Novas descobertas sobre duas pinturas de Eliseu Visconti
Mirian
N. Seraphim *
SERAPHIM,
Mirian N.
Novas descobertas sobre duas pinturas de Eliseu Visconti. 19&20,
Rio de Janeiro, v. V, n. 2, abr. 2010. https://doi.org/10.52913/19e20.v2.05
*
* *
1. Qual é
o momento ideal para se publicar uma pesquisa? Oito anos ininterruptos de
estudos sobre uma mesma pintura são suficientes? A julgar pelo estado da
historiografia da arte no Brasil, que só agora começa a ser revista e corrigida
com rigor científico, muito se tem para acrescentar. É urgente a divulgação desses
estudos, para que ela possa estimular também outras pesquisas. Infelizmente,
dos nossos arquivos públicos, que detêm a maior parte das fontes primárias,
cujo exame é indispensável para um trabalho sério e original, poucos têm
verdadeiras condições de trabalho.
2. Neste
sentido, eu quero registrar uma instituição exemplar: o Arquivo Edgard Leuenroth - AEL, do IFCH, Unicamp. Além de possuir um
acervo incomparável sobre a história política deste país, esse arquivo promoveu
a microfilmagem de muitas coleções de jornais da Biblioteca Nacional, e
recentemente, mudou-se para uma sede nova, ainda mais ampla e bem equipada.
Porém o que é mais precioso, a meu ver, é a maneira como trata o pesquisador.
Sem regras proibitivas injustificadas, o AEL disponibiliza máquinas leitoras
modernas que, acopladas a computadores, possibilitam ao pesquisador digitalizar
o conteúdo da tela e salvar em mídia portátil o material que poderá ser
trabalhado depois. Promove, assim, a otimização do tempo, tanto do pesquisador
quanto do próprio arquivo, gerando a possibilidade de que mais pessoas tenham
acesso ao seu acervo. E tudo isso inteiramente de graça!
As possibilidades de um arquivo eficaz
3. Foi
graças ao AEL que eu pude vasculhar, exaustivamente, os jornais cariocas para
escrever, ao menos um início, da história das Exposições Gerais de Belas Artes
(EGBA), realizadas no Rio de Janeiro, desde a primeira organizada pela Escola
Nacional de Belas Artes (ENBA), em 1894. Minha curiosidade surgiu a partir do
fato de Eliseu Visconti
(1866-1944), o pintor que estudo há dez anos, ter sido muito assíduo a elas.
Senti a necessidade de encontrar críticas à suas obras expostas, o que muito
ajudaria na catalogação de suas pinturas a óleo, cujo processo é o objeto da
minha tese de doutoramento.
4. No
meio desse caminho, surgiu a oportunidade de publicar a minha dissertação de
mestrado, pela Editora Autores Associados, e senti-me feliz por poder
reescrevê-la, corrigindo e acrescentando muitos dados colhidos já durante o
doutorado. Sendo assim, o livro Eros adolescente: No verão de Eliseu
Visconti[1], possui um conteúdo substancial de
informações originais sobre a vida, a carreira e a obra do pintor. Porém, como
já era de se esperar, embora não tão rapidamente nem de maneira tão
contundente, encontrei, logo após a sua publicação, um equívoco num ponto
crucial, mas que estava muito bem encoberto há bastante tempo.
5. Já não
restava nenhuma dúvida sobre a premiação da pintura No verão, pois o
certificado de sua medalha [Figura 1]
havia sido encontrado (numa gaveta diferente daquela que dizia o seu registro),
pelo empenho do funcionário do Museu Dom João VI, no Rio de Janeiro (outro
arquivo exemplar) em procurá-lo, a meu pedido, ainda durante as pesquisas do
mestrado. E para constatar quais outras medalhas foram distribuídas na mesma
ocasião, eu já havia chegado até o anúncio da premiação, no dia 31 de outubro
de 1894, feito por dois dos jornais cariocas, com exatamente o mesmo texto
bastante sucinto: a Gazeta de Noticias e O Paiz.
