O Julgamento de Frei Miguelinho:” contribuição à obra de pintura histórica de Antônio Parreiras

Diego Souza de Paiva

PAIVA, Diego Souza de.  O Julgamento de Frei Miguelinho:” contribuição à obra de pintura histórica de Antônio Parreiras. 19&20, Rio de Janeiro, v. XIV, n. 2, jul.-dez. 2019. https://www.doi.org/10.52913/19e20.XIV2.03

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Preâmbulo

1.     Toda narrativa implica escolhas (de roteiro, teóricas, críticas, de gênero) que, por sua vez, implicam o privilégio dado a determinados espaços, tempos e personagens, bem como a objetos que por suas potencialidades se enquadram nas exigências da narrativa. A história da arte, em sua condição de narrativa, também comporta essas escolhas, que devem ser levadas em conta tanto pelo que elucidam, quanto pelas zonas de sombra que, inevitavelmente, seu foco cria.

2.     A historiografia da arte brasileira, por seu “roteiro modernista,” não apenas criou uma zona de indistinção em praticamente toda a arte do século XIX, mas também afirmou a primazia (pelo menos até a década de 1970) da arte moderna nas primeiras décadas do século XX. O “batismo” da Semana de Arte de 1922, com foco na experiência de São Paulo, condicionou as etapas seguintes até as experiências das décadas de 1960 e 1970, sobretudo no eixo São Paulo/Rio de Janeiro. Contudo, alguns caminhos de discussão vem colocando o início desse roteiro em crise: seja voltando a atenção para a arte do século XIX e da passagem para o século XX, considerando o potencial crítico da arte oitocentista pensada dentro do seu contexto próprio, ou colocando em crise a oposição sumária entre “acadêmicos” e “modernos” (COLI, 2005; PERREIRA, 2008, 2016); seja discutindo propriamente a relação entre modernidade e modernismo no Brasil (FABRIS, 2010).

3.     A contribuição que este artigo pretende dar é mais pontual, entendida dentro de uma perspectiva que não visa apenas apontar zonas de sombra criadas pela narrativa modernista (limites não são defeitos, e sim condições de qualquer discurso), mas sim, por meio de uma perspectiva crítica em relação à nossa historiografia da arte, e de um estudo de caso, multiplicar os focos possíveis. Pretendemos fazer isso direcionando a nossa atenção à obra de pintura histórica de Antônio Parreiras.[1]

4.     Essa vertente da obra do pintor fluminense se manifestou exatamente entre os últimos anos do século XIX e a primeira metade do século XX. Para que compreendamos o objeto do nosso estudo, devemos ter em mente dois aspectos que marcaram o cenário da arte na passagem dos séculos XIX e XX, com a mudança do regime político no país. O primeiro deles diz respeito ao fato de que, se durante o Império a produção da pintura histórica estava sob o patrocínio imperial e era promovida pela então Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), com a República não será aquela instituição, doravante denominada de Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), que vai assumir essa função, que passará a atender essa nova demanda iconográfica. A instituição passou por um período de crise e reformulações entre as décadas 1880 e 1890, especialmente devido à emergência de uma nova geração, chamada de “Geração 1870,” que se afastou do idealismo clássico, da retórica dos grandes temas e da pregação romântica em prol do realismo, da exploração de linguagens modernas e mesmo da vida fora da Academia (PEREIRA, 2016). O segundo aspecto é que, se durante o Império, a pintura histórica estava voltada para a consolidação de uma ideia de Nação, seja a partir do processo de colonização portuguesa (a Primeira Missa e a Batalha dos Guararapes de Victor Meireles) ou da afirmação do Império Brasileiro (quadros de batalhas, como a Batalha do Avahí de Pedro Américo), com a República federativa essa iconografia histórica irá se pautar por outras demandas: basicamente aquelas por temas regionais, sejam eles de fundação ou tomando como base as “revoltas nativistas,” que, outrora  “notas de rodapé” da historiografia oficial, passaram a ocupar lugar de destaque como momentos de origem dos ideais e valores republicanos. É nesse cenário de descentralização de atuação da ENBA e de surgimento de demandas por temas históricos por parte dos governos provinciais, que vai se destacar a figura de Antônio Parreiras.

5.     Levando em conta a narrativa instituída pela historiografia da arte brasileira, é possível entender de antemão porque essa vertente da obra de Parreiras se encontra “na sombra.” Ela se distancia da instituição acadêmica: Parreiras atuará como artista independente. Por outro lado, a sua produção ainda estará vinculada, pela própria demanda que responde e estimula, a exigências de encomenda, dos espaço expositivos (os novos palácios de governo), bem como temático/literárias, compositivas e formais do gênero da pintura histórica, e, portanto, bem distante das expectativas - em relação a todos esses elementos - do que se afirmou como “arte moderna” nas primeiras décadas do século XX.

6.     Inscrito em um universo mais amplo de referências e interesses sobre a obra de pintura histórica de Antônio Parreiras (CASTRO, 2012; CEDERA, 2008; LEVY, 1981, SALGUEIRO, 2002, 2002; STUMPF, 2014, entre outros), o que se propõe aqui, por meio de uma análise da encomenda e do processo de execução da tela Julgamento de Frei Miguelinho [Figura 1], é contribuir com um pequeno foco de luz sobre a obra de pintura histórica do pintor fluminense,[2] ampliando os limites da historiografia da arte brasileira entre o final do século XIX e, sobretudo, as  primeiras décadas do século XX.

