Diego
Rafael Hasse
*
* *
Eu penso que amo as crianças ainda mais que as
árvores, mas na desagradável situação em que me encontro no Brasil,
as árvores e flores foram o recurso de maior
valor que eu poderia imaginar.
Maria Graham [1]
1. Diante
de Salta de água [Figura 1][2], Maria
Graham (Papcastle, 1785 - Londres,
1842)[3]
nos convida a observar uma paisagem. Em oposição ao barulho urbano, no qual
estamos imersos, imaginamos o silêncio desse lugar sendo quebrado apenas pelo
som da água descendo as encostas, talvez somado ao ruído do vento ou de
pássaros. Os olhos ligeiros podem perceber a gravura apenas como um recorte
exuberante da natureza, protagonizado por uma queda d’água, a qual ilustra um
dos diários de viagem da artista. Na realidade, acredito que é assim que ela
foi e é encarada por muitos. Entretanto, olhemos a imagem dando maior atenção
aos seus detalhes compositivos.
2. Entre
morros, com a vegetação ficando escassa, deslocada à direita da imagem, surge a
cascata. No canto inferior esquerdo, está uma pequena casa, quase
imperceptível, tendo em vista que um arbusto desponta a sua frente em igual
proporção de tamanho. Além disso, os aspectos naturais tomam conta da
representação. Um elemento, porém, chama a atenção: no primeiro plano, isolado,
disposto em uma área descampada, a artista evidenciou um tronco cortado e seco.
As linhas que formam o curso de água se abrem e convergem para esse detalhe, o
qual, por sua vez, contrasta com uma porção de vegetação densa logo atrás dele.
3. Agora,
percebendo as dualidades que compõe a imagem, depreendo esse objeto artístico
de outra forma: a natureza está sim representada, mas não de forma abundante. A
exuberância da paisagem está contraposta com o princípio de sua destruição.
Começo a não mais enxergar a queda de água, que dá título à obra, como
protagonista da cena. Melhor dizendo, foco nas contradições da imagem,
acentuadas pelas desaparições do meio natural, as quais - embora presentes em
vários detalhes - estão sintetizadas no “toco” que restou de uma árvore. Esta
última era um recurso de grande valor para a artista, conforme podemos notar na
epígrafe que abre este texto.
4. Tal
detalhe me inquieta, aguça minha curiosidade e dá início ao itinerário que aqui
apresento. Existe, nesta imagem, um iminente tom de denúncia, de crítica, em
relação à devastação do meio ambiente natural? Graham teria sinalizado, nas
primeiras décadas do século XIX, a destruição das florestas da América do Sul?
Utilizemos essa gravura e os questionamentos inicialmente levantados sobre ela
como um disparador para tecer reflexões sobre a apreensão da paisagem feita
pela artista inglesa.[4]
5. Quando
um pesquisador se dedica a estudar um objeto afirmando-o como paisagem, é
necessário situar dentro de qual perspectiva faz isso. Uma das tendências mais
recorrentes no campo da história, teoria e crítica de arte é a que W. J. T.
Mitchell chama de “agenda modernista,” na qual Kenneth Clark[5]
desponta como um dos principais expoentes. Ao lançar o livro Paisagem na arte, ele analisa essa
produção com uma grande preocupação formalista e estruturalista, criando certos
padrões de generalização dentro de uma visão linear e progressiva da História
da Arte. Para ele, as pinturas de paisagem teriam progredido ao longo do tempo
através de escolas (MITCHELL apud VIEIRA, 2006, p. 8).
6. Ao
rastrear estudos sobre o tema da paisagem produzida no período em que Graham
esteve no Brasil, percebe-se que grande parte deles está associada com a
referida “agenda modernista” e investe na vinculação com a busca de uma
identidade. Segundo José Augusto Avancini:
7.
A produção bibliográfica sobre a pintura
de paisagem no Brasil, nas últimas três décadas, aponta para um interesse
crescente sobre este gênero de produção pictórica associado à renovada
curiosidade sobre o tema da identidade nacional, juntamente com a redescoberta
e valorização da produção plástica do século XIX e início do XX. (AVANCINI,
2012, p.13)
8. O
pesquisador sugere a renovação do interesse em relacionar os trabalhos
artísticos, do período em questão, com a construção da noção de nacionalidade.
Abordagem que Maria Angélica Zubaran aproxima da produção de Graham, quando
afirma que:
9.
[...] as representações textuais e
iconográficas da viajante Maria Graham sobre a natureza brasileira assumem o
papel de porta de entrada aos Brasis imaginários oitocentistas, contribuindo
com uma estrutura de signos e símbolos de referências para a construção de
identidades para europeus e não-europeus. (ZUBARAN, 2005, p. 58)
10. Sem
deixar de reconhecer a importância que esse debate ocupou em determinado
momento da historiografia da arte, questiono tais assertivas, pois,
crescentemente, os estudos acadêmicos têm procurado diluir as fronteiras que
demarcam e se fecham dentro de uma identidade, sublinhando a ideia de
pertencimento e, consequentemente, excluindo o que estaria de fora desse
“limite,” pois “a mescla dos territórios e a ausência de fronteiras entre os
domínios são uma marca bem própria do contemporâneo; a paisagem não foge a essa
regra. Sua esfera se ampliou e oferece um panorama bem mais vasto” (CAUQUELIN,
2007, p.8).
11. A
despeito disso, aposto na “[...] possibilidade de escolha entre várias
‘histórias da arte,’ as quais se aproximam da mesma matéria por diferentes
lados” (BELTING, 2012, p. 203). Acredito que as abordagens podem partir de
diferentes olhares, atribuindo novas camadas de sentindo aos objetos
analisados, evitando, assim, a tomada das obras de arte como documentos dotados
de uma verdade absoluta, dos quais seria possível extrair fatos históricos
únicos. Tomada de posição que desvincula esse objeto - a produção de paisagens
pelos “artistas viajantes” - de sua tradicional associação com o conceito de
pitoresco e vai ao encontro do alerta feito por Claudia Valladão de Mattos,
quando diz que
12.
[...] ele [o conceito de “artistas viajantes”]
impede a compreensão da diversidade da produção desses artistas (e não
artistas) e funciona antes como uma forma de resistência ao projeto de
construção de uma história da arte global, isenta dos preconceitos que
acompanharam o surgimento e desenvolvimento da disciplina desde o século XIX [...].
Notamos uma tendência marcante a contrapor o “olhar estrangeiro” do viajante ao
“nosso olhar”, revelando claramente que por trás do interesse pela produção dos
viajantes encontra-se um desejo de construir uma identidade “nossa” em oposição
à identidade “deles.” (MATTOS, 2008. p. 286)
13. Dessa
forma, tomo distância da abordagem criticada pela autora e procuro pensar esse
objeto por outro viés, pois compreendo que “[...] as paisagens do ‘Novo Mundo’
oferecem um repertório capaz de reinventar as experiências, crenças, espectros
e fantasmas dos exploradores e colonizadores” (LINKE, 2014, p. 810). Assim,
fica claro que aposto na multiplicidade de olhares que a arte possibilita.