6. A Gazeta
de Noticias foi o jornal que maior cobertura deu à 1ª EGBA. Começando com
um informativo sobre a inauguração, a partir do dia seguinte, passa a publicar,
quase diariamente, na primeira página, 21 caricaturas de artistas, obras e
cenas da exposição. Também publica uma série de resenhas, sempre sob o mesmo
título, cuja primeira edição, em 6 de outubro, faz uma longa reflexão sobre
aquele início. A partir do dia seguinte, o jornal apresenta em doze artigos os
principais artistas e seus trabalhos expostos. Dedicando-lhe a nona edição, o
autor dá destaque a Visconti e à suas recentes realizações:
7.
Elyseu d’Angelo
Visconti, pensionista do Estado na Europa ha mais de anno e meio, é o fructo mais
legitimo e mais precioso da escola das Bellas-Artes.
8.
No concurso de viagem de 1892 deu prova
brilhante do seu talento artistico, ganhou o premio e foi para Pariz. Alli não adormeceu sobre os louros
adquiridos na patria e poz-se
a trabalhar com grande amor e enthusiasmo.
9.
Logo depois mandou uns quadros a exposição
de Chicago e recebeu uma medalha, e n’este mesmo anno
apezar de ser novo no meio pariziense,
teve a honra de ser admittido no Salon com dous
quadros que foram considerados e louvados. [...]
10.
É como se vê um trabalhador exímio e um
temperamento artistico de primeira ordem.[2]
11. Após
essa introdução, o autor começa a comentar as pinturas de Visconti presentes à
1ª EGBA, começando pelas paisagens, que haviam participado da World's Columbian Exposition, em
Chicago, em 1893. Os dois quadros citados no trecho acima foram admitidos no Salon
de la Société des Artistes Français, de 1894, mas as pinturas comentadas
a seguir, pelo autor, são A leitura e Distração, sendo que esta
última era exposta pela primeira vez.
Uma descoberta desconcertante
12. Foi,
portanto, quase por acaso, acompanhando por curiosidade todas as caricaturas
que esse jornal publicou sobre a EGBA, que cheguei ao artigo do dia seguinte à
divulgação dos prêmios por medalhas. O texto começa dizendo da perplexidade que
causou o seu anúncio:
13.
As noticias
dadas hontem pelos jornaes
sobre o julgamento dos trabalhos expostos foram muito deficientes, pois
constaram apenas de uma lista de premios conferidos,
e a muita gente afigurou-se estranho não ver entre os premiados alguns dos mais
notaveis artistas, bem como causou impressão o facto
de não ter sido conferida a medalha de honra.[3]
14. Depois
de explicar as regras da premiação e a composição do júri, o cronista passa a
relembrar as medalhas distribuídas, uma a uma. Começa por mencionar as quatro
medalhas de segunda classe, as maiores outorgadas nessa 1ª EGBA, que o autor
chama equivocadamente de segunda medalha de ouro. Depois de pequenos
comentários sobre os pintores Souza
Pinto e Belmiro de
Almeida, o autor coloca: “Visconti, pensionista da escola na Europa, e um
dos nossos artistas que mais promettem, teve igual premio pelo quadro n. 193, intitulado No verão. É
uma menina núa, abanando-se com uma ventarola”.[4]
15. A
única pintura que não havia sido mencionada na crônica sobre Visconti, do dia
28, era justamente a que ganhava a medalha. Mas, sua descrição sucinta - “Uma
menina nua abanando-se com uma ventarola” - não corresponde à pintura No
verão [Figura
2] catalogada pelo Museu Nacional de Belas Artes (MNBA)!!! A primeira
ideia que surge é que o redator teria se enganado.