Antônio Parreiras e a iconografia da República

7.     Embora tenha sido paisagista de formação e vocação, Parreiras começou a realizar estudos de animais e a se aventurar no desenho de figuras, no qual tinha pouco experiência. Mais tarde, sobre esse período, relatou a visita ao seu ateliê do antigo professor e amigo Victor Meireles que, ao ver os estudos, sugeriu que pintasse quadros históricos (PARREIRAS apud SALGUEIRO, 2000). Sugestão acolhida por Parreiras, que começou a se dedicar ao gênero da pintura histórica.

8.     Sua primeira encomenda de destaque neste campo foi feita pelo então presidente da República, Campos Sales: a execução de trabalhos decorativos para o prédio do Supremo Tribunal Federal. Em 1905 o pintor partiu para o Estado do Pará, com o propósito de realizar uma grande exposição, ocasião em que recebeu do Governador Antônio Montenegro uma encomenda para a realização de uma tela histórica de grande formato, retratando A conquista das Amazonas.[3] Entre idas e vindas à Europa, onde encontrava as condições materiais necessárias para trabalhar nesse tipo de obra,[4] Parreiras executou ainda: A Fundação da Cidade de Niterói, encomendada pela Intendência municipal; A Morte de Estácio de Sá, encomendada pela Intendência Municipal do Distrito Federal; Prisão de Tiradentes e Proclamação da República de Piratini, para o Governo do Estado do Rio Grande do Sul; e Instituição da Câmara Municipal de Santo André e Fundação da Cidade de São Paulo, para a Prefeitura de São Paulo. Em meados de 1917 viajou para a região Norte, onde obteve a encomenda de mais duas pinturas históricas, ambas referentes à Revolução Republicana de 1817: José Peregrino, para o governo da Paraíba, e Julgamento de Frei Miguelinho, para o governo do Rio Grande do Norte.

9.     Esse conjunto de obras,[5] no contexto da República e consumada a descentralização federativa, estava atrelado à necessidade de imagens associadas às novas funções políticas e administrativas no âmbito nacional e regional, que cursaram, entre outras coisas, com a reforma de prédios públicos. O primeiro deles foi o Palácio do Catete (antigo Palacete do Barão de Nova Friburgo), que recebeu, no governo de Prudente de Morais, as atividades do Governo então situadas no Palácio do Itamarati.  A redefinição da identidade nacional a partir da decoração de prédios públicos se estendeu aos governos dos Estados da nova federação, nos quais as identidades republicanas se afirmaram por meio das referências às histórias regionais, mais especificamente às “revoltas nativistas,” tanto do período colonial quanto da Regência.

O contrato

10.   No dia 20 de junho de 1917, o jornal A República dava notícia, em uma pequena nota, da presença em Natal, capital do Rio Grande do Norte, do artista fluminense Antônio Parreiras, considerado não apenas um “exímio paisagista,” mas um pintor que vinha se notabilizando como “evocador de cenas históricas” (A República, 1917, p. 1). Nesta primeira referência não havia, contudo, nenhuma menção ao motivo da visita do artista a Natal, o que nos faz crer que se tratava de uma iniciativa do próprio pintor, como, aliás, em relação a esses projetos, era prática sua. Como bem coloca Salgueiro (2002, p.19): “Ativo, o pintor não esperava ser convidado; [...] Argumentava, enviava memoriais aos governadores, apresentava seus projetos acompanhados de croquis ilustrativos e argumentos elaborados, oferecendo seu trabalho com eloquência.” 

11.   Desta forma, e como consequência da visita, no dia 27 de junho daquele mesmo ano foi noticiada a assinatura de um contrato entre o pintor e o Governo do Estado do Rio Grande do Norte, na pessoa do Governador Joaquim Ferreira Chaves, para a execução de uma tela que representasse Frei Miguelinho perante o tribunal da Bahia, em 1817. Segundo as cláusulas deste contrato,[6] o contratado se comprometia a pintar a cena acima descrita, que deveria ter três metros de comprimento por dois de largura, sendo nela empregados materiais de primeira qualidade, inclusive na moldura. A tela deveria ter por base o “croqui” que foi apresentado na ocasião, sem que, contudo, a execução definitiva fosse levada a cabo antes da apresentação de outro “croqui,” com as modificações que possivelmente fossem sugeridas ou indicadas, no caso, por uma comissão eleita entre os membros do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN).[7]

12.   Após a assinatura do contrato e antes de deixar a capital, Parreiras concedeu uma entrevista ao jornal A República, representado pelo Dr. Alberto Roselli, também colaborador de uma revista secundária, na qual a mesma entrevista foi publicada. Na ocasião, o artista apresentou um pequeno “croqui” [Figura 2] que cumpria a função de dar uma ideia geral da composição. Questionado sobre a disposição do quadro, o pintor respondeu que, de acordo com o esboço apresentado (que deveria sofrer modificações), a ideia era representar o momento em que Frei Miguelinho está sendo interrogado pelo Conde dos Arcos. Segundo Parreiras:  

13.                            O momento preciso que o quadro representa é aque­le em que o Conde dos Arcos, depois de baldadas tentativas para salvar o padre das mãos dos algozes, procura insinuar-lhe, como último recurso, ainda um pretexto para defender-se perguntando-lhe: O padre não tem inimigos? Não será possível que eles lhe falsificassem a assinatura e com ela subscrevessem todos ou parte dos papeis que estão presentes? Ao que lhe responde pela primeira e única vez o grande herói: Não, senhor, não são contrafeitas; as minhas assinaturas nesses papéis são todas autênticas [E completa] e por sinal que em uma delas o “o” de Castro [chamava-se Miguel Joaquim de Almeida Castro] ficou metade por acabar porque faltou papel.’ (REVISTA DE ENSINO, 1917, p. 4)         

