido, pasmando as órbitas vazias numa loucura de terror eterno; farrapos esquálidos de brancuras arminhentas de ideais sucumbidos, sudários esfrangalhados de crenças perdidas; casos que existiam para a sua vida como fatalismos, acidentes por que passara, tudo que tinha rolado na desagregação dos anos de que já perdera a noção, vinha estorvar-lhe o retroceder ansioso para a distância incalculada onde permaneceria serena, impertubável como um ídolo budista, plantado à porta de um relicário, essa misteriosa figura de mulher esfíngica aguardando impassível a satisfação da semelhança procurada. (DUQUE, 1995, p. 51, grifos nossos)

A dificuldade do processo de rememorar, de encontrar em si mesmo as respostas adormecidas das sensações eróticas despertadas, é aqui apresentada com grande força estilística, através de imagens que apresentam o poder destrutivo do tempo em relação ao que se fez passado - “formas exumadas”, “farrapos esquálidos”, “sudários esfrangalhados de crenças perdida” -, lançando ao sujeito o grande desafio do resgate do que foi e do que viveu. A explicitação da metáfora da “esfinge” - “impertubável como um ídolo budista” - revela a posição limite do sujeito que precisa decifrá-la, com o auxílio da memória enfraquecida pelo tempo, para não ser por ela devorado.

Por isso, a personagem busca completar as lacunas do corpo lembrado. Tenta juntar às partes que já tem claras - o quadril, as coxas, o abdômen - outras mais, que elucidem o mistério imposto pela Salomé do seu inconsciente: ele quer o rosto. Esboça-se uma dicotomia requintada entre o abstrato da visão que persegue Paulo e a concretude da mulher que deve ter existido e agora se encontra apenas em sua memória.

Desde que o seu extravagantismo de nevrótico impulsionara-o à conquista daquela mulher, vivia neste tormento de memória, gozando a mágoa de não gozar, porque esse gozo se transformara numa amargura investigadora de semelhantes da imaginação ou fosse pela verdade despertadora de uma recordação empalidecida, macerada na coma consumptiva da faculdade rememorativa ou grangrenada nas agitações de uma vida extraordinária de doente.

E dia a dia peregrinou por essa preocupação de descobrir a afinidade existente entre a amante excêntrica de hoje e alguém que vivera intimamente consigo [...] (DUQUE, 1995, p. 52)

Dilacerado pela fixação de encontrar as origens dessa excitação, de localizar um corpo concreto para a visão sedutora que o persegue, Paulo avança sobre a própria memória de onde salta um busto, um decote, um colo, uma garganta, unindo-se aos fragmentos de mulher já relembrados.

Ele conhecera uma garganta semelhante, e mais a aproximativa valorizava-se pela correspondência igualitária do colo, régio, digno de tão lindo pescoço, colo feito para ofegos lentos de paixão, nu, coroado das espumas valencianas de um decote de gorgurão azul, ao soro luminoso das estearinas de enormes lustres resplandecentes dos salões de luxo. Mas, onde?... Onde?... Esculturava então os ombros, a altura carnuda do rebolo, a linha contornada do braço, as cavidades gorduchentas dos cotovelos róseos e o enlaço elegante dos antebraços cujas mãos tinham o característico quirognomônico das mãos de prazer, moles e voluptuosas. (DUQUE, 1995, p. 53)

A sensação erótica é clara. Essa é a Salomé arquetípica que lhe rouba os sentidos, despertando-lhe desejos intensos e primordiais. Cada parte desse corpo, que é o da própria fêmea essencial, seduz, explicitando a volúpia, cuja gênese ele procura. Trata-se da busca pelo conhecimento de seu erotismo, da descoberta da sua pulsão original para o sexo, que se esconde certamente na visão perseguida. Novas hipóteses são formuladas pela consciência de Paulo.