Nunca acreditei que narrativas consolidadas e naturalizadas não possam ser
revisitadas e exploradas de outra forma. Por conseguinte, ao analisar algumas
paisagens de Graham, me distancio das abordagens sugeridas por Avancini e
Zubaran, bem como do esforço em classificá-las dentro de escolas, imprimindo um
caráter evolutivo e linear, como aquele empreendido por Clark. O que procurarei
desenvolver ao longo deste texto se aproxima antes das ideias de Mattos, ou
seja, arrisco em novas narrativas, as quais diluem fronteiras e se despem de
preconceitos instaurados na disciplina da História da Arte.
14. Ainda,
concordo com Javier Maderuelo (2013, p. 38), quando ele diz que paisagem “[...]
não é apenas um lugar físico, mas o conjunto de uma série de ideias, sensações
e sentimentos que elaboramos a partir do lugar e seus elementos constituintes.”
Soma-se a isso o deslocamento que Malcolm Andrews traz frente a abordagem da
paisagem por Clark, incluindo o espectador no processo de “significação” da
paisagem, pois ele afirma que ela “[...] não é mais a obra de arte, seja o
suporte, seja a representação pictórica; mas o processo perceptivo que se opera
no olhar. Não é a mão que pinta, mas o olho que seleciona, enquadra, foca e
edita” (ANDREWS apud VIEIRA, 2006, p.9). Considero que o olho e a percepção
podem ser sim do artista diante da cena, mas também podem ser do espectador ou
de quem se dedica ao estudo desses objetos. Defronte deles, somos captados e
envolvidos de alguma forma, a qual nem sempre será a mesma do artista, pois
“[...] não existe paisagem sem interpretação e essa é sempre subjetiva”
(MADERUELO, 2013, p.35).[6]
15. Logo,
o que está posto aqui é a forma como determinadas paisagens foram percebidas e
analisadas por mim, bem como os tensionamentos entre elas e as questões que me
afetam e têm me atravessado. Entretanto, mesmo que eu parta de uma ideia
subjetiva, não significa que tal abordagem não seja embasada em esforços de
pesquisa e aportes teóricos que me ajudam a compreender as inquietações
surgidas a partir do próprio objeto.
16. Nesse
sentido, minhas vivências me levam a pensar nas obras dentro de um viés
político, relacionado com posições críticas em relação ao mau uso do ambiente
natural. Essa intuição se assemelha à observação de Anne Cauquelin, pois também
percebo que “muito mais que um ‘rótulo’ estético, a paisagem confere uma
unidade de visão às diversas facetas da política ambiental” (2007, p. 10). Com
esse estímulo, lanço mão das propostas de Mitchell que, ao organizar o livro Landscape and Power, objetiva “[...]
transformar a paisagem de um nome em um verbo” (2002, p. 1), trazendo a ideia
de que “toda pintura de paisagem pode ser lida em uma chave política” (MATTOS,
2012, p. 1579). Embora, o autor se refira às pinturas de paisagem, penso que
tal abordagem pode ser estendida a qualquer meio ou linguagem artística que
seja focado na apreensão do meio ambiente, como é o caso dos desenhos de Graham
e das gravuras feitas a partir deles.
17. Mattos
recorre ao impulso de Mitchell e analisa obras de “artistas viajantes,” como Nicolas
Antoine Taunay (1755-1830) e seu filho Félix-Émile
Taunay (1795-1891),[7] observando-as “[...] como espaço de
visualização de debates sobre a ocupação do solo e exploração dos recursos
naturais” (MATTOS, 2012, p. 1581), sendo que o último:
18.
[...] passa a usar o gênero da paisagem para
apresentar e problematizar questões que ele considerava de grande relevância
para o país. Dentre essas questões encontrava-se a preocupação com a
preservação do patrimônio natural do Brasil, que estava também sendo largamente
debatida nos círculos do IHGB à época. Dois quadros de Taunay são especialmente
importantes nesse contexto: Vista
da Mãe D’água e Vista de um mato virgem que se está
reduzindo a carvão. (MATTOS, 2012,
p. 1580-1581)
19. As
palavras da autora afirmam a intenção do artista em problematizar questões
ecológico-ambientais, quando pintou determinadas cenas. Segundo ela, é possível
inferir isso baseando-se nos debates acerca da prática do desmatamento e
alterações climáticas que já estavam sendo realizados no Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, fundado em 21 de outubro de 1838 (MATTOS, 2012, p.
1583). Todavia, minha hipótese é de que determinadas paisagens apreendidas por
Graham, décadas antes das pinturas de Taunay, já levantavam questões
relacionadas com uma crítica ambiental. Ou seja, a partir do que proponho neste
trabalho, sugiro uma atualização no debate iniciado pela pesquisadora da
UNICAMP.
20. Diante
desse pressuposto, ao longo de minha exploração, surgiram algumas inquietações
relacionadas com a seguinte indagação: o problema levantado, a partir da obra
de Graham, relacionando-a com um caráter político, ou seja, de crítica
ambiental, era a intenção da artista ao produzir determinadas paisagens?
Acredito que para essa pergunta não existe uma resposta, pois não tomo essas
paisagens como um documento fiel à “realidade,” mas observo as soluções e os
tratamentos dados pela artista, algumas vezes confrontando com seus relatos
escritos ou questões que possam ter atravessado sua poética, sem atá-las à
ideia de intencionalidade. Reflito a partir da forma como elas chegam e são
percebidas por mim, bem como as relações que estabeleço a partir disso.
Concordo com Ronaldo Brito (2005, p. 140) quando ele diz que “o historiador da
arte sempre lidou com a contemporaneidade do objeto [...] tanto quanto com o
fato de que aquele objeto, sendo o mesmo, parece falar sempre de forma
diferente [...]. A história é um processo em aberto, é uma interpretação
ininterrupta, é remorso e projeto.” Ou seja, aposto na História da Arte como um
processo dotado de múltiplas possibilidades de olhar para as imagens,
colocando-as em um terreno de experiências, no qual é possível estabelecer
novas conexões e discursos.
21. Relaciona-se
com a ideia levantada por Brito - quando ele diz que o historiador da arte
sempre trabalhou com a contemporaneidade do objeto - o que Daniel Arasse chama
de “horror ao anacronismo,” pois esse:
22.