16. Porém,
a Menina com ventarola [Figura
3], outra pintura de Visconti, não estava na lista do catálogo,
portanto, não poderia ser uma simples troca de títulos... E os artigos dos
outros jornais, o que dizem??? A única crônica que comenta No verão,
durante a 1ª EGBA, é justamente uma que, como eu já havia ressaltado no livro,
“aponta defeitos exatamente onde os futuros comentaristas apontarão excelentes
qualidades: no desenho, na cor, nos efeitos...”[5]
17.
No verão, por exemplo, [...] não
havendo uma observação profunda do assumpto a tratar, a preocupação da côr quasi baça e a procura de effeitos tirados do ondeado das roupas da cama, falha
completamente e vai até ao ponto de revelar um discuido
grande no tocante á anatomia, de que só aponto a coxa, cujo desenho mal parece
do Sr. Visconti.[6]
18. O
livro Eros adolescente traz toda a fortuna crítica da pintura No
verão, encontrada até aquele momento, e a comparação do trecho acima com
todos os comentários posteriores é tão destoante, que gerou a seguinte
observação: “Chega-se por um instante a duvidar que ele esteja falando da mesma
tela...”[7]
Num trabalho de investigação científica tendemos a sufocar a intuição em favor
dos dados encontrados. Nada, até aquele momento, autorizava-me a levar a sério
a hipótese de se tratar de outra pintura. Até a menção de “effeitos
tirados do ondeado das roupas de cama” cabia perfeitamente para a pintura das
duas meninas. Era apenas a opinião de um único autor, contra a de todos os
outros, e contra todos os registros e reproduções posteriores das duas
pinturas.
19. Havia,
claro, em algumas publicações, a menção de outro título - As duas irmãs,
que às vezes aparecia junto à reprodução da pintura das duas meninas na cama, e
em certas ocasiões, junto ao título No verão. Mas esse é um fenômeno absolutamente
corriqueiro na carreira de muitos artistas: uma mesma obra ser referida por
dois ou mais títulos diferentes. No caso específico de Visconti temos,
inclusive, esse fato ocorrendo enquanto ainda o pintor vivia, quer por simples
troca de legenda entre duas pinturas expostas, quer por mudança no título
original de uma única obra. Mas, No verão adéqua-se perfeitamente à
pintura que conhecemos como Menina com ventarola, sendo até um título
mais óbvio, do que para a das duas meninas na cama, o que foi observado por um
autor estrangeiro, professor de literatura comparada: “Surely
it not just the debilitating summer heat that gave these youngsters their air of
contented exhaustion”.[8]
20. Fazia
sentido, dolorosamente, fazia sentido! Pois, quando descobri o artigo com a
pequena descrição da pintura de Visconti que havia conquistado a medalha de 2ª
classe em 1894 - uma verdadeira agulha no palheiro -, o livro dedicado
inteiramente à pintura das duas meninas tinha sido publicado há poucos meses.
Não se trata de um simples detalhe a mais ou diferente do que eu havia exposto
anteriormente - mudava substancialmente a história contada, ao menos em seu
início. Mas, ao mesmo tempo em que a frustração queria me impedir de acreditar
na nova revelação, outros pequenos detalhes, já apontados no livro, começavam a
se encaixar.
Uma revisão nos registros
21. Logo
que Visconti voltou de seu estágio em Paris (1893-1900), organizou uma
exposição individual, na ENBA, para mostrar sua produção daquele período na
Europa. Em seu catálogo constam, sob o nº 32, “As duas irmãs - Trabalho
de pensionista”; e sob o nº 42, “No verão - Pertence ao Estado - Salon
de 1894”. Uma das características dessa exposição de Visconti, bastante
comentada pelos jornais, é que ela não se limitava às grande composições, mas
apresentava também vários estudos:
22.
