O desvelar da obra de Constantino Pedro Chaves da Motta
Renata de Fátima da Costa Maués [1]
MAUÉS, Renata de Fátima da Costa. O desvelar da obra de Constantino Pedro Chaves da Motta. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 2, abr./jun. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/cpcm_rfcm.htm>.
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O artista Constantino Pedro Chaves da Motta, que participou do cenário artístico no século XIX, é pouco conhecido e sua produção se perdeu quase que completamente, restando no Pará, apenas para apreciação do público, raras obras como a pintura Cólera Morbus [Figura 1] do Museu de Cametá e o retrato de Dom Pedro II localizado no Museu do Estado do Pará. No entanto, a tela que instiga esta pesquisa é a pintura histórica da cidade cametaense intitulada Cólera Morbus.
A obra foi restaurada pela Secretaria Estadual de Cultura por meio do Sistema Integrado de Museus e da Coordenadoria de Preservação e Conservação. Durante o transcurso desse processo foi realizada uma investigação, para fundamentar a intervenção restaurativa, pois não se tinha dados suficientes sobre o artista e sua produção no contexto do XIX. Várias informações referentes ao artista foram obtidas na obra de Meira Filho, Contribuição á História da Pintura na Província do Grão-Pará no Segundo Reinado (Esboço de um artista esquecido), com destaque para algumas informações sobre a viagem que Constantino da Motta fez a Europa para estudar na Academia Imperial de San Luca, em Roma, com bolsa paga pela Assembleia provincial do Estado. O artista permaneceu na Europa durante oito anos se aprimorando na técnica do desenho e pintura histórica, retornando ao Brasil em 1855, aportando no Rio de Janeiro “a fim de tirar o retrato de S.M. o imperador”, que foi encomendado para decorar e substituir “ao que está na sala das Sessões desta Assembleia” (GUIMARÃES citado por MEIRA FILHO, 1975, p.9). No esboço biográfico sobre o artista, (MEIRA FILHO 1975, p.12) encontra-se a ilustração do monarca Pedro II com a seguinte legenda: “Reprodução fotográfica da tela de Constantino Pedro Chaves da Motta, fixando o imperador D. Pedro II, hoje propriedade do Conselho Estadual de Cultura. Foi encomendada para compor os salões da Assembleia Provincial. [...] - assinada: C. Motta - 1875”.
A tela em referencia, que antes pertencia ao Conselho Estadual de Cultura, atualmente compõe a coleção histórica do Museu do Estado do Pará. As colocações de Meira Filho levam a crer que o retrato de D. Pedro II, seria o mesmo que foi solicitado ao artista para substituir o que existia na sala de Sessões da Assembleia Provincial em 1855, após seu retorno da Europa. Será que se trata do mesmo retrato? Entre os dois paira um tempo de vinte anos, o que nos leva a acreditar que a tela de D.Pedro II, que hoje se conhece, não seria a mesma que foi encomendada em 1855 em função da data que foi realizada, pois é certo que Constantino da Motta, não levaria todos esses anos para concluir uma encomenda. O artista, por ser um pintor do império, teria realizado várias pinturas da monarquia, retratando muitas vezes D. Pedro II. Este fato é relevante e deve ser considerado para o preenchimento de algumas lacunas existentes na biografia do pintor.
No que se refere a tela Cólera Morbus, objeto dessa pesquisa, trechos chamam atenção pelo conteúdo de informação que nos leva a determinar o período de sua execução. Meira Filho (1985, p. 9) transcreve relatório apresentado a Assembleia provincial pelo presidente Henrique Rohan, datado de 15 de agosto de 1856, onde é feita a encomenda da pintura histórica como uma forma do artista demonstrar os conhecimentos adquiridos durante sua estada na Europa:
[...] Às expensas da Província, foi estudar pintura histórica em Roma o pensionista Constantino P. Chaves da Motta. Parecendo-me justo que se lhe proporcionasse a ocasião de apresentar um trabalho, por meio do qual se pudesse conhecer seu aproveitamento, encarreguei-o de compor um painel tomando por assunto a heróica dedicação do falecido vice-presidente Ângelo Custódio Correa, vítima de epidemia que o anno passado assolou está província. [...] para que a verdade histórica não fosse prejudicada na mais insignificante circunstância, deliberei que o pensionista fosse a Cametá, a fim de não só tomar a paisagem da Pátria do ilustre finado, como para obter todo e qualquer esclarecimento que julgasse necessário, para a execução do seu projeto.