[...] tende a ser mais esclarecedor em relação
ao intérprete do que ao objeto interpretado. Não obstante, como acabarias por
compreender, esse anacronismo é algo de inevitável, mesmo para os
historiadores. Jamais poderemos reconstituir “o olhar do Quattrocento”, como se
diz no título [L’CEil du
Quattrocento] (mal) traduzido de
um livro de Baxandall [...]. Hoje, em vez de tentares em vão fugir do
anacronismo como da peste, acreditas que, quando possível, mais vale
controlá-lo para o fazer frutificar. (ARASSE, 2014, p. 90)
23. A
citação do autor tem relação com minhas escolhas, bem como a forma como enxergo
e trato a produção artística que conduz minha pesquisa. Ao trabalhar com um
objeto construído séculos atrás, mas que é analisado por mim no presente, eu
poderia aceitar as grandes narrativas e o que já está posto sobre ele,
reproduzindo discursos. Ou, ao contrário, desafiar o que já está canonizado na
historiografia da arte, buscar novos modos de ver e, com sorte, tecer uma nova
escrita que desperte interesse dentro do campo citado.
24. Prefiro
assumir uma atitude ousada, arriscando desafiar o que já está posto. Nesse
caso, talvez, o maior risco seja o anacronismo, pois muitas vezes ele é visto
com maus olhos no âmbito das pesquisas em História da Arte. O que quero dizer é
que não acredito na possibilidade de apagar todas minhas vivências e me
reportar às primeiras décadas do século XIX, com a finalidade de reconstruir o
olhar e as experiências daquela época - como aponta Arasse
em relação ao “Quattrocento.” Assim, mesmo com a possibilidade de ser criticado
e incompreendido, assumo um olhar anacrônico, ao encarar e questionar as
paisagens de Graham sob uma ótica política, de crítica em relação à devastação
ambiental. Antes de seu contexto e motivações de produção, essa abordagem pode
dizer mais sobre o modo que esse objeto me atravessa, a partir de experiências
e observações de um mundo imerso no caos ecológico.
25. Mesmo
em uma abordagem assumidamente anacrônica, que olha na contemporaneidade para
um objeto construído em época e contexto diferentes, não quer dizer que não se
busque aportes nas “fissuras do tempo,” para encontrar questões que possam ter
atravessado a poética da artista. Até porque, como anuncia Giorgio
Agamben, a contemporaneidade:
26.
[...] é uma singular relação com o próprio
tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais
precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma
dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a
época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são
contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem
manter fixo o olhar sobre ela [...]. Isso significa que o contemporâneo [...] é
também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de
transformá-lo e de colocá-lo em relação com outros tempos, de nele ler de modo
inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de
maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode
responder, (AGAMBEN, 2009, p. 59-73)
27. O
autor deixa nítido que o contemporâneo é anacrônico. As inquietações e questionamentos
no presente podem ter relação com as lacunas deixadas em outros tempos.
Motivado por essa concepção - embora esse estudo procure se distanciar de
enquadramentos dentro de períodos, ou agrupamentos em categorias e estilos -,
tendo em vista que as paisagens aqui estudadas foram apreendidas por Maria
Graham na segunda década do século XIX, alguns apontamentos sobre essa época
devem trazer pistas que servirão como aportes para pensar a paisagem pela via
ecológico-política.
28. No que
tange à aproximação com uma ideia de romantismo, o anseio pelo reencontro com a
natureza se faz importante, pois a paisagem passa a ter esse elemento como
plano principal. A paisagem
29.
[...] só passou a existir a partir do momento
em que a humanidade se viu fora da natureza. A paisagem tornou-se o meio pelo
qual acessamos a natureza, de uma maneira estetizada, permeada pela emoção
artística, ganhando grande importância dentro do campo das artes visuais. A
partir disso, é possível também tecer uma relação entre o pensamento romântico
e o pensamento ecológico, já que este último sente os ecos da perda e da
nostalgia de um ambiente ancestral. (FAVERO, PEREIRA, 2014, p. 108)
30. Assim,
a produção paisagística assume a sensibilidade e a subjetividade do artista.
Não se tem uma ideia de cópia fiel da natureza, mas as idealizações passam a
fazer parte da apreensão da paisagem. De modo que, os autores sugerem a relação
desse pensamento romântico, frente à apreensão da paisagem, com o que nos move:
um viés ecológico.
31. Ainda,
no esforço de observar o contexto e período de produção das obras de Graham, é
fundamental mencionar o estudo feito por José Augusto Pádua. Ele recupera “a
existência de uma reflexão profunda e consistente sobre o problema da
destruição do ambiente natural por parte de pensadores que atuaram no país
entre 1786 e 1888, muito antes do que convencionalmente se imagina como sendo o
momento de origem desse tipo de debate” (PÁDUA, 2004, pos. 64). Em sua
abordagem, ele enfatiza o forte componente de crítica ambiental presente nos
escritos de José Bonifácio, que, na Representação
à Assembléia Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a
escravatura, de 1823, destaca:
32.
Nossas preciosas matas vão desaparecendo,
vítimas do fogo e do machado destruidor da ignorância e do egoísmo. Nossos
montes e encostas vão se escalvando diariamente, e com o andar do tempo
faltarão as chuvas fecundantes que favorecem a vegetação e alimentam nossas
fontes e rios [...]. Virá então este dia (dia terrível e fatal), em que a
ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes cometidos. (BONIFÁCIO
apud PÁDUA, 2004, pos. 6-9)
33. José
Bonifácio de Andrada e Silva foi um estadista, naturalista e poeta brasileiro
que atuou como ministro de negócios estrangeiros de 1822 a 1823. Essa questão
nos interessa, pois foi a partir dessa posição que Graham se aproximou dele a
ponto de firmarem estreita relação, o que fica nítido quando ela comenta:
“[...] a família de José Bonifácio despediu-se delicadamente de mim e
manifestou o desejo que encurtasse minha estadia na Inglaterra para seis meses
em vez de doze” (GRAHAM, 1940, p. 95). Além disso, Graham era uma entusiasta
das ideias propagadas por Bonifácio, afirmando que suas avaliações políticas
(dela, Graham) coincidiam inteiramente com a dos irmãos Andrada (MONTEIRO,
2004, P. 52). Graham também ocupava-se com a leitura
dos textos que ele publicava no “Diário da Assembleia,” o que perceptível no
seguinte relato:
34.
[...] José Bonifácio era um homem de raro
talento. A uma educação europeia ele havia acrescentado o que a experiência
poderia fornecer pelas viagens. Havia estudado todas as ciências que imaginou
poderiam ser vantajosas aos interesses locais [...]. O Ministério dos Andradas
parecia ser tão justo e sábio que ninguém duvidava de sua longa permanência e
de que ele obteria para o Brasil uma Constituição que tornaria a Independência
do Brasil uma bênção [...], abolindo não somente o comércio dos escravos como a
própria escravidão. De minha parte fui obrigada a me satisfazer com a leitura
dos relatórios, tais como foram publicados no Diário da Assembléia. (GRAHAM,
1940, p. 84-89)
35. A
“fala” de Graham nos traz a certeza do contato que ela tinha com as ideias do
estadista. Contudo, soma-se ao nosso interesse as percepções que a artista guardava
em relação à natureza, esboçadas em várias passagens do texto do Escorço biográfico de Dom Pedro I, as
quais Rosa Cristina Monteiro muito bem sintetiza:
36.