14.   No que se refere às figuras, a de Miguelinho, sendo a principal, dominaria a composição, ocupando uma posição de centralidade e destacando-se em primeiro plano. Figura que seria seguida em importância pela do Conde dos Arcos (que presidiu o julgamento) e que, por esse motivo, seria destacada, sobre um estrado, por um fundo luminoso. A figura que se encontrava sentada ao lado do Frei representaria a surpresa causada no auditório, diante da firmeza e precisão com que Miguelinho afirmava serem aquelas assinaturas autênticas, chegando ao ponto de destacar o “o” por acabar. A figura à sua esquerda, que representava um dos juízes, também seria elaborada com o intuito de expressar o sentimento de admiração e surpresa diante daquela declaração. Por fim, diante do estrado onde se encontrava o Conde dos Arcos, estaria representada a figura do escrivão, que, também tomado pela surpresa diante da declaração do réu, suspendia as anotações que estava tomando.

15.   No que diz respeito aos aspectos mais específicos para a composição da figura de Miguelinho, Parreiras afirmou ter conseguido dados para a composição das feições do seu personagem principal: 

16.                            Consegui obter alguns dados para dar a expressão ao rosto de Miguelinho. Até agora não encontrei nenhuma gravura da época na qual figurasse o perfil do herói rio-grandense. Mas, pelas informações colhidas, pude saber que os traços fisionômicos gerais em toda a família não va­riam muito. E por isto vou copiá-los de um dos seus colaterais, cuja fotografia me foi fornecida. (REVISTA DE ENSINO, 1917, p. 4-5)

17.   Perguntado em seguida se no quadro definitivo seria con­servada a “pose” que Miguelinho ostentava no “croqui,” Parreiras respondeu que não, em absoluto. Deixando claro que o estudo cumpria tão simplesmente a função de “ligeiro esboço,” que servia tão somente para dar uma ideia das diferentes posições que as figuras deveriam ocupar na composição, e que as figuras certamente seriam modificadas nas suas atitudes. Com relação à do Frei em particular, afirmou: “Miguelinho terá um tipo menos arrogante e será, como diz a história, um verdadeiro apóstolo, com a expressão calma de quem sofre com resignação o sacrifício de ser vítima de seus ideais” (REVISTA DE ENSINO, 1917, p. 5).

18.   Da mesma forma que em outros quadros históricos que havia executado, afirmou que esse também seria pintado em Paris, em seu atelier na Rua Val de Grace nº. 6, onde toda a cena seria representa­da valendo-se o artista de modelos vestidos a caráter. No que tange aos trajes de época, Parreiras afirmou que os copiaria de uma “aquarela histórica” existente no IHGB, no Rio de Janeiro, que representava um combate em Recife, em 1817. Em seguida, passaria as especificações das vestimentas para o conhecido Mr. Garnier, o então o “costumier” da ópera de Paris, em relação ao qual Parreiras demonstrava total confiança.

19.   Antes que abordemos, contudo, o processo de execução do quadro, para que compreendamos o significado mais amplo do projeto e o quanto a iniciativa de Parreiras foi de encontro às demandas da construção de um imaginário republicano no Rio Grande do Norte, precisamos nos deter, brevemente, sobre a referência ao tema, à cena e ao personagem principal escolhidos, o que propomos fazer por meio de uma apreciação da construção de uma memória republicana no Estado.

Frei Miguelinho e a memória republicana

20.   Datam do começo do século XX, mais precisamente de 1906, os esforços de construção de uma memória republicana no Rio Grande do Norte, vinculada à imagem de Frei Miguelinho. Neste ano foram realizadas, por iniciativa do IHGRN, eventos comemorativos do 89º aniversário da morte do Frei. O evento teve início com uma missa campal à porta da Igreja Matriz, na Praça André de Albuquerque, de onde partiu um cortejo cívico que, após circular pelas principais ruas da Cidade Alta, seguiu em direção à Rua 12 de Maio, junto à residência onde o homenageado teria nascido. Ao desfile cívico seguiram-se apresentações de bandas de música e uma sessão magna do IHGRN no Teatro Carlos Gomes (hoje Alberto Maranhão). A importância da figura de Miguelinho se dá na medida em que ele se constitui num elo entre o Rio Grande do Norte (por ser norte-rio-grandense) e a história do movimento republicano de 1817, referência importante na construção de uma memória nacional republicana e de um imaginário decorrente do modelo federalista. Ainda na ocasião da cerimônia, ao som do hino nacional, o Governo do Estado e o IHGRN entregaram à cidade do Natal, na pessoa do presidente da Intendência Municipal, uma lápide comemorativa em bronze, que foi fixada na parede da residência onde Miguelinho teria nascido. Demarcava-se assim, pela natalidade, o vínculo da figura com a cidade e o Estado. Ainda para reforçar essa demarcação, foi baixada uma resolução pela Intendência Municipal que alterou o nome da rua de 12 de Maio, para Rua Frei Miguelinho.

21.   Dado adicional ao encerramento das comemorações do dia 12 de junho de 1906, foi a exposição, em um nicho arranjado no Teatro Carlos Gomes (atual Alberto Maranhão),, da estola de damasco encarnado que havia pertencido ao Frei. Aliás, a importância dessa, que passava a ser uma relíquia, não esteve circunscrita aos eventos comemorativos daquele ano, mas se estendeu, quando se constituiu como protagonista de um outro evento: a comemoração do 93º aniversário da morte de Frei Miguelinho, quando foi mais uma vez exposta. O jornal A República de 11 de junho daquele ano, em sua primeira página, deu notícia do aniversário da morte do herói republicano, ao final manifestando o anseio de vê-lo “melhor trajado [...] na eternidade do bronze,” o que seria apropriado para as comemorações que se aproximavam do centenário da morte de Frei Miguelinho, no ano seguinte (REV. IHGRN, 1910, p. 224).