Na adolescência, quando o organismo recebia os saculejos da virilidade apontada, conhecera uma mulher... que deveria ter sido assim, com aquele busto, com aquele pescoço... talvez fosse uma tia, diante de quem passara horas a notar, a namorar, silencioso, numa idolatria de desejos, a beleza radiosa de flor aberta donde se exalava o aroma sensual do Pecado, criminosamente penetrante, deliciosamente convidativo... (DUQUE, 1995, p. 53)

Já aparece a associação entre o desejo sexual e a sublimação efetuada pela moral, nessa imagem sensual que obcecadamente se antepõe ao personagem. Essa visão feminina parece ter surgido de um desejo castrado, frustrado, irrealizado, por uma fêmea proibida que lhe moldou a libido. Mas Paulo sabe que ainda não a encontrou. Ele precisa somar ao corpo a cabeça, encontrar no rosto ainda olvidado a identidade que explicará tantos desejos confusos, renascidos na imagem que o persegue.

Debalde queria fugir ao desespero dessa obssessão, esquecer a impertinência mórbida da semelhança prejulgada, mas a energia alquebrava-se-lhe vencida pela hiperexcitabilidade; e, se via essa mulher, o prazer de possuí-la mudava-se no tormento de aproximá-la a alguém que lhe enfermava o espírito, que rastejava por dentro dele, cascavelando a presença letal do vírus, e estendendo na sua alma o silêncio angustioso dos isolamentos oceânicos aos prenúncios dos ciclones. (DUQUE, 1995, p. 54)

A escolha cuidadosa dos vocábulos usados para definir a lembrança vaga da mulher que o persegue leva-nos a Salomé decadente e enigmática, feita em cascavel, em vírus letal, em ciclone, ícones dessa femme-fatale do inconsciente. Por mais que tente escapar, Paulo retorna a ela, num moto-contínuo doentio. Sua memória, transformada em um labirinto no qual se perdeu essa buscada fêmea primordial, é exigida ao máximo, como forma única de aplacar o desespero do protagonista.

Pareceu-lhe lembrar-se mais nitidamente de alguém. Existiu quem quer que fosse com aquela cabeça... E procurava sôfrego, queimando de febre pela labiríntica tecedura do estafante rebuscamento de recordações, essa apagada visão errante, espectral, voltando sempre, sempre fugindo, de que ele se despegara e a que se fundia, temendo-a, desejando-a [...]. (DUQUE, 1995, p. 54)

Cada vez mais, ficam explícitos os elementos psicanalíticos com que o conto trabalha. A lembrança estabelece com o sujeito que busca avivá-la um jogo entre o velar-se e o revelar-se, que nos remete aos embates entre o consciente relativamente em equilíbrio e o desnorteamento desencadeado pelo inconsciente a aflorar. O desejo e o temor se unem nessa reminiscência salomélica.

O próprio sujeito, sozinho, não consegue ultrapassar os limites que seu consciente, em instinto de autopresenvação, impõe. A revelação da gênese do erotismo do personagem e, consequentemente, da mulher cuja visão o persegue precisa ser intermediada por algo que exceda a subjetividade. Por isso, Paulo recorre a velhas fotografias, como testemunhas da memória sabotada pela consciência, entre as quais pretende encontrar a materialização da imagem e a decodificação do enigma imposto por essa esfíngica Salomé obcecante.

Rápido correu a buscá-las; espalhou-as diante dos olhos, tomando analiticamente uma a uma que lhe caíam das mãos, mudas, inúteis como esboroamentos de velho solar inabitado, nos charaviscais impenetráveis de domínio extinguido. Uma a uma... e nada!... e nada!... Moças cabeças de raparigas amadas; melancolias expressivas de tuberculoses incipientes; traços saudosos de família. Uma a uma... e nada!... e nada!... [...]

Mas, na última, um cartão carbonado e fino das oficinas de Nadar, onde se manchava a brancura serena de uma velhice nobre, rompeu estranha impressão que o fez dilatar as pupilas, fixando nele o olhar. (DUQUE, 1995, p. 55)

A narrativa aqui lança mão ainda mais um pouco do recurso, já bastante utilizado nesse conto, do suspense. Todo o processo de rememorar da personagem, como investigação psicológica meticulosamente executada pelo narrador, acirrou no leitor, sem dúvida, a expectativa da revelação final, que ainda precisará de alguns parágrafos para se fazer. No ponto crucial a que se refere a passagem anteriormente transcrita, o suspense mantido intensifica o drama interno de Paulo em tomar ou não consciência do que lhe foi revelado pela visão do retrato. O dilema entre o consciente e o inconsciente, entre a moral e o desejo, entre a sublimação e a erotização, tornam o complexo, que saberemos ser o edipiano, ambíguo.