[...] o subtema que torna o Escorço
especialmente atraente é o naturalismo: descrições de paisagens, observações
botânicas, apresentações de cadeias ecossistêmicas e comentários sobre impactos
socioambientais dos modos de produção agrícola encontrados no interior do Rio
de Janeiro, constituem fortes elementos diferenciais desta obra. (MONTEIRO,
2004, p. 55)
37. O
comentário contribui para a sugestão de que as concepções da artista britânica
em relação ao meio ambiente e sua devastação combinavam com as de Bonifácio.
São perspectivas que vão ao encontro do que apontei em relação à imagem que
abre o texto, Salta de água [Figura 1]. Em suas reflexões, Bonifácio menciona a
força impiedosa do fogo e do machado sobre as matas. Violência que também está
em destaque no primeiro plano da gravura de Graham: a árvore cortada teria sido
vítima do machado que Bonifácio enfatiza? Além disso, a devastação da natureza,
na gravura de Graham, é acentuada pelos contrastes entre a exuberância e a
destruição. O emprego dessa solução por parte da artista assume um papel importante
nessa análise, como veremos mais adiante.
38. Tais
assuntos também estão presentes quando Mattos explora a pintura de Félix-Émile
Taunay, Vista de um mato virgem que se
está reduzindo a carvão [Figura 2]. Ela observa que Taunay mostra diretamente os
malefícios da atividade extrativa e da agricultura, pois vemos a mata sendo
derrubada (MATTOS, 2012, p.1583). Questões que contribuem para a investida que
a autora sugere e a qual aqui aderi: analisar a apreensão da paisagem sob uma
ótica política.
39.
Na mesma linha de raciocínio, a escritora e
crítica de arte Katia Canton observa a tela, destacando o seguinte:
40.
Nesta obra, o artista assume o papel de
precursor da denúncia da exploração e da destruição da natureza. Ele retrata
uma enorme e exuberante floresta - repare no tamanho miniaturizado dos dois
homens que estão no centro, na parte inferior da tela para oferecer comparação
de dimensões - com cipós e quedas d’água. Do lado esquerdo da tela, homens
desmatam e empilham troncos de árvores enquanto, ao fundo à esquerda, vê-se um
feixe vertical de fumaça cinza subindo, quase se confundindo com as nuvens. O
título da obra prevê a destruição da mata em razão de um incêndio. (CANTON,
2008, p. 49, meu grifo)
41. A
citação da autora torna-se importante no encadeamento das inquietações que têm
me atravessado por dois motivos. Primeiramente, quando observo as palavras que
afirmam categoricamente Taunay como “precursor” da denúncia em relação à
destruição da natureza, retorno ao que apontei no início: talvez, até hoje Salta de água tenha sido observada
apenas como um recorte da natureza exuberante ou catalogação botânica, fato que
favorece a ideia de que esta produção carece de diferentes olhares, os quais
não os deixem inertes, esquecidos apenas na “tradição.”
42. No
momento em que faço essa constatação, de forma alguma parto
do pressuposto que Canton tenha - ou não - visto as gravuras de Graham. Também
não tenho a pretensão de que todos que entrem em contato com os objetos que
analiso os vejam sob a mesma ótica que sugiro. Ao contrário: o que me incomoda
na citação da autora é justamente o fato de que ela fecha as possibilidades de
o observador tecer suas próprias relações com a obra, além de sua utilização da
paisagem de Taunay como documento capaz de afirmá-lo como “precursor” da
denúncia ambiental.
43. Ao
comparar a gravura de Graham com a pintura de Taunay, observo soluções
similares às que levam Canton a afirmar o artista francês como “precursor” da
denúncia em relação à devastação ambiental. Logo, suponho que ela esteja
equivocada nessa assertiva, pois mesmo que eu perceba isso em relação à gravura
em debate, não colocaria a artista em tal posição de “precursora.” Essa mirada
subsidia meu incômodo em relação à reprodução de discursos cheios de afirmações
categóricas na História da Arte, fazendo-se engessados e limitadores. Credito mais entusiasmo nas novas formas de olhar, as quais
“implicam na disponibilidade para o novo e para o estranho, o oculto, para
perceber o que nem sempre é visto, ter sensibilidade para os detalhes e
compreensão do entorno e das relações existentes” (HAMERSKI, 2014, p.32). Como
deixei claro até aqui, foi na percepção dos detalhes compositivos das paisagens
de Graham, e das relações que estabeleci a partir disso que meu interesse nessa
pesquisa nasceu e consolidou-se.
44. O
segundo motivo que faz a citação de Canton contribuir para esse artigo é
justamente a “sensibilidade para os detalhes,” os quais ela observa na pintura
de Taunay - mas, que acaba fechando apenas naquela paisagem. Como já enfatizei,
suas constatações, no caso, são semelhantes às que percebo em Salta de água. Por isso, é neste momento
que quero voltar à questão da “ênfase no contraste” que citei anteriormente.
Assim como Graham, Taunay também lança mão desse artifício, embora o faça de
forma mais agressiva: de um lado, parte da mata virgem que ainda resiste, com
seus detalhes exuberantes e grandiosos; do outro, de forma díspar, a ponto de
nem parecer o mesmo lugar, terrenos devastados, árvores derrubadas e a queimada
que irá transformar tudo em carvão - o efeito do fogo e do machado assinalado
por Bonifácio. Brutalidade que de fato ocorreu no contexto de colonização do
Brasil, a qual “foi realizada pela
ocupação de sua zona costeira e o objetivo principal era explorar os recursos
naturais, todo o litoral brasileiro foi muito degradado ao longo dos anos. Para
a construção das primeiras cidades muitos ecossistemas foram devastados,
aterrados e modificados pela interferência humana” (HASSLER, 2005, p.83).
45. É
justamente essa ênfase na devastação e modificação dos ecossistemas pela
interferência humana que identifico na paisagem de Maria Graham. Além disso,
outro contraste visível nas imagens é que ambos representam quedas d’água,
trazendo a ideia da interdependência entre os recursos hídricos e a abundância
de vegetação. A inglesa comenta sobre isso no Escorço: “[...] sempre que um pequeno curso d’água corre pela mata,
a variedade e a beleza da vegetação aumenta” (GRAHAM,
1997, p. 131). O que revela novamente um descompasso entre a natureza
exuberante e a sua destruição, presente em Salta
de água, pois, segundo a própria artista, se existe um curso d’água, a
vegetação deveria ser abundante, mas não é o que está retratado na imagem.