22.   Adiantamos que nenhuma estátua de bronze foi realizada para as comemorações de 1917, mas é para nós significativa a manifestação desse desejo que associava uma imagem personificada - que ainda não existia - a uma homenagem mais “digna”. Esse elemento nos ajuda a compreender o anseio ao qual Parreiras veio responder com o seu projeto.

23.   No ano de 1916, aprovado por uma comissão especial o projeto para a realização das comemorações do centenário da morte de Frei Miguelinho - em 12 de junho de 1917 -, o IHGRN pôs em prática uma série de iniciativas para organizar o evento, angariar fundos, bem como para congregar diversas instituições e agremiações, representantes do poder público, associações e escolas, através das quais se construía a adesão e a participação da população. Destaca-se aqui o projeto para a realização de um monumento, um obelisco em homenagem aos “Mártires de 1817” que, embora por definição homenageasse tanto Frei Miguelinho quanto André de Albuquerque (que chegou a assumir o poder em nome da revolução na capital), já em 1917 passou a ser conhecido como “Monumento Miguelinho.”

24.   A primeira metade do ano de 1917 foi marcada pelos preparativos e pelas diversas adesões às comemorações e eventos do Centenário. Eventos iniciados em 10 e 11 de junho daquele ano com duas competições esportivas: a “Grande Regata do Centenário” e a “Partida Comemorativa de Futebol.” No dia 12, finalmente, se deu o evento cívico em comemoração do centenário de morte de Frei Miguelinho. Começando com uma missa campal na casa onde o homenageado teria nascido (o onde se inaugurou a lápide em 1906), seguiu-se uma procissão cívica, guiada por um carro alegórico - o “Carro Triunfal,”[8] que, saindo da Ribeira e chegando à Cidade Alta, culminou na Praça André de Albuquerque, onde foi inaugurado o Obelisco, já chamado nos discursos oficiais de “Monumento Miguelinho” e sob o qual foi cantado no ato de inauguração o “Hino a Miguelinho.” Após a inauguração se seguiriam: a sessão solene do IHGRN, cinema público e festas populares.

25.   É possível observar, portanto, o quanto a construção dessa memória republicana no Rio Grande do Norte estava atrelada, desde o começo do século, à figura de Frei Miguelinho. As próprias datas comemorativas dessa memória se confundem com a data de morte do Frei, cuja proeminência, como já apontado, estava vinculada ao seu papel de destaque na Revolução de 1817, bem como à sua figura histórica e, claro, ao momento dramático de seu julgamento.

26.   Os eventos do dia 12 de junho tiveram grande repercussão na imprensa nos dias seguintes, com a publicação de documentos, discursos e notícias da realização de eventos congêneres em outras cidades no Estado. Foi exatamente nesse momento de repercussão, quando a memória dos eventos do Centenário se fazia viva nas páginas do jornal do governo, que chegou a Natal o pintor Antônio Parreiras, propondo um contrato para a execução de uma tela histórica retratando Frei Miguelinho diante do tribunal.

27.   Percebemos, portanto, como a proposta de Parreiras veio ao encontro das demandas de uma memória republicana que, no Rio Grande do Norte, estava se estruturando em função da figura de Frei Miguelinho. O tema: a Revolução de 1817, grande ponto de referência onde se poderia buscar as origens dos ideais republicanos. O personagem principal: um padre, reconhecido pela sua integridade, que tomou parte ativa no movimento e que, antes de tudo, era norte-rio-grandense. A cena: o momento de seu julgamento e de seu martírio, quando empenhou a vida em função de seus ideiais.

Para além da moldura

28.   “Um quadro nunca deve terminar entre os paralelos de sua mol­dura [...].” Com essas palavras, Parreiras, em um de seus manuscritos, conclui uma reflexão que se inicia com considerações sobre a importância da durabilidade das pin­turas (PARREIRAS apud SALGUEIRO, 2000, p. 61-62). Como um artista jamais poderia, segundo ele, dimensionar o va­lor que um trabalho seu poderia alcançar, se fazia neces­sário atentar para a durabilidade de suas produções, e isso não só se aplicava a trabalhos acabados, mas também aos esboços e “croquis” - comumente menosprezados. Dizia:  

29.                            O público porém não vê nesses trabalhos senão uma coisa inacabada - imperfeita [...] É que para ele tudo quanto pode dizer uma pintura está dentro [*] da moldura que a enquadra - fora dela não vê nada mais, e é justamente onde mais há que ver sentir... se ele se identifica com o artista. A cúpula de uma árvore que não vê - sugere um céu infinito. (PARREIRAS apud SALGUEIRO, 2000, p. 62)

30.   Seguindo a orientação do próprio artista, comecemos a discutir os aspectos da composição da tela a partir dos “croquis” que foram elaborados por Parreiras. Retomemos o primeiro estudo [Figura 2], apresentado pelo artista no dia em que assinou a encomenda com o Governo do Estado e concedeu a entrevista.

31.   Diante desse primeiro estudo temos os aspectos mais rudi­mentares da composição. A primeira observação mais óbvia é que a cena desde o princípio já estava resolvida: Frei Miguelinho diante do tribunal na Bahia, em 1817, no momento em que assume a responsabilidade pelas suas assinaturas. Na composição, num cenário bastante sóbrio de contornos, um fundo luminoso à direita, destacando a figura do Conde dos Arcos, dá sentido à ação. Abaixo, rodeada somente pelos juízes e pelo escrivão, centralizada, a figura de Miguelinho profere a famosa resposta. Detenhamo-nos, neste primeiro momento, na constru­ção da figura desse herói.