Entre 88 trabalhos expostos, desenhos e
pinturas a óleo e a pastel, vêem-se estudos diversos (desde alguns que enviara
como pensionista, até os que executou para os seus quadros mais notaveis), manchas ligeiras, paizagens,
esboços e projectos de composição decorativa, até as
obras de folego, como o S.
Sebastião, a Dansa das Oreades
e outras.[9]
23. Adiante,
o mesmo autor diz-se impressionado com as séries em que Visconti mostra as
várias etapas de seu trabalho, até finalizar suas composições. Portanto, era
bastante plausível supor que a obra 32 do catálogo fosse um estudo para a
pintura 42. Frederico Barata, anos depois, descrevendo essa mostra na biografia
que publicou sobre o amigo Visconti, comenta:
24.
Alguns dos seus mais conhecidos quadros,
hoje incorporados ao patrimônio nacional no Museu de Belas Artes, foram
expostos pela primeira vez entre nós, embora muitos dêles
já tivessem figurado com sucesso nos “Salons”
franceses. (1) [...], e completava-se o conjunto com algumas das suas obras
mais admiradas atualmente na Pinacoteca, como “As duas irmãs”, “Tronco nu de
mulher” e “Mulher dormindo”... [10]
25. Em Eros
adolescente, coloquei um comentário logo em seguida a esse trecho, tentando
explicar o que parecia ser a dupla citação da mesma pintura, com dois títulos
diferentes, numa mesma publicação:
26.
O número 1 entre parêntesis, logo após “Salons” franceses, indica uma nota de rodapé, na qual
Barata listou as obras de Visconti que, durante os seus anos de bolsista,
participaram daqueles salões; entre elas, obviamente, encontra-se No verão. O
curioso é que essa obra é novamente citada, pelo autor, logo a seguir, como As
duas irmãs. É certo que se trata da mesma pintura, pois, verificando os
arquivos do MNBA, constatamos que nunca houve em seu acervo outra obra de
Visconti intitulada As duas irmãs.[11]
27. Realmente,
com exceção do catálogo de Visconti de 1901, nenhuma outra publicação
encontrada registra os dois títulos como duas pinturas diferentes. Em 1968, o
MNBA publica três catálogos: o Guia das Galerias de Artistas Brasileiros,
que apresenta sob o nº 184, a obra “No verão - (duas meninas) - (a) 1894,
Paris.”; o Catálogo Geral da Pintura Brasileira, em que aparecem: “nº
1330 - Estudo de nu (Menina com ventarola)” e “nº 1339 - No verão (Duas meninas
na cama)”, com suas respectivas fichas técnicas; e o terceiro, Visconti no
Museu Nacional de Belas Artes, com as mesmas informações sobre as duas
pinturas. Catálogos posteriores do MNBA, que trazem a reprodução da pintura representando
as duas meninas, ou usam em sua legenda os dois títulos, como o de 1979: “No
verão ou Duas irmãs”; ou usam apenas No verão, como o de 1985.
Outras publicações ulteriores, que reproduzem esta tela, registram-na apenas
como No verão, sendo as únicas exceções: o livro Visconti; Bonadei,[12]
com os dois títulos, e o Dicionário dos Pintores do Brasil,[13]
que a intitulou As duas meninas.
28. As
mais antigas reproduções dessa pintura que pude encontrar são da década de
1940. A primeira foi escrita antes da morte de Visconti, que ocorreria em
outubro de 1944: História da Pintura no Brasil [14]
que registra na legenda apenas o título No verão. Logo depois, surge a
biografia de Barata, que teve um capítulo “In memorian”
acrescentado quando já se encontrava no prelo, e por isso, embora esteja datada
de 1944, só deve ter vindo à público no início do ano seguinte, a julgar pelos
comentários que se encontram sobre ela nos periódicos. Nesta, a pintura com as
duas meninas na cama é reproduzida como As duas irmãs[15],
e também numa revista não identificada[16], que transcreve trechos da biografia de
Barata e, portanto, deve ser do início de 1945. Um jornal de 1946[17]
reproduz a pintura com o título O verão, e Mestres da pintura no
Brasil[18], sem data, porém, considerado como de
1949, novamente registra em sua legenda As duas irmãs. Mas na década
seguinte, a reprodução mais inesperada desta pintura, na quarta capa de uma
História em quadrinhos [Figura 4][19], volta a registrar apenas o título No
verão, e assim ocorrerá daí por diante, com apenas duas exceções já
citadas.