Logo, “[...] como esse meio ambiente deplorável se apresenta sob a forma de
paisagens igualmente desoladas, assistimos uma identificação entre meio
ambiente e paisagem” (CAUQUELIN, 2007, p.9). Ou seja, quando percebo a
destruição destacada na imagem, ela tem potencial para servir como dispositivo
para uma discussão política sobre a ação nociva do ser humano no meio ambiente
natural.
46. Dentro
de um mesmo viés, José Albelda (2014, p.24-25), ainda que não se refira ao
século XIX, traz a ideia de reconstrução da paisagem no contexto da crise
ecológica que vivemos, posto que isso “[...] envolve necessariamente reconsiderar a
percepção estética e o impacto ecológico de nossas ações antrópicas no
território. A partir da dinâmica dos extremos, a avaliação positiva dos
estereótipos de natureza não-convencional e a percepção negativa de paisagens
onde a presença humana é muito evidente.”
47. O que
o pesquisador chama de “reconstrução da paisagem”, no contexto desta pesquisa,
eu entendo e utilizo como ampliação dos discursos sobre essas produções
artísticas. Frente a nossa atual conjuntura ecológica, elas são dispositivos
potentes dentro do debate ecológico, o que imprime a solução de Graham como um
agente dentro dele. É um posicionamento anacrônico? Sim, já assumi esse risco.
Então é ficcional? É possível que seja. Todavia, o que interessa é que essa
investida viabiliza novos discursos e desloca a ideia de verdades comprovadas,
frequentemente associadas às imagens. Além disso, propõe uma análise que contribui
para o que estamos chamando de crítica ambiental. Problematização extremamente
necessária, pois mesmo que percebamos tamanha importância nesse aspecto, ele
tem tido grande dificuldade em ser comunicado e representado com toda urgência
e complexidade que precisa (ALBELDA, 2007, p. 10).
48. Incluída
nesse debate, a pesquisadora Maria Antonia Couto da Silva discute a
representação da paisagem e crítica ambiental tendo como base o álbum Brasil Pitoresco, escrito por Charles Ribeyrolles (1812-1860) e ilustrado com litografias
realizadas a partir de fotografias de Victor Frond (1821-1881).[8]
Uma das imagens analisadas é Vassouras
[Figura 3], observando o olhar de Frond às áreas
devastadas pelo plantio do café. Ao fundo, o observador percebe as montanhas
solapadas de vegetação, enquanto no primeiro plano existem apenas espécies
rasteiras que conseguiram resistir. Como já foi tantas vezes mencionado, em Salta de água, percebemos soluções
semelhantes, com a vegetação dos morros e no primeiro plano ficando esparsa.
Tal dispositivo denuncia a capacidade antrópica de aniquilar o meio ambiente,
como se a natureza estivesse disponível apenas para o uso humano, o qual se
afasta cada vez mais dela.
49. Ainda
dentro dessa perspectiva, Mattos analisa obras do artista Pedro
Weingärtner (1853-1929). Ela afirma que, inicialmente, suas pinturas de
paisagem associadas à questão dos imigrantes no Brasil possuíam um valor
positivo, de orgulho em relação à domesticação da floresta pelo homem.
Entretanto, ao longo do tempo, essa visão otimista foi se modificando, como na
obra Tempora mutantur [cfr. Imagem], em que o artista apresenta “[...] um casal de
imigrantes que luta contra a natureza para estabelecer uma lavoura [...]. Ambos
parecem muito preocupados e deprimidos, incapazes de domar a natureza” (MATTOS,
2012, p. 1585). Essa observação não deixa de assumir um tom político, ao chamar
atenção para o cotidiano das famílias de imigrantes frente às condições
precárias a que foram submetidas, mas não está associada ao viés do impacto
ecológico que aqui nos move.
50. Sobre
a produção do mesmo artista, a pesquisadora Neiva Maria Fonseca Bohns questiona
a frequência com que nela aparece a temática da obliteração da natureza. Bohns
adverte que é difícil precisar quais os motivos exatos que levaram o artista a
retratar esse tema com significativa frequência, mas sugere duas hipóteses. A
primeira está relacionada com a domesticação da natureza pelos imigrantes, como
um elogio ao desenvolvimento econômico e social daquelas comunidades, e se
relaciona com os apontamentos de Mattos. A segunda hipótese é de que essa
devastação era um motivo de inquietude para o pintor (BOHNS, 2013, p. 136).
Esse entendimento fica evidente quando ela analisa a obra Derrubada, de 1913 [Figura 4], na qual:
51.
[...] ressurge o tema do desmatamento, com a
importante distinção de que não aparecem os agentes da transformação da
paisagem. É a própria natureza aviltada que protagoniza a cena. O contraste
entre a paisagem paradisíaca de fundo - que tem até uma cachoeira - e o
emaranhado de madeira em primeiro plano, funciona como índice do trabalho
humano e é o tema principal desta obra. (BOHNS, 2013, p. 136)
52. Ela
chama atenção para um aspecto importante, que é a ausência da figura humana
protagonizando a cena. Esse mesmo detalhe foi apontado anteriormente na obra de
Taunay, tendo em vista que, mesmo retratando a agressão humana sobre a
floresta, ele diminui a escala das pessoas, trazendo a noção de que o ator
principal da cena é o meio ambiente sendo degradado. Não obstante, a percepção
de Bohns novamente enfatiza a questão do contraste, citado inúmeras vezes ao
longo do discurso empreendido sobre a paisagem de Graham: ao fundo, Weingärtner
retrata uma natureza exuberante, intocada, mas no primeiro plano e no centro da
imagem, a destruição toma conta da pintura.
53. Até
aqui observamos as camadas de sentido que os historiadores e críticos de arte
são capazes de dar aos objetos que analisam, no âmbito da discussão que nos
move. Entretanto, o artista Marcelo Chardosim (Porto Alegre, 1989), com sua
poética, traz um sentido que se associa às relações estabelecidas nesta
pesquisa, quando nos apresenta sua Derrubada para Pedro Weingärtner [Figura 5]. Trata-se do registro fotográfico da
simulação de um diorama, montado no pátio da casa do artista, na região
metropolitana de Porto Alegre. Marcelo conta[9]
que, a partir da ideia de “micro paisagem,” a montagem funciona como uma
maquete de suas inquietações em relação à cidade e ao meio ambiente. Ao fundo,
ele utilizou um recorte da obra de Weingärtner e na frente colocou um pássaro
morto e galhos secos, em contraste com plantas verdes, sugerindo que essas
ainda estão vivas e resistem (elementos encontrados na rua pelo artista). Para
esse trabalho, utilizou os elementos trágicos evidenciados na obra de
Weingärtner, servindo como denúncia da venda de uma área verde do bairro Jardim
Algarve, em Alvorada.