32.   Mesmo sabendo que esse primeiro desenho tinha apenas a in­tenção de se constituir num estudo para a composição geral, é interessante perceber, como o próprio Parreiras na entrevista fez questão de frisar, que a figura principal neste “croqui” é por demais “arrogante.” Ocupando uma posição de destaque em pri­meiro plano, a figura se apresenta demasiadamente arqueada, a cabeça erguida, encarando a autoridade representada pelo Conde dos Arcos. Traz uma expressão quase agressiva e os dedos, tanto da mão direita quanto da esquerda, em riste, apontando para si mesmo e para os papéis, completam em traços a feitura de um tipo no mínimo insolente. Contudo, o próprio artista também afirmou, na mesma entrevista, que, em relação à imagem de Miguelinho no quadro, buscava alcançar um ideal que, segundo ele, estava na história: aquele da figura de “um verdadeiro apóstolo, com a expressão calma de quem sofre com resignação o sacrifício de ser vítima de seus ideais” (REVISTA DE ENSINO, 1917, p. 5).

33.   Essa intenção foi experimentada, por­tanto, num segundo estudo [Figura 3]. Aqui, temos modificações significativas. A base do cenário é praticamente a mesma, mas as figuras estão agrupadas de forma distinta: os juízes agora se encontram todos sobre o mesmo estrado, e, percebamos, foi acrescido um outro grupo (à direita da imagem): o grupo dos outros acusados que estavam também sendo julgados e que, segundo a documentação consultada por Parreiras, estavam pre­sentes na ocasião da condenação de Miguelinho. Reparemos por um momento na nova figura do Frei. Muito diferente do primeiro estudo, essa nos passa outras impressões, que nos transmitem outros sentimentos. A cabeça levemente reclinada, marcada por uma expressão quase submissa, parece não encarar a autorida­de do Conde que se projeta sobre ele, mas, sim, mirar o escrivão, que se apresenta visivelmente assustado com a resposta do Frei. O corpo deste também está levemente curvado, o peito retraído. O braço direito que aponta para os papéis parece se estender timidamente e quase não toca a superfície. Já o braço esquerdo, que chama para si a responsabilidade pelas assinaturas, também parece fazê-lo de forma hesitante, ainda colado ao corpo e com a mão quase não tocando o próprio peito.

34.   Se a intenção era desfazer certa “arrogância” que se expres­sava no primeiro estudo, agora, o conjunto dos elementos que compõem a figura nos dá uma impressão por demais submissa, contraída e hesitante, o que, também à sua medida, não condizia com a ideia de afirmação heroica, de convicção abnegada em um ideal que se pretendia veicular. De fato, essa figura ainda não se encontrava em condições de representar os ideais de um herói e mártir republicano. É aí que nos encaminhamos para o terceiro estudo. 

35.   Esse terceiro “croqui” [Figura 4] é o que se apresenta como sendo o mais bem definido em relação à composição final que conhecemos. A distribuição das figuras é praticamente a mesma do segundo, mas com relação ao cenário temos algumas pequenas experi­mentações, como contornos decorativos nas paredes, sem falar na fina cortina que cobre a janela à esquerda. Contudo, como teremos a oportunidade de observar na tela concluída, estes ornamentos serão descartados na composição definitiva, provavelmente para dar mais sobriedade ao ambiente e não desviar a atenção da cena principal. Direcionemo-nos ao que nos interessa particularmente neste momento, que é a figura mais importante da composição e em relação à qual o artista vem ten­tando alcançar um dado ideal.

36.   Em relação às duas que lhe antecederam, essa terceira figura nos parece estar muito mais equilibrada. Percebamos a princípio que a cabeça, mais bem proporcionada e definida em relação às feições que Parreiras pesquisara sobre o Frei, se encontra num ponto de equilíbrio entre as outras duas. Numa posição intermediária, mas que, ao mesmo tempo, ainda se encontra em condições de mirar a autoridade que lhe interroga e insinua. A sua postura é ereta, levemente arqueada (com uma sutil projeção do quadril) e com as pernas ligeiramente abertas. O ângulo de seus ombros indica relaxamento, convicção, tranquilidade, segurança. Atentemos para seus braços e mãos. O braço direito, bem estendido, finda na mão com o dedo em riste, que toca o papel com convicção (como no primeiro estudo). O braço esquerdo, por sua vez, colado ao corpo, finda na mão aberta que placidamente repousa sobre o peito, no gesto que assume a responsabilidade (mais próximo ao segundo estudo). Assim, o que temos é o resultado de um equilíbrio alcançado ao longo dos estudos. Essa terceira figura parece, então, representar melhor a ideia do herói e mártir digno, apostólico, que se sacrifica pelos ideais que defende.

37.   Diante desse terceiro estudo, ainda podemos abordar dois aspectos significativos na composição desse gênero de obra e especificamente das obras de Antônio Parreiras no século XX: a ingerência do IHGRN e a pesquisa histórica para a composição dos personagens - no caso, do personagem principal (pesquisa que nos levará a comprovar a iniciativa do artista em respeito à proposição do projeto ao Governo do Rio Grande do Norte, em 1917).

A ingerência do IHGRN e o estudo de 1916

38.   Como estabelecia a cláusula II do contrato firmado entre o artista e o Governo, a exe­cução definitiva só poderia se dar mediante o envio de outro croqui, para que sobre o mesmo se deliberasse e se propusesse os devidos ajustes. No dia 15 de dezembro de 1917, em telegrama, o Governador do Estado remeteu ao Presidente do IHGRN um ofício, contendo um memorial acom­panhado de “croquis” (entre os quais acreditamos que estaria o terceiro), que haviam sido enviados por Parreiras de Paris, para que uma comissão ali eleita aprovasse, dando o aval para a execução definitiva da obra.