E por um tempo vagaroso esteve analisando este rosto fotografado, comparando a honestidade expressiva desta séria fisionomia boa com a resfolegante avidez da outra; o traquilo olhar veludoso e protetor que a carbonagem melancolizava com o esfuziamento lúbrico das grandes pupilas funestas dessa que extravasara o satanismo da carne irritante na histérica anormalidade de seus nervos... E bem devagar, começou a sentir um alívio intenso pela tremura dolorosa das suspeitas, afastando-se da impressão primeira, seguro do valor diferencial dos detalhes. Ah! Se era de sua mãe este retrato!... (DUQUE, 1995, p. 56)

O conto opta por uma hábil saída que possibilita múltiplas leituras, criando um final em aberto. Percebemos com clareza a autosugestão, a tentativa de Paulo de se persuadir do engano provocado pela “primeira impressão”: esta não era - não podia ser - a Salomé que lhe roía as entranhas sensualmente, pois esta era sua mãe!

O incesto prenunciado é rechaçado pela consciência angustiada da personagem, ainda que todo o conto tenha apresentado índices certeiros de sua ocorrência. Não é à toa que em diversos momentos a imagem renitente da mulher ganhara atributos ligados à fertilidade, à maternidade, como na passagem a seguir:

Aí, nestes repletos quadris, larga bacia de fecundadora proeminenciando a fartura abaulada e orgulhosa de um ventre frutificador, ele sentia o que quer que fosse de alguém, talvez dessa saxônica mulher carnuda, de uma robustez pagã para a multiplicação da raça dos fortes e dos musculosos. (DUQUE, 1995, p. 51, grifos nossos)

Certamente, a “primeira impressão” não foi mentirosa, mas sua aceitação, ainda que no âmbito do discurso do narrador, que nesse caso adota o ponto de vista de Paulo, não pode se dar, ao menos explicitamente. O parágrafo que se segue à revelação do complexo edipiano, negado pela força das oposições criadas entre a pureza da mãe e o erotismo da fêmea, auxilia a amplificação da ambiguidade da narrativa, com o ressurgimento da imagem obcecante, agora contaminada pela flagrante sensação de culpa e de aversão ao próprio instinto.

Ressurgira. Parecia-lhe ter surdido de uma desconhecida paragem negra de hulha, solo infecto de lodo, ambiente asfixiante de charqueadas, por onde coleia um monstro escamado de bostelas pútridas, cujas escamas viciosas, esverdinhadas e ulcerentas, destilando pus, matraqueiam soturnamente à distensão nervosa do rastejo; cuja carranca feita de crânio descarnado de gorila tem clarões orbitais de brasidos do inferno, e ri, e ri, com a enorme fauce bárbara, emaranhada de fibrilhas chagosas de carne nauseabunda, atulhada de restos macerados da Dedicação e da Honra, besuntada de escuro sangue coagulado, de rubro sangue vivo e de excremento... Ressurgira! (DUQUE, 1995, p. 56)

As entrelinhas do discurso deflagram-nos a sexualidade contaminada pela avaliação moral negativa. A imagem sedutora da mulher surge de um lodaçal, de um “solo infecto”, que é o do inconsciente revelado. No entanto, essa imagem não some da mente de Paulo; a sublimação já não é mais possível. Ao contrário, a visão da Salomé ressurge mais uma vez, e mesmo que a personagem não assuma de modo explícito as evidências incestuosas, que apontam claramente para uma atmosfera decadente, a perseguição erótica continua, como uma maldição eterna e primordial que o feminino impõe ao homem.

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MUCCI, Latuf Isaias. A postura de Gustave Moreau e seus elos com a literatura decadentista. In: COUTINHO, Luiz Edmundo Bouças. Arte e artifício: manobras de fim-de-século. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 2002. 

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[1] Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ - Professora do Colégio Pedro II