54. A
percepção do artista contribui com a nossa investida sobre a potencialidade da
paisagem como dispositivo para crítica ambiental. Seu olhar transformado em
outra representação visual enriquece tal debate. Ou seja, trabalhando com a
dúvida entre o real e o representado, o documental e o imaginário, ele
potencializa os contrastes entre o que ainda vive e o que não resistiu, que, na
nossa análise, já estavam presentes na criação de Graham. Além disso, Chardosim
se aproxima de forma incisiva à urgência que Albelda (2014) aponta, quando fala
da dinâmica dos extremos para reavaliar a postura negativa da interferência
humana na paisagem. Neste viés, Marcelo Chardosim estaria atualizando uma
preocupação sinalizada pela artista britânica, lá nos primórdios do século XIX?
55. No
texto que nos serve de base para este estudo, quando Mattos (2012, p. 1579) se
refere aos “artistas viajantes” que estiveram aqui em momentos anteriores à
criação da Academia Imperial de Belas Artes, ela afirma que as paisagens
produzidas por eles “[...] se inserem em políticas colonialistas e imperialistas
postas em prática na Europa e certamente devem ser lidas sob esta ótica.” Ou
seja, ao sugerir que determinadas imagens devem ser observadas sob a ótica do
imperialismo e colonialismo, ela se associa ao que a maioria dos estudos já
fazem.
56. Sob
esse viés, ela desconsidera que as paisagens produzidas por viajantes, entre os
quais incluo Graham, possam ser dotadas de um potencial político que suscitaria
um debate em relação à ocupação do solo e à devastação natural, como ela
própria aponta em Taunay. Além disso, ao optar por começar sua exposição atando
as imagens produzidas por outros “artistas viajantes” à ideia de imperialismo e
exploração econômica, e terminar sugerindo a análise das obras de artistas
contemporâneos sob o viés político-ecológico, a autora assume uma História da
Arte linear e evolutiva. Percebo que uma análise no âmbito da discussão que
estamos propondo ficaria empobrecida ao ser tomada sob essa perspectiva. Mais
uma vez, reforçamos a ideia de que a proposta lançada por Mattos deveria ser atualizada,
observando-se a produção artística dos viajantes do século XIX sob uma ótica
política de crítica ambiental e traçando relações com outros tempos, inclusive
com a contemporaneidade, sem trazer uma ideia evolutiva.
57. Maria
Angélica Zubaran também recorre à abordagem sugerida por Mattos para observar a
produção de Graham. A autora, porém, limita as possibilidades de olhar para
obra da artista inglesa, ao dizer que ela:
58.
[...] deve ser interpretada [...] à luz do
imperialismo britânico do final do século XVIII e início do século XIX, de
forma a investigar o papel da História Natural na expansão imperialista
britânica, assim como na constituição de uma geografia imaginativa para o
Brasil centrada na noção de uma natureza tropical [...], como uma “outra” em
relação à paisagem doméstica e temperada europeia. (ZUBARAN, 2005, p. 58)
59. No
mesmo estudo, a pesquisadora afirma que vai analisar tanto os desenhos
botânicos - encomendados por William Hooker - quanto as paisagens apreendidas
por Graham para demonstrar o que sinaliza nessa citação. Todavia, seu texto
restringe-se aos primeiros objetos mencionados.[10]
Ela não dá atenção para a composição das cenas paisagísticas construídas pela
artista inglesa. Além disso, ao tomar as ilustrações botânicas como documentos
que, segundo ela, comprovariam o interesse comercial britânico em relação à
flora brasileira, ela se concentra em reafirmar as imagens dos “viajantes” como
uma “memória coletiva do Mundo Tropical, que povoa nossa imaginação até hoje”
(HOLZER, 2000, p. 120).
60. É
claro que estou ciente que a pesquisadora tem seus interesses focados em outra
área e que, por isso, sua pesquisa tem finalidades outras. Também não
desconheço o contexto de ebulição política e econômica que viviam tanto os
países europeus quanto as colônias na América, bem como o destacado interesse
comercial dos ingleses no Brasil.[11] Entretanto, discordo que as imagens
produzidas por Graham devam ser vistas apenas sob esse viés. O que as paisagens
que analisei nesta investigação me dizem não se limita à ideia de exploração
das terras no Novo Mundo. Além disso, passagens de seus escritos que falam
sobre a natureza, me fazem crer que ela não estava inteiramente associada aos
interesses estrangeiros da chamada “limpeza do terreno.” Percebamos o que ela
anota sobre a cidade de Olinda: “Como o nome dá a entender, é uma linda
localidade, onde os morros moderados, mas abruptos, um belo rio, e uma espessa
floresta combinam-se para o encanto dos olhos” (GRAHAM, 1990, p. 129). Ela
também compara áreas de plantio com florestas virgens, deixando clara a sua
preferência pela natureza intocada:
61.
Os cafezais são os únicos terrenos
cultivados na redondeza e são intercalados tão densamente com laranjeiras, limoeiros
e outros altos arbustos, que parecem antes uma variedade das matas do que a
mescla de terreno cultivado com terreno selvagem, que seria de esperar tão
perto de uma grande cidade, onde contamos ver o trabalho humano aplicando-se
razoavelmente sobre a beleza rude da natureza. Mas aqui a vegetação é tão
exuberante que até as árvores podadas e tratadas crescem como se fosse na
floresta. (GRAHAM, 1990, p. 202)
62. Assim,
o que venho apontando na gravura de Graham, somado às percepções a respeito da
natureza que ela deixou nos relatos escritos, afasta-se do que normalmente se
pensa sobre a relação do homem com o mundo natural à época. Ao contrário,
encontra aporte no estudo exaustivo que Keith Thomas faz em seu livro O homem e o mundo natural: mudanças de
atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800), sinalizando que,
no final do século XVIII, se substituiu radicalmente a preferência das classes
educadas europeias (incluindo os viajantes) pela paisagem cultivada e domesticada
por um cenário selvagem, e que, por isso, haveria um interesse crescente de
preservação da natureza virgem como indispensável fonte de riqueza espiritual
(2010, p. 377-378).
63. Além
disso, Zubaran anuncia outro viés de “interpretação” das paisagens de Maria
Graham, com foco na prática da catalogação da natureza brasileira para a
comunidade científica europeia, de modo que “[...] se nos séculos XVI e XVII o
encanto da viagem remetia à descrição do encantado e do maravilhoso, o encanto
da viagem dos séculos XVIII e XIX estava na possibilidade de fortalecer uma
ciência natural em consolidação” (GUIMARÃES, WORTMANN, 2010, p. 309).