39.   Em 30 de dezembro daquele mesmo ano, a comissão eleita pelo IHGRN remeteu ao Governo um pequeno relatório com seu devido pare­cer. No mesmo, a avaliação geral do material que Parreiras enviara de Paris era bem positiva, particularmente em relação a Frei Miguelinho, cuja figura exprimia “a doçura evangélica da sua fisionomia, onde transluzia a calma tranquila da sua consciência” (REV. IHGRN, 1919, p. 172). Contudo, seguiam as indicações de duas alterações, que visavam adequar o quadro à “verdade histórica.” A primeira dizia respeito ao número de juízes que deveria figurar na composição. Segundo a comissão, “a sentença condenatória de Frei Miguelinho, conforme o documento transcrito nos ‘Traços Biográficos do P. Miguel Joaquim de Almeida e Castro’, por Manoel Dantas, [teria sido] assinada por dez juízes [...].” A segunda se referia à fisionomia de dois dos outros julgados, especificamente, de Manoel José Pereira Caldas e Bernardo Luiz Ferreira Portugal, que, por serem, segundo a do­cumentação, sexagenários, deveriam ter feições condizentes, devendo o primeiro em particular parecer mais velho, uma vez que, segundo a sentença, teria sido absolvido “em atenção à sua decrepitude” (REV. IHGRN, 1919a, p. 173).

40.   Em carta, datada de 3 de março de 1918, Parreiras remeteu ao Governo do Estado uma resposta às indicações do parecer, afirmando que acataria as alterações. De fato, ao observarmos o desenho que serviu de base para o quadro definitivo [Figura 5], podemos identificar as alterações realizadas: a inclusão de mais um juiz, ao fundo, entre as cabeças daqueles que estão mais próximo a Miguelinho e a mudança das feições dos dois réus que se encontram também mais próximo ao Frei. 

41.   Além da ingerência do IHGRN, temos, no processo de execução do quadro através dos estudos, outro ponto que nos interessa: a composição das feições de Frei Miguelinho. Como pudemos observar na entrevista concedida por Parreiras, a busca por uma maior verossimilhança pôde ser percebida, entre outros aspectos, pelo trabalho de pesquisa realizado pelo próprio artista no intuito de compor uma fisionomia o mais próximo pos­sível do “homem histórico.” Afirmou o pintor ter conseguido alguns elementos para a composição das feições, pois, mesmo que até o momento não tivesse encontrado nenhuma gravura do Frei, obtivera informações de que os traços na família daquele não variavam muito e por isso iria baseá-los em um de seus familiares. Isso parece indicar que tal pesquisa se deu antes da assinatura do contrato. A questão é: antes quando?

42.   O IHGRN, atualmente, possui em seu acervo iconográfico um conjunto de retratos de personalidades históricas, entre os quais destacamos um retrato de Frei Miguelinho, que chama a nossa atenção por sua feitura de estudo, por estar completamente de perfil e por retratar o personagem com a boca entreaberta, como se pronunciasse algo. No canto inferior direito da tela, já esmaecido pelo tempo, lemos “Frei Miguelinho”, seguido da assinatura identificada de Antônio Parreiras, e de “Paris - 1916” [Figura 6a e Figura 6b].

43.   Em 1916, Parreiras estava efetivamente em Paris, na primeira viagem que fizera com toda sua família. Dessa forma, não menos que sete meses antes de pisar em terras potiguares, Parreiras já realizava estudos para compor as feições do personagem que figuraria no futuro quadro. O que nos leva a crer que esse caso deva ser tomado no conjunto dos quadros históricos de Parreiras que partiram de sua própria iniciativa.

44.   O quadro foi finalizado em 1918, dando notícia em carta o próprio artista, com data de 18 de setembro daquele ano. Para atestá-lo, enviou juntamente uma fotografia da tela concluída em seu ateliê, ainda sem a moldura [Figura 7] e um certificado com a sua assinatura. Contudo, por questões no transporte de cargas, limitadas, segundo Parreiras, às bagagens de passageiros, seria impossível o envio imediato do quadro. O que só ocorreu no ano seguinte, quando o pintor partiu de volta para o Brasil de posse do quadro.

45.   Da chegada do quadro nos deu notícia o jornal A República, de 20 de junho de 1919 (A República, 1919, p. 01). Precisamente dois anos depois da primei­ra nota, que dava notícia da visita do artista à cidade, foi anunciada a presença no Salão Nobre do Palácio do Governo do quadro encomendado ao pintor Antônio Parreiras e que representava Frei Miguelinho diante do tribunal [Figura 8]. 

O quadro: a cena, o herói e o gesto

46.   Na obra concluída [Figura 1], cuja escala cromática nos lembra algumas telas ne­oclássicas, a luz vem de uma janela na parte superior esquerda da tela. Luz que dá o sentido à ação que ali se passa. O Conde dos Arcos, a segunda figu­ra mais importante da composição (por isso posicionada sob o estrado e à frente da luz), levanta-se e inclina-se para o réu, lhe perguntando se por acaso não seriam aquelas assinaturas que o incriminavam falsificações de possíveis inimigos. O Frei, com semblante tranquilo e encarando nos olhos a autoridade que o Conde representava, responde, falando pela primeira e única vez em todo o julgamento, que não, que eram todas autênticas, mesmo aquela que faltava um último “o,” por ter acabado o pa­pel. Nosso olhar, que partira do foco de luz e da inquisição do Conde, passa em diagonal do semblante de Miguelinho e de sua postura até o gesto da mão direita que toca os papéis, terminando a ação na expressão do escrivão que, surpreso, suspende as notas que tomava. Surpresa que também pode ser observada na expres­são de outros juízes. Esse seria basicamente o roteiro da ação, a história contada na tela. 