A tela encomendada para servir de prova de ofício, retrata a comitiva do Vice-presidente da Província Ângelo Custódio Corrêa à cidade de Cametá, prestando solidariedade a comunidade assolada pela cólera. Após a conclusão da obra, Meira Filho (1975, p.13) esclarece que ela ficou guardada no Liceu Paraense (hoje Colégio Estadual Paes de Carvalho), sendo posteriormente entregue ao município de Cametá, não se conhece, até o momento, o período que ocorreu tal transferência.
Meira Filho, (1975, p.10) também cita outro relatório do vice-presidente da província Dr. Ambrósio Leitão da Cunha de 15 de agosto de 1558:
Tendo um de meus antecessores mandado entregar ao pintor Constantino Pedro Chaves da Motta a quantia de 100.000 reis para os primeiros arranjos do quadro histórico que mandou pintar em comemmoração da heróica dedicação a sorte da humanidade, que manifestou o sempre lembrado vice-presidente desta província Dr. Ângelo Custódio Correa na calamitosa quadra de cólera morbus; havendo ainda mais a presidência mandado vir uma factura de tintas das necessárias para semelhante quadro [...] devendo abater-se da importância por que for contractado o quadro a das tintas fornecidas pela presidência e a dos 100.000 reis entregues ao pintor.
Essas informações chamam a atenção, pois elas apontam para o período da construção da obra Cólera Morbus que não possui assinatura e datação. A encomenda da tela foi feita no ano de 1856 e em 1858 ainda temos informação sobre a compra de tintas para a execução da mesma. Isso leva a crer que a tela deva ter sido executada nesse início da segunda metade do século XIX.
Portanto pode-se dizer que mais de cento e cinquenta anos após a sua feitura, está de volta ao cenário das artes paraense à obra de Constantino Pedro Chaves da Motta que recentemente passou pelas últimas etapas de restauração. A tela durante todos esses anos sofreu várias intervenções, o que a mutilou de forma irrecuperável, modificando suas características formais e estéticas. Diante dessa constatação, outras informações foram sendo desveladas no transcorrer dos processos restaurativos, nos levando a refletir sobre os procedimentos empregados na recuperação do bem cultural.
As ações de preservação realizadas no processo de recuperação de um bem, quase que praticamente perdido, nos leva a desvendar informações que anteriormente não se conhecia, ou então a modificar fatos dados como certos pela história e pelas fontes então disponíveis. E como em todo processo de investigação os fatos surgem como que no desvelar de “um velho documento em decomposição” (FARIAS, 2007), que guarda em si informações concernentes a sua própria história de construção e, como fonte documental, torna-se testemunha de uma época.
A tela Cólera Morbus é um exemplo disso, reconhecida por alguns como importante documento, foi foco de vários apelos para a sua recuperação e agora podemos dizer que tais solicitações feitas pela comunidade foram atendidas! Esse processo não foi simples. Foi necessário transpor várias barreiras impostas por alguns indivíduos cujos interesses não incluíam o interesse coletivo. O processo demorou, mas o resultado valeu à pena!
O inicio da recuperação desse valioso bem para a história da arte paraense se deu com o estabelecimento de um convênio firmado entre a Secretária de Estado de Cultura e a Prefeitura Municipal de Cametá. Este convênio de cooperação técnica institucional tinha claro como objetivo a restauração da tela Cólera Morbus, pertencente ao acervo do Museu Histórico de Cametá Raimundo Penafort de Senna.
A tela bastante comprometida havia sido removida no ano de 2008, pelos técnicos da Secretaria de Cultura, do antigo Museu onde estava “Coberta por um teto crivado de goteiras, instalada sobre frágeis cavaletes nas proximidades de um banheiro (com torneiras em constante vazamento)” conforme descreve Farias (2007), para uma nova sede, onde permaneceu esperando durante um ano, sua transferência para Belém.
O processo de recuperação da obra teve início no dia 29 de outubro de 2009 quando a equipe do Sistema de Museus se dirigiu ao município de Cametá para efetivar o convênio de cooperação técnica. Nesse período, foram feitos processos de limpeza, higienização e acondicionamento com o intuito de protegê-la de danos maiores aos já existentes. Foram realizados os procedimentos emergenciais, a proteção da capa pictórica, além do acondicionamento e embalagem para possibilitar o transporte da obra até a cidade de Belém, onde seria realizado o tratamento de restauro da pintura e de sua moldura. O traslado da obra a capital paraense foi efetivado via terrestre no dia 4 de novembro, sob a responsabilidade do município cametaense.
De grande dimensão, a obra apresentava avançado estado de degradação, com comprometimento estrutural tanto da pintura como de sua moldura. O suporte da obra e a camada pictórica possuíam danos resultantes do descaso e do abandono de décadas, com rasgos, vincos, ondulações, ressecamento, perdas de policromia, perdas de suporte e escurecimento da camada de verniz, o que comprometia a visualidade da gama cromática, onde quase não se podia perceber a temática abordada.
Os elementos composicionais estavam encobertos pelo grande acúmulo de sujidades impregnadas que se acumularam em sua superfície durante todos esses anos em que esperava quase que totalmente arruinada pela ação do tempo e por intervenções inadequadas que descaracterizou e mutilou a pintura.
Com a chegada da obra ao laboratório de restauração do SIM, a equipe tinha a sua frente uma enorme responsabilidade e um grande desafio, Devolver a este patrimônio cultural seu estado conhecido ou suposto, mitigando os processos de degradação e atuando na recuperação física da pintura. Várias descobertas foram feitas durante essas etapas, o que instigou a percepção dos técnicos e restauradores e modificou a dinâmica da proposta de tratamento estabelecida.
Para o início da restauração, foi realizada a análise do estado de conservação, sendo avaliadas as possíveis causas de deterioração. Diante dessas informações, foi definida uma proposta de tratamento para a pintura, que buscou resolver os problemas estruturais do suporte, a higienização e remoção da sujeira impregnada, do verniz amarelado, de intervenções e repinturas grosseiras para finalmente, recompor e reintegrar as áreas de perdas, com vias a restituir a potencialidade da obra de arte e possibilitar assim a percepção de sua totalidade sem a fragmentação que existia anteriormente e que comprometia a apreciação da tela. Brandi (2004, p.29) afirma que a obra de arte apresenta uma dupla instância - a estética e a histórica - e no processo de restauração é necessário ter isso como vetores para a intervenção, reconhecendo a obra como obra de arte e sua ‘artisticidade’, respeitando seus valores estéticos e históricos, resguardando as informações contidas no objeto, sem criar falso histórico.
Com o começo dos trabalhos, a obra foi removida do chassi. Ela já havia sofrido uma intervenção anos atrás que a aderiu em outro tecido, processo conhecido como reentelamento. Como este novo tecido estava comprometido pelo ataque de insetos e fungo, foi retirado. Após esta remoção, foi possível fazer uma análise mais acurada do verso original da pintura. Qual não foi a surpresa dos restauradores quando se depararam com vários remendos e cortes que iam de uma extremidade a outra. As informações que existiam anteriormente, contadas por alguns moradores cametaenses, era que a tela havia sido cortada em sua lateral para que pudesse ser ajustada a uma determinada sala em uma repartição pública. Esse dado referente ao corte na obra foi citado por Meira Filho, informando que apesar de não ter provas: “[...] um pedaço do quadro, antes, destruído pelo descaso, teria sido retirado, na lateral esquerda da tela, reduzindo-a em cerca de sessenta centímetros de alto a baixo e eliminando parte interessante do trabalho” (MEIRA FILHO, 1975, p. 25, grifo nosso).
A tela é uma pintura a óleo que apresenta atualmente as seguintes dimensões: 157 cm de altura por 335 cm de comprimento. Sua configuração original pelas características encontradas é que poderia apresentar entre 200 a 210 cm de altura, pois observamos que para a construção da tela o tecido (suporte) era constituído em três pedaços de cerca de 60 a 70 cm cada um, cerzido de forma delicada com pequenos pontos de costura [Figura 2].
Após cuidadosos exames, foi constatado que a tela sofreu uma grande intervenção que possivelmente alterou seu tamanho original. Ela realmente foi cortada, pois era visível não na lateral esquerda, como informou Meira Filho, pois nesse lado podem-se observar os limites finais da obra, mas sim, na lateral direita, onde se observa cortes retos provavelmente feitos por uma tesoura ou estilete. Acredita-se que os cortes são resultantes de antigas “restaurações”, somente para remover as áreas das extremidades, comprometidas pelo contato do prego utilizado para fixá-la em seu chassi. A quantidade de tecido removido na lateral direita da pintura possivelmente não ultrapassou dez centímetros ou os limites determinados pela pintura. Essa observação liga-se a percepção da composição da extremidade da pintura delimitada pelo tronco de uma árvore. Entretanto a grande mutilação não estaria nas laterais da obra e sim na parte superior, onde foi cortada de uma extremidade a outra, construindo um trajeto similar a telhado de casas com cortes retos na horizontal, na vertical e na diagonal.
É nesse momento que o dito popular “De boa intenção o inferno está cheio” adquire o mais pleno sentido. Quem executou essa ação, a fez talvez com as melhores intenções, porém não redime sua culpabilidade na mutilação permanente da obra que teve de fato sua dimensão reduzida em quase sessenta centímetros, como disse Meira Filho. Ele só não iria acreditar que seria em sua maior extensão. Outro grande pedaço também foi removido no quadrante inferior direito, onde se observa um grupamento de pessoas no primeiro plano.
A princípio, ficou a dúvida com relação a esses grandes remendos, e o porquê de tal ação. Após o estudo da trama verificou tratar-se do mesmo tecido do restante da obra. Isso foi confirmado através de prospecções feitas na camada pictórica onde foi encontrada a pintura original que correspondia a uma grande área azul (possivelmente área de céu) com vegetação no canto esquerdo da obra com folhas que corresponderia a rama de uma palmeira. A mesma palmeira que delimita a pintura e que está seccionada na área do tronco próximo a copa da árvore.
A explicação mais plausível para tal ação seria que o “dito restaurador”, diante de áreas extensas de degradação localizada na parte superior da pintura, resolveu removê-las, diminuindo o tamanho da obra, reaproveitando as áreas que se encontravam em condições de serem reutilizadas. Essa degradação corresponderia aos quadrantes superiores e outra na parte inferior da lateral direita da obra. A obra foi cortada, diminuindo o tamanho na vertical. Nessa área foi feita uma repintura para reintegrar a composição da paisagem, anulando a área correspondente ao céu que possuía um tamanho maior que o existente hoje. O tecido utilizado no remendo da área de baixo, também apresenta uma pintura subjacente azulada o que leva a crer que fazia parte da área superior e foi aproveitado para fazer enxerto na área de perda [Figura 3].
A decisão de restituir ou não o tamanho original, dos procedimentos que seriam tomados frente a essas informações, foram difíceis. Mas a equipe considerou que seriam necessárias informações mais precisas para a recomposição das características e tamanhos referentes aos momentos de sua feitura. Por fim, a equipe decidiu manter a pintura com o mesmo tamanho, quando chegou ao laboratório de restauração, pois vários fatores foram avaliados e levados em consideração. Um deles foi o respeito à obra e a maneira que se apresenta diante da comunidade. Esse tamanho e paisagem modificada, mesmo tendo sido feita posteriormente, acabou sendo incorporada pela obra e pelas pessoas que a conhecem. Coube a equipe de restauradores registrar o processo, sanar os danos, consolidar o suporte, remover as intervenções que comprometiam a visualidade, restituindo a potencialidade estética através das reintegrações de lacunas e áreas de perda.
O trabalho foi realizado levando em consideração todos os critérios restaurativos, seguindo os princípios da legibilidade, estabilidade e reversibilidade, garantindo a sua integridade, facilitando e possibilitando que no futuro novos procedimentos restaurativos possam ser utilizados sem o comprometimento da Pintura.
A restauração trouxe a luz importante informações sobre a Pintura de Constantino Pedro Chaves da Motta, comprovando, corrigindo e desmitificando alguns dados referentes à sua composição formal e estética e as comprovadas alterações sofridas ao longo dos anos. Restaurada, ela retoma seu status entre as pinturas históricas de maior importância do Estado do Pará, podendo ser novamente apreciada por todos.
Referências bibliográficas
BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. São Paulo: Ateliê editorial, 2004.
FARIAS, Edison. Tramas e dramas sobre a tela de Constantino da Motta. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 2, abr. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/cm_tramas_imagens.htm>. Acesso em: 20 mai. 2010.
FILHO, Augusto Meira. Contribuição á História da Pintura na Província do Grão-Pará no Segundo Reinado (Esboço de um artista esquecido). Belém, 1975.
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[1] Bacharel em Artes, com habilitação em gravura e especialização em conservação e restauração de bens culturais móveis pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Aluna do Mestrado em Artes do Instituto de Ciências das Artes - ICA da Universidade Federal do Pará - UFPA. É professora da disciplina Conservação e Restauro I e II do Curso de Artes Visuais e Tecnologia da Imagem da Universidade da Amazônia - UNAMA. E-mail: rfcmaues@terra.com.br