64. Entretanto,
“[...] a paisagem do século XIX não pode ser reduzida à chave naturalista. Ela
depende de modelos de interpretação, que lhe fornecem imagens” (BELLUZZO, 2008,
p. 44). Assim, voltando a Salta de água,
minha argumentação vai na direção de que a cena parece construída de forma
idealizada e o “toco” seco, que antes havia sido uma árvore, não parece
fornecer dados que possam contribuir para uma catalogação botânica. Obviamente
Maria Graham esteve associada, em determinado momento, ao investimento dos
“artistas viajantes” na construção de uma História Natural, como sugeriu
Zubaran. Todavia, também encontramos imagens da artista inglesa que contribuem
para o tensionamento de sua produção artística com uma ideia de política
ambiental. Caminho que sugere dois distanciamentos do empenho de pesquisa de
Zubaran: primeiro, encarar essa produção como objeto artístico e, segundo relacioná-lo
com um viés ecológico.
65. É o
caso da Árvore do Dragão em Tenerife
[Figura 6] produzida a partir do desenho que a artista
fez no ano de 1821, em uma das paradas da viagem com destino ao Brasil. No tronco
da árvore, ela inseriu a inscrição “1819” [Figura 7] e, em seu
diário, anotou: “Humboldt celebrizou esta árvore quando estava em pleno vigor.
É hoje uma nobre ruína. Em julho de 1819 a metade de sua nobre copa caiu. A
ferida foi coberta com massa. A data do desastre está ali assinalada” (GRAHAM,
1990, p.112).
66. Nessa
anotação, fica claro que as concepções da artista em relação à natureza estavam
ligadas aos postulados do naturalista alemão Alexander von Humboldt
(1769-1859), o qual, além de influenciar as ideias de Bonifácio, criticou de
forma direta a degradação ambiental no continente americano (PÁDUA, 2004, pos.
2737). Em razão disso, Humboldt passou “[...]
a ser conhecido como o “pioneiro da ecologia moderna”, visto que seus estudos aprofundam-se nas questões relacionadas ao meio ambiente,
direcionando esforços na interpretação das relações entre os seres vivos e seu
habitat. Pelas suas análises e ações pode ser considerado o primeiro teórico da
proteção à natureza” (HASSLER, 2005, p. 82).
67. Ao
destacar Humboldt como um teórico da conservação dos bens naturais, o autor
reforça a teoria de que questões nesse sentido podem ter tocado Maria Graham e,
mesmo de forma indireta, tenham refletido em sua representação visual. Além
disso, a literatura de viagem de Humboldt “[...] marcou uma forma de literatura de viagem com forte inclinação
romântica [...]. Humboldt não se ausenta do texto que escreve. Pelo contrário,
uma estética da natureza vista através da sensibilidade do naturalista imprime
dramaticidade à literatura científica de viagem produzida por Humboldt”
(GUIMARÃES, WORTMANN, 2010, p. 309).
68. Mesmo
que os autores tenham afirmado isso com foco na literatura de viagem, observo
ecos dessa tendência na gravura em que Graham representa a árvore do dragão.[12]
A artista não se ausenta nessa representação. Ao contrário. Ela enfatiza algo
que afeta sua percepção e lhe atravessa, posiciona-se com grande sensibilidade
diante do que vê. Como vimos, ela tinha profundo apreço pelas árvores; logo, o
fato dela imprimir uma data no tronco de um dragoeiro, que, segundo ela, estava
com a existência ameaçada, invocando uma ideia de extinção, denota grande
empatia, associada ao que os autores chamaram de dramaticidade. Quando, em seu
diário, faz suas anotações sobre o fato, Graham é bastante enfática, e nos diz
que o desastre está assinalado. Esse envolvimento vai ao encontro do que Keith
Thomas (2010, p. 303) resgata dos escritos de William Marsden, de 1783,
afirmando que à época era impossível suportar a destruição de uma árvore antiga
sem um forte sentimento de remorso.
69. Outro
detalhe que serve como disparador nessa imagem, e no discurso que Graham tece
sobre ela, é o que Albelda identifica como a “metáfora da ferida.” Conforme o
autor, ela serve como um dos indicadores possíveis para se pensar o declínio
ambiental a partir das paisagens. Tal ideia “[...] não é nova na sua formulação, mas continua a nos
surpreender com sua intensidade contemporânea. A percepção da ferida é baseada
na ideia do cenário como um corpo extensivo, cuja integridade é danificada se a
continuidade de sua pele é cortada” (ALBELDA, 2014, p.19). Em sua
anotação, Graham chamou atenção para uma ferida literal na árvore, que, segundo
ela, foi coberta com massa (devido a sua seiva ter tonalidade avermelhada,
algumas pessoas a chamam de “árvore que sangra”). Todavia, o contexto
relacionado com a iminência de um desastre, da obliteração da existência de uma
espécie vegetal, não deixa de estar associado à “metáfora da ferida” que o
autor espanhol destaca.
70. Como
vimos no início desse artigo, em termos de narrativas em História da Arte,
observa-se uma tendência a enquadrar os objetos, nesse caso as paisagens,
dentro de períodos fechados, bem como em estilos e movimentos artísticos. Ou
até mesmo o estabelecimento de um corte cronológico, limitando as
possibilidades de trânsitos e aproximações entre as produções de diferentes
temporalidades, conforme afirma, por exemplo, Avancini: “O corte cronológico se dá com a emergência
da arte contemporânea entre os anos 60 e 80, fixando esse limite como o ponto
de parada para a pesquisa de um gênero artístico considerado já concluído. As
novas implicações entre a linguagem artística contemporânea e a paisagem são
outro tema amplo a ser pesquisado” (AVANCINI, 2012, p.17).
71. Contudo,
o presente estudo alia-se a um processo crescente que pretende revisar essa
historiografia que fixa limites temporais. Dessa forma, recorrendo ao uso do
anacronismo histórico proposto por Georges Didi-Huberman, sugiro possíveis
relações da discussão levantada acerca da obra de Graham com a de artistas que
estão produzindo agora.
72. Nesse
sentido, caberia observar, mesmo que brevemente, a aquarela Memorial de um pé-de-pera [Figura 8], de Lilian Maus (Salvador, 1983). Nesse
desenho, a artista contemporânea assinala, assim como Graham fez com a árvore
do dragão, a destruição de uma espécie vegetal. No primeiro plano, está o que restou
da árvore que dá título à obra. As sobras - galhos e tronco cortados - aparecem
apoiados em outra árvore que ainda resiste à “limpeza de terreno.” Lilian
diz[13]
que a obra nasceu quando, em uma de suas caminhadas pelo terreno de sua
família, no Morro da Borússia, onde fica seu ateliê, ela sentiu falta do
pé-de-pera, o qual havia sido importante para outro trabalho, Inventário de fauna e flora, de 2016,
pois era nessa árvore que ela fazia as observações de uma espécie de aranha. Ao
perceber que a árvore tinha sido cortada em tocos e que esses estavam escorados
em uma mangueira próxima, sentiu um vazio que lhe trouxe grande tristeza.
Embora houvesse uma “lógica” para o pai dela ter optado em derrubar a árvore, a
artista precisava registrar seu espanto e melancolia, resultando no memorial
que ela nos apresenta. Além disso, atento aos detalhes da aquarela de Lilian,
percebo uma solução que se assemelha ao que já discuti extensamente nesse texto
em relação à gravura Salta de água: o
contraste entre a destruição e a natureza exuberante.
73. A
segunda gravura da artista britânica que compõe essa discussão pode ser vista
como um memorial da árvore do dragão? É possível que sim. A diferença é que
Graham, tanto no retrato do dragoeiro quanto na paisagem que abre esse artigo
anuncia o início de tal desastre, enquanto Lilian não teve a sorte de poder
representar a árvore ainda com vida. Ambas, com soluções que se assemelham, mas
que em alguns momentos se distanciam, nos mostram o desastre assinalado.
74. Um dos
motivos que torna enriquecedor tomar os objetos artísticos sob um viés
anacrônico é a possibilidade de estabelecer estes trânsitos entre as imagens.
Nesta investigação, não são mais os artistas que viajam, mas as próprias
imagens, as quais se relacionam com outros contextos e são acrescidas de novas
camadas de significação. No movimento que faço aqui, Marcelo Chardosim e Lilian
Maus atualizam o que Graham sinalizou no início do século XIX. Essa
sinalização, que há tanto tempo nos é feita, precisa tomar força, frutificar.
Conforme indica Albelda:
75.
A arte tem potencial para instigar a
denúncia, como investigação, para ir contra opressões e além
disso, o artista tem a capacidade de criar pontes para outros mundos em
nosso mundo. Ele defende [...] que o lugar da arte na crise ecológica não fica
somente na epiderme, vai além, e não serve somente para defender valores ou
para retoque estético. Trata-se de fazer parte de uma mudança drástica. (ALBELDA
apud OLIVEIRA, 2016, p. 26)
76. Aproximando
a potencialidade que o autor vê no objeto artístico à História da Arte, vejo a
urgência com que ela precisa ser repassada para os discursos no âmbito dessa
disciplina. Acredito que o que tentei fazer aqui assume essa direção, mesmo que
tenha sido incipiente e possa merecer maior aprofundamento. Todavia, além de
tomar imagens da natureza sendo destruída como dispositivos para esse
tensionamento, penso que outras paisagens possam evidenciar tal dimensão
discursiva e servir como disparadoras para novos estudos.
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253-271.
______________________________
[1] Citação de Maria Graham
em carta datada de 28 de novembro de 1825.
[2] A gravura faz
parte do Diário de uma Residência no Chile durante o ano 1822, publicado
por Maria Graham em 1824, na Inglaterra.
[3] Maria Graham veio em
expedição ao Brasil, em 1821, a bordo da fragata Dóris, que aportou em Pernambuco; posteriormente, deslocou-se para
a Bahia e após, para o Rio de Janeiro (LACOMBE, 1990, s/p). Em 1822, ela foi,
ainda em expedição, ao Chile, retornando, em 1823, ao Brasil, a convite de Dom
Pedro I, para servir como educadora de seus filhos. Possuía conhecimentos apurados
de literatura, desenho e pintura, condição que a diferenciava da maioria das
mulheres de seu tempo, e que, talvez, tenha sido o motivo pelo qual ela pode se
lançar como uma “artista viajante.” Durante sua estadia no Brasil, dedicou-se a
escrever relatos do que via e produzir desenhos, apreendendo a paisagem local.
Esses desenhos foram agrupados no Diário de uma viagem ao Brasil, publicado
pela primeira vez em 1824, na Inglaterra. Outras imagens, que ela riscou de
1824 a 1825, a partir da encomenda de William Hooker, o então diretor do Kew
Gardens, encontram-se no
arquivo dessa instituição (MARTINS, 2001, p. 50).
[4] Cabe ressaltar que,
devido ao limite espacial e temporal, bem como aos objetivos desse texto, não
trouxe aqui uma revisão extensa das representações visuais da Maria Graham. Do
conjunto da obra a que tive acesso, escolhi apenas algumas paisagens cujas
soluções contribuem para a discussão proposta.
[5] Kenneth Clark foi um
prestigiado historiador da arte britânico. Um dos seus esforços de pesquisa
mais conhecidos foi o que resultou no livro Paisagem na arte (Lanscape into art. Londres, 1949).
[6] É importante deixar
claro, que no âmbito desse trabalho, as paisagens têm como foco,
principalmente, a apreensão do meio natural, o que não significa que os
conceitos utilizados se reduzam a esta forma de apreender a paisagem.
[7] Elaine Dias empenhou-se
em uma pesquisa extensa sobre o artista Félix-Émile Taunay, resultando no livro
Paisagem e academia: Félix-Émile Taunay e o Brasil (1824-1851). Além de
ser uma biografia intelectual do artista, a obra é referência importante para
quem se dedica ao estudo da pintura de paisagem no Brasil do século XIX, bem
como seu contexto dentro da Academia Imperial de Belas Artes.
[8] Viajantes franceses que
chegaram ao Brasil em 1857. O álbum Brasil pitoresco empreendido por
eles é considerado a primeira obra de viajantes publicada no país, com
ilustrações obtidas a partir de fotografias (SILVA, 2010, p. 83).
[9] Em entrevista ao autor,
por e-mail, no dia 20 de dezembro de 2017.
[10] A autora analisa os
desenhos botânicos de Maria Graham, enviados ao Kew Gardens, observando
suas anotações e apontando os interesses utilitários dessas espécies,
principalmente os usos medicinais. Consequentemente, a pesquisadora não olha
para essas imagens como produção artística.
[11] Isadora Eckardt da
Silva debruçou-se em um estudo exaustivo na sua pesquisa de Mestrado em Teoria
e História Literária, na Universidade Estadual de Campinas, sobre o diário de
viagem de Maria Graham e sua relação com os interesses britânicos no Brasil do
século XIX, resultando na dissertação intitulada O viés político e histórico
de Maria Graham em Diário de uma viagem ao Brasil, defendida no ano de
2009.
[12] A árvore do dragão, ou
dragoeiro (Dracaena draco), é uma
espécie típica das Ilhas Canárias. Atualmente enfrenta sérios riscos de
extinção, no seu hábitat natural. Sua seiva é explorada na fabricação de
tinturas e fármacos. Informações retiradas do sítio virtual: <http://serralves.ubiprism.pt/species/show/1288>.
Acesso em 30/05/2018.
[13] Em entrevista ao autor,
por e-mail, em 27/12/2017.