47.   Podemos dividir a composição em três sessões, seguindo da es­querda para a direita. A primeira compreenderia os juízes sobre o estrado; a segunda, a figura centralizada de Miguelinho; e a terceira, o conjunto dos outros acusados.

48.   O primeiro grupo representaria a repressão da Coroa ao movi­mento republicano, encarnada pelos juízes trajados em uniformes militares que ali se encontram presentes, encabeçados pelo Conde dos Arcos - figura que, impondo-se diante do réu, se inclina, e com uma expressão inquisidora olha o acusado de cima para baixo. Em sua expressão, todo um conjunto de traços a nos transmitir uma ideia de arrogante autoridade.

49.   Por seu turno, o escrivão, a segunda figura mais impor­tante desse primeiro grupo - logo abaixo do Conde -, é marcado por outra expressão, não impositiva, mas que representa a surpresa causada diante da res­posta inesperada do acusado. A figura parece estar paralisada, olhando com espanto para Miguelinho: as sobrancelhas arqueadas, os olhos bem abertos, o gesto de tomar notas que por um segundo é suspenso. Toda essa figura é espanto, e para reforçar essa sensação, outros juízes também são representados com feições semelhantes, como o que se encontra à direita. Existe, dessa forma, aí toda uma carga expressiva que visa realçar ainda mais a ação principal da cena: a resposta de Miguelinho à insinuação do Conde dos Arcos.

50.   Na segunda sessão, que é composta por uma só figura, Miguelinho, enquanto persona­gem principal, vai ocupar nessa tela histórica uma posição de centralidade em primeiro plano. Aqui estamos diante da imagem do herói, entendido enquanto figura que deveria encarnar uma atitude nobre, corajosa e abnegada. Ao mesmo tempo, estamos diante do mártir, aquele que morre pela ideia que defende. E uma vez que o martírio está mais diretamente associado à defesa da fé, Miguelinho enquanto religioso se revela, mais uma vez, figura privilegiada.

51.   O sentido do herói e mártir nesse tipo de pintura histórica está associado à divulgação e afirmação dos ideais republicanos, e isso se processa pela comoção que é causada diante de uma cena na qual um homem dá a própria vida por esses ideais. E esse homem na pintura é apresentado em seus mínimos traços como alguém digno, honesto e sincero, diante de uma autorida­de impositiva e dissimulada.

52.   Pudemos observar, por meio dos “croquis” que analisamos, que esta figura foi sendo aos poucos composta mediante o estudo de posturas e expressões, em direção justamente a um “ideal apostólico,” a um ideal de herói e mártir. Ideal esse que, aliás, foi devidamente reconhecido não só pelo próprio artista, de cujo terceiro estudo se serviu para a composição definitiva, mas também pela comissão eleita pelo IHGRN. De forma semelhante, também já exploramos os elementos de expressão e posturais que nessa figura do Frei o compõem enquanto herói e mártir. Sobre esses últimos aspectos, contudo, gostaríamos de fazer uma pequena retomada, agora diante da tela definitiva, para que pos­samos entender uma das funções do terceiro grupo de figuras. Aqui podemos observar não só a busca de um ideal expressivo condizente com toda a sua postura, mas também o fruto dos es­tudos que foram realizados para se aproximar o máximo possível dos traços do “homem histórico,” que pudemos observar através do estudo a óleo de 1916. Pois bem, esse ideal alcançado na figura de Miguelinho dentro da composição ainda será realçado pela presença do outro grupo de figuras, o terceiro que, da esquerda para a direita, fecha a composição.

53.   Integrado pelos outros réus que participaram do julgamento, a função desse terceiro grupo na composição, além de respeitar a pesquisa documental, é a de criar um contraste, que visa desta­car ainda mais os atributos da figura principal. Muito diferente desta, aqui os corpos estão sentados, notadamente curvados, contraídos, magros, abatidos (sem dúvida sentindo o peso do julgamento). Suas pernas estão unidas ou cruzadas, os braços junto ao corpo ou a sustentar a cabeça, as feições denotam tristeza e abatimento. Em seus olhos, desalento. Nenhum mira a autoridade. Se observarmos essas figuras da direita para es­querda, vamos nos dar conta de que a linha curva que se forma entre a parte superior do tronco e a cabeça vai se acentuando cada vez mais, até encontrar seu ponto máximo de curvatura quando, diante da figura de Miguelinho, encontra seu extremo contraste. Essa relação nos faz lembrar o quadro O Juramento dos Horácios, de Jacques Louis David [Figura 9], no qual também as linhas retas dos personagens principais, altivos e resolutos, são realça­das pelas linhas curvas das mulheres, frágeis e desfalecidas, no canto direito da tela.

54.   E, já que mencionamos o quadro do “pintor da Revolução Francesa,” o último elemento que gostaríamos de ressaltar nessa nossa análise é o ponto central da tela de Parreiras. Assim como no famoso quadro de David, aqui o centro da cena é ocupado por um “gesto.” Naquele, um juramento, represen­tado pelas espadas unidas dos Horácios; neste, o empenho da vida em nome dos ideais republicanos, representado pelo gesto de tocar os documentos. Se traçarmos duas linhas diagonais a partir dos extremos da tela de Parreiras, vamos perceber que o ponto para qual nosso olhar se direciona é precisamente o gesto da mão que, com o dedo em riste, toca os papéis onde estariam as assinaturas que incriminavam o Frei.