29. O que
ajudou a manter a confusão, até agora, foi o fato da pintura conhecida como Menina
com ventarola somente vir a ser reproduzida bem mais tarde. As mais antigas
reproduções que encontrei são da década de 1990: a primeira delas, no catálogo
da exposição O Desejo na Academia[20],
tendo como título apenas Estudo de nu; em seguida, em Visconti,
Bonadei (p. 23), apenas como Menina com ventarola; e depois, somente
em catálogos de exposições a partir do ano 2000, indicando os dois títulos
juntos.
30. A
“Exposição Retrospectiva de Elyseu d’Angelo
Visconti”, inaugurada no MNBA em novembro de 1949, apenas cinco anos após a
morte do artista, foi a maior e mais importante realizada sobre sua obra de
pintura. O seu catálogo [Figura 5] é, ao lado da biografia de Barata, uma
obra fundamental de referência do grande mestre. Nele, as duas pinturas
aparecem bem próximas: o nº 21 é “Estudo de nu (menina com ventarola)”, e o nº
23 é “No verão (as duas irmãs)”. Além das especificações entre parêntesis, esse
catálogo registra as datas - 1893 e 1894, respectivamente - e as dimensões das
obras. E para não restar nenhuma dúvida sobre a qual pintura se refere cada
título, pequenas fotos antigas das obras [Figura 6
e Figura 7],
encontradas num álbum da família Visconti, apresentam etiquetas com números
correspondentes aos desse catálogo.
A confirmação
31. Em que
momento teria sido feita a troca de títulos? Ela teria origem na publicação de
Reis Jr, História da Pintura no Brasil, a primeira a reproduzir a
pintura das duas meninas com o título No verão, ou no próprio MNBA, quem
sabe na ocasião do primeiro levantamento após a constituição do museu em 1937?
32. Um
único documento antigo comprova a identificação da pintura que recebeu
originalmente o título No verão e ganhou uma medalha de 2ª classe na 1ª
EGBA: o Catálogo Geral das Galerias de Pintura e de Escultura, da ENBA,
publicado pela editora O Norte, em 1923 [Figura 8].
É o mais antigo catálogo que encontrei com a indicação das dimensões das obras.
Na página 182 [Figura 9], após mencionar várias medalhas
conquistadas por Visconti, com datas equivocadas, o catálogo lista as suas sete
pinturas pertencentes ao acervo naquela data, entre elas: No verão, com
0,65 x 0,81; e duas intituladas apenas Estudo de nu, medindo uma delas
0,58 x 0,80. O fato de não estar registrado o título As duas irmãs, nem
as datas, ou qualquer outra identificação das obras, fez com que as dimensões
trocadas em relação aos registros posteriores passassem despercebidas. De
qualquer forma, sem o conhecimento de nenhum outro indício que ligasse a
pintura representando a menina com ventarola ao título No verão, era
mais plausível supor que teria havido troca de dimensões na publicação do
catálogo de 1923.
33. E não
é nada difícil chegar-se a esta conclusão, pois esse catálogo, logo que veio a
público, foi duramente criticado:
34.
Acabamos de examinar, cuidadosamente, o
catálogo geral das galerias de pintura e de esculptura
da Escola N. de B. Artes. [...] Vale a penna... A
imprensa, em longos artigos laudatorios cantou essa
publicação. Facil se torna logo á primeira vista, a comprehensão de que esses louvores deviam ter uma
significação: e quem sabe se não foram custeados pelos organizadores do
folheto?
35.
Porque é preciso uma grande dóse de boa vontade para se achar esse trabalho passavel. Esta publicação é nulla,
mentirosa, mediocre, e até nella
se observam os processos de politicagem ridicula e
estreita tão communs em nossa vida artistica. [...]
36.
É mediocre a
publicação pela sua impressão, pela má distribuição da materia
pelos erros tremendos de revisão. [...]
37.
Ninguem ignora
que o Sr. Visconti obteve, no ultimo salão, a medalha de honra; [...]
38.
Mas no catalogo não menciona essa
recompensa; não póde desculpar-se porquanto ella vae collocar esta medalha no
peito do Sr. Pedro Alexandrino como se póde verificar
á pagina - “115”.[21]
39. Usei o
exemplo citado sobre Visconti, mas muitos outros erros foram apontados para
este catálogo de 1923, e também o nome do seu revisor - Theodoro Braga. Isso invalidaria
a informação dada sobre as medidas dos quadros? Os registros mais antigos como
este, os artigos publicados em 1894, e o catálogo da Individual de 1901, seriam
incipientes para se contrapor a tantos outros mais recentes?
40. Trocas
de títulos entre obras de arte, ocorridas nos acervos de nossos museus, não são
tão raras quanto se pode supor. Acompanhando as Exposições Gerais de Belas
Artes pelas crônicas dos jornais e revistas de época, pude constatar outro caso
entre duas pinturas do MNBA, desta vez, de autoria de Georgina de Albuquerque: Dia
de verão e Manhã de sol.[22]
41. Certamente,
a troca de títulos entre as duas pinturas de Visconti aconteceu em algum
momento entre 1923 - ano da publicação do Catálogo Geral das Galerias
de Pintura e Escultura da ENBA - e 1949 - data de realização da grande
Retrospectiva de Visconti no MNBA. O título As duas irmãs talvez nunca
tenha sido registrado na Pinacoteca da ENBA, pois neste caso, a troca teria
sido impossível, uma vez que ele não cabe para a pintura representando a menina
com ventarola. Ou o registro se perdeu, e a troca ocorreu a partir do catálogo
de 1923.
Implicações
42. Considerando
os novos dados descobertos sobre a pintura No verão, o que exatamente
muda em sua história? Se a pintura de Visconti premiada em 1894, no Rio de
Janeiro, foi a que conhecemos como Menina com ventarola, também foi ela
a exposta em Paris.
43. Foram
registradas duas pinturas de Visconti no Salon de la
Société des Artistes
Français daquele ano: En été e La lecture. Seu
catálogo não traz dimensões, nem data de criação das obras, o que poderia ter
ajudado a identificá-las corretamente, mas os títulos das pinturas de Visconti
são correspondentes àqueles registrados no catálogo da 1ª EGBA, no Rio de
Janeiro.
44. Quando
a pintura No verão original e a que hoje está consagrada com esse título
participaram juntas da Individual de Visconti, em 1901, aquela então chamada As
duas irmãs já despertava a atenção de Carlos Américo dos Santos, que na coluna Notas sobre Arte a
considerou: “...tão interessante pela felicidade da postura e da expressão”[23],
enquanto a outra foi lembrada apenas por sua participação no salon.
45. O fato
é que em pouco tempo a atual No verão, que chegava ao Brasil como simples
trabalho de pensionista, superava aquela originalmente assim chamada, apesar de
suas conquistas iniciais. Segundo Barata observou, no trecho citado
anteriormente, As duas irmãs estava entre as obras mais admiradas na
Pinacoteca, já em 1944. As qualidades desta tela, observadas por tantos
comentaristas - composição bem elaborada; escorço admirável; ângulo singular;
leveza do colorido; sutileza da cena; jogo dos contrastes; profundidade das
expressões e sensualidade inquietante - não se conformaram à designação tão
redutora que lhe foi dada em 1923: Estudo de nu.
46. Todo o
restante da trajetória rica e tão significativa, traçada por mim em Eros
adolescente, refere-se realmente à pintura cujo detalhe vai estampado na
capa do livro. Porém, ficam prejudicadas algumas reflexões, principalmente as
relativas ao título e à aceitação nos salões oficiais. E quanto às hipóteses
lançadas sobre o processo de criação da obra, mais especificamente, o que
estimulava o pintor ao plasmar sua composição? Ao escrever o quarto capítulo do
livro, eu parti do princípio que ela foi pensada, desde o início, para
conquistar o tão cobiçado salão oficial de belas artes, na Paris do final do
século XIX. Mas creio que é possível ainda sustentar tal hipótese. Uma pintura
tão bem elaborada e afinada com o espírito da sua época não poderia ter apenas
o objetivo de ser enviada ao Rio de Janeiro, para comprovar aos antigos
professores de Visconti, o aproveitamento de sua bolsa de estudos.
47. Três
pequenos esboços, encontrados num caderno de desenhos de Visconti, mostram as
duas garotas na mesma cama, em posições e sob ângulos bem diferentes; o que
demonstra que a pintura foi bastante pensada e sentida antes de chegar à sua
organização final. Ela deve, sim, ter sido elaborada com o intuito de
participar do salon, mas, ou Visconti não
conseguiu terminá-la a tempo, ou o júri do salon
a rejeitou, o que seria difícil acreditar, pois o mesmo júri aceitou a pintura
da menina com ventarola, de qualidades bem mais modestas.
48. Esta
última já representava uma novidade para os padrões dos salons
daquela época, posto que, comumente, mulheres adultas nuas eram representadas
sobre camas; mas meninas e adolescentes, com raríssimas exceções, somente na
natureza, como convém às alegorias, que serviam de álibi cultural para a
esmagadora maioria da representação da adolescência nua. Por outro lado, o
detalhe da ventarola demonstra o quanto Visconti, que foi também colecionador
de gravuras japonesas, procurava manter-se ligado às tendências artísticas da
sua época.
49. Dito
tudo isso, resta uma indagação: Qual teria sido o título originalmente pensado
por Visconti para a tela das duas meninas na cama? A julgar pelos primeiros
esboços desenhados para esta pintura, descritos no livro Eros adolescente,
não creio que sua intenção primeira fosse chamar ao quadro As duas irmãs.
50. Uma
questão interessante, que não ficou concluída no livro, pode agora ser vista
sob outra luz. Criado também em 1894 por Visconti, um Nu feminino
deitado [Figura 10], em que os pêlos pubianos estão bastante
explícitos, tem um pequeno esboço desenhado [Figura
11], no qual o pintor acrescentou posteriormente a observação: “Este
foi trocado pelas duas meninas na cama”. É possível supor agora que,
originalmente, esse Nu feminino seria enviado ao Rio de Janeiro como
obrigação de pensionista e foi, por algum motivo, substituído pela tela à qual
o próprio Visconti se refere como “duas meninas na cama”.
51. Talvez,
somente ao expô-la no Rio de Janeiro, em 1901, Visconti tenha escolhido o
título As duas irmãs, que serviria para anular qualquer leitura
explicitamente imoral, embora atualmente, esse álibi não funcione mais. Era de
se esperar também, que Visconti mandasse essa obra para uma EGBA. Em 1895, as
pinturas enviadas por ele não chegaram a tempo, mas em 1896, havia uma
intitulada Dois meninos em repouso, ainda não localizada. Poderia ser um
erro do catálogo, mudando o gênero das figuras? Neste caso, haveria grande
possibilidade de ser a pintura em questão. Mas infelizmente, nenhum artigo de
jornal foi encontrado comentando ou descrevendo a pintura exposta em 1896.
52. Após
tantos anos de uso equivocado dos títulos trocados, eles acabam se fixando à
imagem das obras às quais um dia foram atribuídos. E o que fazer diante dessas
constatações? É sempre possível destrocar os títulos, a partir das provas
encontradas, mas seria recomendável nesse caso específico? Qual o melhor título
para a pintura das duas meninas? As duas irmãs - tem um cunho moralista
que não acredito tenha sido desejado originalmente pelo artista; Estudo de
nu - não lhe cabe; No verão - carrega com ele uma medalha que foi
ganha por outra pintura, embora também esteja associado à maior e mais fecunda
parte de sua história... E a pintura da menina com ventarola? Certamente
causaria estranheza sendo apresentada com seu título original, pois nunca foi
reproduzida com ele.
53. Uma
saída para tal impasse seria o uso de dois títulos para cada uma delas,
colocados em ordem cronológica de atribuição: “No verão ou Menina com
ventarola” e “As duas irmãs ou No verão”.
_________________________
*
Doutoranda em História da Arte, IFCH/Unicamp e Docente no IFMT; e-mail: mirianseraphim@gmail.com
[1] SERAPHIM, Mirian N. Eros
adolescente: No verão de Eliseu Visconti. Campinas: Autores
Associados, 2008, 336 p. (Coleção Florada das Artes).
[2] Exposição Geral das Bellas-Artes. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 28
out 1894, p. 2. [ver link].
[4] Idem.
[5] SERAPHIM, M. Opus cit, p. 25.
[6] J. B. A Exposição de Bellas-Artes. A Noticia, Rio de Janeiro, 7 e 8 out
1894, p. 2.
[7] SERAPHIM, M. Opus cit.,
p. 25.
[8] DIJKSTRA, Bram. Idols
of Perversity: fantasies of feminine evil in fin-de-siècle culture. New York: Oxford University, 1986, p. 156.
[9] R. de C. “De Arte:
Exposição Visconti”. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 27 maio 1901,
p. 2.
[10] BARATA, Frederico. Eliseu
Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Zelio
Valverde, 1944, p. 157-158.
[11] SERAPHIM, M. Opus cit, p. 6.
[12] Visconti; Bonadei.
São Paulo: Art, 1993, p. 25.
[13] MEDEIROS, João. Dicionário
dos Pintores do Brasil. Rio de Janeiro: Irradiação Cultural, 1988, p. 185.
[14] REIS JR. José Maria
dos. História da pintura no Brasil. São Paulo: Leia, 1944, p. 294.
[15] BARATA, F. Opus cit, p. 39.
[16] Folha original avulsa,
sem nenhuma identificação, do álbum do pintor, conservado pela família.
[17] Os grandes artistas do
Brasil - Eliseu D’Angelo Visconti. A Manhã, Rio de Janeiro, 2 jun 1946,
p. 3.
[18] ACQUARONE, Francisco. Mestres
da Pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, [1949], p. 179.
[19] Epopéia, nº 14,
Rio de Janeiro, Ebal, set 1953.
[20] Pinacoteca do Estado
de São Paulo. O Desejo na Academia. São Paulo: PW, 1991, p. 126.
[21] P. de A. A Pinacotheca Nacional: o catalogo geral das galerias de
Pintura e Esculptura. Gazeta de Noticias, 15
jul 1923, p. 3.
[22] Comprovam essa troca
uma descrição de Manhã de sol em: Impressões sobre o salão deste anno. Bellas-Artes. A secção de
pintura. O Jornal, Rio de Janeiro, 14 ago 1920, p. 3 [ver link]; e uma reprodução da pintura Dia de verão,
em: MATTOS, Adalberto
P. O Salão de 1926. Illustração
Brasileira, Rio de Janeiro, set 1926 [ver link].
[23] Notas sobre Arte.
Exposição E. Visconti, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 16 maio
1901, p. 2.