55.   Este é o momento que de certa forma resume toda a ação, sintetizada nesse simples gesto que, não por acaso, se encontra ao centro. E talvez, assim como no quadro de David, o gesto de Miguelinho também possa ser visto como um “juramento,” um juramento de morte em favor dos ideais que o herói da tela histórica de Parreiras defendia.

Considerações finais

56.   O estudo de caso aqui apresentado, ao contextualizar a construção de uma memória republicana no Rio Grande do Norte, e discutir o processo de encomenda e execução do quadro Julgamento de Frei Miguelinho - analisando estudos preparatório e obra concluída -, pretendeu se afirmar com uma contribuição ao campo mais amplo de pesquisas sobre a extensa e significativa obra de pintura histórica de Antônio Parreiras. Ao mesmo tempo, ao chamar a atenção para os processos estéticos e históricos em jogo, bem como para a importância dessas telas que passaram a povoar os palácios de governos em praticamente todo o país, o artigo provoca, para além do “roteiro modernista,” uma ampliação das referências da cultura visual da arte brasileira da primeira metade do século XX. 

Referências bibliográficas

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[1] Antônio Diogo da Silva Parreiras (Niterói/RJ, 1860 – Niterói/RJ, 1937) foi pintor, desenhista e ilustrador. Iniciou seus estudos artísticos formais na Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), no Rio de Janeiro, em 1883, tendo sido aluno do paisagista alemão Georg Grimm. Abandonou a Academia no ano seguinte, passando a integrar o Grupo Grimm, uma referência da pintura de passagem na arte brasileira.  Em 1888, estudou durante dois anos na Itália, na Academia de Belas Artes de Veneza. De volta ao Brasil, chegou a assumir a cadeira de paisagem na AIBA, mas desligou-se na instituição após dois meses e criou, em Niterói, a Escola do Ar Livre. Nas primeiras décadas do século XX, iniciou nova etapa de sua produção, se notabilizando na Europa como pintor de nus e no Brasil pelas encomendas de pinturas históricas para governos estaduais. Em 1926 publicou sua autobiografia História de um pintor contada por ele mesmo, que lhe rendeu o ingresso na Academia Fluminense de Letras. Faleceu em 1937.

[2] O conteúdo deste artigo tem como base o livro do mesmo autor: PAIVA, Diego Souza de. Para além da moldura: O “Julgamento de Frei Miguelinho” e a construção de uma memória republicana (Natal 1906-1919). 1.ed. Natal: Caravela Selo Cultural, 2018.

[3] Sobre o quadro, cfr.: CASTRO, Raimundo Nonato de. Sobre o brilhante efeito: história e narrativa visual na Amazônia em Antônio Parreiras (1905- 1908). 2012. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Paraná, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Belém, 2012.

[4] Ali o artista possuía fornecedores confiáveis, como, por exemplo, a casa Garnier, que custumizava o vestuário de época; a casa Bertrand, que fornecia as “cabeleiras;” e a casa Calvini, exclusivamente para os sapatos. Além do mais, não lhe faltavam modelos profissionais, masculinos e femininos, diferente do que se passava no Brasil. E, no caso dos modelos masculinos, especificamente, fundamentais para as composições históricas, a situação ficava ainda mais de­licada em seu país, visto que no Rio de Janeiro só se dispunham para posar pessoas que não tinham a menor intimidade com as posturas que eram desejáveis para compor cenas dramáticas.

[5] No âmbito das encomendas oficiais, com base em manuscrito elaborado pelo próprio pintor (apud SALGUEIRO, 2000, p. 90), ainda constam: Anchieta, para o Governo do Espírito Santo; Felipe dos Santos, para o Governo de Minas Gerais; Jornada dos mártires, para a Prefeitura de Juiz de Fora; O primeiro passo para a Independência da Bahia, para o Governo da Bahia; Arariboía, para a Prefeitura de Niterói; História da cidade do Rio de Janeiro (tríptico), para a Prefeitura do Rio de Janeiro; e Saltos de Santa Maria de Iguassu, para o Governo do Paraná. A essa lista somam-se ainda uma relação de pinturas históricas importantes para as quais não existem contratos no acervo do Museu Antônio Parreiras, obras que não estavam submetidas a encomendas ou que o pintor executou por sua conta e depois vendeu. Segundo o próprio pintor, além desses quadros, ainda havia os que, pintados por sua conta, se achavam ainda em seu atelier: “Frei Caneca - Descoberta das Turmalinas Pelo Capitão Dias Adorno - Jean Hernández, Primeiro Colono de Santa Catarina - Os últimos momentos da Inconfidência - Beckman, Revolta Popular do Maranhão - Os invasores” (PARREIRAS, 1999, p. 253).

[6] Existe uma cópia manuscrita deste contrato no Museu Antônio Parreiras (Niterói/RJ) e uma cópia foi publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (1919a, 1919b).

[7] CÓPIA DO CONTRATO. Documento A. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, 1919, p. 164.

[8] O carro era composto por uma armação em forma de globo, no qual uma senhorita de nome Nena Lustosa, ves­tida de branco e trazendo à cabeça um barrete, empunhava duas bandeiras, uma bandeira nacional e outra da Revolução de 1817 (REV. IHGRN, 1917a, 1917b, p. 83). Ao redor do globo estavam de­senhados os contornos, com seus respectivos nomes, dos Estados que tomaram parte diretamente, quando províncias, no movimento de 1817 (Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte).